Queridos amigos,
Este ensaio rigoroso e muito bem elaborado de António Duarte Silva será posteriormente reelaborado por este autor e plasmado no livro "Invenção e Construção da Guiné-Bissau", uma obra admirável que ainda é possível adquirir.
Traça a conceção da Guiné como colónia-modelo, na visão de Marcello Caetano, refere as cautelas do poder português face à atmosfera anticolonial não só à escala mundial como à volta da região guineense e disseca a fundação do PAI, o massacre de 3 de agosto de 1959 e as decisões da reunião de 19 de setembro desse ano, em Bissau.
Pela sua coesão e objetividade, é um documento de referência, até pelas dúvidas que levanta quanto à reunião de 1956.
Um abraço do
Mário
Guiné-Bissau: a causa do nacionalismo e a fundação do PAIGC
Beja Santos
Na publicação Cadernos de Estudos Africanos, n.º 9/10, dedicada às Memórias Coloniais, o historiador António E. Duarte Silva, de quem temos feito várias referências aos seus livros, designadamente ao mais recente, publicação da Almedina, “Invenção e Construção da Guiné-Bissau”, 2011, que ainda é possível encontrar no mercado, publicou um artigo cujas ideias centrais me parece da maior utilidade aqui reproduzir. É o que se segue.
O autor chama a atenção para a escolha da Guiné como primeiro campo de ensaio da política de Marcello Caetano enquanto Ministro das Colónias, baseada tal política numa progressiva autonomia administrativa com desenvolvimento económico e social e com olhar atento à conjuntura internacional do pós-guerra e ao sentimento anticolonialista. Marcello pretendia uma equipa que saneasse a política colonial do “ambiente de depressão e intriga”. A escolha recaiu em Sarmento Rodrigues, a sua governação ficará inesquecível: reforço da administração colonial, construção de uma rede de infraestruturas, lançamento de uma investigação cultural e científica que ainda hoje é referência. O seu sucessor será Raimundo Serrão, traz novas instruções do novo Ministro, Teófilo Duarte, as preocupações agora centram-se na economia, sobretudo na cultura do arroz e em produtos de exportação. O novo governador não tem a aura do anterior, inaugurou muito e interessou-se verdadeiramente pelo incremento agrícola.
A colónia reposicionava-se com a mudança da capital em 1941. O Subsecretário de Estado Raul Ventura percorre a Província em 1953, visita inclusivamente a Granja do Pessubé “na companhia dos Engenheiros Agrónomos Nobre da Veiga e Amílcar Cabral”. O novo Governador será o Capitão-de-Fragata Diogo Mello e Alvim, então Governador da Zambézia. É Ministro das Colónias Sarmento Rodrigues. Mello e Alvim escreve ao Ministro que a Guiné estava muito diferente daquela que Sarmento Rodrigues deixara em 1948: “todos mandavam e ninguém se entendia. A pouco e pouco, tenho chamado os comandos ao Governo que posso assegurar-lhe que, presentemente, já voltou a haver mais um bocadinho de ordem e tudo; nas despesas, na disciplina e até, perdoe-me o desabafo, na justiça. Os indígenas vêm em mim um continuador da sua obra".
Rafael Barbosa e Amílcar Cabral na Granja de Pessubé, 1952.
Imagem retirada de Casa Comum, Fundação Mário Soares, com a devida vénia.
A PIDE demora a instalar-se, a sua rede só será completada em junho de 1958, mediante a criação de cinco postos em S. Domingos, Catió, Bafatá, Farim e Gabu, todos dependentes da sede em Bissau. É à Polícia de Segurança Pública que devemos as primeiras notas sobre movimentações subversivas em Bissau. A PSP, com data de 3 de maio de 1955, registou as reuniões dirigidas por Amílcar Cabral visando a constituição de uma associação desportiva e recreativa. Os estatutos da associação não foram aprovados e a PSP registava que “o engenheiro Cabral e a sua mulher comportaram-se de maneira a levantar suspeitas de atividades contra a nossa presença nos territórios de África com exaltação de prioridade dos direitos dos nativos". Há igualmente referências de várias fontes que terá sido criado em Bissau um Movimento para a Independência Nacional da Guiné, mas não há qualquer prova da atividade nacionalista deste grupo.
Há uma greve dos descarregadores africanos em 6 de março de 1956, a polícia não utiliza a força, Mello e Alvim foi à esquadra libertar os detidos. Em setembro desse ano, Amílcar Cabral chega a Bissau para visitar a família. Chega o momento de referir a reunião de 19 de setembro de 1956 em que Amílcar Cabral interveio num círculo de amigos para propor a constituição de um partido político com o objetivo de alcançar a independência da Guiné e Cabo Verde, o Partido Africano da Independência (PAI).
Há bastante nevoeiro sobre esta reunião: não há qualquer documento comprovativo, há testemunhos postos em causa, não há sequer consenso quanto ao número de fundadores nem quanto ao alcance efetivo da reunião, para além da intenção de formar um partido político. Para o autor, esta reunião de 19 de setembro e a intervenção de Amílcar Cabral terão sido apenas o momento do lançamento do PAIGC como ideia e organização nacionalista. Anos mais tarde, no seu trabalho de doutoramento, Julião Soares Sousa dirá que era totalmente impossível nesta data Amílcar Cabral estar em Bissau.
Em novembro de 1957, Amílcar Cabral e Viriato da Cruz convocaram a recente “diáspora parisiense” (Mário Pinto de Andrade, Guilherme Espírito Santo e Marcelino dos Santos) para uma reunião de consulta e estudo para o desenvolvimento da luta nas colónias portuguesas. Serão provados princípios e resoluções e fez-se o lançamento do MAC – Movimento Anti-Colonialista.
Em agosto de 1958, uma dezena de quadros forma em Bissau um Movimento de Libertação da Guiné (MLG). Diz o autor que era um movimento nacionalista que se pretendia continuador da republicana “Liga Guineense” e defendia que a Guiné se deveria tornar num Estado Federado da República Portuguesa.
Nesse mesmo ano chega à Guiné a “Missão de Estudo dos Movimentos Associativos em África”, chefiada por Silva Cunha, aproveito para lembrar ao leitor que se fez uma ampla recensão dos trabalhos desta missão. Silva Cunha não acreditava num perigo imediato de “efeitos de reação antiportuguesa”, mas podia “surgir, de um momento para o outro, em resultado de influências externas”, atendia naturalmente ao que se estava a passar na nova República da Guiné.
O Capitão-Tenente Peixoto Correia é designado Governador da Guiné em outubro de 1958, chegará a Bissau no final do ano. E o autor recorda que também em meados desse ano visitara a Guiné Armando de Castro, estava a preparar um estudo destinado ao Partido Comunista Português, escreveu que se desenvolvia entre os guinéus uma “resistência surda à exploração, e havia repressão policial, comprovada com a recente instalação da PIDE".
António Duarte Silva é dos historiadores que tem mais apurada investigação sobre o chamado Massacre do Pindjiguiti, tive oportunidade de lhe enviar o relatório confidencial do gerente do BNU da época, confirmou-me que as informações batem certo com os elementos de que dispõe e que constam dos seus trabalhos. As consequências serão múltiplas, os acontecimentos serão aproveitados pelo Movimento de Libertação Nacional das Colónias Portuguesas. Logo em 7 de agosto, em carta a Ruth Lara, escrita em Kano (Nigéria), Amílcar Cabral informava-a, de modo telegráfico, que na Guiné houvera “há dias 7 mortos e 5 feridos”. Em carta de 24 de setembro, resume aos seus amigos do MAC a sua ida a Bissau e dá mais pormenores sobre o balanço de mortos, teriam sido 24, mais 35 feridos, alguns muito graves.
Durante a sua estada de uma semana em Bissau, Amílcar Cabral realizara “a mais decisiva reunião” da história do PAIGC, nessa reunião de 19 de setembro o movimento nacionalista adotara várias medidas que se irão revelar estratégicas, tais como: evitar manifestações urbanas e deslocar a ação para o campo, mobilizando e organizando os camponeses; preparar-se o recurso à luta armada; transferir parte da direção para o exterior, indo Amílcar Cabral instalar-se em Conacri.
De acordo com o autor, três documentos testemunham esta importante reunião: um relatório confidencial da autoria de Cabral onde são compulsadas as medidas tomadas e as conclusões; a “Carta da Frente de Libertação da Guiné e Cabo Verde”, também assinada por Amílcar Cabral; uma expressiva carta enviada de Conacri, em 16 de junho de 1960, assinada por Cabral onde conclui com incitamentos e pedidos de notícias, identificando-se como Secretário-Geral do PAI. Como diz o autor, o PAI só vai afirmar-se publicamente aquando das intervenções dos representantes do MAC na II Conferência Pan-Africana, realizada em Tunes, em fins de janeiro de 1960. Numa outra conferência realizada em Dacar, em outubro de 1960, o PAI altera definitivamente a sigla para PAIGC.
Perto da conclusão, o autor observa que o massacre do Pindjiguiti se tinha convertido no símbolo da libertação na Guiné-Bissau. O “3 de agosto” passou mesmo a ser o dia da solidariedade internacional com os povos das colónias portuguesas e o dia da proclamação da ação direta, na Guiné, em 1961. A subversão não veio do exterior da Guiné nem foi desencadeada por associações influenciadas pelo Islão. Começou em Bissau, liderada por uma elite política urbana e crioula.
No período subsequente, após as resoluções sobre a descolonização aprovadas pela ONU em dezembro de 1960, os movimentos nacionalistas privilegiarão a defesa da nova legalidade internacional. Esta linha predominará na Guiné-Bissau até aos princípios de 1963, tudo mudará com a luta armada. E assim conclui António Duarte Silva: “O PAIGC ainda sobrevive como sigla. Tudo aquilo por que lutou e chegou a alcançar – libertação nacional, paz, progresso, independência, melhoria das condições de vida, unidade Guiné-Cabo Verde, um Estado, uma Constituição – falhou, está em ruínas, desapareceu. Se a libertação viera do campo, Bissau, a cidade, tudo devorou.”
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Nota do editor
Último poste da série de 17 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19110: Bibliografia de uma guerra (94): “Tu não viste nada em Angola”, por Francisco Marcelo Curto; Centelha, 1983 (2) (Mário Beja Santos)