Parte da sua vida, desde então, também está escrita no nosso blogue… Por exemplo, foi o cofundador da primeira tabanca da Tabanca Grande, a Tabanca Pequena de Matosinhos, um caso notável, pela sua originalidade e longevidade, de tertúlia de antigos combatentes… Fez parte da ONGD Tabanca Pequena, responsável por várias iniciativas de ação solidária na Guiné-Bissau, país que conhece muito bem das várias viagens que entretanto fez, desde 2005 (se não erro).
É autor de várias séries no nosso blogue, de que destaco, por serem das mais notáveis:
(i) “Estórias do Zé Teixeira”: tem 60 publicadas no blogue, de dez 2005 a set 2022;
(ii) “O meu diário”: tem 2 dezenas de publicações entre janeiro e março de 2006;
(iii) “Crónicas de uma viagem à Guiné-Bissau: de 30 de abril a 12 de maio de 2013: reencontros com o passado (José Teixeira)”: publicou 13 crónicas, entre maio e agosto de 2013.
Tem, além disso, inúmera colaboração avulsa, entre prosa, poesia e
fotografia, noutras séries como “Álbum fotográfico”, “Ser solidário”, “Convívios”, “Blogpoesia”, “Fotos à procura de… uma legenda”,“(Ex)citações”, "(In)citações”, “Os nossos enfermeiros”, etc., etc.
escrevi em 2022 no prefácio ao seu anterior livro, de poesia, “Palavras (e)levas o vento”. Deixem-me citá-las porque continuam a ser justas, pertinentes e atuais:
“E desde logo (isto é, desde que o conheci por altura do Natal de 2005, na Madalena, Vila Nova de Gaia) o defini como um homem de palavra e da palavra: afável, comunicativo, talentoso, mas também coerente, solidário e generoso. E tem uma qualidade que não abunda por aí, nos tempos que correm, de feroz individualismo e competição: a sensibilidade sociocultural, a abertura aos outros que são diferentes, quer sejam os sem-abrigo a quem vê como irmãos, quer sejam os fulas, muçulmanos, da Guiné-Bissau com quem conviveu durante a guerra colonial”…
E também disse, sem qualquer favor ou lisonja, que ele era uma vocação literária “tardia” mas já “amadurecida” e até “consolidada”.
Este último livro (a que me cabe o prazer e a honra de apresentar) comprova-o: o Zé é um talentoso contador de histórias e criador de personagens, para além de cronista. São sobretudo os seus microcontos que me encantam. Mas também o registo mais intimista do seu diário…
Recordo-me de ter escrito, há 11 anos atrás, o seguinte a propósito das páginas do seu diário da Guiné:
(…) “São apontamentos que o Zé foi escrevendo num caderninho, durante a sua comissão na Guiné (1968/70). É um notável documento humano onde, para além de dados factuais (colunas, operações, baixas, topónimos...), também vêm ao de cima as dúvidas, as contradições e a angústia do português, do homem, e do cristão (praticante que ele sempre foi). Nesse Agosto de 1968, em Aldeia Formosa (hoje, Quebo), o Zé, enfermeiro, escreve, dilacerado pelo absurdo daquela guerra: 'Ainda não dei um tiro. A minha missão é curar. Jamais darei um tiro nesta guerra. Matar não, nunca. Vou tentar passar esta guerra sem fogo ' " (...).
O artesão da palavra, como eu gosto de o definir, não é de agora, mas é ainda mais visível neste seu último livro, “O Universo que Habita em Nós”, que tem como subtítulo: “Estórias com vida”.
Capa do livro do José Teixeira, "O universo que habita em nós". Lisboa: Astrolábio Edições, 2023, 230 pp. (Prefácio de Júlio Macahdo Vaz) (Disponível na Livraria Atlântico: preço de mercado: 17 € (em papel) ou 5 €(ebook); pode também ser comprado "on line" na FNAC, ou pedido diretamente ao autor: Jose Teixeira: jteixei@msn.com )
(i) do princípio ao fim, o narrador (sempre ou quase sempre na primeira pessoa do singular) está implicado no enredo: diremos que há um recurso, em geral bem conseguido, à técnica da observação participante, seja quando se fala das vivências da infância e depois da guerra, seja das histórias dos que não tem história;
(ii) está dividido em duas partes (Zé, falta-lhe um índice, lapso que podes corrigir na 2ª edição…): “este meu mundo escondido” e “esta minha cidade escondida”;
(iii) na introdução (pp. 11/13), o autor explicita e fundamenta muito bem esta dicotomia cidade aberta / cidade escondida: há um “universo recôndito que está dentro de nós” e que “é a base da construção da nossa cidade”, que deve ser (ou queremos que seja) “bela, acolhedora e cativante” (sic), projeto em que cada um de nós tem de ser um “operário ativo” (pág. 12);
(iv) a “cidade escondida” é como a outra face da lua”, a que não vemos ou não queremos ver, a dos homens e mulheres, social e espacialmente discriminados e segregados, e a que pomos o epíteto (estigmatizante) de prostitutas, alcoólicos, drogados, marginais, sem-abrigo, loucos, indigentes…
(v) podia haver amargura, azedume, revolta, ajustes de contas com o passado, mas não: há ali muito amor, ternura, carinho, poesia, ingenuidade, cumplicidade, serenidade, empatia, compaixão… no regresso ao passado, duro, da infância, mesmo quando falta uma importante peça do puzzle da nossa identidade, a figura do pai… ou do seu substituto, ou quando a hipocrisia social diaboliza a figura da mãe solteira;
(vi) o autor recorre a poetas para, num verso ou num pensamento sincrético, nos dar uma chave de leitura para a suas histórias ou personagens. Por exemplo, “A minha mãe (…) era o vulto que à noite se recorta” (Vasco Graça Moura); “Faz que cada hora da tua vida seja bela. O mínimo gesto é uma lembrança futura” (Claude Aveline”); ou “O mais terrível dos sentimentos é o sentimento de ter a esperança perdida” (Frederico Garcia Lorca); noutros casos, recorre ao exemplo de vida de amigos, que admirava, como o saudoso luso-guineense Carlos Schwarz (Pepito): “Desistir é perder, recomeçar é ganhar”;
(vii) algumas histórias podem ser pícaras, mas sempre muito humanas e surpreendentes: por exemplo, “Madrinha de guerra” (pp.79/85), “As aventuras do Marcelino” (pp. 87/92) ou “Morreu, morreu o cobrador!” (pp.221/226);
(viii) o autor pertence a uma geração de portugueses, que apesar de tudo foi “win-win”, não se resignou com o destino que lhe coube, foi à luta, resistiu, sobreviveu, conseguiu apanhar o "elevador social", valorizar-se intelectual, social e profissionalmente… Ou em suma: sair do círculo da pobreza e da iniquidade em que nasceu, quando 120 em cada 1000 crianças morriam antes de chegar ao 1º ano de vida; a tuberculose era uma das principais causas de morte; a escola primária (e muito menos o liceu e a universidade) não era para todos; andava-se descalço ou de chancas; e uma criança com 6 anos guardava as ovelhas do “regedor”, em troca, à noite, de um caldo quente, um pedaço de broa e, em dias de festa, uma cabeça de sardinha frita…
Há histórias e personagens tocantes, neste livro, desde a Áurea, sem-abrigo, ao Senhor Augusto; ou o Salvador que transporta em si os fantasmas e os pesadelos de toda uma geração que fez a guerra colonial…
Como eu já disse, não há muito tempo, e a propósito da história do Senhor Augusto, que já tinha lido no blogue: sabemos que nos podem roubar ou tirar-nos tudo, a casa, a terra, o país… Não se escolhe onde se nasce, muito menos pai e mãe... Ninguém pode, todavia, roubar-nos a memória, incluindo as memórias da infância e as nossas geografias emocionais (Buba, Mampatá, Chamarra, Aldeia Formosa, etc.). E a infância tanto pode ser uma rua, como um bairro, ou uma quinta, um lugarejo, um lugar, uma aldeia, uma vila como um rosto ou um estória...
Em “O universo que nos habita”, estão lá muitas das memórias impressivas e das vivências mais fortes do autor, a começar pelas paisagens da infância, sofrida mas também maravilhada, que, mesmo que tenham desaparecido fisicamente, continuam a ter cores, sabores, cheiros, rostos, personagens, homens e bichos, dos casebres dos pobres, os "cabaneiros", às casas dos “fidalgos”; o duro, trágico, mas também às vezes pícaro, lado da guerra colonial na Guiné; e, por fim, um terceiro “filão”, não menos duro mas seguramente nobre, que é também uma missão, a de dar voz a quem não a tem.
Mas o Zé, além de marido, pai, avô, educador, cidadão, também, foi dirigente escuteiro, gerente bancário, andou nas lutas dos moradores das ilhas do Porto… Em suma, ele que é humilde, também pode dizer, com propriedade e sem bravata, como o grande Pablo Neruda: “Confesso que vivi”…E isso dá-lhe o direito e o dever de memória… A escrita é também uma das formas de explorar essa inesgotável matéria-prima com que (re)construímos o universo que nos habita …
Neste Natal, far-nos-á bem a todos ler e reler estas “estórias de vida”, por que são também “estórias com vida”, o mesmo é dizer de esperança.
Parabéns, Zé. E obrigado pelo teu talento, empatia e amizade.
Luís Graça, editor do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné
Foto (e legenda): © José Teixeira (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
por Luís Graça
Não, não és um amigo do tu cá tu lá,
Não somos amigos de infância, ai que pena,
Conhecidos só de um Natal da Madalena,
Passei pelo Saltinho e tu, em Mampatá.
Não foi preciso pedir a ninguém licença,
Entraste pela Tabanca Grande adentro,
Sem quereres ser do mundo o umbigo e o centro,
Para partir mantenhas e mostrar a crença,
Nessa grande camaradagem de outrora,
Temperada na Guiné da paz e da guerra,
Sempre pensando no dia de ir embora.
O nosso blogue foi traço de união,
E ponte com essa nossa segunda terra:
Mereces por isso o meu chicoração!
Lourinhã, 6 de fevereiro de 2021
Parabéns do Luís (e da Alice), em dia de anos (***)
(*) Vd. poste de 23 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24874: Agenda cultural (845): a minha festa, em Leça do Balio, no passado dia 18: o lançamento do meu livro "O Universo que habita em nós" (José Teixeiira, Matosinhos)