1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Outubro de 2019:
Queridos amigos,
O bardo já está em jeito de despedida, recapitula coisas que todos nós vivemos, como a chegada do correio, as obras nos destacamentos, a pulsão sexual e a chegada daqueles meninos que hoje são gente crescida e procuram o pai.
É o momento azado para pegar na
"Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África" e enquadrar a estratégia militar, a atividade operacional, a ação psicossocial, a formação de tropas nativas, entre outros aspetos. Recordo-me de quando cheguei em finais de julho de 1968, vivia-se a euforia dos novos tempos, criticava-se asperamente o passado, agora é que era, íamos ter guerra a sério, os oficiais incompetentes já estavam a ser recambiados, o homem providencial visitava ao amanhecer os aquartelamentos, inteirava-se das dificuldades e exigia mudanças. Saberemos mais tarde que exarou um lote de instruções, introduzia mudanças. O homem providencial, como é de todos sabido, foi valeroso, mediático, avergou imensa esperança, isto enquanto o PAIGC era confrontado com os novos instrumentos da
"Guiné melhor" e com aquela incómoda referência até aí esbatida, da existência de uma raiva surda entre guineenses e cabo-verdianos. E ao longo destas décadas tem sido possível, por múltiplos fatores, deixar no limbo, apoucar, denegrir, culpabilizar Louro de Sousa e Schulz pelo estado em que Spínola encontrou a Guiné quando aqui chegou, em maio de 1968.
Felizmente que as fontes falam, são papéis que precisam de ser lidos com equidistância. E ainda estamos no princípio de se chegar a uma outra visão prismática de como foi conduzida a guerra de 1963 a 1968. Recordo que ainda estão por consultar os arquivos do Ministério do Ultramar e do Ministério da Defesa Nacional. É bem possível que outro galo venha a cantar.
Um abraço do
Mário
Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (48)
Beja Santos
“Para a avioneta aterrar
trabalhava-se com resignação.
Quando o correio se esperava,
às vezes não vinha avião.
Enquanto estivemos aquartelados,
nos arredores de Farim,
passou-se o bom e o ruim
mas hoje estamos descansados.
Houve o regresso de uns refugiados
e o chefe dos CTT se deixou apanhar.
Depois de muito se lutar,
Canjambari se ocupou
e uma pista se arranjou
para a avioneta aterrar.
Na piscina de Farim se ia nadar
e ia-se dançar na Morocunda e Nema
e de vez em quando se via cinema
e a Kadi se ia visitar.
Bichas se chegaram a formar
e uma teve um filho do Batalhão.
Ficou-nos de recordação
os bons e maus tempos passados
no mato contra os malvados
trabalhava-se com resignação.
O pão em Jumbembem era jogado
a qualquer hora do dia
e muitas vezes caía
fora do sítio marcado.
O correio também era lançado
e às mãos dos rapazes chegava.
Uma vez um saco se desatava
e o correio se espalhou,
e muita desilusão se passou
quando o correio se esperava.
Uma vez fomos visitados
pela RTP e Emissora Nacional,
vieram de Portugal Continental
para sermos entrevistados.
Contámos-lhes os factos passados,
durante esta missão.
Passámos muita preocupação
com coisas de diligência,
e esperando sempre correspondência,
às vezes não vinha avião.”
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O bardo recapitula nestes versos episódios que se tornarão recorrentes para outras unidades militares, seja qual for o teatro de operações nas três colónias em guerra: a espera ansiosa do correio, a reocupação de tabancas que irão ficar em autodefesa ou conjugadas com destacamentos; a vida sexual espúria, de que irão resultar aqueles filhos que continuam à procura do seu pai; as emissões radiofónicas e televisivas que culminavam, tantas vezes, com uma frase que ficou icónica:
“adeus, até ao meu regresso”.
Impõe-se consultar a
“Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África”, procurar escavar e apurar alguns dados elementares da evolução do conflito. Seria redundante, meramente repetitivo, matraquear o leitor com a caraterização do território, o surto da luta nacionalista, como se afirmou o PAIGC e foi anulando toda e qualquer forma de concorrência. Igualmente o leitor já possui um enquadramento dos efetivos e qual o dispositivo das nossas tropas até ao início de 1963. Fizeram bem os organizadores desta Resenha em referir o que se sabia e como se procurava agir a partir de Lisboa para sustar as ondas de guerrilha. Os efetivos foram crescendo até 1963, em março desse ano é estatuída a Carta de Comando para o Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné, o Sul já está em polvorosa, e no terreno não se faz a menor ideia como será possível ir dispondo o dispositivo, responde-se à bolina, praticamente em cima dos acontecimentos, chegam as informações em catadupa das populações em fuga, de incêndios, de toda a sorte de destruições. O PAIGC procura instalar-se no Quitafine e no Cantanhez. Regista-se nesta atividade operacional que em fevereiro de 1963 já se patrulha entre o Poindom e Ponta Varela, houve uma batida de Enxalé ao Saltinho, população Fula acompanhou o destacamento militar. Há ocorrências ao norte de Cacheu, o aquartelamento de Bigene é atacado em maio, a região do Xime está manifestamente em pé de guerra em meados desse ano, atacam-se embarcações no Corubal.
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Brigadeiro Louro de Sousa |
O que os documentos revelam é que o Comandante-Chefe reage em cima dos acontecimentos, produz Directivas a partir de abril que são verdadeiramente concomitantes com os focos de sublevação, impossível que o teor destas Directivas, aliás comunicadas para o Ministro da Defesa, não correspondessem a um acompanhamento da evolução da guerra. No segundo semestre de 1963, a guerrilha está presente no Norte, em Fajonquito, mas também no Oio e no Morés, de que resta uma fotografia do Brigadeiro Louro de Sousa com o Comandante e militares do BCAV 490, no Morés, a bandeira portuguesa está hasteada. Em outubro, o Ministro da Defesa, o General Gomes de Araújo, visitou a Guiné, o mau tempo impede certas deslocações, revela-se devidamente informado e pelo menos não ficou registado ter havido quaisquer discordâncias quanto ao seguimento das atividades operacionais. No final do ano, a Diretiva N.º 7 do Comandante-Chefe não ilude o que se está a passar: o PAIGC alcançou o controlo efetivo de regiões preponderantes do Sul, criou insegurança no Centro e já mantinha o controlo das duas margens do rio Corubal; o aliciamento de uma parte da população parecia inevitável; havia críticas à condução da guerra, como ficou escrito:
“A maioria dos órgãos de Comando não faz um planeamento cuidado das operações e não lhes dão continuidade lógica. Verifica-se que a execução das operações depara sempre com dificuldades várias e que o impulso inicial se vai perdendo. (…) A missão tem que ser cumprida até ao fim e, por isso, permitir que as tropas desistam durante a acção conduz ao abandono e à desmoralização”.
A informação que seguiu também para Lisboa clamava por mais efetivos, e falando do futuro apareciam como missões fundamentais a preocupação de evitar e impedir infiltrações em todas as fronteiras, a necessidade de atuar sobre as linhas inimigas do reabastecimento, procurar isolar o inimigo da parte não subvertida da população, intensificar a vigilância dos rios, entre outras. Nesse mesmo mês de dezembro, a Defesa Nacional comunica a necessidade de efetuar uma operação de limpeza e ocupação do Como, assim nasceu a
“Tridente”, que já fora prevista em agosto por Louro de Sousa. Nas vésperas de Natal, a Diretiva N.º 8 esboça detalhadamente aquela que será a maior operação conjugada dos três ramos das Forças Armadas no decurso da guerra.
Quando certos autores apoucam as medidas de política seguidas por estes comandantes que antecederam Spínola, acusando-os mesmo de não terem uma visão nítida para a ação psicossocial, seguramente que não consultaram os documentos que começaram a ser emanados a partir de setembro de 1963. São de inegável importância para se entender a lógica que se pretendia imprimir para a autodefesa das populações e quais as etnias com que se podia contar.
A Resenha dá conta da nova organização militar do PAIGC, à luz das decisões tomadas no Congresso de Cassacá. O PAIGC incrementou a sua atividade, havia cada vez mais material bélico, cresciam os eixos de infiltração. O efetivo das nossas tropas aproximava-se no início de 1964 dos dez mil militares, em meados do ano formavam-se Companhias de Milícias e iniciou-se o primeiro curso de Comandos, dele saíram os grupos de Comandos
“Os Camaleões”,
“Os Panteras”, e
“Os Fantasmas”. No vasto elenco da atividade operacional, encontramos ações do PAIGC e operações das nossas tropas, logo a partir do início de janeiro. Rafael Barbosa que fugira com Constantino Teixeira e outros quadros do PAIGC em 9 de janeiro, foi capturado no dia 12. Nos bairros de Bissau sucedem-se as rusgas. Mas é a Operação Tridente que vai ter a fatia de leão na documentação carreada. Em fevereiro desse ano, o Ministro da Defesa Nacional envia uma Instrução Pessoal e Secreta destinada ao Comandante-Chefe, não há ilusões sobre o aumento da capacidade ofensiva do PAIGC, a tentativa de extensão da guerrilha, toma-se a sua presença na região de Xime - Ponta do Inglês como perigosa, pois facilitaria a ligação entre as guerrilhas que atuam no Sul e no Oio. Envia o Ministro as suas prioridades e adverte que a Metrópole não pode aumentar indefinidamente os efetivos e outros meios, são feitas sugestões para a remodelação do dispositivo.
E o documento termina de forma eloquente, o Ministro recorda uma reunião havida em Bissau em 14 de janeiro de 1964:
“As guerras só se ganham com a eliminação física ou moral do inimigo. Ora se essa eliminação, mesmo com um inimigo que não fuja ao contacto, só se consegue pelo seu envolvimento, fruto da manobra, com mais forte razão esta é essencial na guerra do tipo da que fazemos, em que o inimigo evita o contacto”.
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Gen Arnaldo Schulz |
E deixa bem claro que a informação é pedra angular da manobra. As chamadas forças de reserva deviam ser entendidas como forças permanentemente em operações, fossem caçadores ou fuzileiros especiais, não deviam permanecer em Bissau à espera dos acontecimentos. Prosseguem as Directivas e as Ordens de Operações, em maio é reconhecido o alargamento da área das atividades do PAIGC, este avançava perigosamente em direção à povoação de Geba. É decidido ocupar Sangonhá, Cacoca e Cameconde, a fim de dar continuidade à progressão para sul e estabelecer ligação com Cacine. Nesta documentação fala-se explicitamente do BCAV 490, a quem cabe assegurar a ocupação territorial e controlo da sua área de responsabilidades, apoiado na população fiel do Leste, em ligação com o BCAÇ 506, segundo os eixos Cambajú - Sitató – Cuntima e Canhamina - Canjambari - Jumbembem; e posteriormente entre a linha Farim - Cuntima e o rio Cacheu. A última Directiva de Louro de Sousa data de 9 de maio, prende-se com a proteção de Bissau, é estabelecida a manobra. Em maio, mais adiante, chega Arnaldo Schulz. A atividade operacional do primeiro semestre espelha a extensão da guerra e não ilude as dificuldades postas às forças portuguesas para coordenar os diferentes Sectores, permanentemente sacudidos por intervenções da guerrilha.
O segundo semestre decorre já sobre a égide de Schulz, elencam-se operações na região de Bissau, Bula, Mansoa, o Oio e o Morés estavam ativíssimos, não obstante as nossas tropas iam destruindo acampamentos e casas; é uma atividade operacional que se estende a Farim, a Bafatá, Buba, Catió e Tite, parece imperar um novo fogo. Surgem novos documentos para a ação psicológica, dão-se instruções para a colaboração dos nativos nas operações militares, estabelecem-se normas para a atribuição de prémios pela captura de material ou inimigo. A Resenha dá-nos em final de 1964 a relação das unidades presentes na Guiné e como se posicionam. Neste momento, a Guiné dispõe de um total estimado superior a quinze mil militares.
Veremos agora o que nos reserva 1965.
(continua)
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Notas do editor
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