Queridos amigos,
Agora é mesmo o romance dentro do romance, a paixão apresenta a sua fatura, os cinquentões começam a dimensionar que há consequências, há distâncias inelutáveis, obviamente que fazem sofrer. Paulo Guilherme lança um SOS a um grande amigo, é menos um pedido de auxílio e mais um desabafo para se aliviar, ele é contumaz e conta-lhe uma história que considera modelar para a constituição da sua personalidade. Não há saída, nem luz no túnel, tudo se perspetiva para que tenham quinze anos pela frente a andar cá e lá, é tudo uma questão de amor verdadeiro e saber demonstrar a tenacidade.
Resta saber se pelo caminho não se levantarão outro tipo de escolhos, para isso é que os romances têm que possuir uma arquitetura com ciclos de alta voltagem, para que o leitor não desfaleça. A ver vamos.
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (16): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Cher Gilles Jacquemain, tenho boas notícias para ti, já consegui tradução para francês do meu papel sobre o acesso dos consumidores à Justiça (enviei-te por correio urgente o volume, também em francês, da conferência que se fez em Lisboa, na Presidência Portuguesa de 1992), penso que ainda estamos numa fase experimental, o importante é que a Comissão fique sensível e abra mão à constituição de centros de arbitragem de conflitos de consumo com apoio autárquico e com a captação das empresas, é a lógica da justiça voluntária. Quanto à revisão da legislação do Time Sharing, depois da denúncia destes clubes de férias que andam a intrujar as pessoas, é forçoso criar um tempo de reflexão, algo como dez dias úteis, para que os consumidores anulem os seus contratos, tantas vezes assinados em atmosferas de grande pressão. Ando aqui a conversar com vários juristas, dar-te-ei notícias muito em breve, já que a nossa reunião do comité consultivo se realiza daqui a duas semanas.
Mudando de agulha, e não tendo outro confidente belga tão fraternal como tu, recorro à tua grande disponibilidade para me dares conselho, ao menos acolheres as minhas inquietações. Não restam dúvidas, tanto para Annette como para mim, vivemos uma relação amorosa intensa e promissora. A Annette em caso algum pode abandonar a sua profissão de intérprete na Bélgica, nem pensar em vir para Portugal. Lembras-te seguramente a conversa que tivemos a quatro, em tua casa, ela obtém, pelo facto de viver em Bruxelas e estar bem perto dos serviços de interpretação, bons trabalhos quer na cidade, quer noutros pontos da Bélgica e é bastante bem remunerada nas conferências fora do país, daí o conforto financeiro em que ela vive, podendo ajudar os filhos, creio que já te disse que o ex-marido é um modesto bibliotecário, refez a sua vida, tem mais dois filhos desta relação, os filhos do primeiro casamento não podem receber mais apoio dele. Vir para Portugal era gerar uma grande instabilidade, certamente com consequências nefastas para os seus rendimentos, por falta de trabalho de interpretação aqui, o mercado está saturado e as remunerações são mais baixas. Tu conheces a minha situação, sou funcionário público, dou aulas, aceito algumas consultorias que possam ser compatíveis com o meu estatuto funcional, escrevo nos jornais, os livros não dão dinheiro nenhum, só consolações, o resto é benevolato puro; é certo que recebo ajudas de custo pelas reuniões em serviço oficial, quanto à Associação Europeia de Consumidores paga-me a viagem e viva o velho. Não posso, pois, pedir reforma, quando tenho um cenário de quinze anos de trabalho pela frente, e filhos a viverem em condições por vezes aflitivas.
Por enquanto, não há dilema nenhum, viajo com alguma frequência, a Annette terá também as suas oportunidades de passar curtas temporadas aqui, pelo menos as férias, sabes tão bem quanto eu que os serviços da Comissão começam a abrandar na segunda quinzena de julho e só passam a carburar em pleno em meados de setembro. Temos pois as incertezas para os próximos quinze anos, nenhum de nós pode arredar pé, é evidente que a comunicação é bastante fácil, tratamos de tudo pelo telefone e por correio eletrónico. Quando nos despedimos em Zaventem a Annette teve uma crise de choro, soluçava baixinho, dava-me punhadas no peito, “agora que encontrei o amor tão desejado, recebo-o às prestações, é duro de roer, sei muito bem que não temos saída, felizmente que por ora me dás um lenitivo sublime, a tua inesquecível Guiné”. Procurei sossegá-la, todo o tempo disponível que aparecer será votado à sua companhia. “Juro por Deus que não desfalecerei, foi esse o principal ensinamento que recebi na Guiné”.
Ajuda-me, cher Gilles, anima-me, diz-me ao menos que com coragem a Annette e eu iremos resistir a estas duras ausências. Ela entranhou-se na ficção que eu prometi escrever, faz-me perguntas a torto e a direito. Junto-te uma imagem da Missirá reduzida à fuligem, foi uma flagelação na noite de 19 de março de 1969, noite quente, um calor abrasador, todo aquele colmo das moranças (habitações nativas) recebeu balas incendiárias, pareciam tochas. Foi a única flagelação de Missirá onde eu não estive, naquele exato momento tinha tido alta depois de uma operação em que me extraíram uma cartilagem por detrás da rótula do joelho direito, fruto de uma grande queda que dei de uma bicicleta. Anunciaram-me, quando fui buscar a guia de marcha para apanhar um voo, à queima-roupa, “É o Alferes de Missirá? Olhe, já não tem quartel, vários feridos entraram ontem no Hospital Militar”. Atordoado, alguém me levou ao hospital, não sei como me foi possível, com um grande emplastro à volta do joelho e amparando-me numa canadiana, subir tão depressa ao andar superior e andar por ali aos tombos à procura dos meus feridos. Um deles era o régulo, tinha estilhaços no peito, ainda estava combalido. Deu-me conta dos acontecimentos, do incêndio de, pelo menos, um terço das habitações, grandes perdas em haveres pessoais, muita gente em dificuldade. Sosseguei o ancião, dei-lhe a minha palavra que iria reconstruir Missirá. O que aconteceu, mantendo, mesmo a uma escala mais reduzida, as minhas obrigações operacionais, e que não eram poucas, uma delas vigiar a navegabilidade do rio principal, crucial para que nada faltasse numa região chamada Leste. Tudo isto contei a Annette, os meses que se seguiram, eram uma corrida contra o tempo, tinha em breve a época das chuvas e seria a desolação total. Recebi inúmeras ajudas, em Bambadinca deram-nos roupa, fez-se mesmo uma quotização para ajudar os mais necessitados.
Quando regressei a Missirá, dois dias depois, o meu guarda-costas vinha a balbuciar, pedia-me perdão por não ter conseguido suster o fogo que me queimou a morança, a mais evidente tu vês na fotografia. Sobraram os ferros de uma cama, e Cherno Suane mostrou-me um crucifixo em prata, completamente enegrecido. Entendi a mensagem e aceitei a corrida contra o tempo, saímos todos vitoriosos. Penso que a Annette ouviu esta narrativa e tratou-a como uma parábola para as nossas existências. É uma mulher temperada por muitas agruras, pela educação dos filhos e pelo sentido do dever. Tenho uma grande esperança de que vamos vencer esta corrida contra a distância.
A ajuda que te peço em nada te compromete, sou eu que tenho de responder pelo meu destino, mas tu és o meu amigo belga mais fiel e não me negarás o conselho que te peço, como agir a partir de agora, ciente que tu estás da vida que a Annette e eu levamos. Dá-nos estímulo, bem precisamos. Escreve ou telefona. É muito tarde e estou a cair de sono, terei amanhã um dia absorvente. A Annette partiu para Helsínquia, segue para o Luxemburgo, as malfadadas estatísticas e os medicamentos. Mando-lhe mensagens, desculpa eu estar a sorrir, parecemos dois garotos, dois adolescentes deslumbrados, sem fazer contas com o dia de amanhã. Acho que é positivo, é o risco de viver, é o risco de aceitar que agarramos pela gola as vibrações do destino. E eu estou tão feliz, Gilles! Não me desampares, preciso de outros olhares límpidos, como o teu. À tantôt, Paulo
(continua)
Nota do editor
Último poste da série de14 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21253: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (15): A funda que arremessa para o fundo da memória