1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Setembro de 2020:
Queridos amigos,
Annette Cantinaux, a paixão do Paulo Guilherme, é muito mais do que uma fiel depositária das memórias do antigo combatente. Estuda, inteira-se sobre aquele meio e aquelas populações, procura livros nas bibliotecas e livrarias belgas sobre aquela luta de libertação. Paulo dá respostas, neste texto faz uma súmula dos primeiros cinco meses. Esconde-lhe muitas coisas, as dores que sente no joelho direito, que obrigarão a intervenção cirúrgica em março; as dermatites recorrentes, tornou-se um cliente da pomada Fenergan, tem os pés inchados, até ulcerados. O sono alterou-se completamente, daí ter aprendido a dormir numa cadeira, todos os minutos de descanso contam. Vive em formação contínua com os seus Caçadores Nativos e Milícias, é forçado a praticar justiça em conivência com o régulo, aprendeu a trabalhar com um Morteiro 81, já levou um moribundo às costas e dentro em breve irá meter uma massa encefálica numa caixa de sapatos. Sempre que passa pela messe de oficiais em Bambadinca rouba jornais há três ou quatro meses, é um pretexto para pôr toda a gente a ler em Missirá e Finete. Já conhece as principais etnias da Guiné, sabe o que é uma lala, um cipó, um poilão. Comprou mesmo uma indumentária muçulmana para se juntar ao Ramadão, teve uma acesa discussão religiosa com o almani, Lânsana Soncó, mostrou como o Alcorão dispensa que quem combate pratique jejum.
Annette Cantinaux está deslumbrada por se integrar neste romance onde curiosamente a ficção é mínima.
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (19): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Mon amoureuse, fico feliz por saber que o teu filho vai trabalhar em boas condições numa organização não-governamental de proteção aos imigrantes. Ainda não tenho data marcada para a minha viagem, vê se podes sensibilizar os teus filhos para passares o Natal comigo, se vieres antes de 16 de dezembro conseguirás preços mais abordáveis, regressarias a 3 ou 4 de janeiro, creio que este período é coincidente com a falta de reuniões organizadas pela Comissão Europeia. Estou muitíssimo entusiasmado por voltares a Lisboa, desta vez por minha causa e pela nossa felicidade, entre Lisboa e Bruxelas iremos descobrir onde deitar a âncora. Seguiu uma carta volumosa, conforme me tinhas pedido, fiz uma síntese dos primeiros cinco meses da minha vida na Guiné. É bastante sumário, mas estão aí os aspetos capitais de acordo com o que a memória retém, do que ficou das fotografias e dos aerogramas.
A minha chegada a Bissau e a partida num barco civil do porto do Pidjiquiti para Bambadinca. O logo ter percebido existir o imperativo das seguranças na região de Mato de Cão à navegabilidade do Geba, passarão a ser patrulhamentos quase à escala diária e casos haverá em que está a chegar uma patrulha a Missirá e prontamente segue outra para o mesmo destino. Chego ao Cuor e cai-me a alma aos pés, não é só a pobreza e as condições deploráveis em que vivem os militares e civis, vive-se em condições degradantes e altamente inseguras. Havia que encontrar respostas para melhorar tudo, até as artes da culinária, o balneário era primitivo, não havia sanitários, os abrigos tinham palmeiras podres, a escola não funcionava, não havia visitas regulares ao médico. Surgiram confrontos com o furriel mais antigo, sobretudo quando ele verificou que eu não me limitaria a fazer colunas de reabastecimento a Bambadinca ou patrulhas a Mato de Cão, passei a ir com alguma frequência a Finete, a vedação de arame farpado estava praticamente caída e as valas imprestráveis. Novo confronto com o comandante da milícia local, um Soncó vaidosão e pretensioso, encontrei felizmente dois sargentos de mão-cheia, ainda não sei que estão a nascer amizades para toda a vida, Fodé Dahaba e Bacari Soncó, em escassos meses encontram-se provas físicas da presença de colunas do PAIGC nos mesmos caminhos que nós percorremos. Três meses depois de estar no Cuor, já percorri quatro quintos do território, o quinto sobrante é onde estão as populações em locais que dão pelo nome de Madina e Belel, quase tudo mata hermética. Estou a ser oficial averiguante de um processo tétrico, uma granada incendiária deixada em Finete, ao tempo da presença de um pelotão de caçadores, num atrelado, uma criança curiosa retirou a cavilha, tem as costas e as pernas retalhadas. O insólito bateu à porta, uma noite entrou quartel adentro um soldado que fora apanhado perto de Mansoa, escapuliu-se, terá andado vários dias a correr pelas matas, descobriu a nossa estrada, nunca saberemos porque é que não foi baleado pelas sentinelas. Passei a receber com a maior das regularidades bilhetinhos com inúmeros pedidos, um deles chega-me a 20 de dezembro, o soldado Mamadu Camará terá ditado a um escriba este conteúdo:
“Agradecia-lhe o obséquio por amor de tudo o que é mais sagrado neste mundo e especialmente a sua excelentíssima esposa. O pedido é o seguinte: como o meu alferes disse que tenho de ir gozar licença no mês de janeiro, gostaria de ir mas peço a vossa excelência para me ajudar, pois tenho alguns colegas que me devem dinheiro desde o ano passado e até agora não me pagaram, e para ir gozar licença preciso deste dinheiro comigo para os meus assuntos particulares que tenho de realizar na minha terra. A razão é essa que quero para que o meu senhor alferes lhes faça desconto no fim do mês, é uma importância de 900 escudos”. Chamado a esclarecer os devedores, apurou-se que ele tinha uns bons calotes pregados a outros entre Missirá, Finete e Bambadinca. Já sei o que são flagelações, já sei fazer autos de abate, em Bambadinca pediram-me para ir pondo nos meus autos de abate mantas, capacetes, lençóis, panos de tenda, botas de lona, até tesouras de corta-arame. Ainda não conheço as consequências de tantos abates apocalíticos, só mais tarde há-de chegar um helicóptero com um coronel responsável pelo inquérito, não tive rebuço de contar-lhe a verdade, será tudo arquivado. Encontrei professor, vou conseguindo cimento, chapas onduladas para os telhados dos abrigos, consegui um atrelado, fui integrado em duas operações, ambas na região do Xime, ninguém me explicou coisíssima nenhuma daquelas marchas infernais onde os guias não atinaram com qualquer objetivo.
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Cherno Suane
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Chegou um novo batalhão, relaciono-me muito bem com os Comandos e os meus camaradas. Um soldado autopropôs-se ser meu guarda-costas, de nome Ieró Baldé, revelou-se estimável e cordial, aproveitando as suas férias apresentou-se outro, um soldado do pelotão de Caçadores Nativos, de nome Cherno Suane, ele virá para Portugal em 1992, temos uma amizade fraterna. O régulo Malan Soncó pediu-me para eu intermediar um desejo dos Mandingas, dar novamente vida à tabanca de Canturé, não obterei acolhimento por parte dos meus superiores. Haverá também flagelação a Finete, felizmente sem consequências. Entre alguns melhoramentos, idas diárias a Mato de Cão, com a escola a funcionar, com colunas a lavar civis a Bambadinca, pois instituiu-se a visita semanal ao posto de enfermagem onde o médico dá consulta, foi uma iniciativa que calou fundo na população, dá-se o episódio que já te contei, tem o título
“O Presépio de Chicri”, sou incapaz de pôr em palavras o sofrimento vivido por matar e por quase ter visto morrer o Paulo Ribeiro de Semedo naquela horrível marcha à procura de um helicóptero bendito me pedia insistentemente que lhe desse um tiro de misericórdia. Tudo em cima do Natal, fez-se festa a pensar na população de Missirá, guardei numa folha que não desapareceu um poema alusivo ao Natal de Tomaz Kin, nome literário do professor Monteiro Grilo:
“Não seja esta noite, agora e sempre,
Igual às outras noites.
Não seja esta noite, agora e sempre,
Igual às outras noites.
Tumba de carne viva em ódio amortalhada,
Anunciando sangue e pranto e morte.
Não seja esta noite, agora e sempre,
Igual às outras noites.”
Annette, também pude sobreviver graças à música que trouxe de Lisboa e às centenas de livros que guardo dentro da minha morança. Começo a conhecer a história deste povo, a guerrilha chegou cedo ao Cuor, o régulo Malan repudiou todos os convites do PAIGC. Sei que nesse ano de 1963 houve um massacre em Gambaná, dizem-me ter morrido bastante gente indefesa arrebanhada pelo PAIGC, mas não consegui apurar quem massacrou quem. Chegou um novo furriel, de nome Casanova, é hábil a aproveitar equipamentos antigos, traz tudo para Missirá, velhas casas abandonadas entre Finete e Mato de Cão. Contenho-me agora quando é necessário falar de uma descoberta horrível, o ressentimento que existe entre guineenses e cabo-verdianos. Não te quero incomodar mais com episódios dolorosos, muitos deles incompreensíveis para uma belga, do que pode levar gente habitando o mesmo solo a estarem envolvidos numa guerra de libertação da componente da guerra civil aparece habilmente camuflada.
Vou telefonar esta noite, só penso em ti, só penso na tua companhia, agora e sempre, tenho aqui a tua fotografia a meu lado, é a compensação que me alivia da distância a que estamos sujeitos, não sei por quanto tempo. Mas um dia estaremos sempre juntos, é esse o teu e o meu sonho. Gosto da maneira como tu dizes “besinhos”, encanta-me. Querias dizer “beijinhos” mas prefiro que digas “besinhos”, é mais terno e é mais teu, meu amor adorável. Teu, Paulo.
(continua)
Casal guineense sénior sentados à porta da morança
Junto da ponte de Sansão, já reconstruida, da esquerda para a direita: Mamadu Camará, Usumane Baldé, Serifo Candé, Seco Seidi, Domingos da Silva, Tunca Sanhá e Nhaga Maque