domingo, 25 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23643: (De)Caras (188): a morte em combate, em 21/2/1967, na sequência da Op Sobreiro, do alferes mil Américo Luís Santos Henriques, natural de Ourém, contada pelo seu cmdt da 4ª CCAÇ, cap inf Aurélio Manuel Trindade (Bedanda, 1965/67)


Lista dos alferes mortos em combate, no CTIG, no período entre 1963 e 1967 (n=20)... Entre eles, o Américo Luís Santos Henriques, da 4.ª CCAÇ, Bedanda, Sector S3, em 21/2/1967, na sequência da Op Sobreiro, em que participou também a CCAV 1484 (informação do Jorge Araújo).  Infelizmente não há nenhuma foto do Henriques.

Dos 81 alferes mortos no CTIG, entre 1963 e 1974, houve 1 por doença, 24 por  acidente e os restantes 56 em combate (*). No período em apreço (1963/67), dos 20 alferes mortos em combate, 4 pertenciam a companhias de guarnição normal: dois  da 4ª CCAÇ, um  da 3ª CCAÇ e outro da 1ª CCAÇ (que em 1967 irão dar origem à CCAÇ 6, CCAÇ 5 e CCAÇ 3, respetivamente).

Infografia: Jorge Araújo (2018) 






Guiné > Região de Tombali >  CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67) > 22 de fevereiro de 1967 > A caminho Catió... Regresso, em LDM,  da Op Sobreiro, em que perdeu a vida o alf mil Henriques, da 4ª CCAÇ (Bedanda, 1966/67). As fotos parece ter sido tiradas ainda no rio Ungauriuol, afluente do rio Cumbijã (este mais largo, entre 200 e 600 metros, pelas nossas contas grosseiras, de acordo com a carta de Bedanda, 1956, escala 1/50 mil).

Fotos do álbum de Benito Neves, ex-fur mil, da CCAV 1484.

Fotos (e legendas): © Benito Neves (2010). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Esta morte está dramaticamemte narrada  no livro de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do antigo cap inf Aurélio Manuel Trindade, hoje ten gen ref),  "Panteras à Solta", ed. de autor, 2010, 399 pp, disponível em formato pdf, na Bibilioteca Digital do Exército).

Os familiares, vizinhos, colegas de escola, conterrâneos, amigos e antigos camaradas do Américo Luís Santos Henriques, natural de Valada, Seiça, Ourém, bem como os nossos leitores, têm direito a conhecer esta versão, que consta de uma fonte de difícil acesso: o livro está fora do mercado livreiro, foi impresso na Alemanha, e nem sequer consta na Porbase - Base Nacional de Dados Bibliográficos. O que é uma pena: é um documento de interesse para a historiografia da guerra colonial. 

O nosso infortunado camarada só está identificado pelo apelido Henriques. Nas memórias do cap Cristo (o único nome fictício que aparece no livvro, e que é um "alter ego" do cmdt da 4.ª CCAÇ / CCAÇ 6, no período que vai de meados de 1965 a meados de 1967), o Henriques  veio substituir o Ribeiro, até então o melhor operacional dos alferes da companhia, juntamente com o Carvalho, todos eles, tal como os restantes graduados, de origem metropolitana e de rendição individual. (Descobrimos que o Ribeiro é o José Augusto Nogueira Ribeiro, nascido em Fafe, em 1940, e já falecido, em 2017: seguiu a carreira militar, chegando ao posto de cor inf quando se reformou; foi condecorado com a "Torre e Espada" por feitos nos TO da Guiné e Moçambique; no CTIG, acabou a sua comissão na 4ª CCAÇ em 15 de maio de 1966, sendo então rendido pelo Henriques).

Antes da descrição da operação em que o Henriques é morto, por um tiro isolado (seguido de forte tiroteio em emboscada do IN nas proximidades da nascente do rio Ungauriuol), vale a pena reproduzir também um pequeno excerto da sua chegada em Bedanda, em data que não podemos precisar (presumivelmente em meados de 1966, já que  foi render o alf mil Ribeiro), e em que é praxado...


Excertos de "Morto em combate" 
(pp. 349-353)


Antecedentes: 

(...) Um dia chegou o alferes Henriques, o substituto do alferes Ribeiro. Bom moço mas
ainda muito cru
. Logo no primeiro jantar foi o Carvalho a atirar:

─ Meu capitão, o posto da árvore hoje é guarnecido pelo Henriques. Eu já lhe disse que o meu capitão e nós todos não temos confiança nos negros e por isso havia um posto que durante a noite era guarnecido por um oficial ou sargento. Ele diz que eu estou a gozar com ele. O meu capitão sabe bem que todos têm de passar por aquele posto várias noites. Esta noite era eu. Como se apresentou o Henriques é ele que deve ir.

(...) Assim, nessa noite, o alferes Henriques passou todo o tempo num posto de vigia,
em cima duma árvore, com uma granada de mão sem cavilha apertada na sua mão. Teria de a lançar ao mínimo sinal de perigo, para acordar o capitão e os outros alferes.

Ele não sabia, mas a granada estava inerte pois tinha-lhe sido retirado o detonador e a
carga explosiva. Esta era uma das brincadeiras que faziam aos maçaricos que chegavam à companhia. O capitão, embora conivente, não se metia no assunto. 

Ao outro dia o Henriques estava contente porque se tinha mantido acordado toda a noite. Ele, que era um dorminhoco, não teve sono. Teve muito medo, segundo confessou, mas
aguentou. No dia seguinte contaram-lhe que tudo não tinha passado duma brincadeira.
Riu-se e achou piada. Actos destes faziam parte integrante da praxe no quartel. (pp. 184/185)

O confronto fatal

(...) O dia começou com o capitão reunido no seu gabinete com os seus subalternos.

─ Tenho informações que me dizem que depois da nossa acção no cruzamento do Cantanhez, a guerrilha construiu um acampamento na mata junto à nascente do Ungauriuol 
 [de acordo com a carta de Bedanda, e 1/50 mil] . Vamos sair esta noite para lá. Vamos apenas três pelotões mais o pelotão do Tala [alferes de 2.ª linha, cmdt do pelotão de milícias de Bedanda]. Sai à frente o Henriques, a seguir o Cristóvão e o Tala, e por último o Manuel. Penso sair do quartel à meia-noite para chegarmos ao raiar da aurora, não sei o local exacto do acampamento. Batemos a mata e seguiremos qualquer pista que encontrarmos até chegar ao acampamento. Não levamos um objectivo concreto, pretendo apenas explorar uma notícia e, mediante isso, impedir que os guerrilheiros fortifiquem o acampamento. Não pretendo deixar os tipos sossegados nesta área. Alguém tem alguma coisa a dizer?

─ Não, meu capitão. De qualquer modo gostaríamos de ir lá com um objectivo concreto em vez de bater a zona ─ disse um dos alferes.

─ Também eu gostava de ter um objectivo concreto, mas não temos. Não se preocupem porque a área está cheia de guerrilheiros e iremos encontrá-los de certeza. Saímos à meia-noite em ponto, ração de combate para um dia. Teremos um helicóptero em Cat
ió [sede do BCAÇ 1858], para evacuações. Até logo.

(...) O capitão estava preocupado. Estava desfalcado em oficiais e os que havia tinham pouca experiência ou eram fracos em termos operacionais. O capitão terá que ir mais atento a todos os pormenores. Queria falar com o Tala.

─ Tala, vamos fazer uma batida na mata entre o Ungauriuol 
[afluente do rio Cumbijã, e que passa por Bedanda], o Lama e a estrada para Guileje [a nordeste de Bedanda]. Vai à frente o nosso alferes Henriques. Tu vais entre o alferes Fernandes e o alferes Manuel. Quero que mandes falar comigo, hoje às dez horas da noite, dois guias que conheçam a zona. Não dizes nada aos guias. Quero falar com eles na presença do alferes Henriques. Levas ração de combate para um dia. Percebeste bem o que eu quero?

─ Percebi, nosso capitão.

─ Então podes ir embora. Quero o teu pelotão à meia-noite pronto para sair. Até logo.

A seguir o capitão falou com o alferes Henriques.

─ Tu vais na frente da coluna. Embora não tenhas experiência de mato, és o subalterno com mais operações feitas. O teu pelotão é bom. Vou dar instruções aos guias que pedi ao Tala e entrego-te depois esses guias. São dois bons guias. Confio em ti. Sabes bem a importância que eu dou ao pelotão que vai à frente. Da sua visão e da sua actuação depende o êxito da operação. Temos que ir muito atentos, os guerrilheiros estão lá de certeza. Eu irei sempre contigo entre a primeira secção e a segunda. Tu deverás ir no meio da primeira. Estarei perto de ti para qualquer apoio que precises. Elucida bem os homens sobre o que terão de fazer. Se encontrarmos pistas vamos explorá-las com cuidado. Olhos bem abertos para não sermos surpreendidos. Se vires que não estás em condições de ir à frente, dou essa missão a outro.

─ Não, meu capitão. Agradeço a sua confiança em mim.

─ Prepara o teu pelotão. A mata que vamos bater é muito densa e vamos ter dificuldades se formos surpreendidos. Até logo.

(...) O capitão mandou depois chamar o Lassen 
 [, seu guarda-costas] para preparar as coisas e avisar o Joãozinho   [, 2.º guarda-costas] . Deu as instruções normais aos sargentos. Sobrou-lhe ainda tempo para meditar em todas as hipóteses que poderiam acontecer e na forma de ultrapassar dificuldades inesperadas. Tinha pensado profundamente a operação e ficava convencido de ter dado todas as instruções. Só faltava esperar que a sorte não o abandonasse. Em tudo na vida é preciso ter sorte, e na guerra é fundamental. Há militares que têm boa sombra no mato e outros não.

À hora combinada a companhia saiu para o mato. O capitão decidiu ir através da bolanha direito a Feribrique, passar depois por Melinde e atravessar depois o rio Lama para começar a bater a mata. A marcha era lenta e difícil. As bolanhas ainda tinham água e eram atravessadas por pequenas ravinas e fios de água difíceis de transpor de noite. A certa altura a coluna partiu-se. O capitão mandou parar o Henriques e ordenou aos guias que fossem recuperar a coluna.

─ Como te sentes, Henriques?

─ Mal, meu capitão. Sinto-me triste. Nunca me senti assim numa operação. Não sei o que se passa comigo.

─ Não é nada. É a primeira vez que tens a responsabilidade de abrires a coluna e estás a sentir esse peso. Só prova que és um oficial responsável. No entanto, se vires que não te sentes bem, passa o Manuel para frente. Vê lá se estás bem de saúde.

─ De saúde estou bem, fisicamente não tenho nada. Sinto-me é muito triste. É como se uma desgraça estivesse para me acontecer.

─ Tens a certeza de que queres continuar à frente?

─ Tenho, meu capitão. Não podia perder a oportunidade da abrir a coluna da companhia.

─ Então segue lá. Continuamos porque a coluna já está unida. Devagar que o terreno é difícil.

Assim se reiniciou a marcha. O rio Lama foi atravessado sem novidades. Com o raiar da aurora iriam dar início à batida. O capitão mandou seguir a corta-mato até encontrarem um caminho que desse indícios de uso recente.

Passado algum tempo o Henriques falou.

─ Cristo, aqui Henriques. Tenho aqui um caminho que parece ter sido utilizado, escuto.

─ Henriques, vou já para aí, depois falamos.

Rapidamente o capitão juntou-se ao Henriques e observou o caminho. Vinha do Cantanhez e seguia para noroeste, para a nascente do Ungarinol. O capitão nem hesitou.

─ Vamos seguir este caminho até à nascente do rio. Temos de ir com muito cuidado para não sermos emboscados. Podem começar a andar.

Dadas estas instruções , o capitão chamou os seus comandantes de pelotão.

─ Fernandes, Tala, Manuel, aqui Cristo. Encontrámos um caminho utilizado recentemente. Vem do Cantanhez e segue para noroeste. Vamos seguir por aí. Manuel, cuidado com a retaguarda. Se houver tiroteio o Tala e o Fernandes aguardam ordens. Cuidado e muita atenção. Já estamos no meio deles. Digam se entenderam, escuto.

Todos tinham entendido e o capitão reportou terminado. A progressão da companhia continuou muito lenta. Os soldados, olhos bem abertos, procuravam detectar no terreno e em cima das árvores algo de anormal, um sinal dos guerrilheiros. Silêncio total. Nem a bicharada se fazia ouvir. O capitão avançou um pouco e aproximou-se do Henriques. Sabia que, se houvesse emboscada, a sorte dependeria da reacção dos homens da frente.

Apesar de todo o cuidado na progressão, ouviu-se nitidamente um tiro isolado seguindo de um tiroteio enorme. A situação foi tão inesperada que todo o pelotão se deitou imediatamente no chão. O alferes Henriques estava caído uns três a quatro metros à frente do capitão. O capitão correu para ele para lhe dar instruções e verificou que o Henriques estava ferido com um tiro na barriga. De imediato tomou conta do pelotão, dando ordens directas aos soldados. O Lassen foi buscar o enfermeiro que rápido chegou ao local.

─ Eu já trouxe o alferes Henriques aqui para trás deste monte de baga baga  ─ disse o capitão. ─ Tome conta dele e veja o que pode fazer. Eu tomo conta do pelotão e vou sair daqui ou ainda cá ficamos todos. Arrancamos directos a eles. Passo rápido e fogo sobre eles.

Os soldados levantaram-se e meteram-se pela mata dentro com o capitão. Os guerrilheiros pararam o fogo e retiraram. Na perseguição foi localizado um acampamento improvisado.

─ Fernandes, Tala, Manuel, ─ aqui Cristo ─ sofremos uma emboscada. O Henriques parece que está gravemente ferido. Localizei um acampamento que vou ultrapassar. O Fernandes deixa alguns homens recolher o Henriques e os outros feridos, traz o Tala e vem ter comigo. O acampamento fica por vossa conta. Destruamno.

O pelotão do Henriques garante a segurança frontal. Manuel, segurança à retaguarda. Depois do acampamento destruído retiramos para a bolanha e fazemos as evacuações. Digam se entenderam, escuto.

─ Cristo, aqui Fernandes. Entendido. Agora vou seguir para aí com o Tala. O Henriques morreu, informou o enfermeiro. Há mais três feridos, escuto.

─ Cristo, aqui Manuel. Entendido. Segurança à retaguarda garantida. Escuto.

─ Aqui Cristo, terminado para todos.

─ Bedanda, aqui Cristo. Fui emboscado. Tenho quatro feridos um dos quais oficial. Solicito presença helicóptero para evacuações. É urgente. Estou na mata a oeste do rio Lama e vou agora para a bolanha onde assinalarei a minha presença. Diga se entendido, escuto.

─ Cristo, aqui Bedanda. Entendido. Terminado por agora.

Rapidamente o acampamento foi revistado e destruído. Acampamento recente, estava localizado numa zona de difícil acesso onde os guerrilheiros se sentiam seguros.

O capitão estava triste. Tinha morrido um oficial que era para ele como um filho. Gostava de ir com o capitão para todo o lado e tinha grande admiração pelo seu comandante de companhia. Depois de destruído o acampamento e assegurada na bolanha a segurança para se fazerem as evacuações, o capitão disse ao Fernandes:

─ Sou o responsável pela morte do Henriques. Quando a coluna se partiu eu estive a falar com ele e o rapaz parecia que adivinhava a morte. Estava muito triste. Devia tê-lo mandado para a retaguarda e passar o teu pelotão para a frente. Nunca me perdoarei.

─ O meu capitão não tem culpa. Cada um de nós morre quando tem de morrer. Tinha chegado a hora do Henriques. Se me passasse a mim para a frente e o Henriques para a retaguarda, a emboscada seria à retaguarda e o Henriques morria na mesma.

─ Talvez tenhas razão. Mas nunca mais esquecerei a cara de angústia quando foi ferido e a conversa que tive com ele.

─ Não pense mais nisso, meu capitão. Está aí o heli. Vamos fazer as evacuações.

─ Eu vou falar com o piloto. Trata de trazer o Henriques e os feridos.

O capitão, acompanhado do Lassen, do Joãozinho e do rádio telegrafista, dirigiu-se para o helicóptero onde falou com o piloto.

─ Um dos feridos já morreu. Foi o alferes Henriques. Peço-lhe para o levar para Bissau juntamente com os feridos.

─ Eu vou fazer isso,  embora o senhor capitão saiba que não nos é permitido levar mortos para Bissau.

─ O senhor pode dizer que ele morreu na viagem. Queremos evacuá-lo para Lisboa,  e se estiver em Bissau é mais fácil para nós.

─ Esteja descansado, senhor capitão, que eu levo tudo para Bissau.

Quando o corpo do Henriques e os feridos estavam dentro do helicóptero, o Lassen perguntou ao capitão se também podia ir.

─ Não, não podes. Tu podes é levar já duas lamparinas no focinho. No helicóptero só vão os feridos. Eu fico cá e tu também ficas.

─ Nosso capitão, olhe, eu também estou ferido.

Só nessa altura o capitão deu conta de que o seu guarda-costas estava a perder sangue. Para estar sempre ao lado do seu capitão durante a emboscada, o Lassen não disse a ninguém que também estava ferido e nem sequer tinha sido visto pelo enfermeiro. O capitão viu então a amizade e o respeito que aquele soldado tinha pelo seu capitão.

─ Desculpa, Lassen. Agora devias levar duas bofetadas por não me dizeres que estavas ferido. Vais embarcar depois de o enfermeiro te fazer um penso.

Penso concluído, o Lassen entrou no helicóptero. De dentro do helicóptero falou para o Joãozinho:

─ Joãozinho, eu vou para Bissau. Toma conta do nosso capitão.

O capitão ficou emocionado. Como era possível tanto amor, lealdade e ternura dum soldado para um capitão de Lisboa. Coisa que só a vida dura de combate na Guiné pode explicar.

Depois da evacuação dos feridos, o capitão deu ordem para regressar ao quartel onde chegaram por volta das cinco horas. Um avião sobrevoou o quartel e o capitão deu ordens ao 1.º sargento para ir à pista ver quem tinha chegado.

Quem chegava era o coronel comandante do sector. O capitão já estava de tronco nu e calças desapertadas, preparava-se para tomar banho.

O comandante do sector disse ao capitão.

─ Parabéns, Cristo. Foi uma operação em cheio. Você não deixa os guerrilheiros descansar nem um pouco.

─ Meu comandante, não aceito os parabéns. Tive quatro feridos e um morto. O morto é um oficial que era como um filho para mim. Por favor, tenha dó de mim e compreenda a minha tristeza.

─ É certo que teve um morto e quatro feridos, mas isso não pode ofuscar o êxito da operação. Dou-lhe os parabéns e quero falar aos seus soldados. Mande formar a companhia.

─ Talvez o senhor não saiba como está a companhia neste momento. As ordens que dei foram que quem quisesse comer ia comer, quem quisesse tomar banho ia tomar banho e quem preferisse ir dormir ia dormir. Isto significa que tenho homens a dormir, a tomar banho e a comer. A companhia não está em condições de formar.

─ Olhe, Cristo, eu já estou farto de ver homens nus e posso vê-los mais uma vez. Mande formar a companhia como estiver.

─ Ouviu, nosso primeiro? ─ perguntou o capitão. ─ Não está aqui nenhum oficial. O senhor vai formar a companhia e tem dois minutos para o fazer. Os homens podem formar nus. Formam como estão. Ninguém perde tempo a vestir umas cuecas ou umas calças. Dê ordem para formar a companhia e acompanhe o nosso comandante. Se me dá licença, meu comandante, eu vou tomar banho que era o que eu estava a pensar fazer. O nosso primeiro forma a companhia porque os nossos alferes, tal como eu, não estamos em condições de receber parabéns quando nos morreu um alferes. Isso é mais que suficiente para eu considerar a operação um fracasso.

Dito isto, o capitão que segurava as calças com as mãos, deixou-as cair e ficou em cuecas em frente do comandante e do 1.º sargento, que deitou as mãos à cara. O capitão, imperturbável, começou a descalçar-se, tirou as calças e as cuecas e foi tomar banho sem dizer nada ao comandante. Quando saiu do banho mandou chamar o 1.º sargento para saber o que se tinha passado. A companhia tinha formado, e a maior parte dos homens estavam de cuecas ou de calções. Mesmo assim, o nosso comandante tinha falado com eles e dito que não deviam estar tristes por terem feridos e por ter morrido um alferes, porque os guerrilheiros tinham tido mais baixas. A operação tinha sido um êxito.

O capitão foi para a messe, pediu uma cerveja e falou com os alferes.

─ Os sacanas hoje agiram com inteligência. Aquele tiro contra o primeiro branco da coluna foi o sinal para a emboscada. Sabiam que com esse tiro feriam ou matavam um oficial ou um sargento. O Henriques era o primeiro branco da coluna e eu o segundo. O Lassen levou um tiro numa perna que era dirigido a mim. Não fui ferido ou morto por muita sorte. Hoje renasci. O nosso coronel deve estar chateado comigo. Eu não podia fazer nada. É de muito mau gosto vir dar os parabéns a um capitão por uma operação com quatro feridos e um oficial morto. Há indivíduos que nunca serão capazes de compreender a mentalidade dos combatentes. Que se lixem.

─ Olhe, meu capitão, ─ disse o Manuel ─ eu não fui à formatura mas espreitei. Cumpriram-se integralmente as ordens. Formou rapidamente mas em cuecas. Alguns de tronco molhado, pois tinham acabado de sair do banho. O nosso comandante não viu os homens completamente nus mas fartou-se de ver corpos de homens quase nus. Talvez tenha aprendido a lição e na próxima já não nos chateie. Vamos beber mais uma cerveja para esquecer as tristezas. (...)

Emoção na hora da despedida, em julho de 1967:

Quando chegar a hora da despedida,  em meados de julho de 1967, o capitão Cristo, cmdt da 4.ª CCAC,  irá recordar com muita saudade, o Henriques (a par do Ribeiro, Cordeiro, Carvalho e Oliveira, os seus queridos alferes):

(...) O capitão estava emocionado porque não contava com este almoço de despedida. Quando falou no alferes Henriques, um dos mortos em combate, as lágrimas vieram-lhe aos olhos, pois a morte do Henriques estava muito viva no seu coração.(...) (pág. 373)

[Seleção, revisão e fixação de texto, negritos,  itálicos, parênteses retos e subtítulos: L.G.] (Com a devida vénia...)


Guiné > Região de Tombali > Carta de Bedanda (1956) > Escala de 1/50 mil > Posição relativa de Bedanda e dos rios Cumbijã, Ungauriuol (afluente do Cumbijã) e Lama (afluente do Ungauriuol)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)


2. Sinopse da Op Sobreiro, 21fev1967

Realizada para localizar e destruir as instalações inimigas referenciadas na região compreendida entre o rio Lama e o rio Ungauriuol, sector S3 (Bedanda), efectuando uma batida que foi executada por forças da CCav 1484,  4ª CCaç e Pel Can s/r 1154. 

Foram localizados 2 núcleos de casas que constituíam o objectivo, que foi destruído. O lN sofreu 3 mortos, além de outras baixas prováveis. As NT sofreram 2 mortos (o alf mil Américo Luís Santos  Henriques, natural de Ourém,  e o sold Sambel Baldé, natural de Bafatá, ambos da 4ª CCAÇ),   2 feridos graves e 2 ligeiros.

Fonte: Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II: Guiné: Livro 2. 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2015, pág. 34. (Com a devida vénia...).

PS - No livro supracotado, há um erro sistemático em relação ao nome do rio, que não é Ungarinol, mas sim Ungauriuol (carta de Bedanda, escala 1/50 mil). Erro que vamos corrigir nos postes anteriores em que há referências a este rio, afluente do Cumbijã.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18860: Os 81 alferes que tombaram no CTIG (1963-1974): lista aumentada e corrigida (Jorge Araújo)

sábado, 24 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23642: Os nossos seres, saberes e lazeres (527): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (69): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 7 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Agosto de 2022:

Queridos amigos,
Já houve o deslumbramento com todo o traço arquitetónico do arquiteto Michel Polak, esta visita inclui 2 exposições, pela sua elevada qualidade, é com muita satisfação que aqui as referencio, designadamente a intitulada "Portrait of a Lady", dedicada à representação da mulher ao longo dos milénios, com algumas obras primas da pintura e do desenho, esculturas provenientes de vários museus, assim se chega ao presente, Joana Vasconcelos foi convocada. E desceu-se à cave para saudar Michel Polak e o seu traço arrojado, ainda hoje um bom número dos seus edifícios são admirados pelas diferentes gerações em Bruxelas. Vamos agora mudar de agulha e falar um pouco da conceção das cidades-jardim, os belgas de há um século acolhiam com entusiasmo conceções de construção envolvidas por espaços verdes, as cidades-jardim que vos vou mostrar ficam muito próximo de uma grande floresta que os habitantes da capital frequentam designadamente nos dias amenos, Soignes, uma enorme extensão para sorver a paz e admirar o esplendor da Natureza.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (69):
Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia – 7


Mário Beja Santos

Prossegue a visita à Villa Empain, uma construção modernista fora de série, situada numa zona luxuosa de Bruxelas, na avenida Franklin Roosevelt, obra sonhada por um jovem barão endinheirado que encontrou um talento à altura, o arquiteto Michel Polak, já então um autor de numerosos edifícios emblemáticos de Bruxelas, um entusiasta da riqueza decorativa, projetando na arquitetura o que na época havia de melhor em conforto. Da visita propriamente dita já se adiantou bastante, subimos ao primeiro andar onde no passado havia os quartos dos donos da casa, quarto de hóspedes e sala de esgrima. Não há mobiliário para ver mas sim uma exposição interessantíssima intitulada “Portrait of a Lady”, uma síntese da representação da mulher omnipresente na História da arte, rosto ou corpo, aqui se reúnem 85 obras de artistas de renome, as exposição abarca a criação artística da era paleolítica à arte contemporânea, o público é induzido a explorar os sentimentos e as representações universais que inspira o retrato feminino, apresentam-se secções sobre o chamado período pré-histórico, as mulheres no interior, o nu como modelo ou musa, retratos e autorretratos e a exposição reflete no final a questão de género. Registei o que se escrevia na apresentação: “Durante séculos, a ausência de mulheres na cena artística teve por consequência que a História da arte foi pensada e executada por homens. Apesar de algumas exceções como Berthe Morisot e Mary Cassatt, que aparecem na exposição, as mulheres artistas ficaram por um tempo muito longo marginais. O que quer dizer que o retrato é maioritariamente o produto do olhar masculino. Todavia, o século XX é o século da emancipação das mulheres no Ocidente. A partir de 1900, e de um modo mais generalizado nos anos 1960, as mulheres acedem ao ensino artístico e serão doravante mais numerosas que os homens nas escolas de arte. Respondendo às correntes estéticas e aos ideais e critérios de beleza evolutivos, o retrato interroga a medida pela qual o indivíduo permanece um ser único e insubstituível. A exposição apresenta sobretudo um diálogo entre os retratos realizados por artistas modernos belgas e outros europeus como Matisse, Picasso ou Degas.” Joana Vasconcelos está presente na exposição com uma estátua em cimento, pintura acrílica e crochet de algodão, são impressionantes as estatuetas com mais de 20 mil anos, e estrangeiros e belgas entram na competição, caso de Mary Cassatt, Paul Delvaux, James Ensor, Berthe Morisot, Degas, entre outros.

Mary Cassatt
Degas
Aqui parei convencido que estava a ver um desenho de Ofélia Marques, não era mas podia ser, os anos passam e estou cada vez mais convencido que só os artistas que andaram por fora, como Leal da Câmara, Emmerico Nunes, Amadeo Souza-Cardoso, Almada Negreiros, Vieira da Silva ou Paula Rego, é que têm honras de figurar como grandes referências, os outros não existem, tivemos uma plêiade de artistas modernistas e pós-modernistas de grande gabarito, lembro a Lourdes Castro, acabaram por ficar confinados ao mercado e à cultura nacionais.
James Ensor

Finda a visita à exposição “Portrait of a Lady”, desci à cave para ver um pouco da exposição de homenagem a Michel Polak, não devo cansar o leitor com as obras deste inovador que questionou sempre o viver em conjunto, que muito fez contra a poluição sonora e que integrava nos seus trabalhos os espaços verdes, deixo somente a imagem da piscina num espaço que continuam a ser de referência, a Résidence Palace, vê-se e não há nenhuma dificuldade em dizer que o seu risco só se dimensionava para o que não passava de época, que ultrapassava as modas.
A visita está prestes a findar, volta-se a bisbilhotar o arrojo de Polak, percorre-se a piscina e a pérgula, não se pode ficar insensível à beleza das esculturas que a envolvem, para-se demoradamente na bela fachada concebida por Polak, fecha-se os olhos e promete-se voltar logo que seja possível regressar à sempre muito querida Bruxelas.
E, de seguida, vou passear com o leitor por uma cidade-jardim, concebida acerca de um século, quando havia civilização e cultura que ultrapassava a dimensão da arquitetura como um dormitório ou aqueles espaços que agora aparecem entaipados, quando os seres humanos julgam que estão mais seguros quando não são vistos pelos outros.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23624: Os nossos seres, saberes e lazeres (526): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (68): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 6 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23641: Companhias e outras subunidades sem representantes na Tabanca Grande (4): CCAÇ 2637, mobilizada pelo BII 18, Ponta Delgada, Açores (Teixeira Pinto, 1969/71), e a que pertenceu o fur mil enf Fernando Almeida Serrano, natural de Penamacor e futuro novo membro da Tabanca Grande




Guião e crachá da CCAÇ 2637 (Teixeira Pinto, 1969/71). 

Coleção: Carlos Coutinho (com a devida vénia...)


1. Ontem, no 49º almoço-convívio da Magnífica Tabanca da Linha, em Algés, fiquei,  na mesa,  ao lado do camarada Fernando Almeida Serrano. Foi a segnda vez que ele veio a esta tertúlia, onde não conhecia ninguém. Fui eu que o puxei para a minha mesa. E tivémos uma longa, agradável, franca e proveitosa conversa. 

Fiquei a saber que era professor primário, natural de Penamacor,  conterrâneo, amigo, colega e camarada do Libério Lopes (ex-2º srgt mil, CCAÇ 526, Bambadinca e Xime, 1963/65). Falámos também da sua terra, e do seu ilustre conterrâneo, o médico cristão novo António Nunes Ribeiro Sanches (Penamacor, 1699 - Paris, 1783), cujas obras  (as principais, em edição moderna da Universidade da Beira Interior, em formato pdf), lhe fiquei de mandar uma cópia em próxima oportunidade. (É um dos grandes pioneiros da saúde pública, e o nosso maior médico do séc. XVIII, especialista em "males de amores", e figura que eu muito admiro; é o único português que tem uma entrada na famosa enciclopédia de Diderot e D'Alambert, Paris, 1751-1772, justamente sobre "venerologia": "Maladie vénérienne inflamatoire chronique", ou seja, "doença venérea inflamatória crónica").

O Fernando reside desde 1972 em Carnaxide, Oeiras onde deu aulas juntamente com a esposa.  Foi furriel mil enfermeiro da "açoriana" CCAÇ 2637 (Teixeira Pinto, 1969/71), de que, como é frequente, com as unidades moblizadas pelo BII 18, Ponta Delgada (e também BII 17 e BII 19), não temos nenhum representante na Tabanca Grande... A emigraçao, nomeadamente transatlântica, levou para longe muitos dos nossos camaradas açorianos e madeirenses. 

O Fernando Almeida Serrano conhece o nosso blogue e manifestou vontade em juntar-se aos 864 membros da Tabanca Grande. Tem uma forte ligação aos seus "irmãos açorianos", se bem que muitos dos antigos militares da CCAÇ 2637, tenham seguido os caminhos da emigração.  A sua casa é a casa deles, qaundo vêm ao Continente, e a casa deles, nos Açores, é a sua casa, quando ele lá vai.   

Tem uma página na Net, que eu ainda não localizei, "Guiné-Recordações" (julgamos que se trata de uma página no Facebook, de um grupo privado, com 5 mil membros, criado há 2 anos). Tem também página pessoal no Facebook. É amigo (e cunhado) do nosso grã-tabanqueiro, ten cor art ref, José Francisco Robalo Borrego (qye foi fur art,  Grupo de Artilharia n.º 7 de Bissau, e 9.º Pel Art, Bajocunda, 1970/72). Aporesentei-o ao António Graça de Abreu, que esteve em Teixeira Pinto, no CAOP1, em 1972, ao tempo do coronel paraqueista Rafael Durão, mas não chegaram a estar juntos, o Fernando e o António, já que a CCAÇ 2673 terminou a sua comissão em agosto de 1971.

Publicamos, para já a ficha da unidade, referente a esta companhia, mobilizada pelo BII 18.


Ficha de Unidade > Companhia de Caçadores nº 2637

Identificação: CCaç 2637

Unidade Mob: BII 18 - Ponta Delgada

Crndt: Cap Inf José Cândido de Oliveira Bessa Meneses

Divisa: "As armas não deixarão enquanto a vida não os deixar"

Partida: Embarque em 220ut69; desembarque em 280ut69 | Regresso: Embarque em OçSet71


Síntese da Actividade Operacional

Em 300ut69, seguiu para Teixeira Pinto, a fim de efectuar o treino operacional sob orientação do BCaç 2845 e substituir a CCaç 2368 no reforço àquele batalhão e depois ao BCaç 2905, como subunidade de intervenção e reserva do sector, a partir de 17Dez69, tendo realizado diversas acções nas regiões de Pechilal, Bajope e Belenguerez, entre outras.

Em 07Jan70, mantendo o comando em Teixeira Pinto, passou a orientar a sua actividade para a realização dos trabalhos dos reordenamentos de Bassarel, Bajope, Chulame, Blequisse e Batucar, este último até 150ut70, e para a promoção socioeconómica das respectivas populações.

Em 28Jun71, com a instalação da CCaç 3327 em Bassarel, transferiu a sua sede, temporariamente, para o reordenamento de Chulame, permanecendo efectivos da subunidade nos reordenamentos de Bajope e Blequisse.

Em 20Ago71, foi substituída nos reordenamentos por efectivos da CCaç 3327 e recolheu a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

Observações > Tem História da Unidade (Caixa n.º 86 - 2.ª Div/4ª Sec, do AHM)

Fonte: Excerto de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: fichas das unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pág. 384.

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P23640: Notas de leitura (1497): "Orgulhosamente Sós - A Diplomacia em Guerra (1962-1974), por Bernardo Futscher Pereira; Publicações D. Quixote, 2022 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Livro de referência, pela organização cuidada, pelo elevado acervo documental diplomático manuseado, releva aspetos essenciais do que se viveu na Guiné, de 1962 a 1974. Referi em texto anterior que o autor repete erros de apreciação quanto à governação de Schultz, não consultou fontes primordiais; é o primeiro investigador a ignorar o argumentário do PAIGC, muito apreciado na época de que Spínola e a PIDE estavam envolvidos no assassinato de Cabral, não havia coragem para denunciar o segredo de polichinelo de que os guineenses não tolelariam ser governados sob alçada cabo-verdiana, durante anos vendeu-se uma conspiração montada pela PIDE para infetar as consciências em Conacri e chegou-se ao desplante de pôr à frente da intentona Momo Touré, um guerrilheiro libertado em 1969 e que fora criado de mesa no restaurante Pelicano, isto sem questionar como é que este senhor iria mobilizar pelo menos largas dezenas de sediciosos, muitos deles altos quadros do PAIGC. Mas esta mitologia fez voga, era um excelente pretexto para esconder a realidade. Futscher Pereira foi bastante cuidadoso a tratar as relações diplomáticas com o Senegal e revela as diferentes tentativas de Marcello Caetano de chegar às negociações com o PAIGC, a partir de fevereiro de 1974. Obra de leitura obrigatória.

Um abraço do
Mário


A Guiné no importante livro de Bernardo Futscher Pereira, Orgulhosamente Sós (2)

Mário Beja Santos

Orgulhosamente Sós, A Diplomacia em Guerra (1962-1974), por Bernardo Futscher Pereira [foto à direita], Publicações Dom Quixote, 2022, asseguro-vos, é uma obra de referência, muito bem sistematizada, o ponto focal, em diacronia, é uma área que o investigador domina. Trata-se de um trabalho de pesquisa e organização de grande solidez e onde um olhar sobre as relações internacionais correspondentes à guerra que travámos em África regista os dados fundamentais da luta de libertação e a permanente resposta portuguesa. O autor trata este livro como uma crónica, onde se “procura apresentar uma narrativa coerente deste período centrada na história diplomática, mas abarcando os principais aspetos políticos e militares que a enquadram”. Considera que uma visão completa deste período carece ainda de uma história militar pormenorizada das guerras coloniais. Adverte-se o leitor que quer neste texto como no anterior circunscrevemos a análise aos comentários do investigador exclusivamente no teatro da Guiné.

Estamos agora em 1971, as relações com o Senegal deterioram-se com as incursões de forças portuguesas em Casamansa, o PAIGC não abranda a onda de hostilidade. É neste contexto que Rui Patrício, o ministro dos Negócios Estrangeiros recebe uma carta de Spínola propondo um virar de página na politica portuguesa para a Guiné, escrevendo mesmo “a ninguém restam dúvidas de que o problema da Guiné não é passível de solução exclusivamente limitar” e que, “numa guerra deste tipo, as operações militares apenas se destinam a criar as condições à solução de fundo”, e “essas condições estão criadas, pelo que, do ponto de vista militar, se me afigura impossível ir mais além”. Spínola preconizava uma consulta ao povo da Guiné. “Spínola considerava que a sua ação apenas serviria para ganhar o tempo necessário para encontrar uma solução política e diplomática do conflito”. Irá expor essa tese a 7 de maio no Conselho Superior de Defesa Nacional, incomodará muita gente, o Governo não estava disposto a ir tão longe. Lúcido quanto à impossibilidade de uma vitória militar, Spínola empenha-se numa tentativa de negociação com o PAIGC, recorre a um colaborador de confiança, o chefe da PIDE em Bissau, Fragoso Alas, e a um intermediário como Mário Rodrigues Soares, considerado capaz de passar recados. É assim que é aprazado o encontro com Senghor, 18 de maio de 1972. Não há documentação que comprove que Amílcar Cabral desse o beneplácito a tais negociações. Depois das conversações com Senghor Spínola vem a Lisboa, Marcello Caetano contrariou todos os seus propósitos, alegando que a sociedade portuguesa não estava preparada para esse passo. É o início da rotura das relações entre os dois, Spínola irá escrever a Caetano dizendo que só existem duas alternativas, “ou uma viragem de ordem política ou uma prolongada e inútil agonia”.

Spínola irá ainda encontrar um alto dirigente senegalês, escreverá no seu livro de memórias País Sem Rumo que em outubro de 1972 Amílcar Cabral sugeriu um encontro com ele em território português. E o autor refere que a ausência de documentos não permitem esclarecer a consistência desta proposta. É exemplar a correspondência trocada entre Spínola e Marcello Caetano, e ficará para a história o seguinte comentário de Caetano: “para a defesa global do Ultramar, é preferível sair da Guiné por uma derrota militar com honra, do que por um acordo negociado pelos terroristas, abrindo o caminho a outras negociações”. Caetano supunha que iria haver uma derrota militar na Guiné que manteria intactas todas as possibilidades de defender o resto dos territórios. Falhadas as negociações, também Senghor tirou as suas ilações, passou a dar todo o apoio às atividades do PAIGC no Senegal. Importa referir que entre 2 e 8 de abril, três diplomatas ao serviço da ONU, acompanhados por dois funcionários do secretariado da mesma organização, percorreram a zona de Catió e Quitafine, confraternizado com as populações.

Estamos chegados ao assassinato de Amílcar Cabral e é bom que se diga que Bernardo Futscher Pereira é o primeiro investigador a justificar os acontecimentos fugindo à propaganda do PAIGC pôs a correr, estabelecendo ligações diretas com Spínola e a PIDE, e que teria havido até uma operação tenebrosa envolvendo a Marinha portuguesa. O autor faz avultar o ressentimento secular dos guinéus contra os cabo-verdianos, os cabo-verdianos eram oriundos da pequena burguesia ao passo que os guinéus eram essencialmente camponeses sem instrução. “O PAIGC contava com cerca de 6000 guerrilheiros, quase todos guineenses. Cabo-verdianos seriam talvez uma centena, quase todos dirigentes”. Fala nos indícios de comprometimentos de figuras como de Nino Vieira e Osvaldo Vieira, é sabido que toda a documentação decorrente dos inquéritos desapareceu sem rasto. A liderança do PAIGC preparou a resposta, ela virá, com toda a sua brutalidade, graças ao míssil terra-ar Strella, o ataque a Guileje e a Guidaje. Costa Gomes visita a Guiné no rescaldo destes empates, apresenta como única alternativa “a adoção de uma manobra visando o encurtamento da área efetivamente ocupada, evitando-se, desse modo, a contingência de aniquilamento das guarnições de fronteira”. Como o autor observa, Spínola concordou com o diagnóstico, mas recusou pura e simplesmente aplicá-lo.

Há agora o esforço frenético para encontrar armas compatíveis com a escalada do armamento, pretende-se comprar uma bateria antiaérea para a eventualidade de haver ataques com MiG-17. Para agradecer a cedência das Lajes na guerra do Yom Kippur, Kissinguer, não podendo fornecer diretamente os mísseis Red Eye encontrou um intermediário israelita. “Portugal acabou por encomendar 500 mísseis a Israel que, no 25 de Abril, esteavam na Alemanha Ocidental à espera de serem expedidos para Lisboa. Costa Gomes e Spínola cancelaram a encomenda.”

Futscher Pereira desvela igualmente as negociações tentadas à última hora por Marcello Caetano: negociar com o PAIGC a independência da Guiné. Alude aos acontecimentos de janeiro de 1974, a ofensiva sobre Copá e Canquelifá, a ida do diplomata José Manuel Villas-Boas a Londres, foi o MI6 que serviu de intermediário, o chefe da delegação guineense era o ministro dos Negócios Estrangeiros Vítor Saúde Maria. “Os guineenses exigiam negociações Estado a Estado e o reconhecimento de Portugal do Governo do PAIGC no exílio. Villas-Boas não estava obviamente habilitado a responder. Ficou agendado novo encontro, mas não antes de maio. Marcello Caetano procurava também outros canais. A 5 de abril, Pedro Feytor Pinto foi enviado a Paris, onde se encontrou com Jacques Foccart, o todo-poderoso monsieur Afrique do Eliseu, a quem pediu ajuda para mobilizar Senghor e Houphouët-Boigny para esta tentativa de última hora de negociar com o PAIGC. Iniciaram-se também preparativos para um encontro entre Bethencourt Rodrigues e Senghor.”

Aqui findam todas as considerações sobre a Guiné, insiste-se que se trata de um documento altamente probatório, indiscutivelmente um olhar refrescado sobre o que foi a diplomacia portuguesa que demonstra inequivocamente que não estávamos “orgulhosamente sós”.

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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23628: Notas de leitura (1496): "Orgulhosamente Sós - A Diplomacia em Guerra (1962-1974), por Bernardo Futscher Pereira; Publicações D. Quixote, 2022 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23639: Parabéns a você (2102): Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16 (Mansoa, 1964/66)

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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23632: Parabéns a você (2101): Coronel Art Ref Alexandre Coutinho e Lima, ex-CMDT da CART 494 / COM-CHEFE do CTIG / CMDT do COP 5 (Ganjola, Gadamael, Bissau e Guileje, 1963/73) e José Macedo, ex-2.º Tenente Fuzileiro Especial do DFE 21 (Bissau, 1973/74)

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23638: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte I: Não fomos todos criminosos de guerra: Deus e a História nos julgarão


Lisboa > 2009 > O Amadu Djaló no Cais do Sodré


Guiné > Bolama > 1962 > O Amadu Djaló na escola de recutas


Fotos (e legendas): © Virgínio Briote  (2015). Todos os direitos reservados.
[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Leiria  > Monte Real > Ortigosa > Quinta do Paul > IV Encontro Nacional da Tabanca Grande > 20 de Junho de 2009 > Em primeiro plano,  os antigos 'comandos' Virgínio Briote e  Amadu Djaló, um e outro muito acarinhados por todos. Não sei o que é o que Virgínio, um homem sábio, europeu,  estava a pensar, mas possivelmente estava a organizar a sua resposta à questão, pertinente,  levantada pelo Amadau, outro homem sábio, africano: "Os portugueses, a alguns povos, deram-lhes novos nomes e apelidos, livros para estudar e consideraram-nos civilizados. Desta civilização não precisávamos, mas faltava-nos a cultura, porque a cultura, de onde sai não acaba e de onde entra não enche. E no nosso Alcorão está tudo, moral, comportamento cívico e civilização e nós não precisávamos de ser civilizados, o que nos faltava era escola para aumentar os nossos conhecimentos"...

Foto (e legenda): © Luís Graça (2009). Todos os direitos reservados.
.[Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Temos reproduzido, aqui no blogue,  alguns excertos do livro de Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português" (Lisboa Associação de Comandos, 2010, 229 pp.).  O livro está esquecido, a edição está há muito esgotada, mas o Amadu Djaló continua nos nossos corações.

É um documento autobiográfico, único, sem paralelo,  indispensável para quem quiser conhecer a guerra e a Guiné dos anos de 1961/74, sob o olhar de um grande combatente luso-guineense, que teve de fugir da Guiné depois da independência e que em Portugal se sentiu tratado como um português de 2ª classe. 

Membro da Tabanca Grande, tem mais de 6 dezenas de referências no nosso blogue (onde foi sempre muito estimado e acarinhado). 

 Em homenagem à  memória do nosso  camarada Amadu Djaló (nascido em Bafatá, em 1940 e falecido em Lisboa, no Hospital Militar, em 2015, com 74 anos), e com a devida vénia aos seus herdeiros, à Associação de Comandos (que oportunamente, ainda em vida do autor, editou o seu  livro de memórias, entretanto há muito esgotado), e com um especial agradecimento ao Virgínio Briote que, na qualidade de "copydesk" (editor literário) e grande amigo do autor e coeditor jubilado do nosso blogue,  nos facultou o "manuscrito" (em formato pdf), vamos reproduzir aqui a notável introdução em que este antigo sargento 'comando' graduado, do Batalhão dos Comandos da Guiné (e depois alferes graduado da CCAÇ 21) faz um apelo ao paficismo e à reconciliação, ele que a seguir à independência teve de trilhar os dolorosos caminhos da fuga e do exílio, ele que escolheu um dos lados da guerra, o lado português, mas também podia ter andado a lutar contra os portugueses, nas fileiras do PAIGC. 

É ele próprio quem nos conta, sem alarde mas também sem autocensura de qualquer espécie, como chegou a ser aliciado, em Catió, aos 21 anos, para aderir ao PAIGC, acabando por ir para a nossa tropa: em 9 de janeiro de 1962, começaria ele, embora contrariado,  a recruta no CIM de Bolama. Serviu a bandeira verde-rubra até agosto de 1974. 


(...) A minha incorporação em 1962 (pp. 30/31)

(...) Quando estava em Catió, em jlho de 1961, toda a gente falava de um tal 'Nino' Vieira que tinha fugido da prisão da administração de Catió e que tinha sido ajudado por um cabo cipaio, o Adulai Duca Djaló, casado com uma irmã do João Bacar Jaló.

Nessa altura encontrava-se em Catió, um colega meu de Bissau, o Adulai Djá, que enquanto fazia 'consultas' 
[como vidente, presumo eu, LG] ,  tentava mobilizar pessoal para o PAIGC. 

Eram os tempos em que o PAIGC, ainda pouco conhecido, estava a começar a emitir um programa pela rádio de Conakry.

Uma tarde, convidado pelo Adulai Djá[1], fui ouvir a emissão a casa do cipaio. Depois voltámos mais vezes, fechávamos a porta, para o João Bacar não saber, e ouvíamos o programa quase todo. Nessa altura, o Adulai Djá estava a tentar aliciar-me e eu estive hesitante. Um dia disse-me que o pai dele lhe tinha mandado de Bissau a mulher e que esse momento não era oportuno para partir. 

Ele, que tinha muita arte para fazer 'consultas', disse-me, dias depois, que eu não contasse mais com o PAIGC, que ia ter um amigo, militar português, que me ia meter na tropa. Não liguei nenhuma importância ao que ele contara.

Quando regressei de Catió, tomei a decisão de trabalhar para mim, já há muito que alimentava o desejo de abrir uma banca no mercado de Bafatá, onde pudesse vender cigarros, contas[2], colas, tecidos da Gâmbia, panos e outros artigos. (...)


(...) Introdução (pp. 13/16)

Esta história [,este livro, ]  fala das circunstâncias da guerra em que participei. Tratou-se de uma guerra que dividiu e pôs frente a frente filhos da mesma terra.

Eu acho que participar em qualquer uma dessas partes não era crime. O crime é uma actuação que depende da pessoa que o pratica. Sem dúvida que houve criminosos em ambos os lados, que mataram barbaramente, mas cada um tem o seu processo individual para ser julgado, neste mundo e no outro.

No final da guerra não podiam nem deviam condenar todos. Primeiro deviam julgar os processos de cada um e só depois poderiam condenar aqueles que cometeram actos criminosos, tanto no Exército Português como no PAIGC.

Eu tenho a certeza que, entre aqueles que cometeram crimes nesta guerra, poucos sobreviveram e se, até agora, não foram presos e julgados pelo Estado, Deus já os terá julgado com grandes desastres e doenças incuráveis.

Em 25 de Abril de 1974 havia muita gente que considerava criminosos todos os militares guineenses do Exército Português e havia também outros que consideravam todos os combatentes do PAIGC como criminosos. 

É mal pensado. Devemos respeitar o sexto e o nono mandamentos. O sexto, guardar castidade nos pensamentos e nas palavras; o nono, guardar castidade nos desejos e nas obras. Se respeitarmos estes dois mandamentos, entre os dez, não pecaremos contra a humanidade.

Foi uma era de sofrimento, muito dura que passámos. Perante os vestígios da guerra, ainda frescos e bem visíveis, a quem foi cobrado o pagamento da dívida? A nós, aos militares guineenses que lutámos nas Forças Armadas Portuguesas, bem como às nossas famílias. Fomos os únicos a quem foi cobrada esta divida e nós e as nossas famílias pagámos muito caro. A minha mãe, muito idosa, e os meus filhos, ainda crianças, passaram fome.

Ninguém é culpado disto, é tudo fruto do destino de Deus. Tudo passou e fica para a história.

Quando Nino Vieira deu o golpe de 14 de Novembro de 1980, as perseguições, as pressões e as calúnias acabaram. Ficámos livres, tirou o fecho de segurança da boca de todos os ex-militares guineenses do Exército Português que ainda viviam.

Eu não sou político, apenas um ex-militar, oriundo da Guiné, com treze anos de serviço militar. E o que me levou a escrever este livro é, para além de contar as peripécias que vivi, revelar as minhas dúvidas e os meus sentimentos, durante esses anos, em situação de guerra. Era difícil ser bom português, e os bons patriotas são sempre patriotas, sejam quais forem as ocasiões.

A minha maior dúvida foi a integração no Exército Português. Não era crime, nem erro cometido por qualquer dos lados, quer pelas entidades portuguesas, quer pelos soldados guineenses, porque, naqueles tempos, ir à tropa era uma obrigação.

Os momentos de guerra foram muito difíceis, e é por isso que temos que dar tudo por tudo, para que a guerra seja a última solução do homem.

Com o fim da guerra e o início das perseguições que sofremos, a integração no Exército Português parecia ter sido um passo errado. Ficámos a pagar uma dívida que não devíamos e da qual nem éramos fiadores. Fomos apenas militares da nação portuguesa.

Aqueles momentos foram muito duros e inesquecíveis. Não havia julgamentos. Só condenações à morte e fuzilamentos, sem processos individuais, sem averiguações sobre os actos praticados por cada um.

O que me leva, então, a pôr em dúvida se a integração no Exército Português foi um passo certo, é porque, quando estávamos a pagar os vestígios da guerra, não havia nenhuma entidade portuguesa, patronal, governamental, nem tão pouco diplomática, que pudesse, ao menos, exigir que nos fosse feita justiça.

Na altura, não se falava de direitos humanos, nem em democracia em África. Este contexto originou um silêncio completo em todo o mundo e, assim, foi correndo até ao dia 14 de Novembro de 1980, data em que acabaram com essa injustiça. Porque tudo acaba por ter um fim.

E, como disse atrás, a guerra é a última solução para o homem, porque ninguém sabe as consequências que ela vem trazer, para além dos mortos, dos feridos e dos prejuízos, que são sempre as primeiras a aparecerem.

Mas também, quando não há outra saída, só a guerra, então temos de a fazer. A guerra é indesejável, mas quando vamos para ela, é nossa obrigação enfrentá-la com seriedade, porque na guerra não há graça. A guerra também é uma arte, aumenta o conhecimento do homem, traz novas experiências, novos conhecimentos, novas aventuras, novas amizades, novas relações, novas culturas.

Nós, Povo da Guiné, antes da guerra, mal conhecíamos o Povo Português. Nunca nos juntávamos nas festas com os europeus, durante a presença portuguesa. Só quando se iniciou o conflito começámos a ver os militares das companhias e dos batalhões, que nos acompanhavam como irmãos e como amigos. Festejávamos juntos, repartíamos o pão na mesma mesa, juntávamo-nos em todas as ocasiões, boas e más.

Este povo pacífico, que agora vinha de Portugal e convivia connosco nos momentos de guerra, ficou a conhecer-nos melhor, trocávamos conhecimentos de vida diferentes, tratávamo-nos como irmãos.

Antes, só os comerciantes e os funcionários do Estado vinham com as famílias para a Guiné. Nós éramos servidores, eles, patrões e chefes. E a convivência entre nós, nesses anos, não era muita.

Os jovens da minha etnia, na então Guiné Francesa[3] andavam todos em escolas europeias. Na Guiné Portuguesa, as portas das escolas só se abriram para nós, muçulmanos, com a vinda dos padres italianos.

Os portugueses tiraram algum povo do mato, deram-lhes nomes e apelidos, livros para estudar e consideraram-nos civilizados. Desta civilização não precisáv
amos, mas faltava-nos a cultura, porque a cultura, de onde sai não acaba e de onde entra não enche. E no nosso Alcorão está lá tudo, moral, comportamento cívico e civilização e nós não precisávamos de ser civilizados, o que nos faltava era escola para aumentar os nossos conhecimentos.

Depois que a guerra teve início, começaram a desembarcar companhias e batalhões de militares vindos de Lisboa. Passámos a ter amigos europeus, quase todos militares simpáticos, tanto oficiais como sargentos e praças. Poucos eram os que não tinham amigos. 

Antes de ser incorporado, o meu único amigo branco era um oficial do Exército, o tenente Carrasquinha, em finais de 1961. Ia a minha casa, foi o meu primeiro amigo. Depois, a tropa continuou a desembarcar e fui tendo mais amigos. Convivíamos em festas, comíamos e bebíamos, cantávamos, dançávamos juntos e ficavam também a conhecer o Povo pacífico da Guiné.

Todos os europeus que regressaram deixaram lá pelo menos um amigo que pensa neles. E todos os que regressaram, trouxeram consigo um ou mais amigos, no fundo do seu coração, que ainda hoje pensa neles.


O Povo da Guiné também é diferente dos outros povos da África. Desde o início da guerra foram muito raros os casos em que o PAIGC matou civis brancos.

A guerra destrói um lado e constrói outro. Mas a destruição é sempre maior. Por isso é melhor evitá-la, o máximo que pudermos. Mas, se não fosse a guerra nós também nunca viríamos a conhecer este Povo pacífico, que é o português, e que nunca deixámos de recordar.

Vivemos com estas recordações e vamos morrer com elas.

Até agora, se Portugal for invadido, nós vamos defendê-lo com tudo o que estiver ao nosso alcance. Se a Guiné for invadida, faremos o mesmo. Eu acho que devemos estar cada vez mais unidos e mais fortes, Guiné e Portugal.

Quero apelar a todos os antigos combatentes guineenses, tanto os que lutaram pelo PAIGC como os que foram incorporados no Exército Português, que façam um esforço de reconciliação com o que se passou.

Naqueles anos, ao serviço do Exército português, nunca deixei de ter amor pela Guiné, a terra que me viu nascer. O facto de eu e muitos companheiros nos termos alistado não fez de nós menos guineenses do que qualquer outro e não nos fez querer menos a nossa Pátria.

Foi a luta pela independência que nos levou a pegar em armas e trocar tiros com os nossos irmãos dentro da nossa terra.

Por tudo isto, eu peço, de uma forma humilde, a todos os guineenses para, hoje, mais do que nunca, ultrapassarem as diferenças, sejam quais forem, para o bem da nossa Pátria. (...)

[Seleção / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de edição deste poste: LG. ]
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Notas do autor ou do "copydesk" (editor literário) Virgínio Briote:

[1]
Adulai Djá militou no PAIGC, vindo a ser 2º comandante da base principal de Morés. Foi morto aquando de um ataque de Comandos helitransportados e soube-se que era ele, por causa do nome inscrito no anel que trazia num dedo.

[2] Colares.

[3] República da Guiné-Conakry, desde 2 de outubro de 1958.

Guiné 61/74 - P23637: (In)citações (222): Reflexão (complexo caminho da simplicidade da Evidência) (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

© ADÃO CRUZ


REFLEXÃO (complexo caminho da simplicidade da Evidência)

adão cruz

Não é fácil percorrer o complexo caminho da simplicidade da Evidência que anda por aí, em muita coisa. O medo da Evidência apavora as mentes que, de uma forma ou de outra, perderam a liberdade ou rejeitam a liberdade, sobretudo a liberdade de pensar. Interiorizam mecanismos fortemente redutores que são aceites acriticamente, porque não existe ou foi tacticamente anulada a capacidade crítica, ou são impostos por uma espécie de fé ou crença consuetudinária, impiedosamente dogmática, que cristaliza toda a forma de pensar, mesmo em pessoas familiarizadas com a Cultura Científica da Evidência. Estas as pessoas, ainda assim, de boa fé. Porque as há, e não são poucas, que fazem da má fé o antídoto da Evidência que não conseguem negar. O mundo é muito claro, até onde nos permite que o seja.

O sobrenatural continua a ser um grande problema, com a maioria das pessoas a serem incapazes de o resolver, incapazes de rever a equação cujo resultado estabeleceram como certo sem conhecerem os dados que a compõem.

Há muito tempo que deixei de discutir fé e religião com gente crente, gente que indiscutivelmente respeito, mesmo não respeitando as crenças. Dogmas e argumentos condicionados, não sendo permeáveis à razão, só podem levar a conclusões sempre frustrantes. Sou ateu, mas há muitos anos fui crente. O sobrenatural, tantas vezes aterrorizador, entrou na minha cabeça à força da destruição da minha razão e do meu entendimento, perpetrada por mentes ignorantes que assaltaram a minha infância e adolescência. Essa parte negativa da minha vida teve um lado positivo. Permite-me, hoje, à luz da Evidência possível, fazer a comparação entre a falsa liberdade da aleatória felicidade do obscurantismo e a aliciante liberdade da real felicidade de uma razão não mais miscível com qualquer grande ou pequena crendice. É muito difícil quebrar as grilhetas de um pensamento fortemente colonizado, mas a força projectiva da curiosidade humana que leva ao complexo caminho da simplicidade da Evidência é a única força capaz de nos libertar de todas as constritoras angústias metafísicas. Foi essa libertação que me trouxe a paz e a serenidade de uma total descrença mística, uma das melhores prendas que a vida me deu.

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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23630: (In)citações (221): Reflexão (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

Guiné 61/74 - P23636: Efemérides (373): O Núcleo dos ex-Combatentes de Mar, do concelho de Esposende, enriqueceu o seu Memorial com a inauguração e bênção das placas com os nomes, local e período de participação de todos os Combatentes (Fernando Cepa, ex-Fur Mil Art)

Memorial aos ex-Combatentes, sito no Largo 25 de Abril, em Mar, Esposende


Mensagem do nosso camarada Fernando Cepa, (ex-Fur Mil Art da CART 1689/BART 1913, Catió, Cabedú, Gandembel e Canquelifá, 1967/69) com data de 20 de Setembro de 2022:

Caro Carlos Vinhal
Boa Noite.
Junto remeto uma notícia sobre os Ex-Combatentes de S. Bartolomeu do Mar – Esposende, para publicares, se entenderes oportuno.

Um abraço do
Fernando Cepa
Ex-Furriel Miliciano
Cart 1689/Bart 1913



EX-COMBATENTES DO ULTRAMAR ENRIQUECEM MEMORIAL

O Núcleo dos ex-Combatentes de Mar, do concelho de Esposende, enriqueceu o Memorial aos ex-Combatentes, sito no Largo 25 de Abril, com a inauguração e bênção das placas com os nomes, local e período de participação de todos os ex-Combatentes, ato que decorreu no dia 11 de setembro e foi presidido pelo presidente da Câmara Municipal de Esposende Benjamim Pereira.

Presentes na cerimónia, o executivo da Junta de Freguesia da União de Freguesias de Belinho e Mar e a presidente da Assembleia de Freguesia da mesma União, Adelaide Carmo, para além de cerca de setenta convivas.

A colocação das duas placas com os nomes gravados de todos os ex-Combatentes do Núcleo de Mar encerra o processo do Memorial aos ex-Combatentes, sito no Largo 25 de Abril, em Mar, Esposende, o que deixou os responsáveis “muito satisfeitos”. Num trabalho “aturado e complexo, mas exaustivo” para além dos nomes dos Combatentes, ficou registado o posto de cada elemento, além do local onde prestou serviço no Ultramar, assim como o período temporal em que o mesmo ocorreu. De referir que há ex-Combatentes que serviram a Pátria em mais do que um local ou província. Jorge Costa e Jorge Sampaio, para além do Fernando Cepa, foram os homens timoneiros deste árduo trabalho, o que lhes valeu uma forte salva de palmas, “pelo seu trabalho incansável”.

Ilídio Saleiro, elemento mais graduado do Núcleo, referiu-se a esta “grande cerimónia de reconhecimento público e de justa homenagem aos ex-Combatentes, de enorme significado e simbolismo”. Por outro lado, manifestou “um profundo agradecimento ao Fernando e a todos os que com ele trabalharam, em particular, o Jorge Costa e o Jorge Sampaio, para chegarmos até aqui, com uma série de iniciativas e convívios realizados, muito em especial, a concretização e a construção dos símbolos, que ficarão para a história. Que farão a nossa história!”

Por fim, dirigiu uma “especial saudação e agradecimento aos familiares e amigos dos ex-Combatentes que, ao longo de mais de uma década, nos têm acompanhado e participado nos nossos eventos, com o espírito de solidariedade, que está na sua génese, e bem caracteriza a nossa comunidade”.

O pároco Manuel Viana benzeu as placas e presidiu à celebração da eucaristia em sufrágio dos elementos já falecidos.

Na homilia, o Pároco deu os parabéns ao Núcleo “pelo trabalho que tem desenvolvido ao longo destes anos para fazer a memória deste acontecimento.” Os nomes de todos os elementos nas placas é um trabalho “muito importante e muito significativo, pois é um gesto de memória”, referiu o sacerdote. E baseando-se na liturgia da Palavra em que apelava à Misericórdia, salientou que “os ex-Combatentes precisam de ser misericordiosos porque perdoar é um ato de nobreza”. E continuou: “hoje, é o dia de fazer memória, pois o povo que não tem memória é um povo que não vai longe”.

Numa brevíssima intervenção, Fernando Cepa fez três pedidos ao Presidente da Câmara: Ajuda para custear as despesas com o Memorial, já que “os ex-Combatentes têm pago todas as despesas”; a cedência da Bandeira Nacional para acompanhar o ex-Combatente no caso de falecer[1] e, por fim, construir um monumento concelhio aos ex-Combatentes.

Manuel Abreu, presidente da Junta da União de Freguesias de Belinho e Mar saudou os que “lutaram com a bravura conhecida”, pois “todos foram patriotas e heróis da nação. A vossa juventude não foi fácil pois viveram uma guerra no terreno que tinham de vencer, longe de todos os queridos”. E recordou que a Junta isenta de emolumentos os ex-Combatentes, desde que apresentem o respetivo cartão.

Benjamim Pereira, presidente da Câmara Municipal de Esposende, na sua intervenção começou por referir a necessidade de “honrar os que deram a sua juventude, a sua vida e o seu tempo pela pátria. Devemos honrar essas pessoas até para servir de ensinamento aos jovens”. E deixou uma “homenagem” dedicada a todos os que “trabalharam para que isto acontecesse”.

Quanto aos pedidos de Fernando Cepa, Benjamim garantiu custear as despesas, ceder a Bandeira Nacional e quanto ao monumento anunciou que “vou fazê-lo. Queremos encontrar um espaço condigno no largo por trás do Tribunal e já temos a pessoa que vai desenvolver a peça”. E sem parar, atirou: “estamos aqui para resolver os problemas das pessoas”. E rematou: “tenho uma dívida muito grande para com os que defenderam a Pátria. Não podem ser esquecidos”.

Por outro lado, Benjamim Pereira garantiu que a Câmara vai dar seguimento ao processo de desagregação das freguesias até porque “sempre estivemos contra o processo de agregação. Queremos as quinze freguesias”. E anunciou que irá ser realizada uma reunião da Assembleia Municipal só para tratar deste assunto.

A animação esteve a cargo do ex-Combatente Raul Machado.

Manuel Azevedo

Foto de família
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Notas do editor:

[1] - O direito à cedência da Bandeira Nacional, que deve acompanhar as cerimónias fúnebre dos Antigos Combatentes, está consignada na Lei n.º 46/2020 de 20 de agosto. A Bandeira deverá ser entregue, se solicitada, aos familiares do Combatente falecido.

"ESTATUTO DO ANTIGO COMBATENTE
Artigo 19.º
Honras fúnebres
1 - Os antigos combatentes, aquando do seu falecimento, gozam do direito a ser velados com a bandeira nacional, mediante pedido expresso pelo próprio ou a pedido da viúva ou viúvo, de ascendentes ou descendentes diretos.
2 - Cabe ao Estado português a disponibilização gratuita da bandeira nacional à família".

Último poste da série de 12 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23611: Efemérides (372): No dia 21 de Abril 2021 fez 58 anos que os 1.º e 2.º Pelotões da CCAÇ 414 estiveram em sérios apuros na Ilha do Como (Manuel Barros Castro, ex-Fur Mil Enf)