Foto: © Jorge Parracho / AD - Acção para o Desenvolvimento, Bissau (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]
Além disso, "os poucos documentos sobreviventes, do espólio de Amílcar Cabral, foram entregues pela sua viúva aos arquivos da República de Cabo Verde e à Fundação Mário Soares, onde estão a ser objecto de digitalização integrados no Arquivo Amílcar Cabral, uma iniciativa de grande mérito", como escreveu aqui há muito o nosso amigo e camarada Nuno Rubim, em poste de 9 de maio de 2010 (**)
1.1. Actividade política
Num dos primeiros dias do ano, Amílcar Cabral proferiu um importante discurso em Conacri, no qual esboçou a sua previsão para a evolução da situação e definiu alguns dos objectivos estratégicos para o ano vindouro.
Assim, referiu que a situação na Guiné iria evoluir de "uma Colónia que dispõe de um movimento de libertação para um País que dispõe de um Estado que tem parte do seu território ocupado por forças armadas estrangeiras", marcando, como sucessivos estádios dessa evolução, a entrada em funcionamento de um órgão supremo de soberania, a proclamação de um estado, a criação de um poder executivo, seguindo-se a proclamação de uma constituição.
Nessa perspectiva, salientou a criação da Assembleia Nacional Popular em 1972, constituída por 120 membros, entre os quais 80 pertencentes às "regiões libertadas", pretendendo dar a ideia de que a Guiné reunia já as condições para ser um estado democrático, independente, com órgãos próprios eleitos pelo seu povo, a que faltava apenas expulsar alguns redutos de forças invasoras vindas de um país estranho.
Amílcar Cabral referiu também a necessidade de intensificar a guerrilha em todas as frentes e nos centros urbanos, com base numa organização clandestina, sabotando meios, destruindo instalações e causando o maior número de baixas na retaguarda, e que, no novo ano, seriam utilizados novas armas e meios mais poderosos.
Os acontecimentos subsequentes, embora ensombrados de início pelo assassinato de Amílcar Cabral, vieram trazer substancial confirmação às expectativas criadas pelo referido discurso, passando a observar-se uma dinâmica mais acelerada em quase todos os domínios, devendo salientar-se a reunião extraordinária do Comité Executivo de Luta e a realização do 2º Congresso do PAIGC, no qual se procedeu à declaração de independência do Estado da Guiné-Bissau.
Em Janeiro, o Quartel-General das Forças Armadas Portuguesas considerava haver um clima favorável à internacionalização da luta armada que se vivia no interior do território, podendo admitir-se a intervenção de forças estrangeiras de países ou organizações, em reforço ou apoio do PAIGC.
Por isso, foi com surpresa que se tomou conhecimento do assassinato de Amílcar Cabral, ocorrido em 20 de Janeiro em Conacri e levado a efeito por Inocêncio Kani, guinéu natural de Bubaque, o que veio alterar o tempo e o modo de evolução dos acontecimentos a partir daí. O autor confesso do crime ocupava um alto cargo na hierarquia do PAIGC como comandante da Marinha e tinha sido treinado na União Soviética durante um ano.
O acontecimento imediato mais relevante foi a nomeação, em 2 de Fevereiro de 1973, de Aristides Pereira, até aí Secretário-Geral Adjunto, para as funções de primeiro responsável pela direcção superior do Partido, interinamente, até à nomeação ou decisão do Conselho Superior de Luta, órgão supremo das decisões do PAIGC, entre congressos.
O Presidente da República da Guiné, Sekou Touré, passou também a exercer marcada influência na condução dos acontecimentos, quer na intensificação da luta armada no terreno, quer na condução da luta política, quer no sentido de acelerar a proclamação da independência do Estado da Guiné-Bissau. [Cinquenta anos depois, ele continua a ser um dos suspeitos da autoria moral do assassinato (não diz a CECA mas acrescentamos nós).]
Em resultado de rivalidades entre guinéus e cabo-verdianos, que entretanto se tomaram mais vivas, a actividade política do PAIGC foi reduzida nos eses de Janeiro e Fevereiro.
O assassinato de Amílcar Cabral deu origem também a um inquérito levado a efeito por iniciativa de Sekou Touré, no qual participaram representantes de Cuba, Argélia, Egipto, Libéria, Nigéria, Senegal, Serra Leoa, Zâmbia, Tanzânia e delegados da Frelimo, PAIGC e República da Guiné.
Foram inquiridas 465 testemunhas. Quarenta e três indivíduos foram incriminados por participação no assassinato, nove acusados de cumplicidade e quarenta e dois suspeitos.
Correram também notícias de algumas dezenas de execuções.
A reunião deste órgão do PAIGC decorreu entre 7 e 9 de Fevereiro, tendo ficado decidido:
Em resultado das decisões tomadas e dos procedimentos postos em prática, em Março o PAIGC apresentava-se politicamente estabilizado, os incriminados no assassinato de Amílcar Cabral foram condenados à morte por fuzilamento e os detidos não suspeitos foram libertados.
O controlo de Boé e da população ali fixada daria ao PAIGC argumentos para reivindicar atributos de soberania e credibilizar à declaração da independência do novo Estado da Guiné-Bissau no interior do território.
O 2° Congresso do PAIGC decorreu no período de 18 a 22 de Julho. Nele tomaram parte 138 delegados das FARP e órgãos político-administrativos do partido, assim como 60 observadores.
Neste Congresso foram tomadas as seguintes decisões principais:
- Aristides Maria Pereira - Secretário-Geral (Cabo Verde)
- Luís Cabral- Secretário Adjunto (Cabo Verde)
- Francisco Mendes - Secretário (Guiné)
- João Bernardo Vieira - Secretário (Guiné);
A reunião da 1ª Assembleia Nacional Popular veio a ocorrer em 23 e 24 de Setembro, no interior do território da Guiné-Bissau, no Boé Oriental (#), onde, no segunda dia, foi proclamado o Estado da Guiné-Bissau, aprovada a sua l." Constituição e nomeado o respectivo Governo.
Os principais órgãos de soberania da nova República ficaram assim definidos:
Entre os dirigentes, foram nomeados:
- Presidente da Assembleia Nacional Popular - João Bernardo Vieira
- Presidente do Conselho de Estado - Luís Cabral
- Comissário Principal do Conselho de Comissários - Francisco Mendes
No final do ano, o inimigo:
Foram-lhe também particularmente favoráveis alguns dos acontecimentos políticos internacionais, dos quais o PAIGC se aproveitou para reforçar a sua projecção e credibilidade externas. Destacam-se nomeadamente as seguintes:
A nova estratégia definida nesta reunião específica que a responsabilidade primária pela libertação dos países africanos deverá competir aos movimentos de libertação desses países, cabendo aos Estados prestar-lhes auxílio político-militar e apoio no treino dos seus quadros.
Nesta reunião estiveram presentes representantes do PAIGC, na qualidade de legítimos representantes do povo da Guiné-Bissau.
Acrescentou que a situação vivida justificava eventualmente a intervenção directa de outros países, nomeadamente africanos ou com apoio da OUA (que tinha preconizado um sistema de defesa regional integrada para África) e também chamou a atenção para os trabalhos da 28ª Assembleia Geral da ONU, a iniciar em Setembro.
Na circunstância, os representantes dos Movimentos de Libertação da África Austral pediram apoio militar ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Suécia.
A conferência não contou com a presença dos representantes dos EUA, França, Bélgica, Itália e Grã-Bretanha.
Representantes do PAIGC assistiram a esta cimeira, na qualidade de observadores.
(iv) No início de Novembro, a ONU aprovou uma resolução na qual exigia a retirada imediata de Portugal da Guiné-Bissau, o que constituiu o reconhecimento implícito do novo "Estado".
A resolução obteve 93 votos a favor e 7 contra (EUA, Brasil, Espanha, Grécia, África do Sul, Grã-Bretanha e Portugal).
Uma das moções negava à delegação portuguesa na ONU a representatividade dos territórios e das povoações de Angola, Moçambique e Guiné. Na votação sobre esta moção da Guiné, foram recolhidos 99 votos a favor e 14 contra (EUA, Espanha, Bélgica, Grã-Bretanha, entre outros).
Portugal reagiu retirando-se da Conferência em sinal de protesto, classificando as decisões tomadas como ilegais e contrárias aos estatuto da OIT. (...)
1.2. Actividade militar
(#) Nota da CECA: "Venduleide, perto de Lugadjol, numa zona pouco povoada, de mata não muito densa, com acessos fáceis de controlar, não longe da Guiné-Conacri, foi o exacto local onde a independência foi proclamada, garante Mário Cabral. 'Tinha a vantagem de nos pudermos reunir rapidamente e dispersarmos também rapidamente', explicou Aristides". ROCHA, João Manuel, Jornal "Público" de 24Set20 13, pp. 30 e 31.
Notas do editor:
(*) Último poste da série > 2 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23319: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (1): A pontaria dos artilheiros... (Morais da Silva / C. Martins)