1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Outubro de 2019:
Queridos amigos,
Estamos no penúltimo movimento da grande ode que o bardo dedicou ao BCAV 490. Ele agradece comovidamente as venturas maternais, e aqui me ocorreu alancear a recordação até às mães que perderam os seus filhos, e daí a memória à mãe do meu mais querido amigo da juventude, Carlos José Paulo Sampaio, falecido em combate, em Mocímboa da Praia, norte de Moçambique, houve que violentar o pudor para recordar o que foi visitar, mal chegado a Lisboa, aquela mãe com as dores em carne viva e entregar-lhe a última carta que aquele filho escrevera, coisa tão misteriosa, para mim tão vaticinadora de promessas para a vida fora, uma carta que trombeteava sobre o nosso futuro, os sonhos a realizar, findas as nossas guerras. E nesse encontro foi-me dado perceber, de viva voz, porque é que aquela mãe detalhava, esmiuçava ao segundo, os últimos instantes da vida do filho, de acordo com a versão que apurara. Enquanto a ouvia, percebia então perfeitamente porque é que um pai, insistentemente, me pedira para lhe contar os últimos instantes de vida do seu filho, soldado em Missirá, mas que morreu na explosão de uma mina anticarro, a meio caminho entre Finete e Missirá, num local que dá pelo nome de Canturé, ao anoitecer de 16 de outubro de 1969.
São narrativas que nos aliviam, de antemão sabemos que a dor profunda é incurável.
Um abraço do
Mário
Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (50)
Beja Santos
“Trouxe-me no colo deitado
minha mãe do coração.
Hoje sou um homem criado,
não me esqueço do passado,
devo-lhe essa obrigação.
Mãezinha, p’ra me criar
andei nos braços seus.
Meu pai sempre a trabalhar,
quando a velhice apertar,
deitar-se-á então nos meus.
Há quem dê pouco valor
a quem à luz nos lançou.
Pois não há outra flor
que nos tenha tanto amor
como a mãe que nos criou.
Deve o fado compreender
quem tenha visão na vida.
Pois é bom de perceber
no mundo não pode haver
quem iguale a nossa mãe querida.”
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Quando li a veneração do bardo pela sua mãe logo me ocorreu uma canção largamente difundida na Guiné pelo Conjunto Oliveira Muge, vi gente rendida àquela voz suave, bem soletrada e plangente que irradiava das ondas hertzianas:
“Mãe, tu estás tão longe de mim
Mãe, sinto que estás a chorar
Não chores a minha ausência
Eu hei de voltar
Não chores e pensa agora
Que o tempo passa depressa
Pede a Deus que te tire esse tormento
Que te abrande o sofrimento
Desse teu formoso rosto.
Mamãe, não chores
Eu volto, Mãe.”
Havia as tatuagens de “Amor de Mãe”, os iletrados tanto pediam que se escrevesse ao pai ou à mãe, mas era sobre esta que recaía a adjetivação mais emocionante. E as recordações volteiam para aquelas lágrimas locais, à partida para destino incerto. E a cogitar na alegria do bardo, ternamente agradecido, ciente do sofrimento que a minha mãe passou, dirigi a lembrança para as mães que não voltaram a ver os seus filhos, aliás o bardo a elas dedicou versos de comiseração e agora acompanho-o, lembrando a mãe daquele que foi o meu maior amigo da adolescência, Carlos Sampaio.
Carlos José Paulo Sampaio, falecido em Moçambique, 2/2/1970.
Remexo nos escassos papéis que restam. O que ele escreveu e que levei nos meus haveres para a Guiné, extinguiu-se o essencial numa flagelação, em 19 de março de 1969. O resto guardei, era lido com profundo afeto. Antes de partir para a Guiné, vi-o chegar a Mafra, fui tendo sempre notícia do seu percurso até partir para o Planalto dos Macondes, também em 1969. Era uma amizade de colégio, de faculdade, de serões diários, eu ia até à Praça Pasteur, n.º 9, carregava na campainha do 2.º andar, ele ou uma das irmãs ou a própria mãe me recebiam sempre com um grande sorriso. Uma casa repleta da pintura de Fausto Sampaio, já falecido. No seu quarto, o retrato que o pai lhe fizera, o Carlos ainda muito jovem. Quando chegava o correio ao Cuor ou a Bambadinca era prontamente identificado o que ele me escrevia pela cor da tinta, verde. E aconteceu que a sua última carta me foi destinada, tem a data de 30 de janeiro de 1970, é uma carta voltada para o futuro, ele projetava trabalhar como livreiro e contava comigo. Longa missiva, com letra miudinha, muito regular, tudo decifrável, despede-se, está a ser organizada uma coluna até Mocímboa da Praia, suspira pelo fim da sua comissão, está fisicamente abalado. Saberei mais tarde que nas férias que passou na Anadia destruíra todas as suas pinturas, que eu conhecia, uma a uma. A notícia da sua morte, quando abri uma carta e dela saltou aquela notícia da necrologia que bem conhecíamos, encimada por uma fotografia e pelo Crucifixo, foi tiro que me derrubou, desatei aos urros, tudo se passou no quarto, estava lá um outro camarada, o meu amigo Abel Rodrigues, ficou especado com aquela gritaria alucinante, procurou acalmar-me, que lhe contasse o que se estava a passar, eu tartamudeava, entre baba e ranho. Lavei a cara, aliviei as feições congestionadas, havia muito que fazer depois de almoço, assim se foi atamancando o sofrimento.
Fausto Sampaio, “Autorretrato”.
“Pescadores – Costa Nova”, Fausto Sampaio, 1940, uma pintura a óleo que estava na sala de jantar da Praça Pasteur.
E quando regressei, em agosto desse ano, telefonei à sua mãe, pedindo-lhe para a visitar, com caráter de urgência, entreguei-lhe o espólio das minhas recordações, o único quadro que sobreviveu à destruição, pois ficara em minha casa, em cima de um móvel do meu quarto, entreguei a correspondência, assim se carpiram lembranças, e enquanto aquela mãe, tão magoada, me repetia os últimos momentos de vida do filho, o único filho que tinha, numa picada onde pisara minas antipessoal, os depoimentos que ela pudera colher, não me saía da cabeça a carta que um senhor chamado Jesuíno Jorge, de Monte da Cabrita, Santana da Serra, concelho de Ourique, me enviara, em resposta à carta que eu lhe dirigira comunicando-lhe o falecimento do filho, ele pedia-me insistentemente que descrevesse o mais pormenorizadamente possível o que se passara nos últimos instantes de vida. Coisa terrível, saber que certos pormenores substituem a visualização de um corpo, e eu sentia-me incapaz de explicar àquele pai e seguramente aos restantes membros da família, que Manuel Guerreiro Jorge tinha o corpo desarticulado, os membros inferiores desfeitos, que no meio de um pandemónio de viatura com o focinho demolido, de cuja caixa saltaram bidons, sacos e caixas, que felizmente amorteceram os ferimentos de muita gente, sobressaíam os gritos lancinantes de alguém que cedeu ao estado de choque e daí ao estado moribundo, partiu da vida numa morança em Finete, com o médico do batalhão de Bambadinca a seu lado. E de forma atropelada tudo isto foi contado a um pai, procurando passar uma esponja pelos termos, eliminando todos aqueles que pudessem fazer supor ossos à mostra ou restos de membros junto dos pedais, por exemplo. E eu assim ia ouvindo o que se teria passado naquela picada que levava a Mocímboa da Praia, um ritual de corpo presente, confirmava que o mesmo tem poder taumatúrgico, aplaca dores, é um alívio temporário mas obrigatório. E depois visitamos o quarto do Carlos, lá estavam as cadeiras em que conversávamos. E horas volvidas, enxutos os olhos, a mãe do Carlos surpreendeu-me à despedida oferecendo-me uma samarra que pertencera a Fausto Sampaio, usei-a anos a fio, era aconchegadora, uma bonita gola de pele, uma lã de corte perfeito, e Deus sabe que para além daquele aconchego dos dias álgidos era como se o Carlos me desse presença, continuasse a sonhar o futuro tal como ele o escrevinhara em letra verde, na sua derradeira carta.
Que o bardo me perdoe eu não endereçar o meu pensamento à madre fundadora, foquei-me em todas aquelas que à partida já vestiam de luto e de luto ficaram, por muito tempo. Há muita literatura da guerra que fala das mulheres, das noivas, das namoradas, das irmãs, mas não será certamente por acaso que as mães têm um papel primordial. Em
“sairòmeM”, Gustavo Pimenta diz algo de muito belo:
“O beijo de minha mãe durava uma eternidade”. Quando regressei a Lisboa, fui conhecer o meu novo lar. Nessa mesma tarde bati à porta de minha mãe e lindo foi o reencontro. Insistia em mostrar-me o que havia de diferente, imagine-se, os cortinados, as sanefas da sala. Em cima da mesa da sala de jantar estavam as joias que tinham saído da casa de penhores, ali tinham ficado para se arranjar dinheiro para os tratamentos do cobalto, com que atrofiara um tumor de origem maligna na hipófise. Deu-me a mão e levou-me ao meu quarto, tudo intocado, como eu esperava irrepreensivelmente limpo, o chão luzidio, ela gostava muito de ver o madeirame bem encerado. Tê-la-ei surpreendido agradecendo-lhe a educação que me dera, fora tónica permanente nos meus aerogramas, todo aquele ensino precoce de autonomia, de cooperação a uma avó inválida, a sapiência de viver com o dinheiro contado ao tostão e de saber diferir a satisfação de necessidades para um momento mais azado. Um processo educativo que tanto me ajudara a ultrapassar as rusticidades, as carências e as faltas absolutas que são as tónicas constantes de viver numa guerra. E agora curvo-me respeitosamente diante do bardo,
“Pois não há outra flor/ que nos tenha tanto amor/ como a mãe que nos criou”.
(continua)
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Notas do editor
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Guiné 61/74 - P20740: Notas de leitura (1273): “A Engenharia Militar na Guiné, O Batalhão de Engenharia”, Exército, Direção de Infraestruturas, Julho de 2014 (Mário Beja Santos)