domingo, 8 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20714: Blogues da nossa blogosfera (125): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (40): Palavras e poesia


Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.


IN LIMINE

ADÃO CRUZ

© ADÃO CRUZ


Pelos caminhos de prantos e sorrisos
dentro de um tempo farto de horas sem minutos
a vida vai colhendo flores que murcham
por não serem simples flores ou flores simples
sem exigências de estufa ou jardim
flores de terra húmida
céu por cima e sol de permeio.
Em tudo o que me é vida
interfere a vergonha de ser adulto.
Descortino as janelas
que me disseram haver dentro dos homens
e só vejo muralhas.
Nada de crianças.
Os homens comeram as crianças
os homens comeram-se crianças
os homens pariram-se adultos.
Os pongídeos chegaram a homens.
Quinze milhões de anos
para o homem ser bicho…!
Bicho erecto
rastejo de púrpura.
Eu nasci na erva e dormi no feno
e acordei com a voz dos melros e rouxinóis
e saltitei com os pardais
vesti-me de sol e despi-me de luar
estreei o mundo no abraço das árvores e no beijo dos rios.
Meus olhos dormidos casavam a noite e o dia
no mesmo silêncio de sonho-menino.
A vida viveu em mim
crescendo todos os tamanhos
e medindo todos os céus.
Também eu fui criança
e matei em mim a criança que procuro
ao pensar que eram de amor
as mãos que a mataram.
Passei a vida a correr tropeçando nas sombras
arrumei ao canto da luz mil horas vazias
sangradas a curricular futuros
para ser gente na praça dos homens.
Pisei os passos pequeninos nos avessos da verdade
e palmilhei léguas vagarosas a tossir poeira.
Vestido de ausências
fui renascendo de amor pela vida fora
nos infinitos da fantasia
que outros foram matando lentamente
com fruído prazer.
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20697: Blogues da nossa blogosfera (123): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (39): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P20713: Blogpoesia (663): "Por sendas e becos...", "O verso que falta" e "Pás do moinho", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana, que continuamos a publicar com prazer:


Por sendas e becos…

Por sendas e becos cirandam macacos.
Se perderam do bosque.
Ou fugiram da jaula.
Parecem sorrir e não sabem falar.
Soltam grunhidos.
Trepam às árvores e saltam nos ramos como ninguém.
Vieram à estrada e ficaram especados:
Outros macacos esquisitos.
De nariz empinado.
Usam camisa e gravata.
Fazem a barba e rapam a nuca que brilha ao sol.
Só andam ao alto e com as patas no chão.
Não lhes ligam nenhum.
Inchados,
Ficam contentes
Porque, só com uma corda, escalam rochedos e se julgam gigantes.
Não prestam para nada.
À beira daqueles,
São uns coitados.
Parecem uns vermes.

Bar, 7Momentos, 4 de Fevereiro de 2020
11h19m
Jlmg

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O verso que falta

Vou à procura do verso que falta.
Em vão esperei por ele todo o dia.
Sua viagem é uma incógnita.
Não sei donde ele vem nem mora.
Costuma abrir a manhã.
Jubilosamente, se faz sol.
Tristonho e macambúzio, se chove ou faz ventania.
Minha esperança não desespera.
Acaba por me bater à porta, nem que seja de madrugada.
A abro prazenteiro e ficamos na conversa, noite fora.
Um copo de bom vinho.
Me conta suas deambulações.
Por onde anda e com quem vai.
Sua escolha é cuidadosa.
É a dedo e não se engana.

Mafra, 6 de Março de 2020
21h33m
Jlmg

********************

Pás do moinho

As pás do moinho
Incessantes, rodam ao vento
As pás do moinho.
Silvam soturnas.
De noite e de dia.
Inverno e verão.
Geram energia,
Sustento da vida.
Trabalham de graça.
Moem farinha.
Fabricam o pão.
Velas acesas não ardem.
Batalham sem medo.
Não se deixam vencer.
Casinhas redondas,
Pintadas de branco,
Debruadas de azul.
Alegram os montes,
Caravelas do ar.
Quereriam ser remos
Dum barco à vela,
Sobre as ondas do mar
.


Mafra, 5 de Março de 2020
18h23m
Jlmg

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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Março de 2019 > Guiné 61/74 - P20696: Blogpoesia (662): "Lírios à borda da estrada", "Para minha defesa..." e "Planeta Terra", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P20712: Manuscrito(s) (Luís Graça) (179): Poema de circum-navegação ou o fado dos amantes no Dia Internacional da Mulher









Lisboa > Praia de Pedrouços > 5 de janeiro de 2020 > Partida do navio-escola "Sagres" para a viagem de 371 dias nas celebrações do quinto centenário da circum-navegação de Fernão de Magalhães.


Fotos (e legenda): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Poema de circum-navegação ou o fado dos amantes

por Luís Graça




Uma rosa não é nada
Neste Dia da Mulher
P'ra quem, amor, minha amada,
Tem tanto p'ra te dizer.

Se sete vidas tivesse,
Uma não queria perdê-la,
Para que contigo vivesse,
Provando sempre merecê-la.

Ao mundo uma volta dava,
Em barca que fosse forte,
Mas contigo naufragava,
Noutra ilha que nos desse sorte.

Fortuna, porém, não rima
Com os negócios do coração,
Nem creio na obra-prima,
Nem no génio da criação.

Importa o aqui e o agora,
Não o depois nem o antes,
Mas, quando me for embora,

Cumpre-se o fado... dos amantes!


Lourinhã, 8 de março de Vinte-Vinte,
... e que os bons irãs protejam os amantes 
dos novos coronavírus que por aí andam... 
à solta!
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Guiné 61/74 - P20711: Ser solidário (227): Vamos ajudar a "Ajuda Amiga", consignando-lhe 0,5% do nosso IRS... Recebeu em 2019 a importância de 2.240,48 euros... Vamos utrapassar esta verba este ano.


CONSTRUÇÃO DO COMPLEXO ESCOLAR AJUDA AMIGA, EM NHENQUE >

Esta escola irá resolver uma uma situação dramática, pois as crianças têm que atravessar uma bolanha com mais de um quilometro com crocodilos para irem à escola de Bera que fica do outro lado, devido à falta de escolas nesta zona. As crianças para conseguirem passar pelos crocodilos atravessam acompanhadas por familiares mais velhos, que levam paus para afastarem os crocodilos e as defenderem dos seus ataques. (*)


CONSTRUÇÃO DO PRIMEIRO MÓDULO EM 2021

PRECISAMOS DA TUA AJUDA

CONSIGNAÇÃO DE 0,5% DO IRS


A consignação dos 0,5% do IRS é uma receita importante para a Ajuda Amiga, tendo recebido em 2019 a importância de 2.240,48 €, referente à consignação dos 0,5% do IRS. (**)

A Ajuda Amiga agradece sensibilizada este vosso gesto solidário, e apela para que mobilizem outras pessoas para esta declaração solidária, para tal basta indicar no campo 11 da declaração o NIF da Ajuda Amiga e uma cruz no IRS como a seguir se indica.

É um gesto que irá permitir aos nossos voluntários que nada pedem para si ou para as suas despesas nos projetos, poderem criar infraestruturas para que as crianças tenham uma escola onde possam aprender a ler e a escrever, um poço com água potável, e livros para aprenderem, os quais defendem e promovem igualmente a língua portuguesa.




11
Consignação de 0,5% do IRS
Entidades Beneficiárias
Instituições particulares de solidariedade social ou pessoas coletivas de utilidade pública (art.º 32, n.º 6 Lei n.º 16/2001)
NIF
508617910
IRS
X


Com pouco podemos ajudar muito

Donativos em Dinheiro > Conta da Ajuda Amiga


NIB 0036 0133 99100025138 26


IBAN PT50 0036 0133 99100025138 26


BIC MPIOPTPL

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Guiné 61/74 - P20710: Parabéns a você (1766): Cor Art Ref (DFA) António Marques Lopes, ex-Alf Mil Art da CART 1690 (Guiné, 1967/69)

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Nota do editor

Último poste da série de 28 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20689: Parabéns a você (1765): José Rodrigues, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 1419 (Guiné, 1965/67)

sábado, 7 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20709: Os nossos seres, saberes e lazeres (380): A Bélgica a cores que guardo no coração, e para sempre (8) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Chega de vos inundar com imagens de recordações perenes de uma Bélgica que se foi conhecendo ao longo das décadas e sobrevive na memória, tal o encanto que provocou a este viandante. A despedida começa com o agradecimento a um museu icónico, os Museus Reais de Arte e História, é-se do tempo em que se podia passar um dia inteiro entre os primitivos flamengos até Francis Bacon e Alexander Calder, havia uma passagem entre o edifício neoclássico que nos levava a um subterrâneo, para o viandante o prato de resistência era a sala Magritte, hoje tudo mudou com a criação do Museu Magritte, ali ao lado.
E pula-se um pouco pela Bélgica, lembram-se joias da arte merovíngia, a última estação fica em Ypres, palco de um dos confrontos mais sangrentos da I Guerra Mundial, há para ali um arco comemorativo com centenas de milhares de nomes, percorre-se toda esta evocação aturdido pela gente inocente que aqui desapareceu num ápice, há inúmeros cemitérios à volta da cidade. E exatamente no momento em que se escrevem estas derradeiras palavras brota a vontade de regressar a uma cidade que se ama tão profundamente e onde o tédio nunca teve a categoria de ser uma má companheira.

Um abraço do
Mário


A Bélgica a cores que guardo no coração, e para sempre (8)

Beja Santos

Considera o viandante que chegou o momento para se fazer nova pausa neste entusiasmo inquebrantável que nutre pela Bélgica, pelo seu particular afeto à cidade de Bruxelas, que calcorreou sempre com a maior das satisfações, entusiasmado pela arquitetura, pintura, escultura, livrarias de obras em segunda mão, quinquilheiros, mercados de velharias, museus, jardins e florestas. Por coincidência ou não, uma boa parte das primeiras visitas de trabalho a Bruxelas metia mau tempo, o viandante procurou os mais convenientes portos de abrigo, aquilo que se tornou inesquecível, de retorno obrigatório, são os Museus Reais de Belas-Artes, ali, na sequência histórica das salas, com temporais e neve nas ruas, sentia-se aconchegado pelos primitivos flamengos, o museu é rico nos grandes mestres como Rogier van der Weyden, Hugo van der Goes, Hans Memling, a família Bruegel, Bosch. Naquele tempo, o museu avançava até à arte moderna, só muito mais tarde, com a criação do Museu Magritte, que lhe é contíguo, é que se deu a separação. De modo que, foram décadas em que o viandante começava nos primitivos flamengos e passeava-se toda a manhã até ao fim do barroco. Comida uma sopa e uma sandes acabava-se os séculos XIX e XX, contemplava-se sempre com a maior das admirações o riquíssimo acervo não só dos belgas como os franceses, tudo bem misturado: Théo van Rysselberghe, van Gogh, Fernand Khnopff, Pierre Bonnard, Paul Signac, James Ensor, Félicien Rops, Claude Monet.

Retrato de António da Borgonha, Rogier van der Weyden, cerca de 1430.

Retrato de Barbara van Vlaendenbergh, por Hans Memling, cerca de 1480.

“Carícias”, por Fernand Khnopff, 1896.

O retrato de Marguerite, por Fernand Khnopff, 1887.

O Museu de Arte Moderna fora inaugurado em 1984, entrava-se pelos Museus Reais, pela porta principal e à direita havia uma ligação para um edifício subterrâneo com oito níveis e com uma luz espantosa, dado um espaço ondulado em vidro. Exibiam-se então as coleções permanentes de esculturas, pinturas e desenhos do limiar do século XX até quase à atualidade, nesses sucessivos níveis, o visitante tinha acesso à arte conceptual e minimalista, a esculturas de diferentes épocas e de muitas proveniências, mergulhava, a outro nível, nas obras do fauvismo, cubismo, abstracionismo e expressionismo, era um nunca mais acabar de revelações: Emil Nolde, Pablo Picasso, Henri Matisse, Georges Braque, entre tantos outros. Nesse tempo havia a sala Georgette et René Magritte, um conjunto de vinte e seis telas, a visita era sempre obrigatória a este nível, sobretudo por causa do quadro “O Império das Luzes”. Tudo mudou com a criação do Museu Magritte, mudou o formato do Museu de Arte Moderna. As exposições de caráter mundial atraem multidões que extravasam os belgas.

Museu de Arte Moderna, Bruxelas, pormenor do exterior.

A Banhista, de Léon Spilliaert, 1910.

O império das luzes, por René Magritte, 1954.

Um quadro de Marc Chagall na retrospetiva que decorreu nos Museus Reais de Belas-Artes em 2015.

Saindo das recordações de Bruxelas, a memória salta para Namur, têm sido muitas as visitas, é o privilégio de ali ter uma amiga que o recebe sempre de braços abertos. Namur é a capital da Valónia e acolhe um património artístico fora de série. Os merovíngios foram fundamentais para consolidar o cristianismo na Bélgica, o viandante sempre que pode vai visitar estas peças encantadoras, verdadeiras joias da arte ocidental. A coroa relicário, como se acreditava, conteria espinhos da coroa de Cristo, foi oferecida por um regente do império bizantino a Filipe de Namur, no início do século XIII.

A coroa relicário de Filipe, O Nobre, Museu Diocesano de Namur.

Pequeno relicário merovíngio de Andenne, Museu Diocesano de Namur.

Em dado momento um grande amigo inglês pediu ao viandante se podia ir a Ypres, a certo cemitério fotografar duas lápides, ali estavam sepultados dois parentes que tombaram numa das mais sangrentas batalhas da I Guerra Mundial. O viandante deslocou-se a Ypres com um casal amigo, ficou arrepiado com o monumento comemorativo às centenas de milhares de mortos dessa carnificina, com algum trabalho atinou com as lápides e fotografou-as. Ypres é uma joia da Flandres, vê-se à vista desarmada que este mercado teve grandes retoques, mas é de uma imponência sem rival, tem a marca de água do gótico. E aqui se finalizam, até qualquer outro imprevisível retorno, as recordações da Bélgica, que acompanharão o viandante até ao fim dos seus dias.

O Mercado dos Têxteis de Ypres, reconstrução finalizada em 1967.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20694: Os nossos seres, saberes e lazeres (379): A Bélgica a cores que guardo no coração, e para sempre (7) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20708: (D)o outro lado do combate (58): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte V (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)


Inácio Soares de Carvalho [Naci,
Nacy ou Nassi Camará,
nome de guerra]
[foto: arquivo da família
]

Rafael Barbosa [Zain Lopes,
nome na clandestinidade]
 [foto de Leopoldo Amado,
Bissau, 1989]





Com a prisão de ambos, em narço de 1962, o PAI / PAIGC fica decapitado, na Zona 0 (Bissau) (*). Ao Naci Camará foi "fixada residência" no Campo de Chão Bom, Tarrafal, Santiago, Cabo Verde.  Zain Lopes ficou em Bissau, com a "obrigação" de se apresentar todos os dias na sede da PIDE...



Carta de Amílcar Cabral para Nacy [Nassi ou Naci...] Camará, com data de 1 de abril de 1962,  reagindo com muita emoção à notícia da prisão de Rafael Barbosa [Zain Lopes] e outros dirigentes do PAI [PAIGC] da Zona 0 [Bissau]... e dando instruções aos militantes que escaparam...

O destinatário, o Inácio Soares de Carvalho,  já não chegaria a ler esta carta, uma vez que também ele caira, quinze dias antes, em 15/3/1962, nas mãos da PIDE...  Foi um golpe duríssimo para Amílcar Cabral e para o seu partido, o PAI (mais tarde, já em 1962,PAIGC), que ficou decapitado, pelo menos na Zona 0 (Bissau) (**). Rafael Barbosa era o presidente do comité central, e figura de prestígio entre os mais jovens.

De entre as 10 ações que o secretário-geral, a partir de Conacri, preconiza, destaque para a nº 5:

"Levar o povo - todos os trabalhadores de todos os ramos -  a não fazer nada para os portugueses, a não trabalhar, a não pagar impostos, a desprezar os colonialistas. Começar a matar os agentes da PIDE. (sic")

Citação:
(1962), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_37408 (2020-3-6) (Com a devida vénia...)


Fonte:
Portal Casa Comum
Instituição:
Fundação Mário Soares
Pasta: 04609.055.004
Assunto: Notícias sobre a prisão de Zain Lopes , Momo e Albino. 
Instruções em relação à prisão dos referidos camaradas.
Remetente: Amílcar Cabral
Destinatário: Nacy Camara
Data: Domingo, 1 de Abril de 1962
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência dactilografada 1962-1964.
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral


1. Recorde-se o que escreveu aqui  Leopoldo Amado (historiador e nosso grã-tabanqueiro: tem 86 referências no nosso blogue, )  a propósito destes acontecimentos de março de 1962, que foram um duro revés para o PAI (sigla reformulada em finais de 1962, em que passou a ser PAIGC)(**):

(...) "O estabelecimento da sede do PAI em Bissalanca data de 1959, tendo funcionado até Fevereiro de 1962, altura [, na madrugada do dia 13 de março de 1962,] em que foi detectada e tomada de assalto pela PIDE com a ajuda de elementos do Exército português, tendo aí sido presos Rafael Barbosa, Momo Turé, Paulo Pereira de Jesus e outros elementos proeminentes do PAI surpreendidos em pleno sono. 

"Com a sede do PAIGC tomada de assalto pela PIDE e preso Rafael Barbosa, seu principal animador, foi desmantelada a rede clandestina do PAIGC em Bissau. 

"A alguns nacionalistas foram fixadas residência em Chão Bom, Tarrafal, excepto Rafael Barbosa que a troco de "colaboração", foi-lhe fixada a obrigatoriedade de se apresentar todos os dias na sede da PIDE em Bissau. Foi apreendido na sede do PAIGC imenso material de propaganda que incluía inúmeros panfletos, correspondências de Amílcar Cabral, para além de armas." (...)

Muitos destes factos, que hoje pertencem à Hustória dos nossos países (Portugal, Guiné-Bissau, Cabo Verde),  são, ainda desconhecidos da grande maioria dos nossos leitores.


2. Continuação da publicação de excertos do manuscrito   "Memórias da Luta Clandestina" (entretanto publicado, na Praia, capital de Cabo Verde,e lançado, no passado dia 30 de janeiro) (***). 

A reprodução desses excertos, no nosso blogue,  foi-nos devidamente autorizada por Carlos de Carvalho, filho de Inácio Soares de Carvalho. 



 Inácio Soares de Carvalho (1916-1994)


Nasceu na Praia em 29 de Abril de 1916. Foi em criança para a Guiné com os pais. No seu tempo haveria 1700 cabo-verdianos no território, muitos deles tendo posições de destaque na vida económica, social, cultural e político-administrativa da colónia portuguesa. 

Trabalhou no BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, desde 1939, até ser detido pela PIDE em 15/3/1962. 

Envolveu-se na luta política, filiando-se em 1956 no MLG – Movimento para Libertação da Guiné, por influência do seu compadre e colega de Abílio Duarte.

 Inácio Soares de Carvalho, que nunca viveu na clandestinidade, contrariamente ao Rafael Barbosa, será preso pela primeira vez pela PIDE, na filial do  BNU em Bissau, onde trabahava há mais de duas dezenas de anos.  É então deportado,  para o Tarrafal (, a partir da Ilha das Galinhas), aonde chega no início de setembro de 1962, numa leva de 100 presos, guineenses. Três anos depois, em 16/10/1965 e transferido para colónia penal da ilha das Galinhas, no arquipélago dos Bijagós.

Em 7/2/1967, é solto, pela primeira vez. Em 1972 e 1973, volta a passar pela experiência da prisão, em Bissau, até conhecer a liberdade definitiva com o 25 de Abril de 1974.  Há uma escassa meia dúzia de documentos no Arquivo Amílcar Cabral com o seu "nome de guerra", Nassi ou Naci ou Nacy Camará. 

Pertencia à "secção de informação e controle" do PAI (sigla original do PAIGC)  em Bissau, ele e o Rafael Barbosa (c. 1926-2007), reportanto diretamente a Amílcar Cabral, que vivia em Conacri. Em outubro de 1961, Rafael Barbosa, de etnia papel (Zain Lopes, na clandestinidade), é nomeado Presidente do Comité Central do PAIGC. 

Nos final dos anos setenta, Inácio Soares de Caravalho regressa à sua terra natal, Praia, Cabo Verde, e afasta-se praticamente da vida política activa. Vem a falecer em dezembro de 1994, sem ter visto publicadas as suas memórias políticas que comecçou a escrever, "após incessantes insistências dos filhos", e que deu por concluídas em 1992. 

"Nelas o autor narra factos novos, desconhecidos da maioria dos militantes, pois, infelizmente, poucos foram os combatentes da clandestinidade, sobretudo na Guiné, que deixaram escritos sobre essa vertente da luta protagonizada pelo PAIGC." 

(Informações biográficas fornecidas pelo filho, Carlos de Carvalho, nascido na Guiné, complementadas por LG.)

É possível haver um lançamento do livro em Lisboa. Em Cabo Verde, a edição é de autor e teve vários patrocínios.


3. Excertos do livro "Memórias da Luta Clandestina" - Parte IV (*)

(Continuação) 


A PIDE descobre a Base do Partido na Zona 0  (**)


No dia 11 de março de 1962, um domingo, o Pedro Ramos  teve a ousadia e o descuido de nos introduzir na Base o seu colega e amigo de infância, Carlos, mais conhecido por “Cacai Boca”. Esse facto acabou por constituir nossa desgraça.

Efectivamente, após o "Cacai" ter saído da Base, a sua primeira preocupação, como um “Bom Português”, foi dirigir-se imediatamente ao nosso inimigo e denunciar-nos. Estamos todos certos de ter sido ele, pois, tendo saído da Base no Domingo, 11, logo na madrugada do dia 13, terça-feira, surpreenderam Rafael Barbosa, Pedro Ramos, Momo Turé, Paulo Pereira de Jesus e Jorge da Silva, proprietário do lugar onde tínhamos instalada a Base. 

Pedro Ramos conseguiu fugir, dando um forte golpe a um soldado que o tinha segurado. Os outros foram todos presos e levados para a cadeia.  Pedro Ramos conseguiu ainda alertar o Albino Sampa que dormia numa casa que se situava um pouco mais afastada. Assim, os dois conseguiram fugir, tentando nessa mesma madrugada me contactar, o que era obviamente impossível. Quando amanheceu, logo cedo, apareceu em minha casa um jovem a dar-me a triste noticia de que prenderam o Rafael [Barbosa] e os outros colegas que dormiam com ele na Base.

No dia 13 de março de 1962 , cerca das 9 horas da noite, apareceram-me lá em casa o Albino Sampa e o Pedro Ramos. Com a porta fechada e a minha mulher de vigilância durante todo o tempo em que estivemos reunidos, contaram-me então como tudo se passou e começamos a buscar soluções para sairmos da situação difícil em que nos encontrávamos.

[...] Aproveitei para fazer um comunicado para o nosso Líder, narrando-lhe os últimos factos ocorridos; determinei também que avisassem todos os responsáveis e militantes para retirarem imediatamente para fora das fronteiras da Guiné, porque cedo ou tarde a PIDE chegaria a eles também; caso fossem apanhados, seriam barbaramente maltratados e estariam na contingência de perderem a vida. Esta minha decisão, enquanto Responsável de Segurança, era para evitar todo o mal que podia vir a acontecer. Também aproveitei para lhes dar um pouco de dinheiro para as despesas que teriam na fuga.


A terceira leva de prisão de dirigentes 


Foram presos o Menezes [Alfredo Menezes d’Alva] e o João Barbosa, primo do Rafael; poucos dias depois, levaram o Rosendo. 

Com estas prisões, tudo paralisou de novo, pois, os três companheiros presos tinham muita influência no desenrolar de nossa luta clandestina. Como devem compreender, eu estava mesmo desesperado e desanimado com a situação.

No dia seguinte às prisões, fui ter com a D. Irene [Fortes, esposa do Fernando Fortes ] e contei-lhe o sucedido, mas ela notou na minha cara que mesmo eu mostrava desânimo com o acontecido. Ela então com gesto de coragem falou comigo de forma brusca:

- O Sr. Inácio tem que ter coragem e saber enfrentar todos obstáculos que nos depararem.

Amigos, quando uma mulher diz a um homem assim, por mais fraco de espírito que fosse, teria que ter coragem e reagir. Depois de contar ao Rafael a conversa que tive com a D. Irene, ele então como homem decidido disse-me que realmente é assim mesmo que tem de ser, é preciso não desencorajar, nem desanimar; a luta é assim mesmo.

Dali então, ainda mais encorajado, me empenhei totalmente para o desenvolvimento de nosso trabalho, contando sempre com o firme apoio dessa mulher que,  mesmo tendo seu marido preso, nunca se desencorajou. Foi seguramente das primeiras firmes e corajosas mulheres que desde a primeira hora incorporou os ideais de nossa luta de libertação. Ela, por seu lado, enquanto o marido esteve preso, teve sempre o apoio e encorajamento de seu cunhado, o Alfredo Fortes [1].

Tendo encontrado o lugar seguro e dava-nos grande confiança.


A primeira prisão de Nassi Camara 


No dia 15 [de março de 1962], antes das 8 horas da manhã, apareceram dois agentes da PIDE na Gerência do Banco [, BNU]. Esses agentes foram falar com o nosso Gerente, Sr. Arruda, a explicar-lhe que foram à minha procura, mandados por um Inspector da PIDE, o Costa Pereira. 

O Gerente mandou-me chamar com o Saco Cassama, servente do Banco. Ao passar pela secção das Correspondências, ele alertou-me que estavam lá dois brancos que lhe parecia que eram agentes da PIDE. Quando me apresentei ao Gerente Arruda, ele apontou-me os dois homens,  dizendo que precisavam de mim. Estes convidaram-me para os acompanhar.

[...] Assim foi a minha primeira prisão, no dia 15 de Março de 1962, uma 5ª feira.


1ª passagem pela Ilha das Galinhas 


Na madrugada de 1 de setembro [de 1962], foram buscar-nos em Mansoa para levar à ilha das Galinhas.

Via João Landim [no rio Mansoa] , fomos levados no porão do barco "Formosa". Chegamos à ilha das Galinhas cerca das 16 horas. De seguida, fomos levados para o acampamento, onde já se encontravam outros presos oriundos da Zona Sul.

Na noite de 1 de setembro, dormimos todos nós presos concentrados num pavilhão grande. Naquela noite tiraram dois irmãos e foram matá-los a tiro. Só nós, que vivemos na pele as atrocidades cometidas pelos salazaristas, podemos contar o sofrimento que passamos, nessa altura da luta.


Da ilha das Galinhas para destino desconhecido


No dia 2 de setembro, de manhã cedo, tiraram-nos num total de 100 presos e encaminharam-nos para o Porto da Ilha das Galinhas, onde tínhamos desembarcado no dia anterior; meteram-nos no porão do mesmo barco "Formosa", com o rumo à Estação de Pilotos em Pontom; de seguida, meteram-nos no porão do vapor "África Ocidental" com destino desconhecido por nós. 

Só viemos a saber onde estávamos quando chegamos ao Porto do Tarrafal [em Santiago, Cabo Verde] onde nos mandaram sair de porão como animais de carga. Passamos muito mal durante todo o caminho. 

[Revisão / fixação de texto, para efeitos de edição neste blogue / notas dentro de parènteses retos: LG]

(Continua)
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Nota de Carlos de Carvalho

[1] Alfredo Fortes, natural da Ilha de S. Vicente, Cabo Verde, era na altura Chefe da Alfândega de Bissau. Na Guiné, foi também Presidente do grande clube desportivo UDIB (União Desportiva Internacional de Bissau).

Após a independência, desempenhou as funções de Embaixador de Cabo Verde na Holanda. Foi Deputado pelo MpD [Movimento para a Democracia] na II República. Morreu na sua ilha natal nos anos 90.
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Notas do editor LG:

(*) Listagem das zonas do PAIGC (cada uma com o seu responsável):  

Zona 0 - Bissau; Zona 1 - S. Domingos; Zona 2 - Farim; Zona 3 - Gabú Norte; Zona 5 - Gabú Sul; Zona 6 - Bafatá Norte; Zona 7 - Bafatá Sul; Zona 8 - Fulacunda; Zona 9 - Bissorã; Zona 10 - Cantchungo; Zona 11 - Bedanda; Zona 12 - Bijagós; Zona A - A determinar (Documento manuscrito, s/d, Arquivo Amílcar Cabral / Casa  Comum / Fundação Mário Soares)

(**) Vd, poste de 25 de fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - P569: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - II Parte

(***) Vd. postes anteriores da série >

5 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20705: (D)o outro lado do combate (57): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte IV (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

3 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20701: (D)o outro lado do combate (56): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte III (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

2 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20698: (D)o outro lado do combate (55): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte II (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

29 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20695: (D)o outro lado do combate (54): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte I (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

sexta-feira, 6 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20707: Notas de leitura (1270): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (48) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
O bardo já está em jeito de despedida, recapitula coisas que todos nós vivemos, como a chegada do correio, as obras nos destacamentos, a pulsão sexual e a chegada daqueles meninos que hoje são gente crescida e procuram o pai.
É o momento azado para pegar na "Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África" e enquadrar a estratégia militar, a atividade operacional, a ação psicossocial, a formação de tropas nativas, entre outros aspetos. Recordo-me de quando cheguei em finais de julho de 1968, vivia-se a euforia dos novos tempos, criticava-se asperamente o passado, agora é que era, íamos ter guerra a sério, os oficiais incompetentes já estavam a ser recambiados, o homem providencial visitava ao amanhecer os aquartelamentos, inteirava-se das dificuldades e exigia mudanças. Saberemos mais tarde que exarou um lote de instruções, introduzia mudanças. O homem providencial, como é de todos sabido, foi valeroso, mediático, avergou imensa esperança, isto enquanto o PAIGC era confrontado com os novos instrumentos da "Guiné melhor" e com aquela incómoda referência até aí esbatida, da existência de uma raiva surda entre guineenses e cabo-verdianos. E ao longo destas décadas tem sido possível, por múltiplos fatores, deixar no limbo, apoucar, denegrir, culpabilizar Louro de Sousa e Schulz pelo estado em que Spínola encontrou a Guiné quando aqui chegou, em maio de 1968.
Felizmente que as fontes falam, são papéis que precisam de ser lidos com equidistância. E ainda estamos no princípio de se chegar a uma outra visão prismática de como foi conduzida a guerra de 1963 a 1968. Recordo que ainda estão por consultar os arquivos do Ministério do Ultramar e do Ministério da Defesa Nacional. É bem possível que outro galo venha a cantar.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (48)

Beja Santos

“Para a avioneta aterrar
trabalhava-se com resignação.
Quando o correio se esperava,
às vezes não vinha avião.

Enquanto estivemos aquartelados,
nos arredores de Farim,
passou-se o bom e o ruim
mas hoje estamos descansados.
Houve o regresso de uns refugiados
e o chefe dos CTT se deixou apanhar.
Depois de muito se lutar,
Canjambari se ocupou
e uma pista se arranjou
para a avioneta aterrar.

Na piscina de Farim se ia nadar
e ia-se dançar na Morocunda e Nema
e de vez em quando se via cinema
e a Kadi se ia visitar.
Bichas se chegaram a formar
e uma teve um filho do Batalhão.
Ficou-nos de recordação
os bons e maus tempos passados
no mato contra os malvados
trabalhava-se com resignação.

O pão em Jumbembem era jogado
a qualquer hora do dia
e muitas vezes caía
fora do sítio marcado.
O correio também era lançado
e às mãos dos rapazes chegava.
Uma vez um saco se desatava
e o correio se espalhou,
e muita desilusão se passou
quando o correio se esperava.

Uma vez fomos visitados
pela RTP e Emissora Nacional,
vieram de Portugal Continental
para sermos entrevistados.
Contámos-lhes os factos passados,
durante esta missão.
Passámos muita preocupação
com coisas de diligência,
e esperando sempre correspondência,
às vezes não vinha avião.”

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O bardo recapitula nestes versos episódios que se tornarão recorrentes para outras unidades militares, seja qual for o teatro de operações nas três colónias em guerra: a espera ansiosa do correio, a reocupação de tabancas que irão ficar em autodefesa ou conjugadas com destacamentos; a vida sexual espúria, de que irão resultar aqueles filhos que continuam à procura do seu pai; as emissões radiofónicas e televisivas que culminavam, tantas vezes, com uma frase que ficou icónica: “adeus, até ao meu regresso”.

Impõe-se consultar a “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África”, procurar escavar e apurar alguns dados elementares da evolução do conflito. Seria redundante, meramente repetitivo, matraquear o leitor com a caraterização do território, o surto da luta nacionalista, como se afirmou o PAIGC e foi anulando toda e qualquer forma de concorrência. Igualmente o leitor já possui um enquadramento dos efetivos e qual o dispositivo das nossas tropas até ao início de 1963. Fizeram bem os organizadores desta Resenha em referir o que se sabia e como se procurava agir a partir de Lisboa para sustar as ondas de guerrilha. Os efetivos foram crescendo até 1963, em março desse ano é estatuída a Carta de Comando para o Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné, o Sul já está em polvorosa, e no terreno não se faz a menor ideia como será possível ir dispondo o dispositivo, responde-se à bolina, praticamente em cima dos acontecimentos, chegam as informações em catadupa das populações em fuga, de incêndios, de toda a sorte de destruições. O PAIGC procura instalar-se no Quitafine e no Cantanhez. Regista-se nesta atividade operacional que em fevereiro de 1963 já se patrulha entre o Poindom e Ponta Varela, houve uma batida de Enxalé ao Saltinho, população Fula acompanhou o destacamento militar. Há ocorrências ao norte de Cacheu, o aquartelamento de Bigene é atacado em maio, a região do Xime está manifestamente em pé de guerra em meados desse ano, atacam-se embarcações no Corubal.

Brigadeiro Louro de Sousa
O que os documentos revelam é que o Comandante-Chefe reage em cima dos acontecimentos, produz Directivas a partir de abril que são verdadeiramente concomitantes com os focos de sublevação, impossível que o teor destas Directivas, aliás comunicadas para o Ministro da Defesa, não correspondessem a um acompanhamento da evolução da guerra. No segundo semestre de 1963, a guerrilha está presente no Norte, em Fajonquito, mas também no Oio e no Morés, de que resta uma fotografia do Brigadeiro Louro de Sousa com o Comandante e militares do BCAV 490, no Morés, a bandeira portuguesa está hasteada. Em outubro, o Ministro da Defesa, o General Gomes de Araújo, visitou a Guiné, o mau tempo impede certas deslocações, revela-se devidamente informado e pelo menos não ficou registado ter havido quaisquer discordâncias quanto ao seguimento das atividades operacionais. No final do ano, a Diretiva N.º 7 do Comandante-Chefe não ilude o que se está a passar: o PAIGC alcançou o controlo efetivo de regiões preponderantes do Sul, criou insegurança no Centro e já mantinha o controlo das duas margens do rio Corubal; o aliciamento de uma parte da população parecia inevitável; havia críticas à condução da guerra, como ficou escrito:
“A maioria dos órgãos de Comando não faz um planeamento cuidado das operações e não lhes dão continuidade lógica. Verifica-se que a execução das operações depara sempre com dificuldades várias e que o impulso inicial se vai perdendo. (…) A missão tem que ser cumprida até ao fim e, por isso, permitir que as tropas desistam durante a acção conduz ao abandono e à desmoralização”.

A informação que seguiu também para Lisboa clamava por mais efetivos, e falando do futuro apareciam como missões fundamentais a preocupação de evitar e impedir infiltrações em todas as fronteiras, a necessidade de atuar sobre as linhas inimigas do reabastecimento, procurar isolar o inimigo da parte não subvertida da população, intensificar a vigilância dos rios, entre outras. Nesse mesmo mês de dezembro, a Defesa Nacional comunica a necessidade de efetuar uma operação de limpeza e ocupação do Como, assim nasceu a “Tridente”, que já fora prevista em agosto por Louro de Sousa. Nas vésperas de Natal, a Diretiva N.º 8 esboça detalhadamente aquela que será a maior operação conjugada dos três ramos das Forças Armadas no decurso da guerra.


Quando certos autores apoucam as medidas de política seguidas por estes comandantes que antecederam Spínola, acusando-os mesmo de não terem uma visão nítida para a ação psicossocial, seguramente que não consultaram os documentos que começaram a ser emanados a partir de setembro de 1963. São de inegável importância para se entender a lógica que se pretendia imprimir para a autodefesa das populações e quais as etnias com que se podia contar.

A Resenha dá conta da nova organização militar do PAIGC, à luz das decisões tomadas no Congresso de Cassacá. O PAIGC incrementou a sua atividade, havia cada vez mais material bélico, cresciam os eixos de infiltração. O efetivo das nossas tropas aproximava-se no início de 1964 dos dez mil militares, em meados do ano formavam-se Companhias de Milícias e iniciou-se o primeiro curso de Comandos, dele saíram os grupos de Comandos “Os Camaleões”, “Os Panteras”, e “Os Fantasmas”. No vasto elenco da atividade operacional, encontramos ações do PAIGC e operações das nossas tropas, logo a partir do início de janeiro. Rafael Barbosa que fugira com Constantino Teixeira e outros quadros do PAIGC em 9 de janeiro, foi capturado no dia 12. Nos bairros de Bissau sucedem-se as rusgas. Mas é a Operação Tridente que vai ter a fatia de leão na documentação carreada. Em fevereiro desse ano, o Ministro da Defesa Nacional envia uma Instrução Pessoal e Secreta destinada ao Comandante-Chefe, não há ilusões sobre o aumento da capacidade ofensiva do PAIGC, a tentativa de extensão da guerrilha, toma-se a sua presença na região de Xime - Ponta do Inglês como perigosa, pois facilitaria a ligação entre as guerrilhas que atuam no Sul e no Oio. Envia o Ministro as suas prioridades e adverte que a Metrópole não pode aumentar indefinidamente os efetivos e outros meios, são feitas sugestões para a remodelação do dispositivo.

E o documento termina de forma eloquente, o Ministro recorda uma reunião havida em Bissau em 14 de janeiro de 1964:
“As guerras só se ganham com a eliminação física ou moral do inimigo. Ora se essa eliminação, mesmo com um inimigo que não fuja ao contacto, só se consegue pelo seu envolvimento, fruto da manobra, com mais forte razão esta é essencial na guerra do tipo da que fazemos, em que o inimigo evita o contacto”.
Gen Arnaldo Schulz
E deixa bem claro que a informação é pedra angular da manobra. As chamadas forças de reserva deviam ser entendidas como forças permanentemente em operações, fossem caçadores ou fuzileiros especiais, não deviam permanecer em Bissau à espera dos acontecimentos. Prosseguem as Directivas e as Ordens de Operações, em maio é reconhecido o alargamento da área das atividades do PAIGC, este avançava perigosamente em direção à povoação de Geba. É decidido ocupar Sangonhá, Cacoca e Cameconde, a fim de dar continuidade à progressão para sul e estabelecer ligação com Cacine. Nesta documentação fala-se explicitamente do BCAV 490, a quem cabe assegurar a ocupação territorial e controlo da sua área de responsabilidades, apoiado na população fiel do Leste, em ligação com o BCAÇ 506, segundo os eixos Cambajú - Sitató – Cuntima e Canhamina - Canjambari - Jumbembem; e posteriormente entre a linha Farim - Cuntima e o rio Cacheu. A última Directiva de Louro de Sousa data de 9 de maio, prende-se com a proteção de Bissau, é estabelecida a manobra. Em maio, mais adiante, chega Arnaldo Schulz. A atividade operacional do primeiro semestre espelha a extensão da guerra e não ilude as dificuldades postas às forças portuguesas para coordenar os diferentes Sectores, permanentemente sacudidos por intervenções da guerrilha.

O segundo semestre decorre já sobre a égide de Schulz, elencam-se operações na região de Bissau, Bula, Mansoa, o Oio e o Morés estavam ativíssimos, não obstante as nossas tropas iam destruindo acampamentos e casas; é uma atividade operacional que se estende a Farim, a Bafatá, Buba, Catió e Tite, parece imperar um novo fogo. Surgem novos documentos para a ação psicológica, dão-se instruções para a colaboração dos nativos nas operações militares, estabelecem-se normas para a atribuição de prémios pela captura de material ou inimigo. A Resenha dá-nos em final de 1964 a relação das unidades presentes na Guiné e como se posicionam. Neste momento, a Guiné dispõe de um total estimado superior a quinze mil militares.
Veremos agora o que nos reserva 1965.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 28 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20691: Notas de leitura (1268): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (47) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 2 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20700: Notas de leitura (1269): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, por João de Melo, 9.ª edição reescrita pelo autor; Publicações Dom Quixote, 2017 (2) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 5 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20706: Memórias ao acaso (Miguel Rocha, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2367/BCAÇ 2845) (4): Alcunhas

Foto n.º 1 > Soldado Ribeiro, o "Perna Facaia"

Foto n.º 2 > Soldado Toninho,  o "Senhor Doutor"

Foto n.º 3 > 1.º Cabo Bento,  o "Mal disposto"

Foto n.º 4 > Soldado Sá,  o "Capilé"

Foto n.º 5 > Soldado Dias, o "Padeiro"

Foto n.º 6 > Soldado Sousa, o "Simpático"

Guiné > Região do Oio > CCAÇ 2367/BCAÇ 2845, "Os Vampiros" (Olossato, Teixeira Pinto e Cacheu, 1968/70) > Miliares do pelotão do alf mil Miguel Rocha e respetivas alcunhas...

Fotos (e legendas): © Miguel Rocha (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Mais uma crónica do nosso camarada Miguel Rocha, ex-Alf Mil Inf.ª da CCAÇ 2367/BCAÇ 2845, "Os Vampiros" (Olossato, Teixeira Pinto e Cacheu, 1968/70):


MEMÓRIAS AO ACASO

04 - ALCUNHAS

As alcunhas, fruto duma criativa espontaneidade, eram servidas sem luvas e sem bandeja aos seus forçados titulares, num misto de picardia e natural bonomia. O nível de aceitação por parte dos visados era elevado dada a reciprocidade vigente!

Umas vincavam características de personalidade, quer por excesso, quer por antítese, outras visavam a oralidade, tanto nos seus regionalismos como no grau de dificuldade de expressão.

As profissões civis, bem como as funções militares, e ainda um ou outro episódio mais burlesco ocorrido já no teatro de guerra, eram farta e garantida sementeira para elas. Colavam-se-lhes à pele de forma indelével, substituindo no nosso registo de memória o nome e apelido do visado.

Do meu pelotão, recorrendo ao meu álbum de guerra e mais uma vez às fotos do meu aniversário (13.02.69), recordo com muito carinho as seguintes:

"TATIBITILÉ" - Pela forma titubeante como se expressava.
"PERNA FACAIA"- Argumento que usava para pedir escusa de operações.
"SIMPÁTICO" - Pura antítese.
"GÉMEO" - Por ter o seu irmão gémeo na Guiné.
"CUBA" - Por bem "decilitrar".
"MAL DISPOSTO" - Pelo condizente semblante.
"PADEIRO" - Profissão civil.
"TELEGRAFISTA" - Função Militar.

"XIPANÇO", "MIASSAS", "MÃO CERTA", "BRANQUINHO" e "CAPILÉ" são outras alcunhas que o significado já me escapa.

Havia ainda a "EQUIPA DO PINCEL" - todos oriundos da construção civil.

No meu álbum fotográfico, faço-me acompanhar de alguns daqueles que viram distintivas alcunhas substituir, no dia a dia, os seus nomes próprios. [Vd. fotos caima]
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20669: Memórias ao acaso (Miguel Rocha, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2367/BCAÇ 2845) (3): Um Presépio de cartolina