Era natural de Lisboa, e está sepultado no cemitério do Alto de São João.
Recorde-se que na tarde de 4 de junho de 1973, em Gadamael, o alf mil Branco sai com um reduzido grupo de combate (12 homens. pouco mais do que uma secção) para fazer um reconhecimento nas imediações do aquartelamento, na antiga pista, a cerca de 1 km do arame farpado.
O pequeno grupo cai de imediato numa emboscada das tropas do PAIGC espalhadas pelas redondezas, e só não foi totalmente aniquilado graças à pronta intervenção das tropas paraquedistas (CCP 122/BCP 12), acabadas de chegar a Gadamael, na manhã de 3 de junho, domingo, sob o comando do cap paraquedista Terras Marques.
Um pelotão, sob o comando do alf paraquedista Francisco Santos, da CCP 122, vai em socorro do grupo do alf mil Branco, da CCAV 8350, e ainda consegue resgatar os corpos e socorrer os sobreviventes.
"Os cadáveres tinham sido selvaticamente baleados, ainda estavam quentes e os fatos empapados de sangue" (José Moura Calheiros - A última missão, 1.ª ed. Caminhos Romanos: Lisboa, 2010, pp. 527/528).
Além do alf mil Artur José de Sousa Branco, natural de Lisboa, morreram nesta ação os seguintes camaradas, todos eles sold cav da CCAV 8350, "Piratas de Guileje" (entre parênteses, o concelho da sua naturalidade):
- António Mendonça Carvalho Serafim (Cartaxo);
- Fernando Alberto Reis Anselmo (Macedo de Cavaleiros);
- Joaquim Travessa Martins Faustino (Santarém);
- José Inácio Neves (Alcobaça).
O infortunado Artur José de Susa Branco, jogador de futebol antes da tropa (tendo chegado a jogar nos escalões juvenis do S.L. Benfica), foi amigo e colega de liceu do nosso coeditor Jorge Araújo (andaram juntos no Liceu Camões, em Lisboa) (*****).
2. Sobre este sangrento episódio, há várias versões publicadas no nosso blogue, que merecem ser aqui recuperadas, na véspera dos 50 anos da efeméride (*), a primeira das quais a do J. Casimiro Carvalho, que integrou a pequena força comandada pelo infortunado alf mil Branco, e foi um dos sobreviventes.
2.1. Gadamael, 4 de junho de 1973: "A Patrulha Fantasma” (**)
por J. Casimiro Carvalho (ex-fur mil, op esp, CCAV 8350,
"Piratas de Guileje", Guileje, Gadamael, Cumeré, Quinhamel,
Cumbijã e Colibuia, 1972/74; vive na Maia]
(...) Em Gadamael, a mortandade era tanta, a cadeia de comando rompeu-se e houve fugas para o mato e para o Rio Cacine.
De salientar a bravura do capitão Ferreira da Silva (Comando/Ranger), que avocou a si o comando desse pequeno contingente [, que restava em Gadamael,] e debaixo de fogo coordenou os cerca de 30 ou quarenta, verdadeiros heróis, que até à chegada dos abnegados Paraquedistas [do BCP 12], aguentaram aquele apocalipse!
Não havia condutores, o pessoal andava atarantado... aterrorizado e sem chefias que chegassem. Era assim em Gadamael em 1973.
A enfermaria estava pejada de cadáveres, um cheiro nauseabundo, os mesmos eram constantemente regados com creolina, não haviam urnas, os bombardeamentos eram constantes, as granadas caíam com precisão dentro do quartel, se fugíamos para o rio, elas caíam no rio, se fugíamos para o parque auto, caíam aí, havia coordenação de tiro por parte do IN.
Cheguei a conduzir uma Berliet, dos paióis para as bocas de fogo, de tal forma que, quando havia saídas de fogo, nós já não as ouvíamos. Comigo andava um açoriano [, o 1.º cabo Raposo], dois autênticos loucos varridos, saltávamos em andamento e, quando acabava o fogachal, voltávamos ao camião e seguíamos com o serviço.
Nessa altura, mais valia estar no mato, estávamos sitiados, e por isso, quando formaram uma patrulha "ad hoc" onde me incluíram, até fiquei contente. Nessa patrulha ia o alferes Artur [José de Sousa] Branco, que antes tinha dito que o mandaram para ali, e que ia morrer; iam dois putos que tinham vindo voluntários para a tropa (, dois meninos!), aos quais ordenei que ficassem no quartel, ao mesmo tempo que disse: "Sois muito novos para morrer" (ainda se lembram disso e sempre o repetem aos filhos, dizendo que me devem a vida); ia um negro (o "pica"), o cabo José Neves e os soldados F. Anselmo [Fernando Alberto Reis Anselmo, natural de Macedo de Cavaleiros]; e o A. Serafim [António Mendonça Carvalho Serafim, natural do Cartaxo] (um destes soldados nunca saíra para o mato), e outros que desconheço. Era uma “patrulha fantasma”.
Saímos para a zona da pista abandonada de Gadamael, as ordens era para emboscar nessa zona, para prevenir aproximações do IN. Fomos em fila indiana ao longo do rio Cacine junto ao tarrafo. Passámos por um sítio, onde se vislumbrava uma pequena clareira, de capim médio, e o pica disse: "Alfero, melhor ficar por aqui, boa zona para montar emboscada"... O alferes Branco retorquiu que as ordens eram ir para a pista velha, pelo que continuámos. Uns 200 metros à frente, o negro disse que a pista estava minada e armadilhada pela tropa anterior. Posto isto, o alferes reuniu comigo e chegámos a um consenso: que o melhor era recuarmos.
Recuámos em silêncio e ordeiramente, até chegarmos à tal zona da clareira, e começámos a entrar na mesma, agachados para passarmos por baixo do tarrafo. Normalmente eu ia em 2.º ou 3.º lugar nas patrulhas, e, ao entrarmos nessa clareira, um dos militares deu-me passagem, e eu disse que não: "Ide entrando que 'eles' podem estar aí", num tom bonacheirão e em sussurro, e assim foi.
Uns seis já tinham passado, quando ouvi uns estalidos e, com gestos e murmúrios, dei a entender que estava ali algo. Todos pararam, espaçados e em silêncio. Como mais nada se ouviu, eu disse: “Deve ser passarada, avancemos” .... Logo a seguir, outra vez o estalar de ramos e mexer de vegetação. Imediatamente gritei: “Emboscada!”. Coloquei a arma em modo de rajada, e atirei-me para o chão, não sem antes ver a cara do alferes desfeita por uma rajada, com sangue e ossos (?), a saltar.
Já no chão e com um fogachal tremendo, próprio de armas russas, com a cara de lado bem rente ao mato, passou-me a vida pelo cérebro, e a mente a pensar na “minha mãe”. Estou neste estertor, pensando se abria fogo ou não, pois iria denunciar a minha posição, imaginando um turra a disparar nas minhas costas, deitado.
Nestas fracções de segundos, ouço uma G-3 a disparar ao meu lado, o som era mesmo nosso, então comecei a dar rajadas de 3 ou 4 tiros, enquanto outro militar dava tiro a tiro, compassadamente. Freneticamente, tirei o carregador vazio e coloquei outro, disparando pequenas rajadas por cima da cabeça, que continuava “colada ao solo”.
Ao pegar no 3.º carregador, o tiroteio IN parou abruptamente, quando vislumbro um turra no meio da vegetação que se levantou, e assim mesmo levou uma rajada minha que o “tombou” logo ali, depois uma gritaria infernal, por parte deles, e eu, sozinho com um militar ao meu lado, berrei para o mesmo: "Vamos, ou morremos aqui".
Ele gatinhou à minha frente, passámos pelo cadáver do cabo Neves [José Inácio Neves, natural de Alcobaça] e seguimos para o rio, em direcção ao quartel, sempre a olhar para trás a ver se algum IN nos mirava para nos abater. Larguei o cinturão, com a ração de combate e os restantes carregadores, para melhor correr, fugindo da morte certa, levando apenas a G-3 sem carregador nem munições.
Chegado ao quartel, sozinho, o meu corpo colapsou, e todos pensaram que eu morrera ali mesmo. Fui recolhido por camaradas daquele inferno, tão aterrorizados como eu, e descansei um pouco, bebi água sofregamente, sem saber ao certo quantos morreram.
De seguida, saíram paraquedistas [da CCP 122, um Gr Comb, comandado pelo alf paraquedista Francisco Santos] e foram ao local (a 1200 metros) da emboscada, onde encontraram aquela cena traumatizante, derivado ao que os turras fizeram aos meus camaradas, que me dispenso de pormenorizar aqui, tal o horror.
Quando regressaram, eu quis ver os meus camaradas, que estavam numa Berliet, e não me deixaram. Peguei numa G-3, meti bala na câmara e berrei: “Ou vejo, ou varro esta merda toda”!... Claro que vi, e essa imagem persegue-me ainda hoje, como fantasmas do passado!
Passados uns dias, noutro bombardeamento, fui ferido, e evacuado pelos fuzos até à [LFG] Orion, para Cacine. No entanto, quando fiquei bom, ofereci-me para ir outra vez para o holocausto, onde os meus camaradas morriam.
(...) Décadas se passaram, e numa simples conversa, descobri quem era o herói que ao meu lado disparou até ao último segundo (o tal da decisão de viver... ou morrer): era o soldado Borges, da CCAV 8350, "Piratas de Guileje", o qual abracei chorando e soluçando, revivendo aquele tormento. (...)
2.2. Apeteceu-me gritar ao alferes Branco: "Não vás!" (**)
Guileje, Gadamael, Cumeré, Quinhamel, Cumbijã e Colibuia, 1972/74;
vive em Aveiro]
(...) Fui testemunha "in loco" de tudo o que relata o José Casimiro. Foi de uma violência tremenda essa emboscada e foram bravos esses homens que foram obrigados a efectuar esse patrulhamento. Eram 11 homens, mal equipados e mal armados, que partiram do aquartelamento sob os berros e ameaças do comandante de companhia.
Não calei a minha revolta e indignação pelo sucedido, o que me valeu uma despromoção de 2.º comandante, o que para mim constituiu um prémio. Acabei por ser massacrado com tentativas de aliciamento para depor num determinado sentido, caso fosse aberto um inquérito.
Permanece viva a imagem do alf Branco, chegado há dois dias à companhia e, na hora da partida, olhou para mim, incrédulo, como que a perguntar o que devia fazer. Nada disse, mas apeteceu-me gritar: "Não vás!"
Coube-me a mim partilhar este sofrimento e dor imensa com a pobre mãe. Não gosto de recordar esta situação, mas o José Carvalho merece uma palavra amiga pela sua abnegação e doação ao próximo. Sem a sua bravura ninguém regressaria do mato. Bem hajas.
2.3. Quatro mortos do exército, três soldados e um alferes, terrivelmente desfigurados
por Carmo Vicente (ex-1º sargento, cmdt do 4º Pelotão, CCP 122 / BCP, 1972/74; DFA, escritor, natural de Arganil, vive em Almada)
(...) No dia seguinte[, 4 de junho de 1960], sentado na vala, como de costume, preparava-me para comer mais uma vez as habituais sardinhas em lata, quando ouvi, vindo da mata, o forte crepitar de varias espingardas metralhadoras e o rebentar de granadas. Achei estranho, porque não tinha conhecimento de haver qualquer força a patrulhar a zona. Estava a comentar o facto com um dos meus camaradas que se encontrava perto de mim, quando chegou o comandante de companhia [, Terras Marques,] que me disse para preparar rapidamente o meu grupo e ir socorrer um pelotão do exército que tinha sido atacado e sofridos vários mortos.
[...] Saímos rapidamente das valas e correndo dirigimo-nos para o local (guiados por um dos fugitivos), que ficava a pouco mais de um quilómetro do quartel.
O espectáculo que se nos deparou era deveras terrificante. No solo três soldados e um alferes jaziam mortos e irreconhecíveis com os rostos parcialmente desfeitos por rajadas disparadas à queima-roupa. Havia ossos e tecidos sangrentos espalhados pelo chão. Um dos soldados enrolara-se nos seus próprios intestinos estando os restantes parcialmente queimados pelo fogo que, acidentalmente, por acção das balas incendiárias, ou deliberadamente fora ateado ao capim.
Eu conhecia o alferes. Chegara a Gadamael três ou quatro dias antes, ido directamente da Metrópole e eu encontrara-o por acaso e estivera a falar com ele. Com os olhos dilatados pelo medo, havia-me dito que abominava a guerra, que estava aterrorizado e iria fugir para longe da guerra o mais depressa possível, fosse para onde fosse, pois não podia aguentar por mais tempo aquele inferno. Agora, ao vê-lo morto, pensei: "Afinal conseguiste o que querias, alferes.... Vais sair daqui... da única maneira que o recusarias fazer, se te tivesse sido dado escolher, enquanto vivo".
Carregámos com os mortos às costas e regressámos ao quartel. Ao chegarmos, começou novo bombardeamento e toda a gente se atirou para o chão tentando encontrar abrigo. O soldado C [...] que carregava o cadáver do alferes, seguindo o exemplo dos outros ou obedecendo ao seu instinto de conservação, também se atirou para o chão ficando com o morto em cima, que, por ter caído a capa impermeável onde o tínhamos embrulhado, o cobriu de sangue. Levantou-se como se tivesse sido picado por uma cobra e ficou a olhar-me de olhos esgazeados. O seu aspecto era terrível. O sangue do morto cobria-o da cabeça aos pés: tinha sangue na boca e nos olhos. Pastas de sangue coagulado caiam do camuflado. Olhou as mãos e vendo-as ensanguentadas entrou em pânico. [...]
Havia que evacuar os mortos e um ferido muito grave com um estilhaço num pulmão, que apanhara dentro do quartel. E o meu pelotão foi encarregado desse trabalho. Atirámos com os mortos para cima de uma Berliet, única viatura que ainda funcionava em toda a unidade e arrumámos o ferido o melhor que pudemos junto dos mortos. A altura era má para nos prendermos com ninharias e não podíamos transportá-lo de outra maneira. Imaginem o que terá sentido aquele homem ferido gravemente, mas consciente, ao ver-se no meio de quatro mortos horrivelmente desfigurados. (...)