segunda-feira, 4 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23138: Recordando o Salgueiro Maia, que eu conheci, o meu comandante, bem como os demais bravos da minha CCAV 3420 (Bula, 1971/73) (José Afonso) - Parte I: Um cartão pessoal... para a história: "Sinto-me feliz não só pelo acontecimento, mas por me permitir ter vingado todas as injustiças que nos fizeram na Guiné", disse-me ele, agradecendo um telegrama de felicitações, enviado logo a seguir ao 25 de Abril de 1974




Reprodução de um cartão pessoal, manuscrito, de Salgueiro Maia, ex-comandante da CCav 3420 (Bula, Mansoa, Pete, Farim, Binta, Bissau, 1971/73, 1971/73), agradecendo ao José Afonso, seu ex-fur mil, do 3º Gr Comb, o telegrama que este lhe enviara, felicitando-o pela sua participação no golpe militar do 25 de Abril de 1974 e pelo sucesso do movimento dos capitães... Documento s/d, mas próximo do 25 de Abril de 1974, talvez maio de 1974.(*)

Salgueiro Maia voltara, entretanto, à unidade de origem, a  EPC - Escola Prática de Cavalaria, em Santarém. Repare-se que ele ainda utilizou papel da sua ex-companhia, tendo por timbre, cortado por um traço, o brasão da CCAV 3420, "Os Progressistas", sediada em Bula, SPM 1898.

O nosso camarada José Afonso, ou José Baptista Afonso, por sua vez,  é bancário, reformado da CGD, dividindo, em 2009, o seu tempo entre Castelo Branco, de donde é natural, e o Fundão, onde trabalhou e tinha residência.. Não temos notícias suas desde esse ano. Nasceu em 1949, e deixou de ter o endereço de email que tinha. Não temos o seu nº de telemóvel.


Teor do cartão, sem data:

 [ Ao canto superior esquerdo, Brasão  da CCAV 3420, Os Progressistas, SPM  1898 (Particular)]:

"Caro amigo: Só agora tenho tempo de agdecer o agradável telegrama. Sinto-me feliz não só pelo acontecimento, mas por me permitir ter vingado todas as injustiças que nos fizeram na Guiné. Do pessoal da Comp[anhia] guardo as melhores recordações mesmo depois de fazer o balanço dos maus bocados. Um dia que nos encontremos poderemos esclarecer muitas situações.

"Há pouco esteve aqui o ex-fur[riel] Gomes. O 1º [sargento] Beliz mandou vir e foi  expulso do curso para oficial mas deve agora [depois do 25 de Abril] ser readmitido. O 1º Pascoal continua aqui [na EPC, Santarém] como dantes.

"Sem mais, um abraço do amigo ao dispor. (Ilegível)"


 [A foto acima é, de  há muito,  um ícone,  foi tirada pelo grande fotógrafo português Alfredo Cunha, no 25 de Abril de 1974: é apenas um detalhe da foto original. Cortesia de Wikipedia.] 

Foto (e legenda): © José Afonso (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guião da CCAV 3420 (Bula, 1971/74). 
Coleção de Carlos Coutinho, com a devida vénia


1. O capitão Salgueiro Maia, de seu nome completo Fernando José Salgueiro Maia (Castelo de Vide, 1 de julho de 1944 - Santarém, 3 de abril de 1992), ficará na história de Portugal como um dos nossos heróis do séc. XX.

Passado quase meio século depois do 25 de Abril de 1974, e trinta depois da morte do mais famoso capitão de Abril, parece haver hoje um amplo consenso na sociedade portuguesa sobre o seu lugar na história da nossa Pátria. 

O homem que comandou a coluna de cavalaria que veio de Santarém, cercou os ministérios do Terreiro do Paço e levou Marcelo Caetano a render-se no quartel do Carmo, sede da GNR, é um exemplo das melhores virtudes pátrias que pode ter uma militar: coragem (física e moral), serenidade, bom senso, liderança, abnegação, honestidade intelectual, coerência, amor à república, amor à Pátria...

Mas não nos compete, a nós, blogue, escrever aqui "hagiografias" (Nem biografias, não somos historiadores.) Para nós, foi um dos nossos camaradas na Guiné (regressado em outubro de 1973), e isso basta, não nos podendo todavia esquecer, muito menos ignorar ou escamotear, que ele se irá distinguir depois pelo seu papel, decisivo, nobre, orajoso e impoluto, no 25 de Abril de 1974. 

Morreu, precocemente, aos 47 anos, vítima de cancro. Quiçá amargurado, pelas injustiças de foi vítima, sobretudo por parte do poder instituído, não apenas militar como político.




José Baptista Afonso, ex-fur mil at cav, 3º Gr Comb,
CCAV 3420 (1971/73). Natural de Freixail de Cima, Castelo Branco,
tem casa também no Fundão onde trabalhou, 
e conhecia o nosso saudoso Torcato Mendonça.


2. Vamos, por estes dias, recordar a  ação do cap Salgueiro Maia, nomeadamente na Guiné, enquanto comandante da CCav 3420 (Bula, Mansoa, Pete, Farim, Binta, Bissau, 1971/73, 1971/73). E sobretudo a partir dos testemunhos de quem o conheceu no CTIG. 

Infelizmente só temos um representante da CCAC 3420 na Tabanca Grande: o nosso camarada José Afonso (fotos acima), de resto um excelente contador de histórias.

E começamos justamente pela reprodução de um cartão pessoal, escrito pelo Salgueiro Maia, já depois do 25 de Abril de 1974, talvez em Maio, enviado ao José Afonso que o havia felicitado  pela acção na Revolução dos Cravos (documento acima reproduzido).

Nas neste primeiro poste de homenagem a este homem da nossa geração e nosso camarada da Guiné, de que muito nos orgulhamos,  é bom sabermos algo mais sobre a CCAV 3420 que ele comandou. 

Depois iremos repescar algumas das histórias do José Afonso sobre o Salgueiro Maia e outros bravos da CCAV 3420, esperando, por outro lado, que ele, José Afonso,  volte a dar notícias,  o que não acontece há muitos anos (desde, pelo menos, 2009).

PS - Já pusemos as notícias em dia, e tenho o atual endereço de email, além de "carta branca" para republicar as suas histórias do Salgueiro Maia e dos demais bravos da CCAV 3420.


Ficha de unidade > Companhia de Cavalaria n.º 3420

Identificação:  CCav 3420

Unidade Mob: RC 4 - Santa Margarida

Cmdt: Cap Cav Fernando José Salgueiro Maia

Divisa: "Progressistas" - "Perguntai ao Inimigo Quem Somos"

Partida: Embarque em 04Jul71; desembarque em 09Jul71 | Regresso: Embarque em 030ut73


Síntese da Actividade Operacional

Após realização da IAO, de 12Jul71 a 06Ag071, no CMI, em Cumeré, seguiu em 11Ag071 para Bula, a fim de efectuar o treino operacional e render a CCav 2639.

Em 29Ag071, iniciou a actividade de intervenção e reserva do BCaç 2928, substituindo a CCav 2639 a partir de 20Set71, e actuando nas regiões de Choquemone, Cuboi, Ponta Matar-Ponate e outras, bem como nas acções de contrapenetração e na segurança e protecção dos trabalhos da estrada Bula-Binar,

De 05Mai72 a 08Jul72, foi deslocada para Mansoa, em reforço do BCav 3852, com a missão principal de garantir a segurança e protecção dos trabalhos da estrada Mansoa-Namedão-Bissorã, recolhendo a Bula quando os trabalhos atingiram Namedão e voltando à dependência do BCaç 2928 e depois do BCav 8320/72.

Em 09Jul72, rendendo a CCaç 2789, assumiu a responsabilidade do subsector de Pete, com destacamentos em Ponta Consolação e Capunga, com vista à execução e controlo dos trabalhos de construção, dos respectivos reordenamentos e promoção socioeconómica das populações. 

Em 07Dez72, assumiu, em acumulação, por saída do CCaç 3328 e extinção do subsector de Ponta Augusto Barros, a responsabilidade daquela zona de acção, mantendo a sede em Pete e guarnecendo então os destacamentos de João Landim, Capunga e Mato Dingal.

Em 23Mai73, foi substituída nos reordenamentos pela 1ª Comp/BCav 8320/72 e seguiu, em 25Mai73, para Farim e depois para Binta, a fim de reforçar as forças do COP 3 empenhadas no início dos trabalhos da reabertura do itinerário Binta-Guidage; em 29Jun73, foi rendida nesta missão pela CCav 3568, recolhendo então a Bissau.

Em 30Jun73, substituiu no sector de Brá a CArt 3521, ficando integrada no dispositivo e manobra do COMBIS, a fim de garantir a segurança e protecção das instalações e das populações da área.

Em 30Set73, foi substituída no subsector de Brá pela CCaç 3476, a fim de aguardar o embarque de regresso.

Observações - Tem História da Unidade (Caixa n." 99 - 2ª Div/4ª  Sec, do AHM).

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas das Unidades: Tomo II - Guiné - 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002, pp. 515/516
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Nota do editor: 

Guiné 61/74 - P23137: Parabéns a você (2051): Agostinho Gaspar, ex-1.º Cabo Mec Auto da 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 de Abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23135: Parabéns a você (2050): Álvaro Vasconcelos, ex-1.º Cabo TRMS/STM (Aldeia Formosa e Bissau, 1970/72)

domingo, 3 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23136: Agenda cultural (806): Salgueiro Maia - O Implicado, filme de Sérgio Graciano (Portugal, 2021, 1h 55m), a estrear nos cinemas no próximo dia 14


Cartaz do filme Salgueiro Maia - O Implicado, 
a estrear nos cinemas no próximo dia 14 d abril de 2022

Cortesia da distribuidora Cinemundo



SALGUEIRO MAIA - O IMPLICADO

Estreia em cinema: 14 de Abril de 2022


Ficha técnica:

Título original: Salgueiro Maia – O Implicado

País e no de produção: Portugal, 2021

Duração: 1h 55m

Classificação do filme: M/12

Realizador: Sérgio Graciano

Elenco: Tomás Alves, Filipa Areosa, Frederico Barata, Catarina Wallenstein, José Condessa

Género: Biopic; Drama


disponível no conta Cinemundo / You Tube


Sinopse:

Salgueiro Maia – O Implicado
, constitui o primeiro retrato, a projetar no grande ecrã, daquele que é considerado o herói e o símbolo mais puro do 25 de Abril de 1974. Fernando Salgueiro Maia, o anti-herói não ocasional, produto de uma formação académica e militar, foi um homem que soube pensar o futuro, seguir as ideias, contestando-as, vivendo uma vida cheia, alegre e fértil, solidária e sofrida – se não tem morrido prematuramente aos 47 anos, teria agora 75.

Através de uma abordagem moderna, intimista e emocional, Salgueiro Maia – O Implicado retrata as histórias que ainda não foram contadas sobre o Capitão de Abril. As pequenas revelações que permitem perceber melhor de onde vinha a moderação, a valentia, a educação e a firmeza com que sempre se apresentou publicamente, e que foram a chave para que a Revolução dos Cravos tenha sido como foi.

Mais do que um docudrama, Salgueiro Maia – O Implicado é uma história de ficção baseada em factos históricos, relatos pessoais, revelações íntimas, emoções reais de quem acompanhou o capitão ao longo de toda a vida. Um filme que revela o outro lado de uma personagem mítica e que presta homenagem ao homem, ao estudante, ao militar, ao pai, ao amigo e ao ímpar militar de Abril.

Com Tomás Alves, Frederico Barata, Filipa Areosa e Catarina Wallenstein nos papéis principais e guião de João Lacerda Matos, o filme parte da biografia exclusiva e da investigação de António de Sousa Duarte.

A produção é da Sky Dreams Entertainment que tem como coprodutora a colombiana 11:11 Films & TV

O filme será distribuído pela Cinemundo e conta com os apoios/parcerias da RTP, PIC/ICA/Turismo de Portugal e CM Lisboa.

(Fonte: Cinemundo, com a devida vénia...)

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Nota do editor:

Último poste da série > 26 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23115: Agenda cultural (805): No âmbito das Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril: lançamento de nova edição do livro "Salgueiro Maia - Um homem da liberdade", de António Sousa Duarte: Lisboa, Quartel do Carmo,1 de abril de 2022, 17h30

Guiné 61/74 - P23135: Parabéns a você (2050): Álvaro Vasconcelos, ex-1.º Cabo TRMS/STM (Aldeia Formosa e Bissau, 1970/72)

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Nota do editor

Último poste da série de 30 de Março de 2022 > Guiné 61/74 - P23124: Parabéns a você (2049): Abel Rei, ex-1.º Cabo At Art da CART 1661 (Guiné, 1967/68); António Graça de Abreu, ex-Alf Mil Inf do CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74); Rosa Serra, ex-Alferes Enfermeira Paraquedista da BA 12 (Bissau, 1969) e Valdemar Queiroz, ex-Fur Mil Art da CART 2479/CART 11 (Contuboel, Nova Lamego e Paúnca, 1969/71)

sábado, 2 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23134: Os nossos seres, saberes e lazeres (499): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (44): Nunca me canso com as belezas de Trancoso, o regresso é inevitável (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Era o convite irrecusável de apresentar um livro de amigo dileto, acresce que é uso e costume de mandar esta belíssima região todos os anos, o hospedeiro encarrega-se de propor passeios, o último levou-nos a S. João de Tarouca e ao Mosteiro de Santa Maria de Salzedas. O tempo era instável, pouca luz no primeiro dia, a manhã seguinte desabrochou em neblina, mas com agrado de quem em itinerância fez-se uma cobertura razoável do chamado Centro Histórico de Trancoso, ficou o pesar de não tirar imagens da Casa Quartel General Beresford, dos jardins, fontes e capelas. Mas há mais marés que marinheiros, e com saúde aqui se regressa, com o entusiasmo de sempre, dentro destes pedregulhos e oceanos de granito se fundou um país, aqui se guarda a lembrança do maior número de castelos que assinalam a Reconquista e as lutas pela independência.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (44):
Nunca me canso com as belezas de Trancoso, o regresso é inevitável


Mário Beja Santos

O pretexto era vir apresentar o novo livro de um querido amigo trancosense, uma obra de literatura memorial com muita infância e algo mais, uma exultação da natureza, da paisagem, do arvoredo que logo me embeveceu na primeira leitura; aqui cheguei com todo o agrado para lhe cantar hossanas, ele que continue na escrita e no gosto pela vida rústica. E atirei-me ao trabalho para estar itinerâncias, seguindo os ensinamentos de José Saramago, o que se vê no inverno não é o que se vê no verão, o que se vê com céu claro não é o que fixamos em dias ou horas de neblina, como algumas imagens pelo adiante comprovarão. Saí da apresentação do livro no Convento dos Frades Franciscanos, hoje Teatro Municipal de Trancoso, ciente da escassez da luz, era uma luta contra o tempo. E dirigi-me logo para um monumento que me fascina, o Cruzeiro do Senhor da Boa Morte.
Este cruzeiro é manuelino, coberto com abóbada assente sobre quatro colunas, que em 1729 um padre mandou cobrir, não sei se fez bem. Gosto de por aqui cirandar a volta deste crucifixo em granito, nele avulta a gravidade, a expressão dolorosa, como se tivesse a dizer, “vê se entendes por que te encaro de braços abertos”.
Chama-se Capela de São Bartolomeu, será templo reconstruído sobre um já existente. A reconstrução é de 1778 e foi feita em memória dos esponsais de D. Dinis com Isabel de Aragão. Sobrepujado por uma cruz e com seis pináculos nos recortes dos cunhais, com base hexagonal. Numa das paredes, há uma lápide azulejada, e vocativa do casamento real.
Chamam-se Portas d’El Rei, ao que consta era mesmo porta régia, Trancoso está emuralhada, esta é a porta a sul, tem uma abertura entre duas torres ameadas. Por cima da entrada temos o escudo da cidade. Exteriormente formam um arco abatido e interiormente um arco em ogiva. Vejo escrito que em recuadas épocas fechavam com grades de pau ou de ferro e porta em madeira. Vejamos agora o outro lado das portas.
Aqui está o arco em ogiva, gosto muito deste prédio à direita como se estivesse a embeber-se no pano da muralha, daquela luz que parece escoar-se para o infinito, daquele primor das escadas floridas e do musgo a tomar conta da pedra. É assim a vida numa vila medieval, classificada como uma aldeia histórica.
Na continuação, entramos na rua do forte comércio, procura-se mais adiante o largo do município, esta corredoura guarda as marcas do tempo, neste exato momento não se anda à procura de vestígios romanos ou muçulmanos, românicos ou góticos, ou manuelinos ou barrocos, não haja ilusões que a vila medieval teve que corresponder aos desafios impostos pelo correr do tempo, e daí o muito antigo enfrentar estas montras modernas, este lugar habitado precisa de progredir, não é propriamente um museu. Este espaço é conhecido como casa dos arcos, esta construção será dos finais do século XVII e início do século XVIII, pertencia a um solar, deu muitas voltas, tem hoje proprietários diferentes.
Foi de propósito que enviesei o ângulo, queria mostrar-vos o pelourinho de Trancoso com vista folgada para aquela rua à esquerda, novamente uma casa dos arcos mostrando a Igreja de S. Pedro, na sua largueza. O pelourinho é manuelino, tem fuste facetado sobre quatro degraus e remata como colunelos que formam uma gaiola, em número cinco. É monumento nacional desde 1910. A casa dos arcos é um belo palacete do século XVII, sofreu alterações, por aqui funcionou o Grémio da Lavoura e até um armazém de móveis. A Câmara de Trancoso adquiriu-a e adaptou-a para um residência de estudantes.
Será mesmo necessário comentar que estamos num mundo medieval devidamente requalificado?
O Castelo e as Muralhas são o monumento mais importante da cidade, estão classificados como monumento nacional, tudo começou bem antes da nacionalidade, há uma primeira menção do castelo com data de 960, vem mencionado no testamento de D. Chamôa, onde o castelo é doado ao Castelo de Guimarães. Tem sete torres, a mais imponente é a Torre de Menagem, com uma configuração em forma de pirâmide truncada. Uma dessas sete torres foi adaptada para capela. As muralhas, como soe hoje dizer-se, são o ex-libris de Trancoso. Constituídas, em todo o seu comprimento, por quinze torres, só é possível ver quatro das quinze. A muralha que hoje podemos ver tem sete aberturas, quatro portas e três postigos.
As portas e os postigos são mais do que uma curiosidade, tinham funções específicas, caso de o Boeirinho, o Olho do Sol e as Portas da Traição. Estas muralhas conheceram sucessivos restauros desde o século XII até 1939, aqui a pensar nas comemorações dos 800 anos de nacionalidade. Neste restauro foram destruídos no exterior das muralhas vários casebres que se tinham implantado ali nos séculos XVIII e XIX.
Aproxima-se o fim do dia, com o meu caótico sentido de orientação, intuo que lá ao fundo está a Serra da Estrela, mas não excluo que esteja a ver Riba Côa, mas também não vou perguntar a ninguém, estou esmagado pela beleza desta vista espaçosa, este desafogo que é tão peculiar na Beira Alta. Sem luz não se pode trabalhar, o que se não se pode fazer hoje faz-se amanhã, há igrejas, há casarios, há o espaço do concelho, importa falar do judaísmo e das suas representações na cidade. Então até amanhã.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23114: Os nossos seres, saberes e lazeres (498): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (43): Uma visita ao Museu de Setúbal/Convento de Jesus (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23133: Documentos (36): Psico e propaganda: por uma "Guiné Feliz": um desdobrável com postais a cores, tipo Banda Desenhada, doado à Tabanca Grande pelo Joaquim Sequeira, o "Sintra", ex-1º cabo carpinteiro, BENG 447 (Brá, 1965/67)


Postal  nº 2


Postal  nº 3
Postal  nº 4

Postal  nº 5
Postal  nº 6


Postal  n 8

Postal  nº 9


Postal  nº 8


Postal   nº 1 > Guiné Portuguesa, Guiné Feliz... O nosso caamrada Joaquim Sequeira, o "Sintra, que foi 1º cabio carpimnterio, BENG 447 (Brá, 1965/67) assinalou os nomes dos aquartelametos e destacamentos por onde passou em serviço: no sector de Bissau, Brá, Santa Luzia, Bissalanca e Safim; na região de Quínara, Enxudé, Tite, Jabadá e São Joao; no arquipélago dos Bijagós, ilha das Galinhas e Bolama; na região do Gabu, Nova Lamego e Canjambari: no região do Oio,  Cuntima, Jumbembem, Farim, K3, Mansabá,Mansoa, Cutia, Bissorã, Olossato; na região do Cacheu, Binta...

Fotos (e legendas): © Joaquim Sequeira (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Joaquim Sequeira, o "Sintra",
Tabanca da Linha (2016)


1. Já aqui falámos, mais do que uma vez, dos "cartazes de propaganda que deixávamos no mato, nas clareiras, nos trilhos, nas bolanhas, nas regiões fora do nosso controlo, na esperança de que os guerrileiros do PAIGC, as suas milícias e a sua população se entregassem em massa às nossas autoridades, administrativas e militares" (*).

Pessoalmente, "nunca cheguei a observar os efeitos práticos e objectivos deste tipo de propaganda. Os 'homens do mato' que conheci foram os que fizemos prisioneiros; a população do mato (mulheres, velhos e crianças) que recuperámos, foi a que arrancámos, à força, das zonas controladas pela guerrilha".

O A. Marques Lopes, logo no início do nosso blogue (Poste P81) (*), mandou-nos uma coleção de cartazes, ou melhor, de postais, que voltamos a publicar mas desta vez com melhor qualidade de inagem: a coleção foi-nos dada, para publicação no blogue, pelo Joaquim Nunes Sequeira,  mais conhecido na Tabanca da Linha pela alcunha "O Sintra". Ex-1º cabo carpinteiro, BENG 447, Bissau, 1965/67, é um camarada sempre sorridente, afável, voluntarioso, que exerce (ou exercia antes da pandemia, em 2019)  as funções de vogal da direção e porta-estandarte do Núcleo de Sintra da Liga dos Combatentes.  

Os postais foram por nós digitalizados. É um material produzido no âmbito da Acção Psicológica (mais congecida por Psico) e remonta ao tempo do com-chefe e governador-geral gen Arnaldo Schulz (1964-1968). Já aqui o dissemos: é um material "muito interessante,se bem que revele alguma ingenuidade e uma estética de duvidosa eficácia". Mas trata-se de um documenatação valiosa, com interesse iconográfico e historiográfico. Não a encontro, por exemplo, no sítio do Centro de Documentação 25 de Abril.

Já tínhamos pedido ao  A. Marques Lopes, para ver se descobria a origem e o ano ("Quem os produzia, quando, para usar onde"...).

O Marques Lopes respondeu-me, na altura,  que "esses folhetos que enviei tínhamo-los quer em Geba quer em Barro, portanto em 1967 e 1968, para espalhar pelas matas. Nenhum deles tem indicação de autor ou de origem, mas é certo que apareciam em pacotes vindos do Comando Chefe de Bissau". 

Uma coisa é certa: eram cartazes destinados especificamente ao teatro de operações da Guiné. E deviam ser produzidos no QG/CCFAG, Rep ACAP- Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica, cujas instalações se situavam na Fortaleza da Amura. Um dos nossos camaradas que lá trabalhou, na segunda parte da sua comissão, foi o Ernestino Caniço.

2. Julgo que também me passaram pelas mãos alguns desses cartazes, mas não fiquei com nenhum. Alguns foram deixados atabalhiadamente no terreno, depois de uma violenta embioscada dos "homens do mato". Não tive a preocupaçao de guardar nenhum documento desse tipo, de um lado ou do outro. Na altura o que eu queria mesmo era esquecer a Guiné... para sempre.  

A colecção (no fundo, é uma sequência de banda desenhada, sob a forma de um folheto desdobrábvel com uma meia dúzia de postais, impressos de um lado e do outro) começa com uma imagem do mapa da Guiné ("Guiné Portuguesa, Guiné Feliz") (Postal nº 1) (**)

A numeração é da minha única responsabilidade: tem a ver a lógica da sua sequência para efeitos de leitura.

O segundo postal mostra um grupo de guerrilheiros, no mato, feridos e/ou desmoralizados (vd. i,magem no topo deste poste). Os combatentes do PAIGC nunca são tratados como tal, mas simplesmente como "homens do mato" (leia-se: bandidos, indivíduos que estão fora da lei e da ordem). Aliás, no nosso tempo, "ir no mato" era, no falar das gentes da Guiné, juntar-se à guerrilha, fugir das zonas sob administração portuguesa. Portugal, de resto, nunca reconheceu o PAIGC como inimigo, no sentido militar e legal do termo,  nem a luta contra o "terrorismo" (ou a "subversão) como uma situação de guerra, face à Convenção de Genebra. (Postal nº 2)

O título do cartaz é : "No mato, há doença, fome e morte", A legenda, por sua vez, diz o seguinte: "O Chefe do Grupo do mato julga que vai morrer. Foi gravemente ferido"

No Postal nº 3 vemos o mesmo grupo de "homens do mato" a entregar-se às autoridades militares portuguesas da zona. Depois do Chefe do mato ter ido falar com o "homem grande da tabanca" (que veste à maneira fula, o que está longe de ser inocente, já que os fulas eram os nossos grandes aliados).

Legenda: "O Homem Grande diz à tropa que estes homens foram enganados, estão arrependidos e fartos da guerra".

No Postal nº 4 vemos os "homens do mato, arrependidos" serem bem tratados pelas autoridades portuguesas: (i) são tratados pelos enfermeiros da tropa, (ii) bebem cerveja com soldados africanos; (iii) recebem alimentos (pão) da tropa.

No Postal nº 5 vemos uma tabanca, sob a bandeira portugesa (e, parece-me, ao canto superior direito, descortinar uma inverosímil antena de televisão ou takvez antes de rádio. Legenda: "A família e os amigos abraçam a gente do mato que estava enganada e não vivia na tabanca há muito tempo". a 

Por fim, "a tropa e os civis ajudam aqueles que se apresentam a reconstruir a sua tabanca" (clara referência aos famosos "reordenamentos" (o equivalente às "aldeias estratégicas" na Argélia e no Vietname) que, no tempo do Spínola, tiveram um grande incremento (Postalnº 6).

Por fim, surgem os homens grandes de Bissau (o gen Arnaldo Schulz e a sua equipa) para observar (e regozijar.se com)  os progressos: "Agora sim! Aqueles que regressaram arrependidos  vivem contentes na tabanca nova..." concluindo.se que "há paz e alegria e nunca mais faltará Felicidade" (um conceito abstracto, para a generalidade dos guineenses daquela época). (Postal nº 7)

O postal seguinte  tem uma lógica implacável, a da deserção e da rendiçao: "Apresenta-te à tropa, levanta os braços"... Mostra dois "homens do mato", de braços levantados, segurando a sua espingarda semi-automática (Simonov ?) por cima da cabeça (Postal nº 8)... O último postal  é o da bandeira verde-rubra, que se repete nas costas dos postais anteriores.

3. Veja-se o que diz o Centro de Documentação 25 de Abril sobre a propaganda, usada durante a guerra colonial, por um lado e outro:

(...) "A acção psicológica destina-se a influenciar as atitudes e o comportamento dos indivíduos. Na guerra subversiva é utilizada para obter o apoio da população, desmoralizar e captar o inimigo e fortalecer o moral das próprias forças, assumindo três aspectos diferentes, embora intimamente relacionados: acção psicológica, acção social, acção de presença.

"Quer as forças portuguesas, quer os movimentos de libertação, usaram intensamente a acção psicológica como arma, integrando-a na panóplia de meios disponíveis para a conquista dos seus objectivos, dentro da ideia que as palavras são os canhões do séc. XX e que, como se ensinava aos futuros chefes da guerrilha na escola de estado-maior da China, na guerra revolucionária deve atacar-se com 70 por cento de propaganda e 30 por cento de esforço militar.

"A acção psicológica exercida sobre a população, o inimigo e as próprias forças foi conduzida através da propaganda, da contrapropaganda e da informação, de acordo com as finalidades de cada uma destas áreas: a primeira, pretendendo impor à opinião pública certas ideias e doutrinas; a segunda, tendo como finalidade neutralizar a propaganda adversa; por último, a informação, fornecendo bases para alicerçar opiniões. Mas, para serem eficazes, os meios de condicionamento psicológico necessitam de encontrar ambiente favorável.

"Quanto às populações, procurou-se criar esse ambiente propício com a acção social, que visava a elevação do seu nível de vida, para as cativar, conquistando-lhes os corações e originando condições mais receptivas à acção psicológica. Esta acção foi desenvolvida sob a forma de assistência sanitária, religiosa, educativa e económica.

"Relativamente ao adversário, a acção psicológica das forças portuguesas era isolar os guerrilheiros das populações, desmoralizá-los e conduzi-los ao descrédito quer na acção, quer na dos seus chefes. Para o efeito utilizaram-se panfletos e cartazes lançados de aviões ou colocados nos trilhos de acesso e nas povoações, emissões de rádio, propaganda sonora directamente a partir de meios aéreos, apelando à sua rendição e entrega às forças militares ou administrativas, garantindo-lhes e explicando-lhes que a participação na guerrilha constituía um logro". (...) (Negritos nossos)
___________

Notas do editor:


(**) Último poste da série > 20 de janeiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22923: Documentos (35): Comunicações e Ordens enviadas pelo Estado-Maior do Exército e do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné - Anexo à Circular N.º 1703/NP da 2.ª Repartição do Estado-Maior do Exército (2) (Victor Costa, ex-Fur Mil Inf)

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23132: Manuscrito(s) (Luís Graça) (209): O (futuro) museu nacional da guerra colonial...


Típico grafito dos "bunkers" da Guiné... Imagem (e legenda): LG (2019)


1. O museu nacional da guerra colonial

por Luís Graça

Um dia até as pombas da paz do Picasso repousarão
no museu da guerra,
em relicários, de aço,
mais as moscas, regressadas dos campos de batalha,
das  bolanhas, das chanas, das savanas, das florestas-galeria
de além-mar em África.
As moscas, e os mosquitos,  espetados em alfinetes lá ficarão  
nos respetivos mo(n)struários.

No museu nacional  da guerra colonial 
só haverá mo(n)struários.

Agora elevadas à categoria de artefacto cultural,
as moscas, exangues. cobertas de terra verde-rubra,
mais a merda das moscas, liofilizada,
como os grelos e o bacalhau que comias na noite de Natal.

No Norte do teu pais,  onde há gente decente, 
diz-se: "Com a sua licença, a merda".

Um dia ouviste o senhor comandante do teu batalhão,
veterano da guerra da Guiné
e especialista em águas minerais,
dizer, enquanto beberricava o seu uísque com água de Perrier,
"Chiça!, sempre mais vale uma mosca na sopa
do que um míssil na messe de oficiais".

A tua não foi uma guerra tamanha, foi tacanha,
de baixa intensidade, 
escreveu o escriba do jornal
agora promovido a historiador oficial.

Eh!, pá, não viste mísseis hipersónicos a cruzar o Geba ou o Corubal,
o Cacheu, o Mansoa,o rio Grande de Buba, o Cumbijã, o Cacine,
mas milhões de insetos caíam-te na sopa.

Salgada, a sopa, da água da bolanha, fria, 
desconsolada, a saber a ferro, 
boa para  a anemia.

A responder-lhe, ao veterano,
seria com a célebre frase de um general prussiano
(um general das guerras napoleónicas,
ainda por cima prussiano,
sempre é mais ovoestrelado
do que um tenente coronel do exército colonial):
"A guerra não é mais do que a continuação da política de Estado
por outros meios".
Fim de citação, ponto final,
... e siga a Marinha até ao Terreiro do Paço.

Dizia-se que era o mais longe onde se podia ir,
para não haver derrapagens no orçamento militar.

De megafone em punho,  à laia de baioneta,
ouvirás o guia-mor do museu,
herói, deficiente, maneta, 
o olhar baço, o peito ainda ardente,
a falar-te da arte e da ciência da guerra.
E da importância que era devida aos detalhes de barba do combatente 
mesmo nos felizes e alegres dias da paz.

Lá estava o aviso exposto na tua camarata:
"Mais vale perder um minuto na vida,
do que a vida num minuto".

Nunca chegaste a perceber
por que razão é que o soldado tinha que ser tosquiado,
como o cordeiro da Páscoa.
Dizia o cronista-mor do reino,
que fez a cobertura mediática do desastre de Alcácer Quibir,
que era para ir ao encontro da deusa da morte, 
devidamente ataviado.

Rebobinando o filme da história desta guerra 
(e afinal de todas as guerras),
vê-se que  faltou sempre a visão do todo
ao marechal de campo,
visão que só podia ser major do que a soma dos detalhes.

A única filosofia de vida que tu, soldado, ouviste na tropa,
for ao teu tenente de instrução de especialidade,
era simples e prática, e não rimava com liberdade:
que a merda era o adubo... da vida, blá-blá;
que era fazendo merda, que tu aprendias, blá-blá.

E sobretudo nunca te devias esquecer
que era com a merda dos grandes, cá,
que os pequenos se afogavam, lá.

À quinta feira (seria ?, que importa o dia!),
depois da feira do gado bovino,
fazia-te, a ti e à malta do pelotão, rastejar na bosta,
enquanto ele namorava com a sopeira do capitão,
debaixo da janela, bem aparadas as patilhas
e perfumadas as virilhas.

É por isso que  ainda hoje não gostas... de xarém,
as papas de milho com conquilhas,
muito menos à moda de Tavira.

Na tropa-do-um-dois-três-e-troca-o-passo,
do vira do Minho a Timor,
nunca soubeste onde ficava o Norte.
Nem nunca soubeste pôr ao pescoço o baraço
para te enforcares no pau da bandeira.
Ou saltar o galho com garbo
ou fazer um manguito de bravata,
nem fazer o nó à gravata,
nem onde pôr a mão esquerda,
nem o ombro arma,
a arma no ombro
ou o ombro na arma
e muito menos, porra!,  ajustar o amuleto da sorte, 
ao peito.
Pior: não sabias sequer a letra do hino,
de cor e salteado
 nem tão pouco fazer o pino.

...Mas nem por isso te chumbaram, desgraçado,
que a pátria te chamava  e tinha pressa.

Depois um dia, no meio da guerra,
quiseram mandar-te para a psiquiatria,
o que era estranho, porque o Erre-Dê-Éme
em todo o seu articulado,
não previa a figura do inimputável
nem a do cacimbado
ou do apanhado do clima
"Deem-lhe um valium dez,
metem-no numa camisa de forças",
gritou o comandante das tropas em parada
ao médico, amável,
ao enfermeiro, calado que nem um rato,
ao maqueiro, rapaz cortês,
e merda para todos os três.

"Sempre era mais cómodo e barato
do que embrulhá-lo em papel selado!"

Deficiente das forças armadas,
prometeram-te depois um mundo melhor,
protésico e radioativo, 
com escudo de proteção,
sem armas de arremesso,
seguro contra todos os riscos e outras tretas:
só não te disseram o preço.

"Não, muito obrigado,
mais vale andar neste mundo em muletas
que do no outro em carretas".

Procuravas, além disso, uma mão...
Sim, a direita, com cinco dedos,
disposta a ajudar o teu pobre braço.
Esquerdo, sinistro, decepado.
 
Davam-se alvíssaras 
a quem salvasse o império,
tu deste o braço.

Morrer eras quando tu chegavas um beco sem saída
e não tinhas um kit de salvação.
Morrer em Nhabijões,
em Madina do Boé,
em Gandembel,
em Mampatá,
na Ponta do Inglês,
em Gadamael
ou em Missirá
... ou no Pilão, numa cena canalha,
tanto te fazia.
A morte não tinha SPM como os aerogramas da Cilinha,
e só morria quem não tem estrelinha,
que a sorte protegia os audazes
e quem morria, morria de vez,
e queria mortalha.

O mesmo era dizer: 
que o deixassem finalmente em paz!


A vida com a morte se (a)pagava.
Havia sempre moscas 
à espera do teu cadáver, prometido e adiado,
E jagudis, e formigas bagabaga, e um dia aziago,
E um primeiro sorja da CCS que te punha os pontos nos ii.
E um capelão que te fechava os olhos,
com extrema unção e a devida compaixão, divina,
e missa simples, sem cantorias nem  sermão.
E um coveiro que te pregava as tábuas do caixão.
E como a viagem era longa até casa,
ias hermeticamente fechadom
não fosse o diabo tecê-las!

"Não perturbem, do defunto, o sono eterno!",
podia ser o teu epitáfio.

A prática, diziam-te, levava à perfeição,
exceto no jogo da roleta russa
que jogavas nas picadas da Guiné,
a G3 contra a Kalash,
a pica contra o fornilho,
o pé contra a mina APê, 
o coiro, encardido, contra o Erre-Pê-Gê Sete,
russo ou chinês, do internacionalismo proletário!
Por isso tu vivias cada dia,
como se aquele fosse o único que te restasse
no calendário de parede, no teu abrigo,
grafitado com gajas nuas.
E muitos traços, em conjuntos de sete,
marcando a eternidade de uma semana.

Ah! E os órgãos de Estaline, não te esqueças,
dos órgãos, mesmo que hoje já estejam embalsamados
lá no mausoléu.
 
Cada dia era o primeiro,
o único, o original, o irrepetivel,
no jogo da vida e da morte!
E antes de rezar as matinas,
as mãos erguidas ao céu,
fazias o teste do dedo grande do pé esquerdo,
o do joanete,
o dos calos,
o das bolhas,
o da unha encravada,
o das matacanhas,
o das pisadelas,
o mais azarento,
o rebenta-minas!

Lembras-te, ó Marquês, sem acento circunflexo ?!

Não sabias se o pintor de Guernica
(ou Gernika, que o topónimo era basco
),
gostaria de ter conhecido Adão e Eva no Paraíso, em pelota,
pobres amantes.
Ou a Terra Prometida quando era rica,
e era sempre primavera, nunca inverno,
e nela corria então o leite e o mel,
mais o ouro,  o petróleo e os diamantes.

Afinal, todos os pintores preferem fazer batota,
querendo entrar no céu
e pintando o inferno.


Não, afinal, nunca chegaste  a conhecer, em vida,  
nenhum museu da paz, 
apenas o desta guerra, ao vivo e a cores,
e que não tinha cenários de opereta:
as balas eram de puro aço ,
e as bombas não eram treta.
Também sempre detestastes  as pombas 
que te cagavam a varanda e a janela,
e muito menos eras fã do Picasso.

Camarada: que a terra da tua Pátria, ao menos, te tenha sido  leve!
Sit tibi terra levis!, 
como já diziam os soldados romanos
que te colonizaram.
 

3 out 2012 (*). Revisto, 21 de março de 2022, dia mundial da poesia (**)



Guernica, de Picasso, 1937. Óleo sobre tela, 349 cm × 776 cm. Museu Rainha Sofia, Madrid, Espanha... Imagem do domínio público: Cortesia da Wikipedia.]


2. Comentário do nosso editor:

Já há, no nosso país, um Museu da Guerra Colonial, que eu por acaso ainda não visitei. Fica em Vila Nova de Famalicão, terra de alguns dos nossos grã-tabanqueiros, como a Rosa Serra ou o Joaquim Costa.

Mas é uma museu municipal... Nasceu, segundo se lê no sítio, no ano de 1999, através de uma parceria entre o município de Vila Nova de Famalicão, a ADFA (Associação dos Deficientes das Forças Armadas) e a AlfaCoop (Externato Infante D. Henrique de Ruilhe). Teve por base um projeto pedagógico intitulado "Guerra Colonial, uma história por contar"-

Oferece ao visitante uma exposição permanente que pretende retratar o itinerário do combatente português na Guerra Colonial (1961-1974), atrvés de áreas temáticas como: O Embarque; O Dia-a-Dia; As Operações Militares; Os Nativos; A Ação Social e Psicológica; A Religiosidade; Os Horrores da Guerra; A Morte; A Correspondência e as Madrinhas de Guerra.

Pormenor importante: todo o acervo museológico foi cedido ou doado por antigos combatentes ou seus familiares, por delegações da ADFA e pelos vários ramos das Forças Armadas Portuguesas.

Mas, segundo (in)confidências de círculos próximos da senhora ministra da defesa nacional, este museu pode vir a ser "nacionalizado", e passando a ser apenas um polo regional de um projeto museológico muito mais vasto e ambicioso, de âmbito nacional, com várias parcerias: museu do exército, museu da marinha, museu do ar (FAP), arquivo histórico-militar, academia militar, universidades... O projecto integrar-se-ia nas Comemorações dos 50 Anos do 25 de Abril.

Questão delicada e que divide os potenciais promotores é a sua designação: Museu Nacional da Guerra do Ultramar, Museu Nacional da Guerra de África ou Museu Nacional da Guerra Colonial ?


Interessante parece ser a ideia, do ministério da defesa nacional, de tentar salvar e recuperar as páginas e os blogues mantidos por antigos combatentes na Internet. Mas tudo isto ainda está no segredo dos deuses (ou das deusas)...
_____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 3 deoutubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10475: Blogpoesia (306): S. T. T. L., Sit tibi terra levis!... Que a terra da tua Pátria, ao menos, te seja leve!.. (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P23131: Notas de leitura (1433): "O Silvo da Granada, Memórias da Guiné", por José Maria Martins da Costa; Chiado Books, Agosto de 2021 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Março de 2022:

Queridos amigos,

O primeiro-cabo Martins ambienta-se a Guileje, dá-nos conta de um pequeno Inferno ali ao lado, a vida em Gandembel, já apareceu o brigadeiro Spínola que deixou cair o monóculo num panelão onde cozia o feijão frade, criou amizades na tabanca, não desgosta da comida local, anda por vezes nos patrulhamentos com o rádio às costas, ajuda a escrever cartas a madrinhas de guerra, já enfrenta com mais serenidade as flagelações. 

O que vai surpreender o leitor destas memórias é a cultura clássica do Martins, não lhe escapa Ovídio nem Xenofonte, nem António Ferreira nem Tomás António Gonzaga, e não nos indispõe as suas latinidades, vê-se perfeitamente que foi assim que lhe vieram às memórias as recordações de Guileje e arredores. Mas que é uma invulgaridade é, e uma bonita prova de vida contar-nos o que viveu e os afetos que teceu.

Um abraço do
Mário



Uma invulgaridade da literatura da Guerra da Guiné (2):
O Silvo da Granada, por José Maria Martins da Costa


Mário Beja Santos

Uma surpresa, e com aspetos bem curiosos, este O Silvo da Granada, Memórias da Guiné, por José Maria Martins da Costa, Chiado Books, agosto de 2021. O leitor é colhido por uma prosa onde primam citações de clássicos, a começar pelo latim, tudo passa a ser entendível quando se lê o currículo que o autor apresenta: 

“Natural de Roriz, concelho de Santo Tirso, aí frequentei a escola primária, finda a qual entrei no seminário, mais precisamente no mosteiro da Ordem Beneditina. Saí no sétimo ano, talvez para voltar daí a trezentos anos como o monge de Bernardes. Como trezentos anos demoram a passar, para não estar ocioso entretive-me a tirar o curso de Filosofia na Universidade do Porto, e ainda o de Latim, Grego e Português, e respetivas literaturas, na Universidade de Coimbra. 

"Entretanto, assentei praça no Exército, indo para a Guiné como combatente da Guerra do Ultramar e assentei arraiais civis no Porto, onde casei, fui professor e jornalista. Nesta cidade, tenho levado vida plácida e remansosa, dentro dos parâmetros da Aurea Mediocritas de Horácio. Por falar em Horácio, ia-me esquecendo de dizer que publiquei há anos um livro de poemas intitulado Libellus, palavra latina que tanto pode significar pequeno livro como libelo acusatório. Fora das partes líricas, acusava realmente e castigava alguns dos costumes e vícios da sociedade contemporânea. Queria endireitar o mundo. Mas o mundo ignorou o livro e continuou cada vez mais torto”.

Primeiro-cabo Martins já viajou para Guileje, está na fase adaptação, somos levados a supor que este homem que está profundamente impregnado pela cultura clássica, que domina o Latim e alguns dos mais cultores da língua portuguesa trabalha nas Transmissões. De supetão, arribaram três helicópteros, de um deles saiu Spínola, já percorreu o quartel, conversou com os oficiais e decidiu visitar a cozinha:

“Spínola em corpo e alma e rompeu pela cozinha sem aviso, deixando atónitos, presos aos seus lugares, cozinheiros e forneiro; e, depois das saudações e palavra de circunstância e de circunvagar um olhar indagador como a inspecionar as condições de trabalho e de higiene, avança para os fogões, mete o nariz em tachos e panelas. Eis senão quando – caso nunca visto – cai-lhe o monóculo ao panelão, onde, vaporando fortemente, fervia a cachão o feijão frade. Valeu que à ilharga, atento e venerador, estava o cabo-cozinheiro, que, ato contínuo, introduzindo por entre densos vapores a desembaraçada manápula acostumada a queimaduras e escaldões, retira incólume a luneta”.

 Cumprida a visita, o homem grande de Bissau partiu para Gandembel, e Martins da Costa enquadra o que se passa no Corredor da Morte, ali nas fímbrias de Guileje e um suplício das colunas até Gandembel, todas elas a convidar minas e emboscadas. E anota o esforço hercúleo que custou à tropa edificar um aquartelamento naquele lugar inóspito, desmatar, derrubar palmeiras, erguer as instalações do quartel, sempre com os efetivos do PAIGC a não dar tréguas.

E lembra que ali perto está o rio Balana, todas as colunas de reabastecimento se fizeram com sobressalto, havia colunas que partiam de Aldeia Formosa e dá-nos a saber:

“Entre Aldeia e Gandembel há um sítio, ponte Balana que do rio e da ponte que sobre ele está lançada, a tropa o nome lhe tem dado, sítio com fama de fatídico, tanto como do lado de cá o cruzamento de Guileje. Ali, nomeado mês (terá sido maio de 1968), depois de duas colunas terem passado sem serem incomodadas, a terceira foi o Diabo: quatro mortos, ou talvez mais, de uma assentada. Dias depois, também para as bandas de Aldeia, havia de ser um Inferno, com mais alguns militares para sempre tombados, e outros – dois, três? –, não se sabe quantos – apanhados à mão pelo inimigo”.

A 5 de junho, já o Martins contou que foi bem acidentada. E espraia-se demoradamente a falar da islamização e de alguma etnografia Guineense, ele já percorre a tabanca dominada por Futa-Fulas com quem está a estabelecer uma boa relação. 

Chegou a vez de ir em patrulha a alombar com o rádio às costas, metem-se pela picada em direção a Gadamael, um corta-mato em que a milícia à frente vai esfrançando árvores e arbustos, foi uma trabalheira, não houve minas nem emboscadas. Volta à descrição da vida da tabanca, bem surpreendido anda com a meticulosidade das rezas a Alá, e nisto saltamos para um naco de prosa de que o autor terá gostado muito, até o pôs na contracapa:

“A morte anda rondando, que bem na sentiu o Martins; passou-lhe por cima do nariz, cheirou-a. Foi há pouca; a tarde declinava, os colmos das palhotas, como negros capuzes de monges, tinham um aspeto contemplativo, misticamente recolhido; a terra abandonava-se a um grave repouso depois de algumas horas de calor emoliente, um pesado torpor ia deixando os corpos. Saído de turno, caminhava para o abrigo o nosso herói, sozinho, passo lento, pálpebras descidas, no enlevo da doce quietação do fim do dia. Senão quando, vindo de trás, pelo ar, um silvo que não era de cobra fá-lo estacar. Não presumiu que o ouvido o enganava, acreditou sem ver: uma granada fendia o espaço sobre a sua cabeça a pouca altura, iria cair dali não muito adiante – cair, explodir, projetar em todas as direções as mil estilhas assassinas em que havia de fragmentar-se. O abrigo era já ali. Mas quem há de estar à mercê de um mortífero estilhaço, já ali, figura-se-lhe no outro lado do mundo. E arrojou-se do instinto ao duro chão. Deitado de borco, rosto em terra, atrás da árvore que ali há, aguardou a explosão com a suprema agonia do condenado que vê o carrasco erguer o machado que o vai decepar. Instantes de Inferno foram esses; mas, em discrepância com o Inferno, tiveram fim. Rebentou o temeroso engenho mais à frente, lá para o arame farpado; os estilhaços não rasam o solo, assim, ileso, e com o alívio de quem vê comutado a pena de morte, ergue-se de salto, voa que não corre para o abrigo”.

Vê-se à vista desarmada que Martins da Costa aprecia a arquitetura vernacular, compraz-se na fluidez verbal, e nos remete em casos muitos ou poucos para a consulta do dicionário. Maturou muito antes de chegar a estas memórias dadas à estampa de 2021, cita sem sobrançaria em Latim, qualquer propósito lhe serve, até fala em Ovídio a propósito da descrição que faz do aerograma e até das madrinhas de guerra. 

Chegou um comerciante Fula, chama-se djila, não veio nem de avião nem de viatura, há uma vereda só sabida da população, ligando Guileje a Gadamael, e temos mais notas etnográficas, ninguém se assoa a lenços, comprimem com o indicador de uma das mãos a narina do mesmo lado e, inclinando-se um pouco para a frente, sopram pela outra para terra, que tudo absorve e consome. Vai recebendo prendas de quem o estima, é o caso de Mariama que lhe deu um naco de carne de gazela, já lhe tinha sabido bem arroz condimentado com o molho feito de óleo de palmeira, Martins deslumbra-se com a afabilidade desta gente da tabanca.

Estamos na época das chuvas, não é possível andar-se em colunas, fazem-se patrulhas, Martins fica no quartel, mais questionamentos etnográficos. E resolve apresentar-nos o Pel Caç Nat 51, diz quem é tropa metropolitana, os primeiros-cabos são todos nortenhos, de Entre Douro e Minho e conta-nos o que separa estes homens quanto a nomes de objetos, um diz tacho outro sertã, houve para ali discussão séria, ficamos igualmente a saber como é a vida dentro do abrigo, a prosa vai saltitando sobre questões da Guerra Fria, fala-se mesmo de Mário Pinto de Andrade, volta a haver patrulhamentos e desta vez o Martins alomba com o rádio, temos novos apontamentos etnográficos que metem a hierarquia dos homens grandes, a prática de justiça, a educação das raparigas, ficamos cientes que no abrigo dos brancos do Pel Caç Nat 51, à mesa tosca há bastante elevação das conversas e até se apura que o Martins ajuda um soldado da Companhia local a escrever cartas à madrinha de guerra, nova flagelação, que não correu bem ao PAIGC, há para ali um extenso rasto de sangue, escoados três dias e três noites, que perdura na mata. E assim se chegou ao fim da estação das chuvas.

(continua)


Corredor de Guileje, 1972. © Fotografia de Fernando Monteiro (1º Cabo Enfermeiro), na imagem com a respetiva mala de primeiros socorros, com a devida vénia
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Notas do editor:

Poste anterior de 28 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23121: Notas de leitura (1431): "O Silvo da Granada, Memórias da Guiné", por José Maria Martins da Costa; Chiado Books, Agosto de 2021 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 31 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23128: Notas de leitura (1432): "Os Velhotes: Contos Eróticos" (Alcochete, Alfarroba, 184 pp.), do nosso camarada António J. Pereira da Costa, Tó Zé, para os amigos... Uma pedrada no charco da nossa educação judaico-cristã...

Guiné 61/74 - P23130: Fotos à procura de... uma legenda (164): Bindoro, fevereiro de 1970: Unimog 404, em movimento, com militares e civis (balantas) à mistura, tirada pelo capelão Neves, da CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71)


Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > CCAÇ 2588 > Fevereiro de 1970 > Destacamento de Bindoro > Coluna, com elementos civis, de etnia balanta. (*)

Foto (e legenda): © José Torres Neves (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Esta foto, do álbum do nosso camarada José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71), merece uma "melhor legenda", mesmo em dia de mentiras (como é tradicionalmente o 1 de abril).

Fica aqui o desafio aos nossos leitores, que são bons observadores (**). Acrescentamos apenas que:  

(i) foi tirada em andamento (e até está ligeiramente tremida); 

(ii) aquando de uma coluna para Bindoro (ou vinda de Bindoro, não podemos precisar), no sector de Mansoa;

(iii) em fevereiro de 1970;

(iv) vendo-se  que, no Unimog 404, se misturam,  num equilíbro difícil, civis (balantas, homens e mulheres) com militares que fazem a segurança...
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 30 de maeço de  2022 > Guiné 61/74 - P23125: Álbum fotográfico do Padre José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) - Parte I: Destacamento de Bindoro fevereiro de 1970, guarnecido por forças da CCAÇ 2588


Podia também ser publicada na série "Passatempos de verão" (embora ainda estejamos na primavera):

quinta-feira, 31 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23129: Cartas de amor e paz em tempo de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381) (2): Carta à Luizinha

Empada - José Teixeira escrevendo

Em mensagem do dia 30 de Março de 2022, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos esta Carta à Luizinha para a série Cartas de amor e paz em tempo de guerra:


Cartas de amor e paz em tempo de guerra (2)


3 - Carta à Luizinha

Chamarra, 6 de fevereiro de 1969

Minha querida Luisinha

A noite de ontem foi vivida no seio da mata. Chegou-nos uma informação de que íamos ser atacados, pelo que decidi partir a meio da tarde com parte dos meus homens, e internar-me na floresta, perto do local de onde costumamos ser atingidos. De vez em quando aparecem ao cair da noite, e raras vezes, de manhã cedinho. Prevenir é sempre o melhor remédio… lá fomos nós dormir ao relento, o que por estas bandas até se torna agradável se não houver mosquitos a apoquentar-nos.

Deitado na terra húmida deixei-me envolver pela noite estrelada e um sentimento de autoconfiança veio substituir a confusão e o medo que antes sentia ao caminhar por entre lianas entrelaçadas pendentes de altas árvores com copas gigantescas talvez centenárias. O negro da noite estendeu-se sobre a terra como um abismo insondável, envolvendo-me. Quanto mais profundas são as trevas mais sombria se torna a minha vida e a minha alma. Porém, a escuridão da noite estrelada, sem a luz da lua por perto, assemelhava-se a um tecido negro e transparente onde miríades de pequeninas luzinhas bailavam no cosmos. O negro da noite ganhou vida e me convidou a retornar ao presente. Por vezes, o céu cobria-se de nuvens e o mundo ficava envolvido num negro tão negro que os nossos olhos como que cegavam. Nessas ocasiões vemos com os olhos da alma que nos convida a sermos persistentes e a mantermo-nos ainda mais atentos ao que nos rodeia.

Na alta madrugada, tempo em que o perigo tinha passado, deixei-me passar por um leve sono.

O dia preparava-se para sair do ventre da noite quando acordei. No cosmos, os astros já tinham perdido o seu inebriante brilho. As estrelas perdiam os seus raios de luz e ganhavam uma cor prateada que o sol nascente, a pouco e pouco fez desaparecer. Apenas uma a mais brilhante atraiu a minha atenção. Um fino raio da sua luz penetrou através dos olhos do meu coração. Deixei-me embalar por esta estrela que me ousara fitar de tão longe, rompendo a densa ramagem da floresta. A lesta imaginação, de uma mente perdida de saudade, leva-me, num ápice, até à minha terra, até junto de ti. Talvez tu, meu amor, te tivesses levantado cedo, como é teu costume, para te dedicares aos livros, e ao veres a estrela da manhã te lembrasses de mim e me encomendasses nas tuas orações a Nossa Senhora.

O sol renascido vertia mil raios de luz e calor, sobre a verdura da copa das árvores que nos protegiam, enquanto a límpida e fresca água do rio murmurava suavemente, espreguiçando-se nas margens do tarrafe em tempo de maré vazante, onde milhares de coloridos caranguejos se passeiam lentamente em busca do pequeno-almoço, tornando as margens num tapete natural de inimaginável beleza. Uma brisa leve e suave bateu-me na face amenizando o extremo calor matinal que o sol teima em projetar. Assim, mal dormidos e mal acordados levantamos a emboscada e seguimos alegres e confiantes o caminho de regresso a casa.

A receber-me, com um monte de roupa lavada e passada a ferro com todo o esmero, estava a minha lavadeira, a Binta. Os seus olhos escuros e penetrantes refletem tranquilidade. A paz em tempo de guerra. Os seus lábios parecem talhados em pedra púrpura, tão precisos são os seus contornos, assim como a fina linha dos seus grandes olhos, debaixo de umas sobrancelhas naturais e bem delineadas, pregadas numa face de tal forma bem desenhada pelo artificie divino que a tornam na mais bela mulher africana que conheci até hoje. As maçãs do seu rosto, de um preto rosado vivo e macio, dão-lhe um toque especial, que aliado ao seu aberto e transparente sorriso a tornam divinal.

Não tenhas ciúmes, minha querida Luisinha. A Binta vai casar brevemente com o Braima, filho do chefe de uma tabanca, não muito longe daqui, que está sob a minha proteção, com quem gosto de jogar às cartas enquanto conversamos sobre o mundo que nos rodeia. O mundo aqui, é muito pequeno, está fechado dentro de duas fiadas de arame farpado. Não fora a guerra que nos atormenta e estaríamos no paraíso, onde toda a gente se conhece e se dá bem, partilha alegrias e tristezas e o pão vai chegando para matar a fome.

Fico-me por aqui, contigo no coração. Sinto tanta necessidade dos teus abraços, do teu sorriso, de te poder dizer olhos nos olhos – amo-te.

E para que não fiques preocupada, os “nossos amigos” devem ter mudado de ideias ou passaram ao largo sem nos incomodar.

Um terno beijinho do teu
Zeca.
Algures no Sul da Guiné

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Nota do editor

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