E vem-te á cabeça, uma frase cruel que te iumpressionou, do Camilo Castelo Branco, nas "Memórias do Càcere"... Deixa-me ver se a encontro aqui... ""Ignoro (...) se Deus deixou remédio para os defeitos das suas obras; confesso só que é ukm blasfemo atrevimento querer-lhas corrigir"...
Enfim, ficas a saber que há um lado da vida que se trata com antibiótico, outro com vitamina. Antibiótico, faca, bisturi, laser, rádio, quimioterapia, penicilina, morfina, etc., vem tudo a dar no mesmo. O que será o que esconde aquela fachada do IPO onde nunca entraste ?
Não disfarças a tua ansiedade, confessa. Nunca lidaste bem com as doenças, sobretudo a dos outros. E muito menos com a morte dos que te eram queridos: a tua primeira mulher, ainda tão jovem, os teus pais, já velhotes... Estás a escrever furiosamente como se fumasses cigarros uns atrás dos outros. Já não fumas há muito. Desde os anos 80, quando apanhaste aquela maldita pneumonia, a seguir a uma vulgar gripe sazonal. Ou crise palúdical, sezóes de África ? ... Chegaste a temer tratar-se da doença nova que então espalhava o terror entre a malta que estivera em África, o HIV-Sida. No teu caso, na Guiné e depois em Angola. Lembras-te do médico que não conseguiu escondeu o nervosismo: depois de te apalpar no baixo ventre, foi logo direitinho ao lavatório do cubículo para lavar as mãos... O que estranhaste: os médicos que tu conhecias, até então não lavavam as mãos à gfrehte do doente...
Deixaste de fumar por conselho médico, mas sobretudo por medo do cancro do pulmão. “O medo tem muita força, meu amigo”, diz o Zé Conde que está lá dentro à espera do veredicto dos médicos. Como se os médicos tivessem o poder da vida ou da morte. Ou não têm ?!
3. Há mais carros em segunda fila. Estás no teu carro, no lugar do condutor, enquanto aguardas o regresso do teu amigo, teu "mano" e teu compadre que vieste acompanhar. Estás impaciente, vê-se que não gostas de esperar, muito menos à porta de um hospital, para mais oncológico. Até na barriga da tua mãe, não gostaste de esperar. Acabaste por nascer prematuro.
Estás no lugar do condutor. O do morto é ao lado. Lembras-te das colunas logísticas que fazias na Guiné. Ias na GMC do tempo da guerra da Coreia. Sentado ao lado do condutor. No lugar do morto.
Continuas mal estacionado, agora no lugar reservado às cargas e descargas da farmácia e estabelecimentos contíguos. A esta hora da manhã já não há lugares livres para estacionar. Aqui e no quarteirão à volta, delimitado pelos muros do IPO, a Av Madame Curie e a Rua Professor Lima Basto. Tiveste que fixar os nomes das ruas e chegar ao IPO pelo GPS... Estás em Lisboa há uma porrada de anos, e ainda há sítios que tu não conheces...
Nem a pagantes, lá dentro ou cá fora, há lugares de estacionamento. O lisboeta não gosta de pagar o estacionamento do carro. Daqui um bocado o gajo da EMEL ou o polícia municipal vai chatear-te. Mas ainda é cedo. Não te enerves.
À tua frente, ao lado da Farmácia, na esquina da Avenida Madame Curie, fica a tabacaria e papelaria Polana… Nº 17A, se bem descortinas o número de polícia. Deve ser de alguém que retornou de África, de Moçambique, uma das joias da coroa do nosso império colonial. Tens uma vaga ideia de ouvir falar do Hotel Polana, havia um dos gajos da companhia na Guiné que era moçambicano. Nunca fostes para esses lados do Índico. Trabalhaste em Angola. Há anos que não voltas lá, a última vez foi para estar com o teu filho e o teu afilhado. E agora tens lá netos que ainda não conheces.
Há um corropio de gente que vai comprar tabaco ou cartões da raspadinha. Acabam de entrar e sair dois jogadores compulsivos, com o ar de quem não acordou em dia de sorte. Para tudo é preciso sorte. No amor, no jogo, na caça, na guerra. Mas tentam, uma e outra vez. Contaste até seis, as raspadinhas que eles deitaram fora. Depois desistiram e perderam-se no meio da multidão, ao dobrar da esquina. Amanhã talvez tenham mais sorte. Afinal, só calha a quem joga. Também devem acreditar que há um deus da sorte, como há um deus do cancro.
As mães levam as criancinhas para a escola, logo de manhã. Vão com ar ensonado, as criancinhas, ainda a comer o resto do papo-seco. Por que é que, meu Deus, dão pão de plástico às criancinhas ?!... Passeiam os vizinhos os cãezinhos. Um pai, com ar apressado, leva um carrinho de bebé, com duas crianças, a mais velha dependurada no estribo, em posição instável. Já vão atrasados para a escolinha.
Os velhos, como tu, já apareceram nas esplanadas, a seguir à Tabacaria e Papelaria Polana, no nº 17A, se não erras. Não perdem pitada dos primeiros raios de sol. E que raio de nome é o do restaurante, no nº 19 ? “Bogani Desperta Caxito”, lê-se no toldo. Café, pastelaria, take away, restaurante Caxito. Outro topónimo de ressonância africanista, neste caso uma cidade de Angola, a norte de Luanda, mas onde tu nunca foste quando lá estiveste. Quanto a Bogani, é marca de café, deduzes tu. Bogani Desperta. Enquanto há gente que espera, desespera, espera, à porta do IPO..., ficas a saber que o Bogani Desperta.
Não é mal pensado, um comes & bebes aqui à beira de um hospital, para mais oncológico, por onde passam centenas, milhares de pessoas, todos os dias. Um gajo pode estar a morrer de cancro, mas continua a comer todos os dias, nem que sejam bifanas, pizas ou hambúrgueres (se é assim que se escreve).
E no nº 17 o restaurante Quinta Avenida. Que nome pomposo! Faltam-te os arranha-céus, para te sentires em Nova Iorque. O edifício mais alto, por aqui, ainda é o velhinho, quase centenário, IPO, que não terá mais do que seis ou sete andares, se bem os contaste, por deformação profissional. Em Angola, eras o "senhor engenheiro pela Universidade Técnica de Lisboa". Cá, dizias, com graça, no tempo da Expo 98, que eras um "trolha da construção civil com diploma de engenheiro".
Se o polícia te aparecer a chatear-te, dizes que estás à espera de um doente. O que é verdade mas não adianta. Ele põe-te a mexer. E, se refilares, ameaça-te com "o papelinho da multa", a arma dos pequenos poderes. Dantes, na tropa, embrulhavam-te em papel selado. Ainda és desse tempo, vê como estás velho. Agora acabaram com o papel selado. Azul. Vinte e cinco linhas. E margens regulamentares.
Mas ainda é cedo para te preocupares com o polícia ou o fiscal da EMEL. A esta hora estão a fazer a barba para pegar ao serviço. Depois vão tomar a bica, dar uma olhadela pelo jornal "A Bola", no quiosque da esquina e, pelo meio da manhã, talvez venham para a rua exercer a função.
4. Não sabes qual é a função do pâncreas mas deve ser um órgão fodido...Devias saber mais da anatomia e fisiologia do corpo humano. E a função do fígado ? E do baço ? E da tripa ? E até do raio da próstata!... Nunca deste conta da tua...
"Don't worry, be happy": é a melhor frase do dia, regista-a aí, no teu caderninho. Se tu a repetires muitas vezes ao longo do dia, talvez resulte e tu consigas chegar à tua casa, vazia, onde ninguém te espera, nem um cão nem um gato, no Bairro de Santos, com o ar de quem ainda pode vir a esperar algumas coisas boas da vida, e até dar-se ao luxo de aspirar a ser feliz. Põe a felicidade na tua lista de desejos a pedir ao Pai Natal. se ainda acreditas nalguma coisa.
Segue as instruções do teu psicoterapeuta: "Relaxe, respire fundo, peito aberto, coração ao alto!"... Ou "ao largo ?" Há uns que são mais aviadores, e ordenam-te " "coração ao alto!". Outros são mais marinheiros, e berram "coração ao largo!".
Mas, não, não tens psicoterapeuta, se calhar até gostavas de ter, a tua ex, a segunda, também tinha, as amigas dela também tinham... Os psis faziam parte da herança de família mas tu é que pagavas a conta... Nunca deu certo um gajo ir para África trabalhar quem nem um mouro e deixar cá as gajas, o cão e o gato. Hoje não tens mulheres, nem cães, nem gatos.
"Don't worry, be happy!"...É bom saber que alguém te ajuda (ou pode vir a ajudar) quando estás na merda. Um condutor de ambulância do Alentejo profundo (Mértola, se bem consegues ver pelo retrovisor o que está escrito na frente da viatura...) veio para aqui, à esquina da farmácia, fumar um cigarro eletrónico. Agora também está na moda, o raio do cigarro eletrónico.
Mas reparaste, logo à entrada do IPO, num cartaz de 2 por 2 metros com os dizeres: "IPO sem tabaco"... Ao fim destes anos todos ? ... Afinal, tu estás muito à frente do IPO... Tu conseguiste deixar de fumar, depois de apanhares um cagaço... O cagaço faz bem à saúde. Os fumadores deviam apanhar um cagaço. Um pequeno cagaço não lhes faria mal.
Uma jovem sai do nº 15 para o trabalho com a lancheira na mão. Também está na moda, a lancheira na mão, de casa para o trabalho... O que fará ela ?... "Call centre", adivinhas tu!...Bingo!... Mais uma aventura do país dos "call centre".
Há mais carros estacionados em segunda fila, com os condutores lá dentro e os piscas ligados, à espera de alguém que foi ao IPO. É um corropio de carros e ambulâncias a entrar e a sair do IPO, olhas tu pelo retrovisor.
Um assistente operacional (é assim que se diz agora ?!, dantes dizia-se operário), com a bata do IPO, vem também à Tabacaria. Na esplanada há já quatro pessoas, dois homens e duas mulheres, a fumar. Um condutor de ambulância da Cruz Vermelha Portuguesa compra o "Record". A menina do Restaurante Quinta Avenida monta o resto das mesas e cadeiras da esplanada que ocupa parte do passeio. O segurança do IPO também vem comprar raspadinhas. Há duas jovens a tomar café. Uma, mais gordinha, fuma. A outra, mais magrinha, também fuma e está ao telemóvel. Devia ser proibido fumar num raio de cem metros do IPO, apontas tu no teu bloco de notas. E agora até dizem que os telemóveis também fazem mal à saúde. Por causa das radiações. És um trolha da construção civil, não sabes nada de (ir)radiações, ionisantes ou não-ionisantes.
Porra, afinal o que faz mal à saúde, é um gajo estar vivo!... A vida é que faz mal ao cancro!...O cancro da mama, do esófago, da próstata, do pàncreas, da pele, do fígado, dos pulmões...
Uma mulher de meia idade veio cá fora raspar um cartão. Raspa com raiva. Ou é fé e determinação ? Não lhe saiu nada. A Santa Casa da Misericórida de Lisboa (SCML) tem um móvel, à porta das papelarias, com um caixote do lixo só para os restos da raspadinha. Ecológica, a Santa Casa, amiga do ambiente.
Tens um marco do correio, vermelho, mesmo à tua frente. Um senhor, já mais velho do que tu, muito para cima dos 80, mas ainda com farta cabeleira branca, com ar de sido inglês e diplomata no Extremo Oriente, na outra incarnação, vem pôr uma carta no marco do correio... Já não vias este gesto, civilizado, urbano, romântico, e tão terno, há muitos anos. Quem será a felizarda da destinária ? Afinal, nunca é tarde para amar... (Se bem te recordas, era uma canção italiana do teu tempo de Guiné.)
Um casal (ele, mestiço, não digas mulato que é racista) entra na papelaria. Mulatas são as mulas. Ela acaba de fumar e mandar a beata para o chão. Há gente sem educação cívica. Ou és tu que estás hoje mais sensível e intolerante ?!... Em Luanda, fazias o mesmo... Mas Luanda tinha metros e metros cúbicos de lixo a cada esquina.
Mais uma mãe com a criancinha pela mão. Saem batas brancas, de vez em quando, do IPO. Vêm aqui tomar qualquer coisa na Pastelaria. Não dá para ver o que consomem nem muito menos para ouvir as conversas lá dentro. Uma bata branca sentou-se cá fora, puxa de um cigarro. O café puxa o cigarro, ainda te lembras do teu vício quando fumavas nos anos 80 ?... Grande estúpido!
Uma jovem mãe também se senta, com um carrinho de bebé. Fuma e fala ao telemóvel. Desalmadamente. E é feliz ou parece sê-lo. A maternidade torna as mulheres felizes, aponta aí no caderninho,.
A Farmácia Curie não tem mãos a medir, tem muita clientela, velhos que vêm aviar receitas. É uma mina, a velhice, para os boticários, os médicos, os fisioterapeutas, os nutricionistas, os SPA, os ginásios, os hospitais. "Teme a velhice, que nunca vem só", apontaste há dia este provérbio dito popular, no teu caderninho. "Vade mecum", também lhe chamas.
Os estabelecimentos estão todos bem situados, só o nº 15 é que te parece ser uma entrada de um prédio de habitação, com porteira. Se contaste bem, o prédio tem quatro andares e, pelo estilo e estado de conservação, deve ser dos anos 30. Disso percebes tu, que foste encarregado de obras, ganhaste bom patacão no tempo da Expo... (Patacão, graveto, cacau... em crioulo da Guiné.)
A menina do restaurante Quinta Avenida veio, agora, fardada a rigor, de preto, e com um guardanapo branco no braço, fumar cá fora um cigarro eletrónico. Adoras as mulheres fardadas, ficam com um ar sexy, quando combinam bem o preto e o branco. Um adolescente de origem africana, auscultadores nos ouvidos, passa a falar alto ao telemóvel, e a gesticular, com ar gingão de rapper angolano. Parece feliz. A vida é bela quando um gajo está na casa dos verdes anos e não tem que ir para a puta da guerra, como tu foste na idade dele. Ou não está à espera de um amigo, à porta do IPO.
Mais um estúpido de um gajo a fumar à porta do Bolgani Desperta Caxito. Deve ter 60 anos. Sabes lá se tem 60 anos, nunca foste bom a tirar idades... Nem pintas. Se tivesses tirado a pinta à tua, nunca te terias casado com ela, nem ela te deixaria viúvo aos 40 e picos anos. Porra, mal tiveste tempo de a amar!
Mais um jovem e uma velha a fumar na esplanada. Na papelaria, o negócio do tabaco e da raspadinha continua em alta, e ainda o dia é uma criança. Estás visivelmente irritado com a demora do teu amigo...E o IPO ali ao lado, a mexer-te com os nervos.
5. Desistes aqui do teu jogo, desistes de continuar a observar e a registar o formigueiro humano. Fechas o vidro do carrro mas ainda dá para ver a mulher da limpeza da farmácia a apanhar as beatas que formam uns montinhos à porta. Tudo por causa da merda da raspadinha. Deviam depositar o lixo à porta da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a tal fábrica de fazer milionários excêntricos.
Pelo retrovisor, apercebes-te que o teu amigo, camarada e compadre está de volta, o rosto inexpressivo, impávido e sereno, como nos dias, de manhã muito cedo, em que iam, os dois, de Unimog, cada um a comandar a sua secção, encher os bidões de água na "Fonte das Bajudas" (ou das "beijudas", dizia ele, marialva do Ribatejo)
- Está no ir, mano : começo para a semana a quimeoterapia, daqui a umas semanas radioterapia!... Não vou morrer desta merda, e até pode ser que me safe, diz-me o urologista...
Ligas o carro, fazes inversão de marcha, lês pela última vez o idiota do anúncio do Absorvit: "Don't worry, be happy!"... Que é como quem diz: "Foda-se!, sè feliz!"
Não falaram mais pelo caminho, foste levá-o a casa, a 30 ou 40 quilómetros de Lisboa. Mas reviste, nessa manhã, na viagem de regresso, todo o filme da morte do "Campino", filho e neto de campinos, que era o condutor da GMC que transportava os bidões da água. Era um filme com cinquenta anos, a preto e a branco, com duas testemunhas, mudas e impotentes, tu e o Zé Conde, o teu doente do IPO...
Mas um gajo, por muito que queira, não esquece o que viu e sofreu. Há meses que não havia sinais de atividade do IN (abreviatura de Inimigo, o turra), nas imediações do quartel, a menos de dois ou três quilómetros. Era uma operação de rotina, duas ou três vezes por semana. A água era racionada. Deixou de se picar o caminho quando se ia à água da "Fonte das Bajudas", de resto frequentada pela população local, maioritariamente fula... Os gajos nunca punham minas antipessoais. Até esse dia fatídico em que o "Campino", que ia à frente, acionou uma mina anticarro reforçada, já no início da época das chuvas.
Restos do seu corpo e da pesada viatura foram encontrados num raio de cento e tal metros. Era um puto porreiro, deixou viúva e uma filha que nunca chegou a conhecer. Falava muito com o furriel Zé Conde, eram os dois ribatejanos, e trabalhavam antes da tropa na Quinta do Infantado, na Companhia das Lezírias, na coudelaria. Adorava touros e cavalos. Lembraste-te sempre dele, quando passas por aqui, por Porto Alto.
Ao chegar a Samora Correia, à porta do restaurante, já conhecido, onde almoçariam enguias fritas e umas sandochas de codorniz desossada, no Tretas & Lérias, o Zé Conde, o teu doente do IPO, só te disse, com um sorriso amarelo:
- Lembras-te ?... Há cinquenta anos, a gente costumava dizer um para o outro: não te chateies, mano, a vida continua... dentro de momentos!
- "Don't worry, be happy!" - martelaste tu, très vezes, com a cabeça no retrovisor...
© Luís Graça (202o). Revisto: junho de 2023.