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domingo, 10 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20960: Blogues da nossa blogosfera (131): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (46): Palavras e poesia


Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.

AntiDeuteronómio II

ADÃO CRUZ

© ADÃO CRUZ


No tempo em que as sardinheiras das varandas dos pobres
faziam parte dos nossos sonhos
florindo em poemas de sol e de cor
no tempo em que as andorinhas
teciam grinaldas de vida nos beirais
no tempo em que os rios bordavam a terra de areia branca
no tempo em que a brisa sussurrava
por entre as flores
e as fontes murmuravam seus amores
a aurora da nossa inquietação tinha o cheiro a maçãs
e o pulsar das coisa vivas
e o levíssimo sorriso dos jardins do paraíso.
Tudo amávamos em nobre sentimento de exaltação
o mundo era transparente e fácil de amar
e cheirava a feno
a razão ondulava a frágil seara
em suave alento na quietude universal da liberdade
como harmoniosa mulher suspirando ao vento.
Tão inocente amor
tanta alegria
quem pensaria que os rios de pranto
haveriam de chegar um dia
em negra nuvem de calado voo.
Não podemos deixar que a nuvem negra
se abata sobre nós e o pensamento…
e o pensamento nos agarre no desértico silêncio
sentados ao vento
no falso sol da varanda da ilusão
e da erosão da consciência adormecida.
Não podemos deixar que a todos nos transforme
em filhos da morte
filhos de nenhum lugar e de toda a parte
figuras do vale das sombras
esgueirando-se nas sombras de outras sombras
sonâmbulos fantasmas
sem gestos de vida que nos façam acordar.
E quando for dia de sol bem alto
porque haverá sempre um dia
a rasgar a deuteronómica nuvem negra
que ameaça os campos do futuro
e o sereno assombro das pedras
e os peixes verdes dos poemas
e os rubros sorrisos que cheiram a mar
e os passos dos que aprendem a andar
e os rios que correm nos olhos de uma criança
e a memória sem tempo
jamais a exaltação da santidade
estará na morte e nas cinzas da cidade.
E não haverá espinhos nos olhos
e aguilhões nos flancos da vida…
e não haverá armas de destruição maciça
no coração das mães dos filhos exterminados.
Na diáfana manhã de um novo dia
apenas a plangente harmonia de um Stabat Mater.
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20937: Blogues da nossa blogosfera (129): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (45): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P20959: Blogpoesia (676): "Não matem a lagartixa", "Um raio de sol" e "Oração à sabedoria", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana:


Não matem a lagartixa

Hoje, a lagartixa não apareceu

Todos os dias dou a caminhada higiénica.
Aqui no bairro.
Adequada às minhas posses.
Pego nos andarilhos e vou.
Mais ou menos pela mesma hora.

Crescem umas ervitas junto aos muros das moradias.
Escapam ao serviço do cantoneiro.

Às tantas, dei conta de que havia uma lagartixa que aparecia quando passava.

Comecei a falar com ela.
Estranho quando não vem.
Nos dias seguintes, quando tudo parecia perdido, lá surgia ela do seu tugúrio.
Era a sentinela de serviço a uma moradia.
Sempre ali.
Me afiz a ela. Venho triste quando não vejo.
Não matem as lagartixas.
Prestam à gente um bom serviço.
Comem a bicharada que ataca as plantas.
Flores ou não.

Mafra, 6 de Maio de 2020
12h49m
Jlmg

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Um raio de sol

Um raio de sol bateu-me à janela.
Atravessou as cortinas.
Beijou o meu rosto.
Chamou-me para a vida.
Não pára. Passa e não volta.
É lucro tudo o que traz.
-Desperta! - clama.
Deixo meu leito.
Retomo a viagem.
Cada vez mais se aproxima a paragem.
Estendo na mesa minhas memórias passadas.
Contemplo.
Fazem cortejo.
Minhas origens vão longe.
Subindo e descendo colinas.
Adejando as velas.
Quando o vento da esperança soprava com força.
A vida emergente crescia.
A felicidade abundou.
Aos altos e baixos,
Chegou até aqui.
No mais se verá...

Ouvindo Schubert
Mafra, 9 de Maio de 2020
10h20m
Jlmg

********************

Oração à sabedoria

Saibamos todos entender os sinais da vida.
Há mensagens de cada hora e época da história.
Não vai à toa este comboio magno.
Seu caminho vai sendo traçado conforme desígnios que ignoramos.
Impõe-se estar atentos.
Surgem sinais no horizonte.
Peçamos à sabedoria com devoção.
Apliquemos a nós o que a meditação nos manda.

Mafra, 9 de Maio de 2020
10h19m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20935: Blogpoesia (675): "Figueira do diabo", "Horrorosa modernidade" e "Os nós e os laços", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P20958: Parabéns a você (1800): Fernando Valente (Magro), ex-Cap Mil Art do BENG 447 (Guiné, 1970/72) e Henrique Matos, ex- Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52 (Guiné, 1966/68)


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Nota do editor

Último poste da série de 8 de Maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20950: Parabéns a você (1799): Arsénio Puim, ex-Alf Mil Capelão do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72)

sábado, 9 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20957: (In)citações (160): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte VI (a): Muita saúde e longa vida, Arsénio Puim, porque tu mereces tudo! (Luís Graça)


Guiné > Zona Leste > REgião de Bafatá Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Espectacular vista aérea do aquartelamento, tirada no sentido leste-oeste, ou seja, do lado da grande bolanha de Bambadinca (vd. mapa da região)

Do lado esquerdo da imagem, para oeste, era a pista de aviação (1) e o cruzamento das estradas para Nhabijões (a oeste), o Xime (a sudoeste) e Mansambo e Xitole (a sudeste). Vê-se ainda uma nesga do heliporto (2) e o campo de futebol (3). A CCAÇ 12 começou também a construir um campo de futebol de salão (4), com cimento roubado à engenharia nas colunas logísticas para o Xitole.

De acordo com a fotografia, em frente, pode ver-se o conjunto de edifícios em U: constituía o complexo do comando do batalhão (5) e as instalações de oficiais (6) (onde ficavao quarto do alf mil médico Arsénio Puim) e sargentos (8), para além da messe e bar dos oficiais (8) e dos sargentos (9).

Em frente ao edifício em U, um poco mais à direita, situava-se a capela (13) e a secretaria da CCAÇ 12 (14).

Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71). Ver o resto das legendas aqui.



Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os Direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Muita saúde longa vida, Arsénio Puim,
porque tu mereces tudo! (1ª parte)

por Luís Graça




Luís Graça, Contuboel,  junho de 1969
Que eu saiba, em toda a história da guerra colonial , ou pelo menos no teatro de operações da Guiné, houve pelo menos dois casos de capelães militares que foram "expulsos" das fileiras do exército... 

Não sabemos ao certo por quem, se o bispo castrense (que era brigadeiro) ou a hierarquia militar (personificada no Comando-Chefe, os generais Arnaldo Schulz, em  1968, e António Spínola, em 1971, respetivamente), com a inevitável “mãozinha” da polícia política ...

Eu diria antes que foram dois erros de "casting" (sem que isto nada tenha de ofensivo para com os visados)... 


Mário de Oliveira
Um deles é o padre Mário de Oliveira, que será sempre, até morrer, o padre Mário da Lixa... Foi capelão, por escassos meses,  do BCAÇ 1912 (que esteve sediado em Mansoa, 1967/69)... 

O outro caso de um capelão "expulso" das fileiras do exército português foi o açoriano Arsénio Puim (que deixou, de resto, o sacerdócio em finais dos anos 70): foi capelão, por um ano, do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72). E é sobre ele que eu quero falar, a pedido de um dos seus filhos, o mais novo,  o Miguel Puim, economista. E o pretexto são os seus 84 aninhos de vida (*)…

(1) A imagem que eu tenho do Arsénio 
Puim é a da serenidade. 
Na Guiné podia confundir-se com reserva 
e até timidez, hipoteticamente associada 
à sua origem insular e à sua condição 
sacerdotal. Mas havia ali, também, 
na sua maneira de ser e estar, 
algo da bonomia açoriana.

Arsénio Puim
Para muitos de nós, ali em Bambadinca, no pior setor do leste da Guiné, marcado pela guerra pura e dura, a açorianidade era algo que nos era estranho e distante. Na minha CCAÇ 12, havia um furriel madeirense do Funchal. Os Açores não ficavam na rota dos novos “navios negreiros” que, desta vez, em sentido inverso, levavam para a Guiné “carne para canhão”. 

O Puim foi dos primeiros açorianos que eu conheci.  E foi um lídimo representante do melhor que o povo açoriano tem, a começar pelo seu amor à liberdade, à verdade e à justiça. Mas não me lembro de alguma vez ter falado com ele da sua vida pessoal ou dos seus Açores.

"En passant",  havia companhias madeirenses e açorianas, no TO da Guiné, unidades homogéneas na sua composição: as praças eram "ilhéus", em geral enquadradas por "contimentais". Por razões, dizia-se, que eram de natureza "economicista", mas eu sempre desconfiei que o exército sabia que o "terroir", o chão, a geografia, o "caldo de cultura", também talhava os homens de maneira diferente, do mesmo modo  que produzia diferentes vinhos, com diferente "corpo e alma" … Sim, porque os vinhos também têm alma...

Curiosamente, o Puim não fazia gala da sua condição de açoriano, nos seus contactos com a população civil.

(2) Afinal, o alferes miliciano 
capelão Puim era mais capelão 
do que militar. Era, aliás,  
o mais civil, o mais paisano, 
de todos nós.

Nunca o vi armado, nas colunas logísticas, quando se deslocava, com frequência,  entre a sede do batalhão, em Bambadinca, e as unidades de quadrícula (Xime, Mansambo, Xitole) e os seus diversos destacamentos (Enxalé, Missirá, Ponte dos Fulas)… 

Ou quando se deslocava a Bafatá, o único ponto do interior onde havia um cheirinho de civilização e onde ia confraternizar com os missionários italianos do PIME (o Pontifício Instituto para as Missões Exteriores). 

Mesmo fardado, via-se que não fora talhado para a tropa. E muito menos para a guerra, com o seu cortejo de violência(s), que atingia(m) tanto os combatentes como as 
opulações de um lado e do outro.
Horácio Fernandes

Tínhamos uma certa deferência para com os médicos e os capelães, se bem que capelão militar fora ele  o único que eu conheci. Confesso que não me lembro, em Bambadinca, do meu primo Horácio Fernandes (o seu bisavó e a minha bisavó, do clã Maçarico, nascidos por volta de 1860,em Ribamar, Lourinhã, eram irmãos)...

Havia falta de médicos e capelães, no teatro de operações da Guiné. Mas os médicos, ao que parece, faziam mais falta, tanto no mato como no Hospital Militar de Bissau, o HM 241 (que, feliz e infelizmente ao mesmo tempo, foi um a grande escola para os jovens médicos mobilizados para a Guiné).

À época, havia já em curso um tendência para a  descristianização da juventude portuguesa, ou pelo menos, um crescente desapego de práticas religiosas como o ir à missa.   O Puim tinha consciência disso e sabia que o seu papel de “padre da Igreja no Exército”  “não era fácil nem isenta de contradições numa situação de guerra”.

(3) Quando regressei a casa, 
em março de 1971, ele ainda lá 
ficaria dois escassos meses,
 em “imbecilburgo”, como eu chamava 
à nossa pobre Bambadinca, 
mas já com bilhete marcado 
para a metrópole. 


Walther P38, de fabrico
alemão.
Cortesia de
Wkimedia Commons

Era uma questão de oportunidade, dizia-se à boca pequena. Também teria ele a sua “noite das facas longas”, como os pobres cães vadios que um dia abatemos um a um, com tiros da tenebrosa Walther da Wehrmacht nazi, em correrias loucas na parada, porque não nos deixavam dormir, aos operacionais de Bambadinca...


Só nos voltámos a ver, eu e o Puim,  38 anos depois, em 24 de maio de 2009, na casa dos seus filhos, na altura estudantes universitários, um no Técnico, outra na Nova. E confirmei essa impressão inicial: continuava a ser um homem calmo, sereno, sábio, sem uma única ruga de rancor ou amargura, muito menos, ódio,  pelos seus "inimigos" (, uma palavra que nunca lhe ouvi). 

Já não era padre, em 2009, ou melhor, era pai de dois rapazes e profissional de saúde,  era enfermeiro, em Ponta Delgada.


(4) Na época, em 1970/71, 
altura em que convivemos 
em Bambadinca, ele tinha 
já dez anos a mais do que nós, 
e portanto, outra maturidade. 
Antes de vir para a Guiné, 
enquanto se formava o batalhão, 
esteve na Serra do Pilar, 
no RAP2 - Regimento de 
Artilharia Pesada 2, 
em Vila Nova de Gaia. 


V. N. Gaia, Serra do Pilar > RAP2 >
Foto de António Tavares (2015)

E aí houve uma função de capelania que o marcou: empilhavam-se os caixões, vindos do ultramar, com os restos mortais de militares naturais do Norte.

Nessa altura, ele realizou mais de 60 cerimónias religiosas, por todo o Norte, acompanhando os nossos camaradas mortos até à sua última morada, confortando o padre local, as famílias e as comunidades locais, num ambiente de grande consternação e  comoção.

Ainda em 2009, confessou-me, não conseguia esquecer essas emoções fortíssimas de dor e de luto, o odor característico dos féretros que vinham, teoricamente, chumbados, hermeticamente fechados, mas alguns apresentavam fissuras, ruturas, e exalavam um cheiro enjoativo, empilhados na grande sacristia, mal iluminada, da igreja do Pilar

“Foram mais de 60 funerais que fiz nestes três meses - 2 ou 3 deles apenas as caixas dos ossos - nas mais diversas e recônditas aldeias do norte de Portugal. Um sacrifício dramático da nossa juventude, merecedor de muito respeito e dignidade, mas que não podia deixar de fazer pensar qualquer pessoa” – escreveria mais tarde, num os postes da sua série "Memórias de um alferes capelão", publicada no blogue.

(5) Nesse longo fim de semana, 
falámos várias vezes ao telefone 
e encontrámo-nos uma vez… 
Era um domingo. 


Ele explicou-me como é que chegara a capelão… Disse-me que fora contra a sua vontade, mas teve que obedecer a uma ordem do seu bispo, como  acontecia em todas as dioceses...  A capelania militar era uma forma cínica mas airosa dos bispos se livrarem, por uns tempos, dos seus padres mais incómodos… Recorde-se que o ambiente já era do pós-Concílio Vaticano II...

Dado o seu nome à Cúria Castrense, veio parar ao Continente.  Na Academia Militar, ali à Rua Gomes Freire, em Lisboa, vai frequentar o 3º curso de capelães militares, entre 22 de setembro e 25 de outubro de 1969... O total de participantes foi de 59… O Mário de Oliveira tinha frequentado o 1º e seguira para a Guiné, ao serviço do BCAÇ 1912.  

“Tirado à sorte” (sic), coube ao Puim  o BART 2917 e a Guiné... 

Esse 3º curso de capelania militar não foi, contudo, pacífico:   ao que parece, terá havido “contestação do sistema” por parte de alguns capelães... No fundo, angústia e perplexidade sobre o papel do padre no seio das forças armadas, em plena guerra colonial, cuja legitimidade já era posta em causa por alguns… 

E essa contestação terá sido liderada pelos açorianos, entre eles o Arsénio Puim, um homem que de resto, enquanto cidadão e como cristão, nunca escondera que lutava pela liberdade e pela justiça... Não altura, ele não me falou que tinha já ficha na PIDE/DGS, por ter apoiado a candidatura da CDE – Comissão Democrática Eleitoral, nos Açores, donde constava, entre outros, o nome do então cap Melo Antunes, casado com uma açoriana. (Não chegaria a apresentar-se a escrutínio, por oposição da hierarquia militar à presença do seu nome.)

Podia-se ter ficha na polícia política pela simples suspeita de se ser do "reviralho", da "oposição" ou "contra a situação". E, para mais, um padre, um pastor de almas, numa época em que a Igreja começava a apresentar fissuras no seu bloco de apoio ao regime e à guerra colonial. Ser catalogado de "católico progressista" começava a ser perigoso, ou no mínimo suspeito, e como tal inconveniente… 

(6) Dei-lhe, ao Puim, nesse domingo, 
um longo e sentido abraço,   
retomando um contacto 
de há quase 4 décadas atrás... 


Capela de Bambadinca, em segundo plano.
Foto de Benjamim Durães (2010)
Por mor da verdade, devo dizer que, em Bambadinca, não éramos  íntimos: eu não ia sequer à missa, tal como o Machado, mas o Machado (, o “Machadinho”)  às vezes ainda dava uma ajuda  ao Puim, tocando o órgão na capela de Bambadinca…

E depois havia a segregação socioespacial própria da tropa: ambos vivíamos (quero dizer, eu às vezes dormia…),no edifício do comando de Bambadinca, em U, mas separados: ele na ala dos oficiais, nós na ala dos sargentos… Ele entrava no bar de sargentos, eu nunca pus os pés na messe de oficiais, nem por bons nem por maus motivos.

Não posso, por isso, testemunhar a importância do seu papel na assistência religiosa e no apoio psicológico, moral e espiritual aos militares  do setor L1 (Bambadinca). Sei que esse papel foi-lhe requerido em momentos difíceis do batalhão como, por exemplo, na sequência da Operação Abencerragem Candente, no subsetor do Xime, em que perdemos 6 camaradas, e 9 foram gravemente feridos, em 26 de novembro de 1970. O Puim ajudou os camaradas do Xime, da CART 2715, a fazer o luto. Mas essa companhia nunca mais foi a mesma, a começar pelo jovem capitão, O Vitor Amaro dos Santos.


(7) Sei que era uma pessoa querida 
entre os homens do batalhão 
e subunidades adidas (como era 
o caso da minha africana CCAÇ 12), 
com uma presença discreta 
mas frequente nos quartéis 
do mato. 


CCAÇ 12, 2º Gr Comb, c. 1969/70.
Foto de Humberto Reis (2006)
Não me lembro de o ter visto muitas vezes nos nossos ruidosos convívios no bar de sargentos de Bambadinca, onde se bebia, cantava e jogava-se à lerpa  até às tantas… Onde se bebia, às vezes demais, se praguejava, se diziam obscenidades, se invetivava Deus e o Diabo, e até se cantavam ou cantarolavam “canções proibidas” à média luz… Não faltavam violas nem vozes… (No outro lado, cantava-se o fado,  jogava-se o bridge, havia senhoras, o ambiente era de ordem, decoro e respeitinho…)

O ambiente do mal afamado bar de sargentos de Bambadinca (que às vezes era extensiva ao “Bataclã” de Bambadinca, fora do arame farpado…)  não deveria ser muito do agrado do comando do batalhão. Mas tinha que nos gramar, aos operacinais da CCAÇ 12, porque éramos nós (e os Pel Caç Nat 52 e 63), quem lhes defendia as costas e fazia os "roncos"... De qualquer modo, o Puim não era de noitadas nem muito menos de tainadas, pautando o seu comportamento por um padrão de isenção, frugalidade, imparcialidade, austeridade e até de pudor. 

Guiné 61/74 - P20956: Os nossos seres, saberes e lazeres (391): Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
Antes de passar um dia movimentado em Herculano, tomou-se um comboio até Caserta, escassas dezenas de quilómetros de Nápoles.
Quando acabou o vice-reinado espanhol iniciou-se um tempo de Bourbon, que se irá prolongar até à unificação italiana. O que sobressai deste tempo é que se perdem as ligações ao passado, percorre-se estes aposentos reais e o testemunho tem um único nome: o esplendor do barroco, não há aqui quaisquer vestígios de outros estilos e, como toda a gente sabe, Nápoles tem uma poderosa herança greco-romana, presença bizantina, aragonesa, espanhola, este edifício do palácio real é de um classicismo puro no seu exterior e foi concebido para esmagar o visitante, havia dinheiro a rodos para aqui se ter deixado 1200 quartos.

Um abraço do
Mário


Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (3)

Beja Santos

A visita ao Palácio Real de Caserta, a residência dos Bourbon fora de Nápoles, tinha em mente descobrir se no período faustoso destes reis que aqui governaram até à unificação italiana, com interregnos como aquele que foi imposto pelo período napoleónico, havia o sentimento de herança da outra Nápoles. E não há, estas imagens que se seguirão ilustram um fausto e uma magnificência onde prima o barroco e o academismo. Até então, Nápoles era uma capital de cultura ambivalente, espanhola e oriental, a música anterior ao fausto barroco é elucidativa, ficou-nos um repertório musical de enorme riqueza onde avultam influências francesas, litúrgicas, aragonesas, espanholas. Os Bourbon chegam ao reino de Nápoles em 1734, com Carlos III, ele trazia a ambição de transformar Nápoles numa cidade altamente influente. Reduziu a construção de igrejas e lançou-se nas obras públicas e nas indústrias. Para a edificação de Caserta inspirou-se em Versalhes. Estamos no tempo em que a aristocracia europeia viaja para outros territórios, para conhecer os fundamentos do Humanismo, iniciava-se o Grand Tour, que atraía viajantes e artistas, o romantismo vem a caminho.





O viandante optou pela viagem mais económica, cingiu-se aos apartamentos reiais do século XVIII, deixou para a próxima a visita ao teatro e aos jardins. O que vai sempre intrigar o viandante é que esta pomposidade é de chão, paredes e teto, vinha à espera da exuberância das artes decorativas, da pintura mural. Carlos III era riquíssimo, tinha uma fábrica de porcelana, era protetor das artes, os Bourbon vão estar associados a realizações arquitetónicas de grande distinção, como o Teatro de S. Carlos (o nosso, dizem os entendidos, é uma réplica), não esquecer que Nápoles e Veneza eram consideradas as pátrias da ópera cómica italiana, mas também o Palácio de Capodimonte, para além de outros projetos urbanos. Apaixonado pelas antiguidades, inspirou o colecionismo e a criação do Museu Arqueológico de Nápoles, indiscutivelmente um dos mais importantes do mundo. Pois o que surpreende é esta magnificência nua, houve alguém que levou os tesouros. Fizeram-se perguntas, não se obtiveram respostas.




São salões deslumbrantes, os frescos dos tetos valiosíssimos, como se viu atrás, a Grande Escadaria está posicionada de um lado para não interromper a esplêndida vista da entrada principal para o parque. Escreve-se nos guias que Carlos III sabia o que queria – emular os seus modelos preferidos, o Buen Retiro em Madrid e Versailles em França. O arquiteto Vanvitelli inspirou-se no edifício madrileno e assentou uma estrutura quadrangular. O piso térreo inferior alberga um museu e no andar superior somos confrontados com estes dourados faiscantes. Na imagem seguinte temos berços da época império, Napoleão impôs a Nápoles Carolina Bonaparte e o gosto pelo estilo império continuou mesmo depois da deposição do imperador.




Finda a visita aos apartamentos reais, deparou-se uma exposição intitulada “De Artemísia a Hackert”, a coleção privada de um colecionador-antiquário com escritórios em Londres, intitulada Lampronti Gallery. Cada um tem os seus gostos, não se discute a riqueza da coleção Lampronti, mas o que impressionou o viandante foram as obras de Canaletto, Bellotto e Guardi, o tema Veneza suscita-lhe sempre o gosto pela contemplação, foram grandes mestres na arrumação da tela, no primor dos detalhes, na animação daquela vida quotidiana, génios na captura das cores, tão impressivos que podemos hoje percorrer Veneza e detetamos facilmente o que já vimos nos espantosos trabalhos destes pintores imortais.




À saída de Caserta apanhou-se um teto pintado numa invulgar sobriedade, até parece um tema próprio da cartela de um tapete, cores suaves, contornos lânguidos. À saída alguém declamava entusiasticamente louvores ao parque de Caserta, ao jogo de água a fluir culminando na grande cascata. No que toca ao viandante, fica para a próxima visita, mas é justo que se aguce o apetite a quem gosta de belos jardins, com efeitos incríveis de piscinas e de fontes decoradas. Aqui fica a imagem para entusiasmar os futuros visitantes.



(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 2 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20931: Os nossos seres, saberes e lazeres (388): Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 5 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20942: Os nossos seres, saberes e lazeres (389): "O Saltitão", Jornal da CCAÇ 2701 (5) (Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf)

Guiné 61/74 - P20955: (In)citações (149): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte V: lembranças do capelão do BART 2917 (Beja Santos)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Setor L1 > Bambinca > CCS/ BART 2917 (1970/72) > O Mário Beja Santos, cmdt do Pel Caç Nat 52, em fim de comissão, junto ao edifício de comando, messe  e instalações de oficiais. Era aqui o quarto do médico e do capelão... (Do lado esquerdo, eram as instalações dos sargentos; o edifício em U fora construído pela Engenharia Militar, BENG 447, ao tempo do BART 1904 (, que será substituído pelo BCAÇ 2852, 1968/70)... O Beja Santos, que esteve em Missirá, conheceu estes 3 batalhões).

Arquivo do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Lembranças do capelão do BART 2919

por Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70)

Arsénio Puim. Foto do cmdt da CCS / BART 2917,
Cap Art Gualberto Magno Passos Marques,
Convivi com três batalhões, dependi sempre das respetivas CCS, tudo que tinha a ver com cimento e arame farpado, tratamentos de enfermaria, visitas do médico ao Cuor, ou doentes do Cuor à consulta médica, manutenção de viaturas, pagamentos à tropa (caçadores nativos e milícias), munições, caixas com bacalhau e barricas de pé de porco, tinha que ser tratado com o respetivo comandante ou seu substituto. 

Comecei com o BART 1904, até setembro de 1968, com o BCAÇ 2852, até maio de 1970, e até fins de julho com o BART 2919. 

Tivemos vários capelães de passagem, dormiam no quarto com o médico, a recordação mais bizarra que conservo eram as discussões fora de horas entre o Dr. Vidal Saraiva e o capelão, tudo aos gritos, dizia o médico que Deus não existia, pois se existisse não consentiria naquela carnificina. Gritavam um com o outro, o Vidal Saraiva atirava violentamente com a porta e vinha queixar-se para outros quartos, amainava com um copo de uísque e retirava-se com uns livros do Tio Patinhas.

Isto tudo para explicar que tenho fugazes lembranças do Arsénio Puim, era muito comedido nas suas homilias, muito reservado na messe, nós tínhamos um tema em comum que eram os Açores, originário da Ilha de Santa Maria, devo tê-lo aborrecido a contar as peripécias com um pelotão de marienses que apareceu nos Arrifes, não puderam ir passar o Natal de 1967 com as famílias, procurou-se colmatar o desgosto organizando uma festa em que houve imensa participação de gente amiga, assim se amainou a saudade daqueles jovens que passavam o primeiro Natal longe de entes-queridos. 

Guardo as melhores lembranças do batalhão recém-chegado. Ciente de que estava a atingir 24 meses de comissão, e já num estado físico pouco lisonjeiro, o tenente-coronel Domingos Magalhães Filipe deu-me como prato de substância o apoio aos trabalhos do alcatroamento da estrada do Xime, entre Amedalai e Ponta Coli, um non-stop das cinco da manhã às cinco da tarde e as noites horríficas na ponte do rio Undunduma, a título excecional aquele trabalho árduo que era a organização das colunas de Bambadinca ao Xitole, onde íamos com a CCAÇ 12.

Nos 84 anos do Arsénio Puim, posso dizer que lhe desejo uma longa vida plena de alegrias, que lhe estou grato pelo conforto espiritual que me ofereceu, tanto não o esqueço que tenho procurado enviar-lhes correio eletrónico e que bom seria que ele viesse à liça, que nos deixasse as suas memórias, pois só dispomos de testemunhos raros e de um modo geral fragmentados, ponto curioso é que muitos de nós não os esquecemos, há testemunhos tocantes de capelães que suavizaram a vida de quem penava nos confins do mato e carecia de arrimo religioso. 

Será muito bem-vindo tudo quanto o Arsénio Puim escrever das suas lembranças em Bambadinca e arredores. E, Arsénio, receba um abraço muito afetuoso do Mário Beja Santos
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Nota do editor:

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20954: (In)citações (148): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte IV: o termos vivido e sofrido a mesma contradição numa realidade que nos obrigou, cada um de sua maneira, a uma reviravolta na vida (Lino Bicari)


Região Autónoma dos Açores > Ilha de São Miguel >  Maio de 2019  > O reencontro de dois amigos da Guiné, ao fim de 48 anos: à esquerda,  o ex-missionário italiano Lino Bicari (, casado com uma portuguesa, vivendo hoje no Alentejo) e, à direita, o Arsénio Puim, ex-alf mil capelão, CCS/BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), expulso depois do exército e do CTGI, em maio de 1971, sendo hoje enfermeiro reformado: casado, deixou o sacerdócio em finais dos anos 70. (*)

O Lino Bicari é da mesma idade, nasceu em Itália. Missionário do PIME - Pontifício Instituto para as Missões Exteriores. chegou à Guiné em maio de 1967.  Além da telogia, tinha formação em medicina tropical, em psicopedagogia e didáctica e em etnologia.

O Puim e o Bicari conheceram-se na Guiné, em Bafatá, "numa altura em que o capelão chefe, padre. Gamboa promoveu um encontro durante dois dias dos capelães da Zona Leste – Bafatá, Bambadinca, Galomaro, Nova Lamego e Piche – precisamente na Casa dos Padres Missionários Italianos de Bafatá."

O Puim voltaria mais tarde "duas ou três vezes à Casa dos simpáticos missionários italianos, aproveitando sempre esta estadia para um reconfortante convívio sacerdotal e um renovar de forças no exercício da minha missão de capelão." (*)

O capelão-chefe major Gamboa, que vivia no "Vaticano", em Bissau, na altura em que o Puim fui expulso do CTIG, nasceu no Fundão, Castelo Novo, em 21 de agosto de 1919  DE seu nome completo,.Pedro Maria da Costa de Sousa Melo de Gamboa Bandeira de Melo

Em 1973, o Bicari aderiu ao PAIGC, e tornou-se responsável pelo Hospital Regional do Boé, já depois da declaração unilateral de independência em 24 de setembro de 1973.

Foto (e legenda): © Arsénio Puim (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


I. Testemunho de Lino Bicari, que nos chegou pela mão do Miguel Puim, com a  devida autorização para se publicar  no blogue.


1. Em 1970 já tinha conhecido vários capelães militares em missão de serviço na então Guiné Portuguesa e tinha tido com todos bons relacionamentos, mas só com o Padre Arsénio Puim, capelão em Bambadinca, no leste do país, entrei no "mesmo comprimento de onda", porque desde o primeiro encontro percebi que partilhávamos sentimentos perante a dramática situação da guerra colonial em que estávamos ambos mergulhados. 

Arsénio tornou-se assim o único português com quem, nesse tempo da PIDE omnipresente, com a sua rede de informadores, podia falar de tudo à vontade.

Nasceu assim uma amizade quase à primeira vista, sem muito conhecimento um do outro.

Dois foram os encontros a sós que nunca poderei esquecer. Um, no final de 1970, na Missão Católica de Bafatá, onde eu trabalhava há já quatro anos. 


Arsénio Puim, ex-alf mil capelão, CCS/ BART 2917 (Bambadinca, 1970/72): açoriano, da Ilha de Santa Maria, foi expulso do exército e CTIG em maio de 1971, apenas com um ano de comissão; no final da década de 1970 deixou o sacerdócio, formou-se em enfermagem, casou-se, teve 2 filhos; vive na Ilha de São Miguel; está reformado; é membro da nossa Tabanca Grande; tem cerca de 40 referências no nosso blogue; é autor da série "Memórias de um alferes capelão", de que se publicaram doze postes]

Foto: © Gualberto Magno Passos Marques (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]








Guiné > Região de Bafatá >  1970 > Exterior da capela de Bambadinca ... Aquartelamento e posto administrativo de Bambadinca. Foto de Benjamim Durães ex-fur mil op esp, Pel Rec Inf, CCS/BART 2917 (Bambadinca, 1970/72)

Foto ( e legenda): © Benjamim Durães (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Vejo-me ainda sentado a uma mesa na biblioteca dessa Missão. À minha frente o amigo Arsénio, de pé, a tremer de indignação, percorria com passos nervosos, o pequeno espaço livre. Parece-me ainda ouvir da sua boca, num tom enfadado, a narração dos feitos horrorosos da guerra a que quase diariamente assistia, acentuando o contraste com a narrativa oficial e com a propalada missão civilizadora do regime. 

Contou-me as frequentes saídas nas chamadas “missões de soberania”. Era a própria “malta” a pedir a participação do capelão nessas saídas de alto risco, acreditando talvez que a sua presença pudesse funcionar como um talismã protetor, nos terríveis momentos do rebentamento de minas e nas mortíferas emboscadas do inimigo invisível. Para o Padre Arsénio, no entanto, a sua presença era sobretudo para impedir ou atenuar os excessos da guerra.

2. O outro inesquecível encontro com o amigo Arsénio deu-se no inicio de 1971, no quartel militar de Bambadinca a 30 km de Bafatá. Após a missa dominical na Missão desta localidade, a convite do Arsénio, no seu quarto, voltei a ouvir e desta vez também a ver, através de fotografias, os horrores da guerra, o que me permitiu compreender melhor o seu drama interior.

Ele, pensei, deve ter lido e ouvido inúmeras vezes o que estava resumido numa frase do Boletim dos Capitães militares e que aqui vou citar: 

“O capelão militar é um dos elementos mais importantes do nosso exército porque, pregando a doutrina do amor cristão, ajuda grandemente a obra de pacificação e de reunião de todos os povos das províncias ultramarinas sob a única bandeira portuguesa”. 

Para mim,  foram esta mistura e esta instrumentalização politico-bélica com a mensagem evangélica que levaram o drama interior do amigo a explodir em desabafo durante a homilia dominical no inicio de Maio de 1971, que teve como consequência a sua expulsão do exército.

Eu também, nessa altura, estava a viver , de forma menos dramática, esta mesma contradição que iria durar oito anos, de 1966 a 1974, resumida no artigo 2 do Estatuto Missionário português, aprovado por Salazar e Cerejeira, na lógica da Concordata de 1939. Esse artigo refere textualmente: 

“As Missões católicas portuguesas são Instituições de utilidade imperial e de sentido eminentemente civilizador”.

Aquilo que criou a amizade entre mim e o Arsénio não foi o facto de sermos coetâneos (hoje oitentões) ou ambos padres cumpridores da missão incumbida, mas sim o termos vivido e sofrido a mesma contradição numa realidade que nos obrigou, cada um de sua maneira, a uma reviravolta na vida.

Completámos desta forma, a nossa missão comum, a de colocar a nossa pedrinha na construção da paz e da liberdade dos povos português e guineense.

Lino Bicari (**)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 9 de maio de  2019 > Guiné 61/74 - P19766: (De)Caras (105): O reencontro de dois velhos amigos, na ilha de São Miguel: Arsénio Puim, ex-capelão militar, açoriano, e Lino Bicari, ex-padre missionário, italiano...

(**) Último poste da série >  8 de maio de  2020 > Guiné 61/74 - P20952: (In)citações (147): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte II: Mais um de nós (Tony Levezinho); Parte III: O único santo que conheci em Bambadinca (Luís Graça)