sábado, 25 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24884: Nota de leitura (1637): "O universo que habita em nós: estórias com vida”, do nosso camarada José Teixeira, um talentoso contador de histórias e criador de personagens (Luís Graça)

1. Texto, da autoria do nosso editor LG, que foi lido pelo Eduardo Moutinho Santos (foto à esquerda), na sessão de lançamento do último livro do Zé Teixeira, no passado dia 18, em Leça do Balio, Matosinhos (*), e que publicamos agora como "nota de leitura" (**)


Conheço o Zé Teixeira desde finais de 2005, altura em que ele passou a integrar o blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, também conhecido como Tabanca Grande. Passados 18 anos, ele é dos nossos autores mais prolíferos, ativos, proativos, ecléticos e generosos, com mais de 4 centenas de referências. 

E já não falo dele como comentador: é-me impossível contabilizar o número dos seus comentários a textos de outros autores. Em cerca de 25 mil postes (ou postagens), temos pertíssimo de 100 mil comentários (em média, 4 por poste). Algumas centenas serão seguramente do Zé.

Parte da sua vida, desde então, também está escrita no nosso blogue… Por exemplo, foi o cofundador da primeira tabanca da Tabanca Grande, a Tabanca Pequena de Matosinhos, um caso notável, pela sua originalidade e longevidade, de tertúlia de antigos combatentes… Fez parte da ONGD Tabanca Pequena, responsável por várias iniciativas de ação solidária na Guiné-Bissau, país que conhece muito bem das várias viagens que entretanto fez, desde 2005 (se não erro).

É autor de várias séries no nosso blogue, de que destaco, por serem das mais notáveis:

(i) “Estórias do Zé Teixeira”: tem 60 publicadas no blogue, de dez 2005 a set 2022;

(ii) “O meu diário”: tem 2 dezenas de publicações entre janeiro e março de 2006;

(iii) “Crónicas de uma viagem à Guiné-Bissau: de 30 de abril a 12 de maio de 2013: reencontros com o passado (José Teixeira)”: publicou 13 crónicas, entre maio e agosto de 2013.

Tem, além disso, inúmera colaboração avulsa, entre prosa, poesia e
fotografia, noutras séries como “Álbum  fotográfico”, “Ser solidário”, “Convívios”, “Blogpoesia”, “Fotos à procura de… uma legenda”,“(Ex)citações”, "(In)citações”, “Os nossos enfermeiros”, etc., etc.

Este preâmbulo, já extenso, serve apenas fundamentar aquilo que eu
escrevi em 2022 no prefácio ao seu anterior livro, de poesia, “Palavras (e)levas o vento”. Deixem-me citá-las porque continuam a ser justas, pertinentes e atuais:

“E desde logo (isto é, desde que o conheci por altura do Natal de 2005, na Madalena, Vila Nova de Gaia) o defini como um homem de palavra e da palavra: afável, comunicativo, talentoso, mas também coerente, solidário e generoso. E tem uma qualidade que não abunda por aí, nos tempos que correm, de feroz individualismo e competição: a sensibilidade sociocultural, a abertura aos outros que são diferentes, quer sejam os sem-abrigo a quem vê como irmãos, quer sejam os fulas, muçulmanos, da Guiné-Bissau com quem conviveu durante a guerra colonial”…

E também disse, sem qualquer favor ou lisonja, que ele era uma vocação literária “tardia” mas já “amadurecida” e até “consolidada”.

Este último livro (a que me cabe o prazer e a honra de apresentar) 
comprova-o: o Zé é um talentoso contador de histórias e criador de 
personagens, para além de cronista. São sobretudo os seus microcontos que me encantam. Mas também o registo mais intimista do seu diário…

Recordo-me de ter escrito, há 11 anos atrás, o seguinte a propósito das páginas do seu diário da Guiné:

(…) “São apontamentos que o Zé foi escrevendo num caderninho, durante a sua comissão na Guiné (1968/70). É um notável documento humano onde, para além de dados factuais (colunas, operações, baixas, topónimos...), também vêm ao de cima as dúvidas, as contradições e a angústia do português, do homem, e do cristão (praticante que ele sempre foi). Nesse Agosto de 1968, em Aldeia Formosa (hoje, Quebo), o Zé, enfermeiro, escreve, dilacerado pelo absurdo daquela guerra: 'Ainda não dei um tiro. A minha missão é curar. Jamais darei um tiro nesta guerra. Matar não, nunca. Vou tentar passar esta guerra sem fogo ' " (...).

 Vem também ao de cima o poeta que ele é: veja-se a ternura de poema que ele escreveu sobre "As Mãos de Minha Mãe" (…)

O artesão da palavra, como eu gosto de o definir, não é de agora, mas é ainda mais visível neste seu último livro, “O Universo que Habita em Nós”, que tem como subtítulo: “Estórias com vida”.

Não vou repetir o belíssimo e elegante, para além de sintético e magistral prefácio do prof Júlio Machado Vaz, que o leitor deverá ler no princípio e reler no fim. Ele definiu bem em três palavras o essencial destes textos: “candura, transparência e doçura”. 

O Zé Teixeira, para quem o conhece, está aqui, inteiro, de corpo e alma, nas histórias que nos conta e nas personagens que lhes dão autenticidade, humanidade e consistência, a começar pelo Miguelito que tem muito de “alter ego”, nascido na Lousada, onde ainda, cem anos depois, pairava o fantasma do Zé do Telhado, e cujas histórias ele ouve, da boca da avó, dividido entre o temor maravilhado e a interiorização dos valores dominantes.



Capa do livro do José Teixeira, "O universo que habita em nós". Lisboa: Astrolábio Edições, 2023, 230 pp. (Prefácio de Júlio Macahdo Vaz) (Disponível na Livraria Atlântico: preço de mercado: 17 € (em papel) ou 5 €(ebook); pode também ser comprado "on line" na FNAC, ou pedido diretamente ao autor: Jose Teixeira: jteixei@msn.com )


Não podendo nem querendo ultrapassar as quatro páginas A4 que me foram pedidas, quero tão apenas destacar algumas das singularidades e originalidades deste livro:

(i) do princípio ao fim, o narrador (sempre ou quase sempre na primeira pessoa do singular) está implicado no enredo: diremos que há um recurso, em geral bem conseguido, à técnica da observação participante, seja quando se fala das vivências da infância e depois da guerra, seja das histórias dos que não tem história;

(ii) está dividido em duas partes (Zé, falta-lhe um índice, lapso que podes corrigir na 2ª edição…): “este meu mundo escondido” e “esta minha cidade escondida”;

(iii) na introdução (pp. 11/13), o autor explicita e fundamenta muito bem esta dicotomia cidade aberta / cidade escondida: há um “universo recôndito que está dentro de nós” e que “é a base da construção da nossa cidade”, que deve ser (ou queremos que seja) “bela, acolhedora e cativante” (sic), projeto em que cada um de nós tem de ser um “operário ativo” (pág. 12);

(iv) a “cidade escondida” é como a outra face da lua”, a que não vemos ou não queremos ver, a dos homens e mulheres, social e espacialmente discriminados e segregados, e a que pomos o epíteto (estigmatizante) de prostitutas, alcoólicos, drogados, marginais, sem-abrigo, loucos, indigentes…

(v) podia haver amargura, azedume, revolta, ajustes de contas com o passado,  mas não: há ali muito amor, ternura, carinho, poesia,  ingenuidade, cumplicidade, serenidade, empatia, compaixão… no regresso ao passado, duro, da infância, mesmo quando falta uma importante peça do puzzle da nossa identidade, a figura do pai… ou do seu substituto, ou quando a hipocrisia social diaboliza a figura da mãe solteira;

(vi) o autor recorre a poetas para, num verso ou num pensamento sincrético,  nos dar uma chave de leitura para a suas histórias ou personagens. Por exemplo, “A minha mãe (…) era o vulto que à noite se recorta” (Vasco Graça Moura); “Faz que cada hora da tua vida seja bela. O mínimo gesto é uma lembrança futura” (Claude Aveline”); ou “O mais terrível dos sentimentos é o sentimento de ter a esperança perdida” (Frederico Garcia Lorca); noutros casos, recorre ao exemplo de vida de amigos, que admirava, como o saudoso luso-guineense Carlos Schwarz (Pepito): “Desistir é perder, recomeçar é ganhar”;

(vii) algumas histórias podem ser pícaras,  mas sempre muito humanas e surpreendentes: por exemplo, “Madrinha de guerra” (pp.79/85), “As aventuras do Marcelino” (pp. 87/92) ou “Morreu, morreu o cobrador!” (pp.221/226);

(viii) o autor pertence a uma geração de portugueses, que apesar de tudo foi “win-win”, não se resignou com o destino que lhe coube, foi à luta, resistiu, sobreviveu, conseguiu apanhar o "elevador social", valorizar-se intelectual, social e profissionalmente… Ou em suma: sair do círculo da pobreza e da iniquidade em que nasceu, quando 120 em cada 1000 crianças morriam antes de chegar ao 1º ano de vida; a tuberculose era uma das principais causas de morte; a escola primária (e muito menos o liceu e a universidade) não era para todos; andava-se descalço ou de chancas; e uma criança com 6 anos guardava as ovelhas do “regedor”, em troca, à noite, de um caldo quente, um pedaço de broa e, em dias de festa, uma cabeça de sardinha frita…

Há histórias e personagens tocantes, neste livro, desde a Áurea, sem-abrigo, ao Senhor Augusto; ou o Salvador que transporta em si os fantasmas e os pesadelos de toda uma geração que fez a guerra colonial…

Como eu já disse, não há muito tempo, e a propósito da história do Senhor Augusto, que já tinha lido no blogue: sabemos que nos podem roubar ou tirar-nos tudo, a casa, a terra, o país… Não se escolhe onde se nasce, muito menos pai e mãe... Ninguém pode, todavia, roubar-nos a memória, incluindo as memórias da infância e as nossas geografias emocionais (Buba, Mampatá, Chamarra, Aldeia Formosa, etc.). E a infância tanto pode ser uma rua, como um bairro, ou uma quinta, um lugarejo, um lugar, uma aldeia, uma vila como um rosto ou um estória...

Em “O universo que nos habita”, estão lá muitas das memórias impressivas e das vivências mais fortes do autor, a começar pelas paisagens da infância, sofrida mas também maravilhada, que, mesmo que tenham desaparecido fisicamente, continuam a ter cores, sabores, cheiros, rostos, personagens, homens e bichos, dos casebres dos pobres, os "cabaneiros", às casas dos “fidalgos”; o duro, trágico, mas também às vezes pícaro, lado da guerra colonial na Guiné; e, por fim, um terceiro “filão”, não menos duro mas seguramente nobre, que é também uma missão, a de dar voz a quem não a tem.

Mas o Zé, além de marido, pai, avô, educador, cidadão, também, foi dirigente escuteiro, gerente bancário, andou nas lutas dos moradores das ilhas do Porto… Em suma, ele que é humilde, também pode dizer, com propriedade e sem bravata, como o grande Pablo Neruda: “Confesso que vivi”…E isso dá-lhe o direito e o dever de memória… A escrita é também uma das formas de explorar essa inesgotável matéria-prima com que (re)construímos o universo que nos habita …

Neste Natal, far-nos-á bem a todos ler e reler estas “estórias de vida”, por que são também “estórias com vida”, o mesmo é dizer de esperança.

Parabéns, Zé. E obrigado pelo teu talento, empatia e amizade.

Luís Graça, editor do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

(Nota de LG: Um especial agradecimento ao camarada Eduardo Moutinho Santos por, na sessão do dia 18, me ter "emprestado a voz", o mesmo é dizer, ter tido a gentileza e a nobreza de ler o meu texto...)

  

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Simpósio Internacional de Guiledje > 1 de Março de 2008 > O Zé Teixeira com a Cadidjatu Candé (infelizmente já falecida), filha do valente alferes de 2ª linha e comandante de milícias no Quebo, Aliu Sada Candé,  preso, condenado à morte e assassinado lentamente pela juventude do PAIGC depois do fim da guerra (com "um prego espetado na cabeça, uma morte lenta, dolorosa, horrível").
 
Foto (e legenda):  © José Teixeira (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Para o Zé Teixeira, um camarada e um amigo, 
 um homem bom e solidário (**)

por Luís Graça

Não, não és um amigo do tu cá tu lá,
Não somos amigos de infância, ai que pena,
Conhecidos só de um Natal da Madalena,
Passei pelo Saltinho e tu, em Mampatá.

Não foi preciso pedir a ninguém licença,
Entraste pela Tabanca Grande adentro,
Sem quereres ser do mundo o umbigo e o centro,
Para partir mantenhas e mostrar a crença,

Nessa grande camaradagem de outrora,
Temperada na Guiné da paz e da guerra,
Sempre pensando no dia de ir embora.

O nosso blogue foi traço de união,
E ponte com essa nossa segunda terra:
Mereces por isso o meu chicoração!


Lourinhã, 6 de fevereiro de 2021

Parabéns do Luís (e da Alice), em dia de anos (***)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 23 de novembro de 2023 >  Guiné 61/74 - P24874: Agenda cultural (845): a minha festa, em Leça do Balio, no passado dia 18: o lançamento do meu livro "O Universo que habita em nós" (José Teixeiira, Matosinhos)

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24883: Ser solidário (263): Relatório da nossa 38.ª Missão Solidária que decorreu entre os dias 28 de Outubro e 04 de Novembro de 2023 na Guiné-Bissau (Afectos Com Letras)




1. Mensagem de Afectos com Letras - afectoscomletras@gmail.com
Date: 13/11/2023
Subject: 38.ª Missão Solidária Afectos com Letras

Car@s Amig@s,
Junto segue, para informação, o relatório da nossa 38ª Missão Solidária que decorreu entre os dias 28/10 e 04/11 de 2023 na Guiné-Bissau.

Com os nossos melhores cumprimentos,
Associação Afectos com Letras, ONGD
Rua Engº Guilherme Santos, 2
Escoural , 3100-336 Pombal
NIF 509301878
tel - 91 87 86 792
venha estar connosco no www.facebook.com/afectoscomletras

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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24763: Ser solidário (262): Fundação João XXIII - Casa do Oeste, Ribamar, Lourinhã: parafraseando Friedrich Schiller, "não temos em nossas mãos a solução de todos os problemas da Guiné-Bissau, mas perante os seus problemas temos as nossas mãos" - Fotogaleria (2014) - II (e última) Parte: agricultura, saúde e educação, três áreas-chave

Guiné 61/74 - P24882: Memória dos lugares (451): Farim no ano de 1971 (José Carvalho, ex-Alf Mil da CCAÇ 2753)

1. Mensagem do nosso camarada José Carvalho, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2753 (Brá, Bironque, Madina Fula, Saliquinhedim e Mansabá, 1970/72), com data de 22 de Novembro de 2023:

Caros Amigos,

Faço votos para que se encontrem bem.
Ao ver as excelentes fotos com que o Patrício Ribeiro nos presenteou, recordei-me que o dito monumento fazia parte das minhas reportagens fotográficas em Farim, durante o ano de 1971.

Envio então duas fotos: a primeira com o meu amigo Vitor Junqueira, aguardando o transporte para Farim e a segunda no referido monumento ainda completo.

Boa saúde e abraço do
José Carvalho



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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24498: Memória dos lugares (450): Quinta de Candoz

Guiné 61/74 - P24881: Notas de leitura (1636): "A Última Lua de Homem Grande", por Mário Lúcio Sousa, romance finalista do Prémio Leya, publicações Dom Quixote, Maio de 2022 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Maio de 2022:

Queridos amigos,
Trata-se de um lançamento recente, recebo das editoras livros solicitados para fazer recensões, que envio para a imprensa escrita. Contudo, tratando-se de matéria que a todos interessa no nosso blogue, atrevo-me a pôr à vossa disposição esta recensão. Romance é romance, Mário Lúcio Sousa é nome conceituado da literatura cabo-verdiana e nosso orgulho na lusofonia, resolveu, em termos de arquitetura da escrita, fazer um registo ficcionado, com muitos dados plausíveis e confirmados, outros puramente fictícios, do último dia de vida de Amílcar Cabral, como num filme rebobinado somos induzidos a percorrer a sua vida, da infância à morte, os seus amores, os seus ideais, as suas desilusões. Pouco apreciador do acolhimento de inverdades, hoje sem qualquer sentido, como a ligação portuguesa ao seu assassinato, de que não ha uma só folha comprovativa de ligação ao complô guineense, rendo-me a esta linguagem portentosa, os sabores de África, a mestria de compor, recompor, torcer e distorcer para que as palavras ganhem vibração e luminisciência, recomendo vivamente esta leitura.

Um abraço do
Mário



Um belíssimo romance, a crónica de uma morte anunciada

Mário Beja Santos

Não há escritor que não seja tentado em comprimir num dia do calendário a vida de um homem, casos há em quem se lança em tal empreendimento produz revolução na escrita, foi o que aconteceu com James Joyce e o seu "Ulysses". Mário Lúcio Sousa também não quis fugir a esse desafio da compressão do tempo e forja a vida de Amílcar Cabral no dia em que passou ao limiar da eternidade, 20 de janeiro de 1973, data do seu assassinato, e assim temos "A Última Lua de Homem Grande", romance finalista do Prémio Leya, publicações Dom Quixote, maio de 2022.

É um enternecimento imiscuirmo-nos em arquitetura só possível na lusofonia, Mário Lúcio Sousa vem na esteira de outros mestres, como Luandino Vieira, Manuel Rui, Pepetela, Paulina Chiziane ou Mia Couto, que nos ensinaram que a língua portuguesa é desdobrável, pode ser desossada e enxertada de sangue novo, há lavores da sua escrita em todos os continentes, não se pode falar de Amílcar Cabral, um construtor de países, dispensando a matriz cabo-verdiana, nem os referentes daquele território em que se viveu uma tenaz luta armada, tão bem sucedida que ajudou a preparar a libertação de povos, a começar pelo colonizador.

O líder está em Conacri, é visível o seu cansaço extremo, obra do romance antevê ser o seu último dia, cogita diante do espelho: “É hoje que me matam, só me falta saber a hora, o lugar, quem vem, e se me tratarão melhor do que um cão”. Não teme o dia fatídico, por fantasia da escrita, o líder do PAIGC, a quem um coletivo de historiadores de todo o mundo reconhece-o como um dos 20 maiores líderes da História da Humanidade, tem pela frente uma derradeira tarefa, “talvez a mais pessoal, escrever os últimos acontecimentos, na fé de que o universo também conspire e, um dia, lhe traga um imparcial e amoroso cronista, para compendiar todas as alegrias, os sofrimentos, os altos e baixos, as traições e as cumplicidades, as verdades e as desmentiras, para que as gerações vindouras possam conhecer a verdadeira história deste homem e o verdadeiro homem desta história. É tudo quanto almeja”.

Adverte-nos o autor que o romance não é um livro de História, “Verdade é tudo aquilo que o autor consegue provar; no romance, verdade é tudo a que o escritor teve acesso”. E diz estar documentado, mas romance é romance, e neste até se poderão proferir insinuações sem base nenhuma, é ressuscitado o mantra do conluio dos matadores com os portugueses, pôde dar jeito nos tempos subsequentes ao assassinato, hoje, com os arquivos disponíveis, nada consta das propaladas ligações, Spínola não mandou matar, Spínola só dispunha das informações do que se passava em Conacri, a crescente crispação entre guineenses e cabo-verdianos, informações que constam dos arquivos da PIDE/DGS, não há nenhum documento nos arquivos do Ministério da Defesa ou do Ultramar, é rotunda mentira que a Marinha portuguesa aguardava a chegada de um barco com os líderes do PAIGC no limite das águas territoriais da Guiné-Conacri.

E como o próprio romance dá conta que estavam envolvidos, direta ou indiretamente, centenas de guineenses, há quem chegue ao cúmulo do disparate de dizer que Momo Touré era o coordenador do complô, complô esse que o próprio autor diz ser um mistério de quem era o mandante, fizeram-se inquéritos, “testemunharam os embaixadores: uma amnésia corrosiva caiu sobre as Guinés, as páginas da inquirição desapareceram, as gravações foram apagadas, os presos foram a bando dados à guerrilha”. Novo inquérito, coordenado pelo PAIGC, o povo perguntou-se para quê mais um se já se sabia quem morreu, quem matou, quando foi e onde. “Mas, o mesmo povo, revoltado e atento, concluiu que sim, que era mistério saber quem eram os assassinantes de punho e letra, porque os carrascos nominados tinham cérebro para matar, mas ciência para argumentar e esconder uma morte não, nem de uma folha, nem de um bicho, quanto menos de um homem que, vivo, era uma lenda e, morto, estava a galopar sem precedente para o seleto limbo dos espíritos sapientes”.

É a crónica de uma vida, dentro desta simulação de que Amílcar Cabral pressagiava tal morte anunciada, é a sua infância, a adoração pela Mãe Iva, como estudou afincadamente em Cabo Verde e ganhou bolsa para Lisboa, com quem aqui conviveu e os seus dilatados amores por Maria Helena, o seu trabalho na Guiné, e até se inventa que dela foi expulso, elemento útil para martirológio, mas nada comprovado, e depois o sonho de libertar Guiné e Cabo Verde, os desafios postos por Conacri pelos partidos rivais, a fundação da Escola Piloto, a preparação dos guerrilheiros, a chegada do armamento, o líder grato pelo acolhimento de Sékou Touré, de repente aparece-nos o responsável pela segurança, Mamadu Ndjai com a preocupação de avisar o major Silva Pais, pois os insurretos dele receberam algures um plano para fazer desaparecer Cabral sem deixar manchas, outro delírio incomprovado, mas que cabe bem na trama do romance. As horas escoam-se, somos instados a acompanhá-lo na sua vida familiar, com a sua mulher e os seus filhos, nesse entardecer o casal irá a uma receção na Embaixada da Polónia.

Súbito, já estamos 8 meses depois do seu assassinato, lá para as bandas do Boé há a cerimónia da declaração unilateral da independência da Guiné-Bissau, uma das etapas do plano elaborado por ele para encostar definitivamente a potência colonial à parede. E nesta sarabanda de datas estamos no fim do ano de 1973, como habitualmente ele discursou e anunciou o futuro, é um livro que se intermeia de profecias, de avisos, de solilóquios, há até uma misteriosa agenda azul digna de uma intriga da literatura de crime e mistério, jamais se saberá o seu conteúdo, mas fica no ar a sugestão de que ela continha, qual profecia, a matéria do complô e o rol dos matadores e quem coordenava a operação, hoje investigação insondável, tudo parece rasurado e muito provavelmente o(s) cabecilha(s) viajam pelas estrelas.

É uma empolgante viagem de vida, já estamos na receção da Embaixada da Polónia, fazem-lhe perguntas atrevidas, em flashback ele rememora o período em que se pedia a gente amiga armamento, a chegada deste vindo de Marrocos a Conacri e o pânico que se instalou em Sékou Touré de que era armamento para o derrubar em golpe de Estado.

E como na tragédia grega somos encaminhados para o palco do seu assassinato, à porta de casa, é uma narrativa de fúria a que se interpola recordação daquele líder que vai morrer e que amava as crianças, lembra os amores que teve na vida, só espera que os matadores não lhe matem o povo que ele quis libertar, sabe que carregou uma cruz, andou a amainar a divisão entre os guineenses e os cabo-verdianos, está varado no chão com o primeiro tiro, despede-se da vida em vertigem, é um filme que por ali passa, e antes do tiro fatal recita em silêncio o poema que dedicou à Mãe Iva, constante do livro de curso de Agronomia, é o momento do desenlace: “O soldado Bacar dá mais um passo seco para trás. Ele, Homem Grande, sustém o fôlego. O soldado ombreia a arma. Ele, Homem Grande, levanta a cabeça, despede-se do seu amor, dos seus amores”.

A um belíssimo romance como este muito se pode perdoar de insinuações e de mantras que só podem ser úteis na ficção. E Amílcar Cabral é merecedor desta joia literária da lusofonia.

Mário Lúcio Sousa
Amílcar Cabral, pintura de Noronha da Costa
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24868: Notas de leitura (1635): Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana: Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24880: Efemérides (420): A 35ª CCmds (Teixeira Pinto, Bula e Bissau, 1971/73) partia, há 52 anos, às 11h00, para o CTIG no T/T Angra do Heroísmo (Ramiro Jesus, Aveiro)


Foto nº 1


Foto nº 2


35ª CCmds ( Teixeira Pinto, Bula e Bissau, 1971/73) > Novembro de 1971 > Despedida em Lamego (foto nº 1) e a bordo do Angra do Heroísmo (Fotos nºs 2 e 3)

Fotos ( e legendas): © Ramiro Jesus (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Ramiro Jesus, (ex-fur mil 'comando', 35.ª CCmds (Teixeira Pinto, Bula e Bissau, 1971/73) (mora em Aveiro, é membro da nossa Tabanca Grande desde 9/12/2012, e tem 17 referências no nosso blogue):

Data - sexta, 24 nov 2023, 13:07

Assunto - Partida

Bom-dia, amigos e camaradas.

Acabaram há pouco - por volta das 11 horas - de completar-se 52 anos da minha partida para a Guiné, a bordo do navio "Angra do Heroísmo".

Faltavam - e nessa altura não sabia - dois anos e mais um mês, para a viagem de regresso, no "Niassa".

Bem, mas, ao menos, voltei e voltaram quase todos os que me acompanharam naquela aventura, cujas consequências imaginávamos mas não conhecíamos.

"Faltaram" o João e o Granada, a quem deixo a minha homenagem e ainda outros, que tinham regressado antes por consequências da guerra ou do clima.

Para ilustrar a mensagem, envio fotos do desfile de despedida em Lamego e já no navio de "cruzeiro", no T/T "Angra do Heróismo"

Um Abraço para todos, editores e leitores do blogue.
Ramiro Jesus


2. Ficha da unidade > 35ªCCmds

35ª  Companhia de Comandos (Teixeira Pinto, Bula e Bissau, 1971/73)

Identificação: 35ª  CCmnds

Unidade Mob: CIOE - Lamego

Cmdt: Cap Mil Inf Cmd António Joaquim Alves Ribeiro da Fonseca | Cap Mil Inf Cmd António Rui de Mendonça Andrade

Partida: Embarque em 19Nov71; desembarque em 24Nov71 | Regresso: Embarque em 15Dez73  
[Há aqui um erro cronológico: o Ramiro Jesus diz que a partidade Lisboa  foi a 24 e a chegada a Bissa a 29/11/1971]

Síntese da Actividade Operacional

Após o desembarque, seguiu em 03Dez71 para Teixeira Pinto, a fim de efectuar o treino operacional com a 26." CCmds até 04Jan72, sendo a imposição das insígnias de "Comando" efectuada em 14Jan72.

A partir de 06Jan72, mantendo-se em Teixeira Pinto, foi atribuída ao CAOP1 como subunidade de intervenção e reserva deste agrupamento, tendo tomado parte em diversas operações e acções de patrulhamento nas regiões Churo-Caboiana, Burné, Belenguerez e Pijame, entre outras. 

Pelos resultados obtidos e material capturado, destacam-se as operações "Júpiter", "Joeirada 78" e "Jacarandá", entre outras.

Em 3Jan73, foi deslocada para Bula, a fim de actuar como subunidade de intervenção e reserva do BCav 8320/72, com vista à realização de patrulhamentos, emboscadas e acções ofensivas nas regiões de Choquemone e Ponta Matar.

Em 15Fev73, foi colocada em Brá (Bissau), onde passou a desempenhar serviços de guarnição, tendo ainda tomado parte em escoltas a colunas de reabastecimento a Farim e Cacheu e ficando a aguardar o embarque de regresso a partir de 05Dez73.

Observações - Tem História da Unidade (Caixa n." 100 - 2ª Div/4ª  Sec, do AHM).

Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: fichas das unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pág. 535...

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Nota do editor:

Último poste da série > 15 de novembro de  2023 > Guiné 61/74 - P24850: Efemérides (410): Há 56 anos: onze mortos (além de dezenas de feridos), da CART 1661, na estrada Porto Gole-Bissá, em duas minas A/C (uma incendiária), em 5 e 6 de outubro de 1967... Ainda hoje recordo os soldados queimados, alguns com o terço ao pescoço, rezando para os salvarmos! (José António Viegas, ex-fur mil, Pel Caç Nat 54, Enxalé, Missirá, Porto Gole e Ilha das Galinhas, 1966/68)

Guiné 61/74 - P24879: As nossas geografias emocionais (16): Empada: a Fonte Frondosa (1946), revisitada em 2011... e os amigos que lá deixámos, eu e o Eduardo Moutinho Santos (José Teixeira)



Foto nº 1A > Guiné-Bissau > Região de Quínara > Empada > 2011 > O Eduardo Moutinho Santos e o Zé Teixeira na Fonte Frondosa, inaugurada em 1946... Sessenta e cinco anos depois ainda funcionava e a lápide em azulejo ainda lá estava.


Foto nº 1 > Guiné-Bissau > Região de Quínara > Empada > 2011 > A visita obrigatória do Eduardo Moustinho Santos e o Zé Teixeira à Fonte Frondosa,


Foto nº 2 > Guiné-Bissau > Região de Quínara > Empada > 2011 > Outra perspetiva da bela fonte de Empada.


Foto nº 3 > Guiné-Bissau > Região de Quínara > Empada > 2011 > A janta à Fula, para alegria dos mais jovens e prazer dos mais velhos.


Foto nº 4 > Guiné-Bissau > Região de Quínara > Empada > 2011 > Moutinho Santos e o Braiama a saborear um bom momento de reencontro passados 41 anos.


Foto nº 5 > Guiné-Bissau > Região de Quínara > Empada > 2011 > O último abraço do Braiama (já faleceu).


Foto nº 6 > Guiné-Bissau > Região de Quínara > Empada > 2011 > A alegria estampada no rosto que a câmara do meu filho colheu.


Foto nº 7 > Guiné-Bissau > Região de Quínara > Empada > 2005> O Kebá vestido de cor rosa, o Braima e o Xico Allen (1950-2022)

Fotos (e legendas): © José Teixeira (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70; tem mais de 400 referências no blogue; régulo, juntamente com o Eduardo Moutinho Santos, da Tabanca de Matosinhos): 

Data - segunda, 30/10/2023, 12:07

Assunto - Fonte Frondosa

Luís e Carlos.
Bom dia.

A propósito das Fontes espalhadas pela Guiné (*), junto um artigo, para publicar se entender que vale a pena.

Fraterno abraço do Zé Teixeira



Fonte Frondosa, em Empada

por Zé Teixeira


Era o local onde se tentava “matar” todas as sedes.

Era a fonte mais linda de todas as fontes. Á água era fresca, límpida, inodora e não contava que trouxesse coliformes fecais ou outros que tais, mas se trouxesse a sede era tão grande que matava toda a bicharada.

Estava situada, num baixio, um pouco atrás da casa do Chefe de Posto, o tal que foi corrido (só não foi a tiro, porque apareceu o capitão), mas esteve quase. Ousara dar ordem de prisão a um pobre sofredor, o Kebá, que vira duas das suas mulheres e seus filhos serem apanhados pelo IN.

o Kebá  Uns tempos mais tarde, encheu-se de coragem e foi ao interior da mata tentar recuperá-los e estes negaram-se a regressar a Empada, voltando ele de mãos a abanar. Era muito estimado dentro do quartel, como auxiliar de enfermeiro e tradutor, mas recusava-se a vestir uma farda e combater, e nós compreendíamos as razões.

Pois o Kebá não tinha dinheiro para pagar o imposto de palhota, ou do pé descalço, como também se chamava, e foi detido. Como castigo tinha de ir buscar todos os dias vários barris de água à fonte Frondosa para uso na casa do Chefe de Posto e regar o seu frondoso jardim.

Quando os militares descobriram a situação em que se encontrava o Kebá, alguns, entre os quais, este que vos está a relatar a situação, pegaram na G3 e cercaram a casa do homem. Valeu-lhe o Eduardo Moutinho Santos, então a comandar a cmpanhia,  que, alertado, apareceu e acalmou as hostes, mas o Chefe de Posto seguiu no dia seguinte sob prisão para Bissau, por ordem do Governador Spínola, e Empada só ganhou, pois, o capitão foi nomeado Chefe de Posto e as mudanças para melhor bem-estar da população, começaram a notar-se.

Mas voltemos à Fonte Frondosa. Manhã cedo, as bajudas, recolhiam as roupas dos militares e dirigiam-se para a fonte, o tal lugar sagrado para “matar” todas as sedes. Os nossos rapazes, sentavam-se no alto da pequena colina com todos os sentidos em alerta máximo. As bajudas desvencilhavam-se das roupas que as impediam de se meterem na água, deixando o “deusificado” corpo à vista, para mergulharem as camisas, as cuecas, as calças, etc. e as baterem bem batidas nas rochas circundantes e assim tentarem lavar as nossas roupas tão carregadas de suor e outros detritos acumulados pelo uso. Apenas uma pequena tarja lhe cobria as partes púdicas. 

Entretinham-se numa “algarviada” que os mirones não entendiam, mas sentiam ser de gozo, pela aproximação e desejos libidinosos bem expressos nos olhares, posicionamento do corpo, e expressões verbais. Os olhos eram o espelho do estado de espírito e brilhavam ao apreciar o fruto proibido imanado daqueles jovens corpos de tez escura, bem torneados e de beleza infinita, e sonhavam… se sonhavam! Alguns ousavam aproximar-se para tentar um toque de magia, um apalpão, mas recebiam um sonoro “nega”, “nega memo” e eram afastados ao empurrão, para gáudio dos camaradas.

A água para o quartel era retirada da Fonte Frondosa e, eu mesmo, e tantos outros, antes de sairmos para o mato, sempre que havia tempo, íamos lá encher o cantil de água bem fresquinha. Para matar a sede, quantas vezes, me debrucei sobre a bica para aparar a água na concha da mão e a saborear com deleite!

Passados quarenta e um anos (2011), eu, os meus dois filhos e o Capitão voltamos à procura da água da Fonte Frondosa para matar a sede, reviver e recontar aos vindouros as nossas histórias, e que belas histórias!

Os tempo de guerra também tem bons momentos de bem-estar e alegria que são (ou devem ser) recordados com saudade e alegria.

Já não encontramos o Kebá, tinha falecido em 2007, mas ainda conseguimos dar um abraço ao Braima, com cerca de 90 anos. Era o último dos combatentes locais, e enfermeiro, do tempo da CCaç 2381 (1968/70).

José Teixeira (**)

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Guiné 61/74 - P24878: Parabéns a você (2226): Abel Moreira dos Santos, ex-Soldado At da CART 1742 (Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69) e António (Tony) Levezinho, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)


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Nota do editor

Último poste da série de 23 de Novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24873: Parabéns a você (2225): José Saúde, ex-Fur Mil Op Especiais da CCS / BART 6523/73 (Nova Lamego, 1973/74)

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24877: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (18): HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: Capítulo II - Actividades no TO da Guiné - Julho de 1970 - Acção "Bacará"



"A MINHA IDA À GUERRA"

18 - HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: CAPÍTULO II - ACTIVIDADES NO TO DA GUINÉ

JULHO DE 1970 - ACÇÃO BACARÁ

João Moreira




O MEU COMENTÁRIO AO DIA 13 DE JULHO DE 1970

ACÇÃO BACARÁ

13/JUL/1970


Perto do objectivo, o 1.º grupo de combate ficou emboscado para proteger a retirada do 4.º grupo de combate, que foi fazer o golpe de mão.

Chegados ao objectivo, entramos nas moranças e capturamos os elementos da população e apanhamos tudo o que pudesse ter interesse ou fosse suspeito.
Eu não entrei nas moranças. Fiquei com um grupo de soldados para guardar os elementos capturados nas moranças.
Contei 39 elementos, entre homens, mulheres, jovens e crianças mas admito que tenha ficado algum por contar.

Saímos rapidamente, porque tínhamos a informação de haver um bigrupo naquela zona.

Era uma zona de bolanhas, mas nós regressamos pela orla da mata para não sermos facilmente detectados e estarmos mais protegidos. O furriel Justino comandava a última secção composta por uma esquadra nossa e alguns milícias. Algumas vezes o furriel Justino pediu para pararmos, porque ouvia barulhos suspeitos e queria certificar-se do que se tratava.

Neste trajecto, ouvimos o ruído de um helicóptero que, pela direcção seguida, devia dirigir-se para o Olossato.

Como esta acção previa a presença de 1 heli-canhão em alerta no Olossato, o pessoal ficou mais tranquilo, pois podia socorrer-nos no caso de sermos atacados. Só que vinha atrasado, isto é, depois do golpe de mão feito.

Após 3 ou 4 paragens por causa do barulho que se ouvia atrás de nós, fomos surpreendidos por um grupo de guerrilheiros que corriam pela berma da bolanha, ao nosso lado, tentando alcançar-nos e atacar-nos.
Como seguíamos por dentro da mata, não fomos detectados. O IN estava ao nosso lado, a cerca de 20/30 metros de nós.

Avisei o capitão que deu ordem de fazer fogo e os "turras" de prováveis atacantes passaram atacados.
Os guerrilheiros responderam com RPG's e armas ligeiras.
O capitão enquanto dava ordens, ia lançando granadas de mão e o IN atirava as roquetadas para as palmeiras atrás do capitão.
Disse-lhe para sair dali e se proteger, mas ele calmamente disse para não me preocupar com ele e para nós nos protegermos.

Como é "habitual" nestas situações o rádio RACAL não funcionou - quando havia contactos com o PAIGC os rádios raramente funcionavam. Penso que o problema não era dos rádios, mas sim dos nervos/medo dos operadores de rádio.
Valeu-nos o "banana" ou AVP1 que contactou o Olossato.

No quartel, o alferes Pimentel ao ouvir as armas e pela direcção donde vinham deduziu que era a nossa Companhia a "embrulhar".
Pegou na carta/mapa da zona onde tínhamos ido e correu para a pista, onde o heli-canhão tinha acabado de pousar.
Deu a carta/mapa e as coordenadas ao piloto e lá foi o heli ao nosso encontro.

O heli voando baixo, aproximou-se do local e pediu a nossa posição e a posição do IN.
Após a nossa resposta, disse que já nos tinha visto e ia atacar o grupo inimigo.
As munições que eram explosivas e incendiárias provocaram a fuga do IN.

Depois de fazer o reconhecimento da zona, disse que podíamos regressar pelas bolanhas, porque ia acompanhar-nos, voando por cima do nosso grupo, e evitando a volta muito maior e mais cansativa, se fosse feita pela mata.

Durante o contacto fugiram alguns capturados, pelo que só chegaram 37 ao Olossato - MESMO ASSIM, MISSÃO COM MUITO BONS RESULTADOS.

Quando o grupo de combate que fez a protecção chegou ao quartel, alguns dos seus elementos disseram aos soldados do meu grupo de combate que, quando estavam emboscados, viram passar o grupo IN mas não o interceptaram.

Como o alferes, comandante do meu grupo, não tomou posição falei no caso ao capitão, que após "averiguações" disse-me que tinha havido "desinformação", porque o comandante do outro grupo negou terem visto o IN.

Até aceito que o outro grupo de combate tenha evitado o contacto - SÓ TÍNHAMOS 3 MESES DE COMISSÃO - mas não aceito que pelo "rádio" não nos tenha informado que "PASSOU" ou "PARECEU QUE PASSOU" um grupo IN.
Com este aviso já não seríamos surpreendidos.
Felizmente não fomos surpreendidos, porque detectamos a aproximação do grupo IN.

Curiosamente, passados 50 anos, um elemento desse grupo confirmou terem visto os "turras" a passar. MAS NÃO OS ATACARAM NEM NOS INFORMARAM QUE ESTÁVAMOS A SER PERSEGUIDOS.
E ASSIM SE FAZIA A NOSSA GUERRA.
JÁ DIZ O DITADO: "QUEM TEM CU, TEM MEDO"

Furriel Moreira junto ao heli-canhão que actuou nesta Acção BACARÁ
Furriel Moreira com o Capelão Baptista, do Batalhão de Bissorã. Era um "velho" conhecido, pois fora Capelão Auxiliar na Igreja de Santa Marinha a que pertence o lugar do Candal, onde nasci e vivo.
O Padre Baptista deslocava-se periodicamente ao Candal para acompanhar a JOC de Santa Marinha nos intercâmbios com a JOC do Candal razão pela qual não éramos desconhecidos.

(continua)

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Nota do editor

Poste anterior de 16 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24854: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (17): HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: Capítulo II - Actividades no TO da Guiné - Operação "Jaguar Vermelho", de 26 de Maio a 8 de Junho de 1970 na região do Morés

Guiné 61/74 - P24876: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte VII: Parte VII - Estar debaixo de fogo não é coisa que se deseja a ninguém, muito menos em Cobumba, na região de Tombali


Foto nº 1 > Levámos quatro viaturas para a Cobumba, no sul da Guiné, à beira do rio Cumbijã... Foram todas destruídas por minas. A primeira Berliet era conduzida pelo condutor José da Silva, apesar de tudo, uma vez mais a “sorte esteve com ele” foi a segunda mina que viaturas por si conduzidas acionaram... Desta vez seguia acompanhado por um cozinheiro de que já não me lembro o nome, foram os dois projetados nas alturas mas ficaram” apenas” com o susto que não terá sido nada pequeno: iam levar o café ao pessoal de dois pelotões que estavam instalados a cerca de quatrocentos metros do local onde ficava a improvisada cozinha.


Foto nº 2 > A segunda Berliet era conduzida pelo furriel mecânico, tinha acabado de chegar de férias naquela tarde vindo da Metrópole: também “apenas” sofreu o susto. Talvez aí, tenha percebido porque em Mansambo queríamos tanto colocar sacos de terra, ou de areia, debaixo do assento e ele não nunca deixou.


Foto nº 3 > A terceira viatura era um Unimog 404, não me recordo quem era o condutor, sei que saiu ileso do meio dos destroços, mas as consequências aqui foram terríveis, houve feridos um dos quais muito grave o popular "periquito". Ao fundo, podem ver-se algumas das casas que a nossa companhia andava a construir para a população (reordenamento).

A quarta viatura que acionou uma mina.   não aparece aqui: era também um Unimog 404, mas ainda foi possível ser recuperada e voltar ao serviço.

Guiné > Região de Tombali > Sector S4 (Cadique) > Cobumba > CART 3493 (1972/74)

Fotos (e legendas): © António Eduardo Ferreira (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

1. A história da unidade (BART 3873, Bambadinca, 1972/74), a que pertencia a CART 3493,  dá-nos uma pálida ideia dos que foram os oito meses desta subunidade em Cobumba, sector S4 (Cadique)... Daí a importància de testemunhos pessoais como estes, do António Eduardo Ferreira(*).

A ocupação de Chugué e Cobumba foi defimida pelo Directva nº  13/73 de 30 de março.A situação nas NT, em 1 de julho de 1973, no subsector de Cobumba / sector S4 (BCAÇ 451472, Cadique: abrangia os subsectores de  Bedanda, Caboxanque, Cadique, Cafal, Cabedú, Chugué, Cobumba. Jemberém) era a seguinte:

  • CART 3493
  • 2 Pel/2ª /BAC 4610/72
  • 1 Sec Pel Can S/R 3079


A CART 3493  será rendida em Cobumba em 25nov73 pela CCaç 4945/73 (mobilizada pelo BII 19, Funchal)


2. Série com pequenos excertos dos melhores postes do António Eduardo Jerónimo Ferreira (1950-2023) (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493 / BART 3873, Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) (*).

O nosso camarada era natural de Moleanos, Alcobaça. Na tropa e na guerra era mais conhecido por Jerónimo. Lutou quase 20 anos, desde 2004, contra um cancro. Criou o blogue Molianos, viajando no tempo, em data difícil de precisar (c. 2013/2014).


Parte VII - Estar debaixo de fogo não é coisa que se deseja a ninguém, muito menos em Cobumba


(...) Ao chegar (a Cobumba, vindo de férias), ainda no ar, tive oportunidade de ver que muito havia mudado durante o tempo que eu estivera fora, as muitas árvores que ali existiam tinham sido quase todas derrubadas, muita terra mexida, abrigos subterrâneos que começavam a ser feitos, tudo estava diferente. (**)

Ao chegar a terra era grande a curiosidade que tinha em saber o que teria por ali acontecido durante a minha ausência, e não era menor a vontade que os meus camaradas tinham de me pôr ao corrente de tudo que tinha mudado, e que não tinha sido pouco.

E o que tinha acontecido durante a minha ausência, é que a acalmia dos primeiros dias tinha sido quebrada com enorme violência, quando certo dia pela madrugada o inimigo se infiltrou dentro do triângulo que era formado pela disposição das nossas forças no terreno, onde existiam muitas árvores que lhe serviram de abrigo, e estando eles no meio das nossas tropas e muito perto, a poucos metros, foi necessário ter muito cuidado em particular das nossas armas pesadas para não sermos nós a bombardear as nossas próprias forças. 

Terá durado esse ataque cerca de duas horas junto ao “arame” que nessa altura ainda não havia. 

Mas como em tudo na vida,  também na guerra havia momentos de sorte, e apesar da violência do ataque, dos nossos apenas um militar que estava na nossa Companhia, acidentalmente ficou ligeiramente ferido (pertencia à Engenharia, sediada em Bissau e tinha ido acompanhar material); do lado do inimigo segundo informações posteriores, terão tido várias baixas. 

Isto de estar tanto tempo debaixo de fogo não é coisa que se deseje a ninguém, só quem por lá passou pode fazer ideia do que isso era.

Durante as primeiras semanas foram levantadas várias minas próximo do sitio onde passámos a primeira noite, para sorte nossa estavam uns metros mais ao lado, talvez o sitio onde o inimigo pensasse que íamos acampar. O furriel que levantou essas minas assim como outras que entretanto vieram a ser colocadas, viria a ser uma das baixas da nossa Companhia, vitima dum acidente estúpido como são quase todos os acidentes.

Nessa altura ainda as valas eram de certo modo improvisadas, e abrigos só os destinados às comunicações, era pouca a luz eléctrica que havia, fornecida por um pequeno gerador que quase não iluminava a zona circundante de um dos três sítios em que estávamos sediados. 

Foi a partir desse ataque quase corpo a corpo que tudo se alterou, as árvores que tinham servido de abrigo ao inimigo foram quase todas deitadas abaixo, valas mais organizadas foram feitas, todos passámos a dormir em abrigos que tivemos de ser nós a fazer.

Para que o buraco a abrir tivesse mais segurança tinha de ser pequeno, assim juntaram-se dois ou três e cavavam até que coubessem de pé, depois era coberto com troncos de palmeiras e com cerca de um metro de terra por cima. 

Eu e outro condutor, o meu amigo Cruz, abrimos o nosso abrigo, se não tem sido o incidente do primeiro dia certamente também o Cabral faria parte do nosso grupo de abrigo. 

Durante a abertura sofri um ataque, não de fogo inimigo mas sim de abelhas, presumo que estivessem na terra entretanto remexida, pois apenas as vi quando começaram a espalhar sobre mim ferrões sem dó nem piedade. A minha primeira reacção foi meter-me debaixo de um chuveiro improvisado que nós tínhamos, três barris em cima de um cajueiro, mas elas não me deixavam, foi então que comecei a correr pelo meio do capim e só assim me vi livre delas.

Mas a tormenta não terminou ai, é que a tenda que servia de enfermaria ficou cheia de abelhas, e o enfermeiro que estava por perto enquanto viu por ali uma abelha, não me quis ir tratar, com muita sorte minha não sou alérgico às ferroadas

Quando as abelhas abalaram, lá veio o enfermeiro que me retirou cerca de trinta ferrões do rosto, dos quais sete estavam numa orelha, para além das dores que senti que foram muitas, não provocaram qualquer inflamação, mesmo a esta distância no tempo, ainda não esqueci a actuação menos própria do enfermeiro, coisa rara entre camaradas, mas mesmo em situações de guerra há sempre alguém que...

Depois de feito o abrigo era tempo de nos organizarmos: aproveitando alguma madeira que por lá havia,  fizemos cada um a sua cama onde colocamos o colchão de campanha que tinha sido distribuído a todos os elementos da Companhia, só que o meu durante o tempo em que dormi no chão rompeu dois dos cinco canos de ar que o compunham. A almofada era independente, como não podia dormir assim, foi necessário vazar os três que ainda tinham ar e ficar só com a almofada. 

No sitio do colchão estava uma manta dobrada, e assim tive de dormir durante os quase nove meses que lá estivemos, dentro do abrigo tínhamos como companhia a G3,  os cinco carregadores, e mais um cunhete com mil munições.

O trabalho dos condutores era quase nada, tínhamos pouco mais de um quilómetro de picada para percorrer desde as nossas instalações até ao rio, à medida que o tempo ia passando também as viaturas que tínhamos eram cada vez menos, a primeira a ficar inutilizada definitivamente foi uma Berliet. 

A comida era feita para toda a Companhia no mesmo local e depois transportada para o sitio onde estavam os outros elementos. Certo dia seguiam na viatura o condutor e um cozinheiro levar o café, era madrugada, porque estava previsto uma saída das nossas tropas, o que não viria a acontecer, porque uma mina rebentou fazendo ir pelos ares a viatura e os dois ocupantes, e claro o pequeno almoço que eles iam levar.

Mas uma vez mais a sorte esteve connosco, perdeu-se a viatura mas os ocupantes sofreram apenas o susto e já não foi pouco, o condutor foi o mesmo que em Mansambo conduzia a viatura que accionou a primeira mina das várias com que fomos contemplados, onde o furriel Ferreira perdeu um pé, - de seu nome José de Sousa

A viatura que tinha accionado a primeira mina em Cobumba, se da primeira vez foi possível ser recuperada, à segunda já não; ficou completamente destruída, ao accionar mais uma mina dentro do arame junto a casas que andávamos a construir para a população. Por essa altura já o PAIGC possuía os mísseis Strela com que tinha abatido várias aeronaves, era a terceira mina a ser accionada em Cobumba e também a que fez mais estragos, para além da perda da viatura houve três feridos graves. 

Como de costume foi pedida uma evacuação urgente via rádio, ficando nós à espera que não demorasse muito tempo, como normalmente acontecia, mas com a introdução dos Strela na guerra tudo se alterou; os nossos camaradas feridos estiveram no local onde supostamente o helicóptero os ia buscar, cerca de três horas

A mina rebentou por volta das duas horas da tarde, já passava das cinco quando de Bissau informaram que a evacuação tinha que ser feita em Cufar, depois de toda aquela espera foi necessário organizar uma coluna via rio Cumbijã com os nossos três barcos, e com o apoio dos fuzileiros que estavam próximo de nós, no Chugué

Era já noite quando a evacuação se efectuou, não de helicóptero como era costume, mas sim de outra aeronave que suponho ter sido um Nordatlas.

Era já tarde quando o pessoal e barcos utilizados na evacuação regressaram, se o nosso moral era já muito baixo, a partir dai ficou de rastos, todos pensávamos que um de nós poderia ser a próxima vitima do novo rumo que a guerra tinha tomado, necessitar de ser evacuado e não ser possível em tempo útil.

Das quatro viaturas que tínhamos, duas já estavam inutilizadas, mais ou menos de oito em oito dias estávamos de serviço de condução, o resto dos dias era esperar que o tempo passasse, quase sempre por perto dos abrigos. 

Todas as noites tínhamos de fazer reforço, o primeiro turno era apenas feito por um militar, os outros eram feitos a dois, a zona era tão má que não podíamos facilitar em nada, como éramos poucos, até os furriéis tinham de fazer reforços, e, contrariamente ao que estavam habituados, ir como nós à cozinha buscar a comida, pois ali tudo era diferente.

A razão que nos levava a estar sempre perto dos abrigos é que as flagelações à distância de quando em vez aconteciam, e a qualquer hora, mas mais grave ainda é que eram muitos os aquartelamentos ou acampamentos na zona, e no inicio dos bombardeamentos não sabíamos a quem se destinavam, só depois de começarem os rebentamentos, e de informações via rádio ficávamos a saber quem eram os destinatários.

Em Cobumba quase todos usávamos chinelos de plástico, quando começava um ataque e tínhamos de fugir para os abrigos, perdíamos logo os chinelos. A correr sem ser a medo nunca os perdíamos. Era mais um passatempo que tínhamos, depois da “festa” acabar havia que procurar onde estariam os chinelos.

Os ataques do IN por vezes tinham também como objectivo desmoralizar as nossas tropas, pois chegavam a disparar duas ou três vezes o RPG, uma ou duas morteiradas e depois paravam. De realçar que a zona onde nos encontrávamos era terra do PAIGC. Algumas vezes nem sequer respondíamos às provocações ou respondíamos na mesma medida.

Certo dia apareceu uma mulher com uma galinha para vender, coisa rara naquelas paragens, pois por ali o povo não estava connosco. Passado este tempo chego a pensar se a galinha não terá sido um pretexto para fazer algum reconhecimento atendendo ao que a seguir se passou.

Alguns de nós condutores compramos a galinha, e claro, fomos logo tratar de a pôr a jeito de ir para a frigideira. Ainda que funcionasse poucas vezes, tínhamos uma máquina a petróleo que o condutor Cruz logo se prontificou para pôr a trabalhar para fritar a galinha. 

Estava a começar a aquecer o azeite, começam a cair algumas morteiradas, há que deixar a galinha e fugir para o abrigo, mas o fogo foi pouco e sem consequências. O Cruz volta ao trabalho, estava a pôr os primeiros pedaços na frigideira volta a haver mais fogo, uma vez mais tudo para os abrigos. O Cruz começava a ficar impaciente, o fogo inimigo voltou a ser pouco, as nossas armas pesadas respondiam de igual forma, esperamos mais algum tempo tudo se calou e nós pensamos que para aquele dia já chegava,mas bem nos enganamos. 

O cozinheiro voltou ao serviço convencido que desta é que era, mal começa a pôr a máquina a trabalhar nova flagelação, desta vez com um míssil à mistura e mais umas poucas morteiradas, e como sempre todos a fugir para os abrigos, daquela vez as nossa artilharia creio que nem respondeu ao fogo do IN. 

O Cruz bastante aborrecido com a situação decidiu, agora ataquem mais ou não, eu é que não saio daqui enquanto não fritar a galinha! E desta vez pararam mesmo, mas só naquele dia, que a festa haveria de continuar quando eles entendessem.

Por essa altura ainda tínhamos duas viaturas operacionais. Certo dia à tardinha o furriel mecânico, acabado de chegar de férias da Metrópole, foi dar uma voltinha com uma Berliet. Andou cerca de quinhentos metros, estava uma mina na picada que o fez ir pelos ares, mas também desta vez com sorte, a viatura ficou destruída mas ele apanhou apenas um grande susto, o que não foi nada que ele não merecesse. 

Em Mansambo, quando tínhamos muitas viaturas e percorríamos muitos quilómetros, víamos condutores de outras Companhias que debaixo e em volta dos bancos traziam vários sacos com areia, tendo em vista proteger um pouco o possível impacto do rebentamento das minas a que estávamos sempre sujeitos, mais que não fosse do ponto de vista psicológico protegia-nos. Pois o nosso furriel mecânico não autorizava que puséssemos esses sacos!...

A partir dessa altura ficamos apenas com uma viatura operacional, o serviço dos condutores era cada vez menos, em boa verdade também não podíamos ser sujeitos a grandes esforços físicos, pois a alimentação a que estávamos sujeitos não permitia que tal acontecesse. 

À medida que o tempo passava mais difícil se tornava o abastecimento de géneros alimentares. Até parece mentira mas não é, houve um dia em que o almoço foi arroz cozido acompanhado com marmelada, e no local que servia de cantina, não havia nada que pudéssemos comprar.

Não havia bicho que chegasse ao arame que escapasse. Certo dia, um que os nativos diziam ser gato foi atraído à luz durante a noite tendo sido abatido, mais parecia ser um cão na fisionomia, mas pouco importou se era cão ou gato, o destino foi ser assado com batatas no forno dos padeiros. 

De outra vez foram os nativos que mataram uma cobra muito grande para lhe tirarem a pele, mas logo houve alguém que achou por bem não desperdiçar tal manjar, e também a cobra foi parar ao forno. Eu não consegui comer mas lá que o petisco parecia estar bom isso parecia. 

Outro dia foi a vez de esquilo guisado com batatas, dessa vez também eu quis provar, ainda pus um bocado na boca mas não o consegui comer.

A pouco mais de um mês de abandonarmos Cobumba, num dia em que eu estava de condutor de serviço com a única viatura que tínhamos operacional, os picadores como era costume fizeram a picagem do trajecto que eu depois teria de percorrer onde detectaram uma potente mina anti-carro, que foi levantada pelo Furriel Trindade o homem encarregado de fazer esse trabalho.

 Ao contrário de outras que foram accionadas no local, essa foi levada para a nossa arrecadação onde estava muito material relacionado com a construção, enxadas, picaretas, pregos e outro material, parte dessa arrecadação servia também de depósito de géneros alimentares, onde se encontravam umas dezenas de sacos de farinha para cozer pão. No que à alimentação diz respeito o pão foi a única coisa sempre boa.

Uma tarde, passados três dias após o levantamento da mina, estavam três militares junto do local onde ela se encontrava. Nunca ninguém soube o que se terá passado, o certo é que ouvimos um estrondo enorme, nos primeiros instantes chegámos a pensar que teria caído por ali algum foguetão, mas não, depressa encontramos a causa, a mina que tinha sido levantada dias antes, tinha explodido e feito desaparecer as instalações, ferindo gravemente os três homens que lá se encontravam, que viriam a ser evacuados para o Hospital Militar em Bissau.

Na manhã do dia seguinte recebemos a noticia que dois tinham falecido, o Furriel Galeano e um soldado do 2.º Pelotão cujo nome já não me recordo, o outro esteve cerca de um mês no hospital, vindo ainda a tempo de regressar à Companhia que passados poucos dias regressava a Bissau. 

Foi terrível o que aconteceu, mas podia ter sido ainda pior, do lado que servia de depósito de géneros, separados apenas por umas chapas, estavam mais quatro homens a jogar as cartas, tiveram a sorte de estar encostados a uma pilha de sacos cheios de farinha, que amorteceu o impacto e só por isso a tragédia não foi maior.

Faltavam poucos dias para sairmos de Cobumba sofremos mais um violento ataque que durou cerca de trinta minutos, que pareceram horas, em que o inimigo utilizou várias armas: o morteiro 82, o canhão sem-recuo, o RPG 7 entre outras, mas uma vez mais a sorte esteve connosco, apesar da precisão do bombardeamento pois caíram várias granadas dentro do aquartelamento, e junto há picada que só por sorte ainda não estávamos a percorrer. 

Apenas tivemos dois feridos ligeiros, vitimas do rebentamento de uma granada de RPG7, eram os apontadores do nosso canhão sem-recuo que ao introduzirem a primeira granada ficaram logo inoperacionais. Houve uma vitima mortal, uma mulher da população.

Nesse dia também eu estava de serviço de condução, já tinha tomado banho, tomava banho normalmente três vezes ao dia , havia pessoal nosso que tinha ido a Cufar, como de costume via rio Cumbijã, e nós tínhamos de os ir levar e buscar ao rio assim como aos barcos. Era fim da tarde, estávamos no cais à espera que eles chegassem, ao mesmo tempo que a aviação bombardeava não muito longe de nós, ainda os Fiat iam a caminho de Bissau, já estávamos a ser bombardeados, o que levou alguns a pensar que seria ainda a nossa aviação a bombardear, mas não, era mesmo Cobumba que estava a ser atacada, o rio naquela altura estava com a maré baixa cerca de três ou quatro metros, muitos de nós tentamos abrir buracos no lodo deixado pelo baixar da maré para nos protegermos, se é que isso ajudava alguma coisa, mas era o que nos restava fazer, mas as granadas mais próximas caíram a cerca de cem metros de nós.

Passados alguns dias chegou a Companhia que nos foi render a Cobumba. Durante o tempo em que estivemos com os “piras”, cerca de dez dias, fomos atacados uma vez, para eles era o baptismo de fogo, mas também desta vez apesar de nos mandarem alguns foguetões à mistura não nos causaram qualquer dano, a não ser algumas pisadelas pois os abrigos onde nos abrigávamos, durante este ataque ficaram com o dobro da lotação. 

(Seleção / revisão e fixação de texto / negritos: LG)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 22 de novembro de  2023 > Guiné 61/74 - P24871: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte VI: Cobumba... onde é que isso fica?