Guiné > Região de Gabu > Pirada > 1973 > "Foto tirada por mim, é de Pirada, mostra a distância entre o aquartelamento e o marco da fronteira [, com o Senegal]".
Foto (e legenda): © António Martins de Matos (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Guiné > Região de Gabu > Pirada > 2018 > Antiga casa do comerciante Mário Soares
Guiné-Bissau > Região de Gabu > Pirada > 2018 > Rua principal: à esquerda, a antiga casa do comerciante Mário Soares (que viveu na Guiné até novembro de 1975).
Guiné - Bissau > Região de Gabu > Pirada > 2018 > Antiga delegação local da PIDE/DGS, e hoje esquadra local da polícia de segurança pública.
Guiné - Bissau > Região de Gabu > Pirada > 2018 > Ruínas da casa do Sr. Palha, um antigo comerciante que ficou na memória local como um homem "muito bondoso". Do outro lado da rua, em frente, ficava a casa do Mário Soares.
Guiné - Bissau > Região de Gabu > Pirada > 2018 > Sem legenda
Guiné - Bissau > Região de Gabu > Pirada > 2018 > Sem legenda: parece ser a rua principal
Fotos: cortesia da página do Facebook Pirada Guiné-Bissau (2018). Editadas pelo Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.
Mário Soares > Pirada > 14/2/1974. Foto: António Rodrigues (2015) |
Conviveu com vários camaradas nossos, a começar pelos veteranos, o alf mil António [de Figueiredo] Pinto (BCAÇ 506 e 512, 1963/1965), o alf mil médico Luiz Goes (BCAÇ 506, Bafatá, 1963/65) (**), e Carlos Geraldes, em (CART 674, 1964/66), os dois últimos já falecidos. (O António Pinto vive em Vila do Conde.)
Dizia-se que o Mário Rodrigues Soares (, mais conhecido por Mário Soares,) tinha "relações privilegiadas" com os dois lados do conflito, as NT e o PAIGC. Dizia-se inclusive quer era um "agente duplo", trabalhando tanto para a PIDE/DGS como para o PAIGC.
Ora, não temos provas disso. Está em causa a sua honra (ou a sua memória, no caso de já ter morrido, como será muito provável).
Temos que ser cautelosos, não fazer juízos apressados (ou nem seqiuer fazer juizos, como mandam as boas regras do nosso blogue!) sobre o comportamento dos comerciantes portugueses e outros (libaneses, cabo-verdianos...) que ficaram no mato, apesar da guerra. Afinal, a guerra foi também uma oportunidade de negócio(s). O exército passou a ser o maior empregador no mato, para a população civil, das lavadeiras aos milícias, dos camionistas aos jovens em idade militar...
Em boa verdade, a tropa tinha tendência para pôr em causa a "lealdade" dos comerciantes, colocados numa posição difícil no interior da Guiné. O alf mil Carlos Geraldes que conviveu estreitamente com ele (e com a sua família), em Pirada, nos anos de 1964/66, escreveu que ele era era um "velha raposa" que, na situação em que se estava, sabia "estar de bem com Deus e o Diabo".
O seu nome é referido, de facto, com muita frequência nas cartas que o Carlos [Adrião] Geraldes (1941-2012), ex-alf mil da CART 676 (Bissau, Pirada, Bajocunda e Paunca, 1964/66) mandava para casa, e de que foi publicada uma seleção no nosso blogue, em 2009.
O Carlos Geraldes conheceu o Mário Rodrigues Soares quando a sua companhia, a CART 676, chegou a Pirada, em 15 de outubro de 1964, vinda de Bissau (via Bambadinca, Bafatá e Nova Lamego). Tornar-se-iam amigos. O Carlos passa a ser visita frequente da sua casa. E descreve-o logo nestes termos:
"É uma excelente pessoa. Muito gordo, de bigodinho à brasileiro, mas sempre de boa disposição, irradiando simpatia na forma franca e directa com que trata toda a gente branca ou preta." (Pirada, 15/10/1964).
E defendo-o das suspeitas de colaborar com o IN:
(...) "É o nosso Anjo da Guarda. Todos os dias manda cá o criado dele, o Demba, com uma garrafa de água filtrada e um termos com cubos de gelo, para que nunca nos falte água fresca no quarto. É um indivíduo que, mesmo aqui, longe da nossa civilização, não descura todos os pormenores de conforto para criar à sua volta um ambiente requintado e de um bom gosto que se julgaria inacreditável encontrar por estas paragens. (Pirada, 15 de outubro de 1964).
(...) "O M. Santos, como sempre, faz questão em receber-me para jantar, o que eu nem me atrevo a recusar, tão maravilhosos são os jantares em casa dele." (Pirada, 8 de fevereiro de 1965)
O Mário Soares era um "lisboeta de gema, recém incluído nestas guerras por ter tido dificuldades financeiras na Metrópole, segundo se consta" (Pirada, 8 de fevereiro de 1965). O Carlos também era lisboeta, se bem que levado, aos 4 anos, para Viana do Castelo onde pai trabalhou, como desenhador técnico, nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo.
Do Mário Soares sabe-se que tinha bons contactos no Senegal. E que desempenhou o seu papel na história da indepência da Guiné-Bissau. Foi através dele que o gabinete do Governador António Spínola consegiu chegar ao Leopoldo Senghor (como se depreende de um histórico depoimento do embaixador Nunes Barata, ex-alf mil, na altura, chefe de gabinete, a partir de maio de 1971, do general Spínola; certamente por lapso, chama-lhe António Mário Soares. (*).
Não sei o que é feito dele, o cometrciante de Pirada, é provável que já não esteja entre o número dos vivos. Em 1974 já teria cerca de 40 e tal anos, a avaliar pelas poucas fotos que temos com ele (*).
Sabemos, pelo Carlos Geraldes, que em 1964/65, era casado, tinha duas filhas e um filho e era natural de Lisboa. Luísa era o nome da esposa. A filha mais velha chamava-se Rosa, o filho do meio era José (e estudava em Lisboa) e a mais nova, Eva Lúcia, tinha nascido em 11/9/1957.
Segundo a historiadora Maria José Tístar ("A PIDE no Xadrez Africano: Conversas com o Inspector Fragoso Allas", Lisboa, Edições Coilibri, 2017), o comerciante Mário Soares, estabelecido em Pirada, na fronteira com o Senegal, seria um "agente duplo": informador da PIDE/DGS, e ao mesmo tempo informador do PAIGC.
Contrariamente ao Rodrigo Rendeiro, comerciante de Bambadinca (, também "grande amigo" da tropa local), que terá tido problemas logo a seguir ao 25 de Abril, pela sua ligação à PIDE/DGS, o Mário Soares decidiu ficar na Guiné independente... Mas rapidamente terá "caído em desgraça" e sido expulso do país, no tempo do Luís Cabral, um ano e picos depois, em novembro de 1975. (*)
Quanto à CART 676, foi mobilizada pelo RAP 2, partiu para o CTIG em 8/5/1964 e regressou a 27/4/1966. Esteve em Bissau, Pirada e Bissau. Comandante: cap art Álvaro Santos Carvalho Seco (, comandante da EPA - Escola Prática de Artilharia, enre 1978 e 1980).
2. Pergunta-se: alguém mais se lembra dele, do Mário Rodrigues Soares ? Alguém mais tem fotos e histórias dele ?
Estamos a reler as cartas do Carlos Geraldes, que nos ajudam a perceber melhor a personalidade e o comportamento deste comerciante português, "bon vivant", hospitaleiro, insinuante, amável, generoso, prestável, com um vasto capital de relações sociais, a nível interno e até externo (com as autoridades e os comerciantes do outro lado da fronteira, no Senegal).
Nesta II parte, continuamos a publicar excertos, selecionados, das cartas remetidas para a família, no período de abril a setembro de 1965, e em que o Carlos faz referências ao seu "amigo M. Santos [leia-se: Soares]"
3. Depoimento do nosso saudoso camarada Carlos [Adrião] Geraldes (1941-2012), ex-alf mil da CART 676 (Bissau, Pirada, Bajocunda e Paunca, 1964/66), que se tornou amigo do comerciante de Pirada, Mário Soares e visita frequente da sua casa...
Reprodução de excertos das suas cartas com referência explícitas ao Mário Soares [, ou M. Santos]:
O Capitão quer agora que a tabanca de Velingará Pinto Silva, a tal aldeia estratégica, passe a ser um novo destacamento e tinha mandado para lá o Alferes Carvalho passar 15 dias. Seguidamente calhava a vez ao alferes Cardoso (pois eu estava ainda de férias), mas como havia notícias de um possível ataque do IN àquela zona, este encheu-se tanto de medo que fez todos os possíveis para adiar a ida para lá, esperando que eu, quando chegasse, o substituísse. A cobardia evidenciada por ele foi de tal maneira irresponsável que o Capitão decidiu mesmo obrigá-lo a ir à força.
Sem mais hipóteses de fuga, acabou por ir suplicar ao M. Santos, quase de joelhos, para que o informasse com a máxima prioridade, sempre que soubesse de qualquer novidade sobre as intenções do IN que dissessem respeito àquela tabanca, por mais insignificantes que lhe pudessem parecer. Assim poderia precaver-se o melhor possível.
Até hoje e já lá está há 12 dias, só 5 é que os passou completamente com os soldados no próprio destacamento. No resto do tempo, [, o alferes Cardoso] vai sempre para Paunca almoçar e jantar (pois fica perto) e já adoeceu várias vezes para poder vir para Pirada ao médico. Tem procedido de maneira tão escandalosa que todos o ridicularizam.
Mas ainda fez mais! Na passada segunda-feira foi a Bafatá sem dar conhecimento a ninguém, falar com o Coronel, Comandante-Chefe desta zona, e, entre outras coisas, como para justificar o inusitado da visita, caluniou o M. Santos, acusando-o de ser um agente duplo. (...)
M. Santos, indignadíssimo, exigiu um imediato pedido de desculpas e um completo desmentido desta situação. Queria mesmo ir a Bafatá falar com o Coronel.
O Capitão mandou logo chamar o Cardoso para esclarecer tamanha borrada e justificar aquela ida a Bafatá sem a devida autorização.
Quando o Cardoso chegou fez-se de mil cores, ficando a tremer como varas verdes. Começando por negar tudo, acabou por confessar. Por ordem do Capitão foi de imediato pedir desculpas ao M. Santos.
Este disse-me que de facto ele tinha ido a sua casa, a chorar, pedindo-lhe que o perdoasse e que não dissesse nada para Bafatá, pois decerto acabaria por ser castigado e talvez impedido de ir de férias em Julho próximo. O M. Santos, coração de manteiga, lá se comoveu, mas não deixou de lhe pregar uma valente descompostura.
Acabada essa cena, o Cardoso regressou novamente à Messe, onde eu, o Carvalho o alferes médico Cláudio, que está cá para substituir o nosso que foi de férias, aguardávamos o desenrolar dos acontecimentos.
Sem querer dar o braço a torcer continuou a disparatar em todas as direcções, acusando inclusivamente, o nosso próprio médico (o ausente) de o ter denunciado ao M. Santos o que de facto até era uma tremenda mentira. Gerou-se logo ali uma acesa discussão e o Cláudio que, não é nada macio, queria mesmo obrigá-lo a ir novamente à presença do M. Santos para esclarecer definitivamente o assunto. E tanto insistiu que o Cardoso, atarantado, fez menção de se levantar e puxar pela pistola Parabelum que traz sempre à cinta, num arremedo ridículo de autoridade. Deu-se logo ali uma caricata cena de pancadaria. Eu, na confusão, consegui desarmar o Cardoso que se atirou para o chão, inanimado como um saco de batatas.
Quando o fizemos vir a si, deixou-se ficar, sentado no chão, a chorar como um bebé. Ao fim e ao cabo, ficámos todos com pena dele, pois ele apenas tinha conseguido demonstrar que não passava de um pobre diabo desorientado sem saber o que fazer para sobreviver a esta vida. Cláudio, o médico, acabou por lhe administrar uma injecção calmante que o fez ficar a dormir o resto do dia na cama do capitão.
Mais tarde veio pedir desculpas a todos, especialmente a mim, dizendo-me que eu era o seu primeiro e único amigo, que eu era a pessoa que melhor o compreendia, etc.
Jantámos em sossego e esquecemos completamente o caso. Hoje de manhã lá partiu novamente para o destacamento de Velingará Pinto Silva todo encolhido no assento do jeep.
Em parte, talvez seja eu, de facto, quem melhor o compreende e quem tenha a coragem de lhe dizer as coisas mais duras. Mas foi tudo causado pela sua infame e nevrótica cobardia que mexe com os nervos de todos nós.
Parece que, para se reabilitar, decidiu ficar no destacamento até às vésperas de embarcar para férias. Depois calha-me a mim ir para lá que, vai ser um consolo. (...)
No passado dia 28 de maio [de 1965], um numeroso grupo de guerrilheiros invadiu Pirada e atacou o quartel, sem no entanto causar qualquer baixa e causar danos de maior. Apenas queimou algumas palhotas da periferia, num acto intimidatório.
O ataque já era esperado, pois o M. Santos, como sempre, tinha sabido da coisa com alguma antecedência e correu a informar o Capitão que, prontamente se barricou no quartel e aguardou os acontecimentos, enviando, no entanto, um Pelotão (o do Carvalho) para os lados da bolanha com o intuito de montar uma emboscada ao grupo que viria fazer o ataque, mas como já era de noite, o sonso do Carvalho fez-se de mula e preferiu entrincheirar-se o melhor possível e deixar correr o marfim.
Nem chegou a ver o IN, que andou pela povoação completamente à vontade a fazer fogo para o quartel, abrigado até debaixo do alpendre da casa do M. Santos.
Foi por isso que achou que aquela tola tentativa do Cardoso de o intrigar junto do governo militar foi uma palermice de todo o tamanho que, além de ser perigosa para ele próprio, era também prejudicial para os interesses de todos nós, pois assim poderíamos vir a perder uma importante fonte de informação sobre os movimentos do IN na região. Mas como, com esta malta da tropa, nunca se sabe, achou que evidentemente o melhor seria mostrar bem alto a sua indignação para que ficasse devidamente registada.
Voltando à vaca fria, nesta guerra, como se pode ver mais uma vez, tive sorte. Pois foram logo escolher o dia do ataque para quando estava de férias. Parece que eles ainda pensaram em voltar, mas viemos a saber depois que tinham resolvido ir atacar outra zona que, se calhar, lhes seria mais favorável. Entretanto a população regressou e tudo voltou à normalidade.
O Presidente do Senegal (Senghor) enviou para esta região membros da guarda republicana senegalesa para correr com todos os grupos armados que circulam por aqui e que já o estavam a inquietar, de maneira que hoje de manhã tivemos a inevitável confraternização, mesmo sobre a linha de fronteira.
Confraternização essa que levámos a efeito em regime estritamente confidencial, pois mais ninguém deveria saber, para não se armarem as habituais confusões junto do poder central. De um lado, eu, o Capitão, o alferes Carvalho, e o alferes médico representando a tropa. O M. Santos representando os civis. Do outro lado, três guardas senegaleses.
O ambiente foi bastante cordial e prometeram-nos nunca mais autorizar a permanência, nesta zona, de grupos de guerrilheiros armados que, pelos vistos, também já os estariam a preocupar e incomodar. (...)
(...) Esta gente daqui é mais rica que a de Pirada, pois enquanto lá, os quatro comerciantes existentes, vivem principalmente do comércio que fazem com o Senegal, estes aqui (e são cinco!) vivem do comércio que fazem apenas com os indígenas desta região e com os que vêm do interior para se abastecerem.
[Revisão e fixação de texto para efeitos de publicação neste blogue: LG]
(Continua)
____________
Notas do editor:
Parte II (abril de 1965 - setembro de 1965) (*****)
Pirada, 11 de abril de 1965
O M. Santos [Mário Soares] zangou-se com a tropa!
É o caso mais falado por estas bandas e a história foi a seguinte: como precisávamos de um frigorífico para a cantina que estamos a fazer, o 1.º Sargento falou nisso ao M. Santos e este prontificou-se logo a mandar vir um do Senegal, onde conhecia uma pessoa que tinha um e o queria vender. Adiantou, no entanto, que custaria 12 contos [se fossem escudos da metrópole equivaeriam hoje a 4.717,50 €, mas é preciso ter em conta os 10% de cambial: 100 "pesos" da Guiné valiam 90 escudos na metrópole.] O 1.º Sargento respondeu que o mandasse vir, para se ver e, depois, discutir o preço.
Resultado: veio o frigorífico e verificou-se que nem 6 contos de réis, valia. Ao fim de uma semana não tinha sequer conseguido fabricar uma única pedra de gelo.
O 1.º sargento falou no caso ao Capitão e decidiram dizer ao M. Santos que não queriam o frigorífico.
Aí é que este ficou que nem uma barata, alegando que já se tinha comprometido com o vendedor a ficar com o referido aparelho, etc., etc.
Desde então (e já se passaram 3 ou 4 dias), todas as noites a porta do quintal da casa do M. Santos que dá para a esplanada, onde habitualmente íamos, eu e o doutor, depois do jantar, tomar o nosso cafezinho e conversar um bocado, encontra-se fechada. Ultimamente, alguns sargentos também se faziam de convidados e creio que foi também por isso que o nosso amigo fechou a porta em sinal de desagrado.
Pessoalmente comigo não existe nada e, tanto ele como a família continuam a tratar-me bem. Eu, que já conheço o feitio dele, finjo que não sei de nada.
Anda um bocado amuado mas aquilo passa-lhe.
Hoje foi dia de Páscoa. Dia que não tem grande significado para mim mas que serviu de pretexto para nos reunirmos e fazermos uma pequena festa.
O M. Santos já esqueceu a zanga com a tropa e ontem à noite estivemos em casa dele a comer e a beber.
O [alferes] Castro esteve cá, assim como o Gabriel, aquele meu companheiro de Bajocunda, que ficou também para o jantar.
Os soldados divertiram-se à maneira deles, vestindo-se à Fula e a Páscoa aqui em Pirada redundou num autêntico Carnaval.
Até eu me mascarei de Fula!
(O interregno entre esta carta e a seguinte explica-se por em Maio ter vindo à Metrópole, gozar um mês de férias e efectuar o meu primeiro casamento)
Pirada, 13 de junho de 1965
(..) Assim que aparecemos em Pirada [, de regresso de férias], nem queiram saber a festa que me fizeram!
Ainda o jeep não tinha estacionado já toda a gente me vinha cumprimentar. Depois fui apresentar-me ao Capitão que estava bastante doente com disenteria. Em rápidas palavras contei-lhe como tinha passado as férias. (Afinal, sempre receberam os meus postais!).
Em seguida tive de ir visitar, é claro, o M. Santos para lhe entregar as lembranças que trouxe. A D. Luísa ficou contentíssima com a toalha regional, e o galo de Barcelos conseguiu chegar intacto.
Agora têm cá mais um filho que estava a estudar em Lisboa e que, pelos vistos, não se portou lá muito bem este ano. Chama-se José e tem mais idade que a Eva Lúcia, a mais nova (que ainda não vi; está em Bafatá) e menos que a Rosa, a filha mais velha.
O M. Santos [Mário Soares] zangou-se com a tropa!
É o caso mais falado por estas bandas e a história foi a seguinte: como precisávamos de um frigorífico para a cantina que estamos a fazer, o 1.º Sargento falou nisso ao M. Santos e este prontificou-se logo a mandar vir um do Senegal, onde conhecia uma pessoa que tinha um e o queria vender. Adiantou, no entanto, que custaria 12 contos [se fossem escudos da metrópole equivaeriam hoje a 4.717,50 €, mas é preciso ter em conta os 10% de cambial: 100 "pesos" da Guiné valiam 90 escudos na metrópole.] O 1.º Sargento respondeu que o mandasse vir, para se ver e, depois, discutir o preço.
Resultado: veio o frigorífico e verificou-se que nem 6 contos de réis, valia. Ao fim de uma semana não tinha sequer conseguido fabricar uma única pedra de gelo.
O 1.º sargento falou no caso ao Capitão e decidiram dizer ao M. Santos que não queriam o frigorífico.
Aí é que este ficou que nem uma barata, alegando que já se tinha comprometido com o vendedor a ficar com o referido aparelho, etc., etc.
Desde então (e já se passaram 3 ou 4 dias), todas as noites a porta do quintal da casa do M. Santos que dá para a esplanada, onde habitualmente íamos, eu e o doutor, depois do jantar, tomar o nosso cafezinho e conversar um bocado, encontra-se fechada. Ultimamente, alguns sargentos também se faziam de convidados e creio que foi também por isso que o nosso amigo fechou a porta em sinal de desagrado.
Pessoalmente comigo não existe nada e, tanto ele como a família continuam a tratar-me bem. Eu, que já conheço o feitio dele, finjo que não sei de nada.
Anda um bocado amuado mas aquilo passa-lhe.
Pirada, 18 de abril de 1965
Hoje foi dia de Páscoa. Dia que não tem grande significado para mim mas que serviu de pretexto para nos reunirmos e fazermos uma pequena festa.
O M. Santos já esqueceu a zanga com a tropa e ontem à noite estivemos em casa dele a comer e a beber.
O [alferes] Castro esteve cá, assim como o Gabriel, aquele meu companheiro de Bajocunda, que ficou também para o jantar.
Os soldados divertiram-se à maneira deles, vestindo-se à Fula e a Páscoa aqui em Pirada redundou num autêntico Carnaval.
Até eu me mascarei de Fula!
(O interregno entre esta carta e a seguinte explica-se por em Maio ter vindo à Metrópole, gozar um mês de férias e efectuar o meu primeiro casamento)
Pirada, 13 de junho de 1965
(..) Assim que aparecemos em Pirada [, de regresso de férias], nem queiram saber a festa que me fizeram!
Ainda o jeep não tinha estacionado já toda a gente me vinha cumprimentar. Depois fui apresentar-me ao Capitão que estava bastante doente com disenteria. Em rápidas palavras contei-lhe como tinha passado as férias. (Afinal, sempre receberam os meus postais!).
Em seguida tive de ir visitar, é claro, o M. Santos para lhe entregar as lembranças que trouxe. A D. Luísa ficou contentíssima com a toalha regional, e o galo de Barcelos conseguiu chegar intacto.
À noite jantei em casa deles e foi uma longa conversa sobre o mundo maravilhoso da metrópole. (...)
Mas cá por Pirada, entretanto, também aconteceram muitas outras coisas durante o mês de Maio (...)
Sem mais hipóteses de fuga, acabou por ir suplicar ao M. Santos, quase de joelhos, para que o informasse com a máxima prioridade, sempre que soubesse de qualquer novidade sobre as intenções do IN que dissessem respeito àquela tabanca, por mais insignificantes que lhe pudessem parecer. Assim poderia precaver-se o melhor possível.
[Nota do editor: Os nomes dos camaradas europeus são fíctícios, por razões de privacidade, segundo o autor das cartas que foram publicadas no blogue...]
Mas ainda fez mais! Na passada segunda-feira foi a Bafatá sem dar conhecimento a ninguém, falar com o Coronel, Comandante-Chefe desta zona, e, entre outras coisas, como para justificar o inusitado da visita, caluniou o M. Santos, acusando-o de ser um agente duplo. (...)
Estupidamente, no dia seguinte, ao almoçar em Paúnca, gabou-se do facto e, não tardou nada que isso não chegasse aos ouvidos do visado.
M. Santos, indignadíssimo, exigiu um imediato pedido de desculpas e um completo desmentido desta situação. Queria mesmo ir a Bafatá falar com o Coronel.
O Capitão mandou logo chamar o Cardoso para esclarecer tamanha borrada e justificar aquela ida a Bafatá sem a devida autorização.
Quando o Cardoso chegou fez-se de mil cores, ficando a tremer como varas verdes. Começando por negar tudo, acabou por confessar. Por ordem do Capitão foi de imediato pedir desculpas ao M. Santos.
Este disse-me que de facto ele tinha ido a sua casa, a chorar, pedindo-lhe que o perdoasse e que não dissesse nada para Bafatá, pois decerto acabaria por ser castigado e talvez impedido de ir de férias em Julho próximo. O M. Santos, coração de manteiga, lá se comoveu, mas não deixou de lhe pregar uma valente descompostura.
Acabada essa cena, o Cardoso regressou novamente à Messe, onde eu, o Carvalho o alferes médico Cláudio, que está cá para substituir o nosso que foi de férias, aguardávamos o desenrolar dos acontecimentos.
Sem querer dar o braço a torcer continuou a disparatar em todas as direcções, acusando inclusivamente, o nosso próprio médico (o ausente) de o ter denunciado ao M. Santos o que de facto até era uma tremenda mentira. Gerou-se logo ali uma acesa discussão e o Cláudio que, não é nada macio, queria mesmo obrigá-lo a ir novamente à presença do M. Santos para esclarecer definitivamente o assunto. E tanto insistiu que o Cardoso, atarantado, fez menção de se levantar e puxar pela pistola Parabelum que traz sempre à cinta, num arremedo ridículo de autoridade. Deu-se logo ali uma caricata cena de pancadaria. Eu, na confusão, consegui desarmar o Cardoso que se atirou para o chão, inanimado como um saco de batatas.
Quando o fizemos vir a si, deixou-se ficar, sentado no chão, a chorar como um bebé. Ao fim e ao cabo, ficámos todos com pena dele, pois ele apenas tinha conseguido demonstrar que não passava de um pobre diabo desorientado sem saber o que fazer para sobreviver a esta vida. Cláudio, o médico, acabou por lhe administrar uma injecção calmante que o fez ficar a dormir o resto do dia na cama do capitão.
Mais tarde veio pedir desculpas a todos, especialmente a mim, dizendo-me que eu era o seu primeiro e único amigo, que eu era a pessoa que melhor o compreendia, etc.
Jantámos em sossego e esquecemos completamente o caso. Hoje de manhã lá partiu novamente para o destacamento de Velingará Pinto Silva todo encolhido no assento do jeep.
Em parte, talvez seja eu, de facto, quem melhor o compreende e quem tenha a coragem de lhe dizer as coisas mais duras. Mas foi tudo causado pela sua infame e nevrótica cobardia que mexe com os nervos de todos nós.
Parece que, para se reabilitar, decidiu ficar no destacamento até às vésperas de embarcar para férias. Depois calha-me a mim ir para lá que, vai ser um consolo. (...)
No passado dia 28 de maio [de 1965], um numeroso grupo de guerrilheiros invadiu Pirada e atacou o quartel, sem no entanto causar qualquer baixa e causar danos de maior. Apenas queimou algumas palhotas da periferia, num acto intimidatório.
O ataque já era esperado, pois o M. Santos, como sempre, tinha sabido da coisa com alguma antecedência e correu a informar o Capitão que, prontamente se barricou no quartel e aguardou os acontecimentos, enviando, no entanto, um Pelotão (o do Carvalho) para os lados da bolanha com o intuito de montar uma emboscada ao grupo que viria fazer o ataque, mas como já era de noite, o sonso do Carvalho fez-se de mula e preferiu entrincheirar-se o melhor possível e deixar correr o marfim.
Nem chegou a ver o IN, que andou pela povoação completamente à vontade a fazer fogo para o quartel, abrigado até debaixo do alpendre da casa do M. Santos.
No entanto, não tocaram em qualquer das casas comerciais, respeitando um hipotético e provável acordo de cavalheiros, pois quando necessitam, também sabem recorrer, secretamente, a estas fontes irregulares de abastecimentos, e o M. Santos, como velha raposa que é, sabe que na actual situação é sempre útil estar de bem com Deus e o Diabo.
Foi por isso que achou que aquela tola tentativa do Cardoso de o intrigar junto do governo militar foi uma palermice de todo o tamanho que, além de ser perigosa para ele próprio, era também prejudicial para os interesses de todos nós, pois assim poderíamos vir a perder uma importante fonte de informação sobre os movimentos do IN na região. Mas como, com esta malta da tropa, nunca se sabe, achou que evidentemente o melhor seria mostrar bem alto a sua indignação para que ficasse devidamente registada.
Voltando à vaca fria, nesta guerra, como se pode ver mais uma vez, tive sorte. Pois foram logo escolher o dia do ataque para quando estava de férias. Parece que eles ainda pensaram em voltar, mas viemos a saber depois que tinham resolvido ir atacar outra zona que, se calhar, lhes seria mais favorável. Entretanto a população regressou e tudo voltou à normalidade.
O Presidente do Senegal (Senghor) enviou para esta região membros da guarda republicana senegalesa para correr com todos os grupos armados que circulam por aqui e que já o estavam a inquietar, de maneira que hoje de manhã tivemos a inevitável confraternização, mesmo sobre a linha de fronteira.
Confraternização essa que levámos a efeito em regime estritamente confidencial, pois mais ninguém deveria saber, para não se armarem as habituais confusões junto do poder central. De um lado, eu, o Capitão, o alferes Carvalho, e o alferes médico representando a tropa. O M. Santos representando os civis. Do outro lado, três guardas senegaleses.
O ambiente foi bastante cordial e prometeram-nos nunca mais autorizar a permanência, nesta zona, de grupos de guerrilheiros armados que, pelos vistos, também já os estariam a preocupar e incomodar. (...)
Paunca, 27 de junho de 1965
(...) No meu aniversário ainda estava no destacamento de Velingará, mas o [alferes] Castro, numa atitude que dificilmente virei a esquecer, convidou-me para jantar em Paunca, nesse dia. Foi um jantar maravilhoso com o quartel todo enfeitado com ramos de palmeira. Comemos juntamente com os soldados e pelo menos nisso, para eles houve rancho melhorado pois comeram o mesmo que nós, sopa, leitão assado, ananás e até cigarros para finalizar. Depois sentámo-nos todos numa roda e serviu-se Cinzano e whisky para toda a gente.
Mesmo assim senti-me um bocado triste, mas não dei parte de fraco. Nessa mesma noite regressei ao acampamento de Pinto da Silva. Nem o M. Santos, nem o Capitão se lembraram do meu aniversário, embora fosse até este último quem mais teria a obrigação de o fazer já que foi ele que, no ano passado, determinou que este dia passaria a ser o dia da nossa Companhia. (...)
Paunca, 10 de julho de 1965
(...) Esta gente daqui é mais rica que a de Pirada, pois enquanto lá, os quatro comerciantes existentes, vivem principalmente do comércio que fazem com o Senegal, estes aqui (e são cinco!) vivem do comércio que fazem apenas com os indígenas desta região e com os que vêm do interior para se abastecerem.
Estamos agora na época em que se lavra a mancarra e o trigo e é precisamente nesta altura que os agricultores estão sem dinheiro. Mesmo assim ainda conseguem fazer algum negócio, vendendo arroz e tabaco para poderem comprar o que necessitam. É agora que nós aproveitamos também para lhes comprar os ovos e as galinhas que quisermos, pois deixam tudo muito mais barato. (...)
[Revisão e fixação de texto para efeitos de publicação neste blogue: LG]
(Continua)
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Notas do editor:
(*) Último poste da série > 15 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20858: (De)Caras (125): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal ? Um "agente duplo" ? - Parte I (Depoimentos do embaixador Nunes Barata, e do nosso saudoso camarada Carlos Geraldes)
(**) Vd. poste de 18 de setembro de 2012 > Guine 63/74 - P10404: In Memoriam (127): Luiz Goes (1933-2012), figura incontornável da canção de Coimbra, foi ten mil médico, BCAÇ 506 (Bafatá, 1963/65), e conviveu com o nosso camarada António Pinto
(**) 23 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4997: Cartas (Carlos Geraldes) (10): 2.ª Fase - Abril de 1966 - Epílogo - O Regresso
(***) Vd. postes de
10 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4933: Cartas (Carlos Geraldes) (7): 2.ª Fase - Julho a Setembro de 1965
7 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4916: Cartas (Carlos Geraldes) (6): 2.ª Fase - Abril a Junho de 1965
(**) Vd. poste de 18 de setembro de 2012 > Guine 63/74 - P10404: In Memoriam (127): Luiz Goes (1933-2012), figura incontornável da canção de Coimbra, foi ten mil médico, BCAÇ 506 (Bafatá, 1963/65), e conviveu com o nosso camarada António Pinto
(**) 23 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4997: Cartas (Carlos Geraldes) (10): 2.ª Fase - Abril de 1966 - Epílogo - O Regresso
(***) Vd. postes de
10 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4933: Cartas (Carlos Geraldes) (7): 2.ª Fase - Julho a Setembro de 1965
7 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4916: Cartas (Carlos Geraldes) (6): 2.ª Fase - Abril a Junho de 1965