quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23653: Notas de leitura (1500): Algumas (breves) notas sobre missionação (III) - Reflexão do Prof. Justino Mendes de Almeida, profundo estudioso da “missionação”, reitor que foi da Universidade Autónoma de Lisboa (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Cordeiro Salgado (ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), com data de 26 de Setembro de 2022:

Caros camaradas,
Por me parecer oportuno, face ao desafio do Mário Beja Santos - que me "empurrou" - fez ele bem - para este tema, aqui vai a terceira parte. Outros andarão bem melhor nesta matéria: historiadores, antropólogos, padres...
Fica este registo.

Saudação camarada.
Paulo Salgado



Algumas (breves) notas sobre missionação – III

Paulo Salgado

Vejo-me compelido, por imperativo histórico, a trazer junto de vós, camaradas que me ledes neste Blogue, sério e participativo, uma reflexão que se deve ao Prof. Justino Mendes de Almeida, profundo estudioso da “missionação”, reitor que foi da Universidade Autónoma de Lisboa».[1] Mas, antes, não posso deixar de relembrar que «a bula Acquum Reputamos, de Paulo III, conhecida como a "magna carta" do padroado real português, para além dos conteúdos habituais das bulas precedentes concedidas a Portugal, reflecte uma realidade político-religiosa ligeiramente diferente da que se viveu em décadas anteriores».[2] Este documento papal favorecia e privilegiava a missionação portuguesa, concedendo a possibilidade de evangelização, mas igualmente a responsabilidade de zelar materialmente pela manutenção das igrejas fundadas ou a fundar. Também conferia a sede episcopal de Goa. Refira-se que o padroado português sofreu ao longos dos séculos diversos episódios, em especial os relativos ao surgimento de outras igrejas cristãs apoiadas por países não católicos e que fundaram as suas missões, algumas com relevo notável e que se mantêm hoje em actividade. Igualmente, são de mencionar os diversos acordos efectuados e reajustados ao longo do século XIX e mesmo no século XX da parte da Igreja e dos reis de Portugal.

Na missionação utilizava-se o termos “infiéis”. Ainda que não concorde com esta designação (infiéis, porque não pertenciam ao Cristianismo… designação que surge afastada, como defende o Papa Francisco), que surge abundantemente em vários textos desde o século X (ou antes) e por aí adiante, mesmo por Francisco Xavier e outros célebres missionários, tem de fazer-se o seu registo.

Transcrevo, pois:
«A missionação portuguesa desenvolve-se ao longo dos séculos, em torno da obra dos prelados diocesanos e das ordens religiosas que se vão fixando nos territórios de missão: franciscanos, dominicanos, capuchinhos, jesuítas, ursulinas, merecendo uma menção especial os religiosos da regra de Santo Agostinho, cuja acção foi importante na interpelação dos governantes para que agissem, e fizessem agir os súbditos, como cristãos».

E acrescenta:
«Com S. Francisco Xavier, o "Apóstolo das índias", abre-se uma era nova na missionação do Oriente. Para além dos 30.000 baptismos que lhe são atribuídos, de uma acção constante em Cochim, Malaca, Molucas e Cantão, deve-se-lhe uma atitude diferente em relação a povos e culturas, de forma que não se hesita em reconhecer que, com S. Francisco Xavier, começa a missionação moderna. Japão, China e Indochina recebem também missionários portugueses, e, não obstante o sucesso da presença de S. Francisco Xavier no Japão, a missionação aqui acaba por sofrer inclemências terríveis do poder político, de que é símbolo o martírio de Nagasáqui. Mas, significativa é esta exclamação de S. Francisco Xavier, em carta escrita do Ceilão: "Bendito seja Deus, porque tornou tão florescente o nome de Cristo entre esta multidão de infiéis!".
Despedida de Xavier na corte do rei D. João III
In: https://devocaofrancsicoxavier.blogspot.com/p/iconografia-gravuras.html

À missionação no Brasil está imperecivelmente ligado o nome do Padre Manuel da Nóbrega, fundador da Província do Brasil e da cidade de São Paulo, o primeiro jesuíta do Brasil e da América, como o designou o Padre Serafim Leite. Nóbrega teve tal actuação, como exímio religioso e verdadeiro homem de Deus, na concertação com governantes, em defesa de autóctones, que o historiador Robert Southey não hesitou em chamar-lhe "o maior político do Brasil". Contudo, a sua figura grada brilha mais como parte dessa tríade de construtores de missão no Brasil: Nóbrega / Anchieta / Vieira».
Padre jesuíta no Brasil Colonial

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Notas:

[1] - Janus 1999-2000, Missionação portuguesa. In https://www.janusonline.pt/arquivo/1999_2000/1999_2000
[2] - David Sampaio Barbosa - Padroado Português: privilégio ou serviço (séc. XIX)?

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Nota do editor:

Último poste da série de 27 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23649: Notas de leitura (1499): Algumas (breves) notas sobre missionação (II) - Carta de Inácio de Loyola a Diogo de Gouveia (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)

Guiné 61/74 - P23652: Parabéns a você (2103): António Bastos, ex-1.º Cabo At Inf do Pel Caç Ind 953 (Cacheu, Farim, Canjambari e Jumbembém, 1964/66)

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Nota do editor

Último poste da série de 23 de Setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23639: Parabéns a você (2102): Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16 (Mansoa, 1964/66)

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23651: In Memoriam (452): Mário Rui Anastácio (1954-2022), ex-fur mil, BII 19, Funchal, 1974/75, meu cunhado (Luís Graça)


Lourinhã > Igreja de Santa Maria do Castelo (séc. XIV) > Rosácea: uma obra-prima de desenho geométrico ...

Alcobaça >  2 de julho de 1977 > No  casamento do Mário  e da  Zairinha.  Do lado da noiva, o pai, Luís Henriques (1920-2012) e  a mana mais nova, a Béu. Na outra ponta, ao lado do noivo, a Maria da Graça (1922-2014).  


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2022). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Faleceu inesperadamente no passado domingo,  aos 68 anos, em Guimarães,  e realizou-se hoje a cerimónia fúnebre, na sua terra natal, Lourinhã, seguindo agora mesmo  os seus restos mortais para o crematório de Barcarena, Oeiras: Mário Rui Anastácio (13/1/954-25/9/2022). Era casado com a minha irmã do meio (tenho três), Maria do Rosário, "Zairinha". O casal tem dois filhos, André, treinador de futebol,  e Rita, educadora de infância.

Trabalhou na empresa Louricoop, tinha acabado de se reformar há uns meses;  andou na escola Escola Industrial e Comercial de Torres Vedras; foi jogador de futebol, júnior, no Sport Clube União Torreense (SCUT), fundado em Torres Vedras, em 1917, bem como no Sporting Clube Lourinhanense, filial do  Sporting Club de Portugal (SCP). Tinha o curso de treinador de futebol, e orientou diversas equipas, de vários escalões, na Região do Oeste. 

Sei que em 1974/75, cumpriu o serviço militar, como furriel miliciano,  no Funchal, no BII 19, o Batalhão Independente de Infantaria nº 19 (cujo quartel fora inaugurado em 1970), tendo escapado por um triz de "ir parar ao ultramar", como último soldado do Império... Tinha excelentes recordações da Madeira e dos madeirenses. Infelizmente não tenho fotos dele desse tempo. 

Na hora da despedida, na igreja de Santa Maria do Castelo (séc. XIV), na Lourinhã, tive o privilégio de dizer em público, perante a sua família, vizinhos, colegas  e amigos, algumas palavras em sua homenagem,  e também a ocasião de manifestar a minha solidariedade na dor à viúva, filhos, netos e demais família.

Mário:

Partilhaste comigo, há umas escassas semanas atrás, na Praia da Areia Branca, uma pequena inconfidência: contaste-me, com velado orgulho, que o teu filho costumava dizer, à malta das suas equipas  de futebol, que havia dois homens que o inspiravam, na vida e no desporto: o avô e o pai.

Do amor do André pelo meu pai, eu já o sabia há muito. Pude testemunhá-lo em diversas  ocasiões. Desde o André ainda miúdo. Da admiração do teu filho por ti, como pai e como desportista, eu só poderia achar normal e natural. O que foi bonito foi ver-te com um brilhozinho nos olhos quando me constaste esta história.

Sei que o mesmo amor sentias pela tua Ritinha, e pelos teus netos. E, claro, pela tua mulher e mãe dos teus filhos. Sempre te ouvi tratá-la por Zairinha, "a minha Zairinha". E sei que foi a mulher da tua vida, aquela que também é a minha Zairinha, a minha querida mana do meio.

Hoje eles e elas, a tua Zairinha, os teus filhos, nora e genro, os teus netos, os teus irmãos, os teus cunhados, os teus sobrinhos, e demais família, e os amigos que sempre te trataram, com fraterno carinho,  por Márinho… (ou por “Mister”, os teus miúdos da bola, que ensinaste a lidar com as alegrias e as tristezas no campo e fora do campo, no campo pelado da vida)… todos eles e elas estão aqui, fisicamente ou em pensamento, nesta hora e neste lugar sagrado, na igreja do Castelo, o mais belo e nobre monumento da Lourinhã, para te dizer adeus na tua última viagem.

Morreste longe da tua terra, numa morte traiçoeira e fulminante que nos deixa a todos chocados e desolados. Tinhas apenas 68 anos, uma vida ainda por completar. E nós temos agora umas escassas horas para te dizer, em silêncio ou em voz alta,  quanto te estimávamos e quanto te amávamos.  

Quando morre um de nós, todos morremos um pouco, e há uma torrente de memórias, vivências e emoções que se soltam. Como o rio Grande da nossa infância, o  rio que só era grande quando galgava as margens, arrasava as vinhas e pomares, inundava o campo da bola e o largo do Convento. e se confundia com o mar, o grande oceano. Lembras-te ? Até Deus ficava isolado na igreja matriz…E nós fazíamos gazeta à escola, à missa, e à catequese…

Hoje somos nós que ficamos tristes e sós, mesmo sabendo que todos somos mortais, e que um dia, nunca sabendo qual, cada um de nós partirá também  para essa viagem sem retorno.

Crentes ou não crentes, todos temos todavia a secreta esperança ou a vã ilusão de voltarmos a sentar-nos à mesma mesa, frente ao mar, como companheiros de viagem, e partilhar o melhor das nossas memórias da Terra da Alegria. E eu quero voltar,  noutra incarnação,  a ver esse teu brilhozinho nos olhos e o teu sorriso bondoso… E, se possível,  a  beber um copo contigo.

Até sempre, até um dia, meu querido cunhado Márinho (é a primeira vez que te trato por Mrinho).

Lourinhã, 28 de setembro de 2022.  ´

Luís (a que se junta a Alice, a Joana e o João, nesta pequena homenagem a ti que também é uma manifestação de solidariedade na dor pela tua perda).

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Nota do editor:

Último poste da série > 30 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23569: In Memoriam (451): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (4): “Bolama, a saudosa…”, lembranças afetuosas da sua juventude (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23650: Historiografia da presença portuguesa em África (336): Imagem do nosso Império Africano num atlas inglês de 1865 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Não sei se os alunos de Relações Internacionais ou os candidatos a cargos diplomáticos costumam, nos tempos que correm, visitar os mapas com mais de 100 anos, são cartas que iniludivelmente nos mostram as mudanças que ocorreram no quadro da geopolítica e da ascensão dos povos às independências, o que se traduziu em novas fronteiras, por vezes novas designações, desapareceram impérios, e não deixa de ter significado olhar-se para o que foi o império Russo e o império Turco-Otomano, nestes mapas estão chaves explicativas de um conjunto de beligerâncias atuais, isto para não falar já do que era a Palestina e de como mudou de face com o aparecimento de Israel, em 1948. Esta África de 1865 deu origem a dezenas e dezenas de Estados, no fim da era imperial. No que toca ao nosso império Africano, veja-se que a Guiné era um ponto diluído na Senegâmbia e a extensão de Angola e Moçambique era muito pequena, representava a débil ocupação da orla marítima, com alguma penetração para o interior, que, décadas depois, se veio acelerar, quando o ideal imperial passou a ser um catalisador da classe política portuguesa.

Um abraço do
Mário



Imagem do nosso Império Africano num atlas inglês de 1865

Mário Beja Santos

Adquiri há uns bons anos num alfarrabista o "Philips’ Atlas for Beginners", edição de 1865 dos editores George Phillip e filho, Londres e Liverpool. O livro terá pertencido a Zulmira Guimarães que à inglesa deixou escrito a tinta: 19th May 1876. Sendo um atlas para principiantes, dá imenso prazer ver uma Europa que mudou radicalmente no Centro Norte e nos Balcãs, aquela Prússia dominante deu origem ao primeiro racho, a Boémia irá ser um dos pilares da República Checoslovaca depois da Primeira Guerra Mundial, o Império Austro-Húngaro desapareceu, como o Império Turco-Otomano se retirou da Grécia, da Bulgária, etc. Nada a dizer das ilhas britânicas, a não ser que ainda não se fala da Irlanda Independente, a Escócia tem honras de uma página de mapa, é impressionante a diversidade de povos que se inseriam no Império Austro-Húngaro e vale a pena ver cuidadosamente o mapa da Rússia com as suas províncias bálticas, a Grande e a Pequena Rússia e as províncias do Cáucaso, assim se entenderá melhor o sonho de Vladimir Putin. Das alterações entre 1865 e a atualidade na Ásia nem se fala, temos uma enorme Arábia e uma vasta faixa que dava pelo nome da Palestina no tempo do nosso Senhor, ia de Beirute até Rafa. Enfim, curiosidades.

Vejamos com atenção o mapa de África. O Magrebe foi reconstituído por Marrocos, Algéria, Tunísia, a Tripolitânia, o Egipto e a Núbia, já no declive do Mar Vermelho. Segue-se o Sará ou o Grande Deserto, mais abaixo temos a Senegâmbia na parte ocidental, entre a foz do rio Senegal e a Serra Leoa (o mapa refere Bissau, Bijagós e Rio Grande, isto para significar que esta Senegâmbia era completamente indiferenciada, embora já estivesse em fase de disputa a Gâmbia Britânica e a colónia do Senegal, na parte central encontramos o Sudão ou Nigritia, alfobre de um grande conjunto de países atuais), descendo encontramos o Daomé, o Benim, a Baía do Biafra, segue-se o rio Zaire ou Congo e temos uma faixa amarelada que vai do Luango até Benguela, faixa essa que representará talvez um terço do território angolano atual. Não deixa de ser curioso o que era África Astral, lá está claramente mostrado o território Macololo, um dos detonadores do ultimato britânico, em baixo temos a colónia do Cabo, subindo temos Moçambique reduzido a uma faixa amarelada onde se lê Sofala, Quelimane e Moçambique, com o canal de Moçambique a separar o continente de Madagáscar. Há o nome Cabo Verde para referenciar a parte continental, não são visíveis as ilhas arquipelágicas e em frente ao rio Gabão temos a referência às ilhas de São Tomé e Príncipe. O atlas Philips destacará depois a África do Sul para relevar a República do Transval, o Orange, o país Zulo, a colónia do Cabo, fora destes domínios refere-se a Bechuanalândia (hoje Botsuana), o deserto do Kalahari, e na continuação do que é hoje o sul de Angola, Namíbia.

A que propósito aqui se evoca o Atlas Philips para principiantes, de 1865? No caso vertente de uma leitura para portugueses, a insignificância ou o indiferenciado do território Imperial Português, já aqui se citou até a exaustão os alarmes que chegavam ao governo de Lisboa sobre aquela Senegâmbia cada vez mais partilhada pela gradual ocupação britânica e francesa. Não esquecer que uma das razões que se escolheu Bolama para capital, em 1879, era a de fazer ponte com os negócios na Serra Leoa, nessa altura ainda com alguma importância. Ocupação das faixas angolana e moçambicana era débil, havia ainda muito território em discussão, e com a formação do reino do Congo do Rei Leopoldo da Bélgica, a extensão das colónias francesas, inglesas e alemãs, beneficiamos do espaço interior no final do século XIX. O atlas Philips não deixa ilusões quanto à retórica utilizada de que tínhamos uma presença africana com cinco séculos. Estes mapas encarregam-se de mostrar a crentes e descrentes o que era o Império Português em África antes da Conferência de Berlim, 1884-1885. Se uma imagem pode valer por mil palavras este atlas Philips desfaz ilusões aos obstinados que fantasiavam a existência do Império Africano com cinco séculos.

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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23634: Historiografia da presença portuguesa em África (335): As missões católicas na evolução político-social da Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23649: Notas de leitura (1499): Algumas (breves) notas sobre missionação (II) - Carta de Inácio de Loyola a Diogo de Gouveia (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Cordeiro Salgado (ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), com data de 24 de Setembro de 2022:

Meus caros Camaradas,
Dando cumprimento ao que havia referido, abaixo um segundo texto sobre este assunto.

Uma saudação camarada.
Paulo Salgado



Algumas (breves) notas sobre missionação - II

Carta de Inácio de Loyola a Diogo de Gouveia

Dou continuidade à minha breve referência sobre a missionação, tema que, por certo, outros trabalharão melhor, mas tentarei cumprir o que me propus no texto anterior.

Vale a pena este testemunho prévio para nos apercebermos da necessidade de o Reino enviar frades para a evangelização - a dimensão religiosa, nem sempre bem conseguida, mas preocupada com a palavra de Jesus. De resto, todos sabemos que uma das intenções, um dos objectivos dos descobrimentos era a pregação, a evangelização. Nas naus portuguesas e espanholas seguiam sempre “missionários”. Quem não se lembra dos nossos capelães, já não para evangelizar, mas para “dar força espiritual” às NT - assim era entendido pelos mandantes?

Repare-se, caros leitores, que existia (e existe) a preocupação de respeitar a hierarquia da Igreja - neste caso da parte de Loyola.

Mais uma nota: quem assina esta carta é o braço direito, admirador e seguidor indefectível de Inácio de Loyola, Pedro Fabro, que sempre procurou seguir o pensamento do Padre Superior da Companhia de Jesus - os jesuítas.

Finalmente, o próximo texto incidirá sobre um dos grandes missionários - Francisco de Xavier, e não Francisco Xavier; na verdade, ele era natural da localidade da região de Navarra - Xavier.


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A DIOGO DE GOUVEIA[1]

Roma, 23 de Novembro de 1538[2]

(Ep. I, 132-134 – original latino)

IHS. A graça e a paz de Jesus Cristo N. S. estejam com todos!

Há poucos dias chegou o vosso mensageiro com carta para nós[3]. Por ela soubemos notícias vossas e vimos quão boa lembrança guardais de nós, bem como o zelo que vos faz sedento da salvação das almas dispersas por vossa Índia, onde as messes já lourejam[4]. Oxalá pudéssemos satisfazer a vós e às nossas almas que sentem o vosso zelo. Mas existem alguns obstáculos que impedem corresponder não só aos vossos desejos, mas também aos de muitos outros.

Compreendereis isto pelo que vou dizer-vos. Todos quantos estamos reunidos nesta Companhia estamos oferecidos ao Sumo Pontífice, pois é o senhor de toda a messe de Cristo[5]. Por esta oblação lhe prometemos estar prontos para tudo quanto dispuser de nós em Cristo. Assim, se ele nos enviar aonde nos convidais, iremos alegremente. A causa desta nossa resolução, que nos sujeita ao seu juízo e vontade, foi entender ter ele maior conhecimento daquilo que convém ao cristianismo universal.

Não faltaram alguns que há algum tempo se esforçaram para que nos enviassem a esses índios que os espanhóis conquistam diariamente para o seu imperador. Para isso veio interceder em favor dessa causa, principalmente, certo bispo espanhol e o embaixador do imperador[6]. Mas persuadiram-se que a vontade do Sumo Pontífice era que não saíssemos daqui, pois é abundante a messe em Roma[7].

A distância do país não nos espanta, nem o trabalho de aprender línguas. Faça-se somente o que mais agrada a Cristo. Rogai, pois, por nós para que nos faça ministros seus no Verbo da Vida. Porque, embora «não sejamos por nós mesmos capazes de pensar algo como se fosse nosso», pomos a nossa esperança na abundância d’Ele e nas suas riquezas (2 Cor 3,5).

De nós e das nossas coisas tereis notícias completas por cartas escritas ao nosso particular amigo e irmão em Cristo, Diogo de Cáceres, espanhol, que vo-las mostrará[8]. Ali vereis quantas tribulações por Cristo passámos em Roma até agora e como delas por fim saí­mos ilesos[9]. Tão pouco faltam em Roma muitos a quem é odiosa a luz eclesial de verdade e de vida.

Sede, pois, vigilantes e esforçai-vos tanto em edificar o povo cristão com o exemplo de vida, como trabalhastes até agora em defesa da fé e doutrina da Igreja[10]. Porque, como podemos crer que nosso bom Deus conservará em nós a verdade da santa fé, se fugimos da sua bondade? É para temer que a causa principal dos erros de doutrina provenha de erros de vida. Se estes não forem corrigidos, não se extirparão aqueles. Pondo fim a esta carta, resta-nos pedir que vos digneis recomen­dar-nos aos nossos respeitadíssimos Mestres Bartolomeu, De Cornibus, Picard, Adam, Wankob, Laurency, Benoit a todos os mais que gostaram de chamar-se nossos mestres e nós seus discípulos e filhos em Cristo Jesus. N’Ele vos saudamos a vós.

Desta cidade de Roma, dia 23 de Novembro de 1538.

Vosso no Senhor, Pedro Fabro e mais Companheiros e Irmãos.
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Notas:

1 - Diogo de Gouveia (1471-1557), teólogo português de rígida ortodoxia cató­lica, contrário mesmo a Erasmo, foi reitor da Universidade de Paris (1500-1501), obteve de D. João III a concessão de bolsas para estudantes nacionais, transfor­mando Santa Bárbara num colégio português da Sorbona, do qual foi principal, durante longos anos. Mal informado sobre os primeiros discípulos de Inácio em Paris, esteve para castigar o Santo publicamente, como sedutor da juventude. Após a defesa de Inácio, reconheceu a sua inocência e pediu perdão de seu erro perante professores e alunos, reunidos para o projectado castigo. Agora, por sua iniciativa e por comissão do rei, escreve aos Companheiros, convidando-os para a missão da Índia (Fontes Narr. 139; Autob. 78).

2 - Um ano antes (Novembro de 1537), Inácio, com Fabro e Laínez, dirigia-se a Roma e, pouco antes de lá chegar, tivera a célebre visão de La Storta, que con­firmava o título desses sacerdotes «amigos no Senhor», Companhia de Jesus, e lhe dava o seu significado profundo (Autob. 96). Como diz Ribadeneira sobre esta carta: «Escreveu a nosso Padre se teriam por bem irem todos ou parte dos Compa­nheiros a pregar o Evangelho às Índias Orientais». Responde Fabro em nome dos demais, dizendo-lhe que estavam às ordens do Sumo Pontífice, o qual prefere que por então trabalhem em Roma (Iparr. BAC 668).

3 - D. Pedro Mascarenhas, novo procurador de Portugal em Roma, junto do Papa. Tratou com Inácio e Companheiros sobre a ida de alguns deles para missio­nar na Índia, a pedido de D. João III. Mais tarde, como Vice-Rei da Índia, apoiará os missionários jesuítas.

4 - Em Goa já havia um bom grupo de cristãos e até um colégio fundado para jovens indianos, chamado de Santa Fé, além da cristandade antiga de S. Tomé e outros núcleos.

5 - Em Maio de 1538, já estabelecidos em Roma, por não terem podido ir à Ter­ra Santa, exercitavam-se em ministérios em favor da cidade de Roma. Levantou-se grave perseguição contra eles movida por Landívar, despedido da Companhia, e por outros espanhóis influentes na Cúria Romana. A defesa de Inácio é levada até à sentença final, que lhes restituiu a fama e os ministérios, muito frutuosos junto do povo (Autob. 98). Pouco antes de escrita esta carta, passado mais de um ano sem navio para Jerusalém, os Companheiros ofereceram-se ao Papa, de acordo com o voto de Montmartre (Autob. 85).

6 - João Fernández Manrique de Lara, marquês de Aguilar, era o embaixador de Carlos V em Roma. «Certo bispo espanhol» é talvez o antigo discípulo de Inácio em Barcelona, João de Arteaga, bispo de Chiapas no México, que oferecera o seu bispado a Inácio ou a algum dos Companheiros, e acabou por morrer na sua dio­cese (1541), ao beber veneno por engano (Autob. 80).

7 - Palavras do Papa, segundo Bobadilha: «Porquê esse tão grande desejo de ir a Jerusalém? Autêntica Jerusalém é Itália, se desejais trabalhar na Igreja de Deus» (Fontes Narr. III, 327).

8 - Diogo de Cáceres, em Paris, determinara seguir a Inácio. Em 1539, chegou a Roma e interveio na reunião dos primeiros Companheiros. No mesmo ano, voltou a Paris e ordenou-se sacerdote, mas em 1541 abandonou a Companhia (Iparr. BAC 669).

9 - Cf. supra, nota 5.

10 - Diogo de Gouveia opusera-se com toda a força ao primeiro aparecimento do luteranismo na Sorbona. Alguns aderentes à heresia tiveram então de fugir de Paris.

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Notas do editor:

Poste anterior de 8 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23599: Notas de leitura (1491): Algumas (breves) notas sobre missionação (I) - Missionaria Africana - coligida e anotada por António Brásio; Agência - Geral do Ultramar - Lisboa / MCMLXV (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)

Último poste da série de 26 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23645: Notas de leitura (1498): "Ussu de Bissau", por Amadú Dafé; Manufactura, 2019 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23648: (In)citações (223): Reflexão sobre ética (uma visão pessoal) (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

© Desenho de Manel Cruz


REFLEXÃO SOBRE ÉTICA

(Uma visão pessoal)

adão cruz

Existe uma ética inscrita no nosso código genético, válida só por si, existe uma ética baseada na história da vida e das sociedades humanas ou existem ambas, fundidas e inseparáveis?

Para mim é muito difícil dizer o que é a Ética, até porque não sou, propriamente, uma pessoa sabedora nestas áreas. No entanto, a vida sempre me deu a entender que a Ética é a mais bela construção do ser humano, assente em quarto pilares fundamentais.

A Ética é, penso eu, a vivência da verdade, o lugar certo do Homem dentro de si mesmo, o fio-de-prumo do Homem no interior da sua cumplicidade. A ética compreende a disposição do Homem na vida, interfere com o seu carácter, os seus costumes, a sua moral, ao fim e ao cabo com o seu modo e a sua forma de vida. O Homem faz-se por si e pelos outros, sendo a ética a autenticidade deste fazer-se.

O primeiro pilar da verdadeira morada do Homem seria constituído pelo pensamento e pela sua inseparável companheira, a razão. Podemos dizer que as plataformas que permitem a elaboração de um pensamento ético são a liberdade e a responsabilidade. A capacidade do Homem de assumir a séria orientação da sua vida determina-o como homem livre e, por conseguinte, a caminho do sujeito ético. E um sujeito ético é, fundamentalmente, um sujeito que procura a verdade. O referente da liberdade humana é a procura da verdade, porque a verdade orienta a liberdade e encaminha-a para a sua plenitude. O pensamento é o suporte mais poderoso e a mais forte armadura do Homem, a mágica força da sua criatividade.

O segundo princípio ou pilar fundamental decorre do primeiro e chama-se cultura. Não sei verdadeiramente o que é a cultura. E cada vez sei menos, neste pequeno país e neste pequeno planeta feito de inúmeros serventuários medíocres e arrogantes, incriativos plagiadores de todos os lugares-comuns inseridos nas políticas de retrocesso. Sei, no entanto, que não é a cultura espectáculo, a cultura enlatada de tanta gente cabotina, a massificação e homogeneização que apenas gera vícios consumistas, impedindo o homem de pensar, reflectir e encontrar, mas a cultura do dia-a-dia, a cultura estruturante da pessoa, a cultura do percurso, a cultura da ética dialógica que está na base da racionalidade critica, orientada para a procura do verdadeiro significado da realidade humana.

O terceiro princípio seria o respeito pelos outros. Todavia, o respeito pelos outros nunca existirá se não houver respeito por nós próprios. O respeito pelos outros é o espelho do respeito de nós próprios.

O quarto pilar desta edificação ética do Homem seria a justiça e a solidariedade. O primeiro passo da solidariedade estaria no entender da justiça social e no seu consciente reconhecimento como prioridade das prioridades. O segundo passo seria a consciência de que viver dos outros implica sempre viver com os outros e para os outros. Precisamente o contrário daqueles que aceitam o egoísmo, o individualismo e o hedonismo como fatal decorrência da onda globalizante e os desculpabilizam e valorizam. Penso que o Homem é um ser para o encontro, encontro consigo mesmo, com os outros, com o mundo e com o desconhecido, a quem abre a sua curiosidade, a sua vontade de saber e a sua vital necessidade de procura da verdade.

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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23637: (In)citações (222): Reflexão (complexo caminho da simplicidade da Evidência) (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

Guiné 61/74 - P23647: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (96): Os geradores nos quartéis também forneciam eletricidade para a população civil? (Manfred Stoppok, investigador alemão, a fazer um estudo sobre a história da energia elétrica na Guiné-Bissau, 1890-2020)


Diorama de Guileje > 2008 > A casota do gerador Lister: miniatura, da autoria de Nuno Rubim, destinada ao Núcleo Museológico de Guileje, Guileje, região de Tombali, Guiné-Bissau


Fotos (e legenda): © Nuno Rubim (2008). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Um gerador de marca Lister, parecido com o que deveria existir em Guileje. 

Imagem retirada da Net:  Nuno Rubim (2007)



1. Mensagem de Manfred Stoppok (foto à esquerda), antropólogo social, investigador de pós-doutoramento, da Universidade de Bayreuth, Alemanha

 
Data - 26 de setembro de 2022, 16:44
Assunto - A electrificação e os militares na Guiné-Bissau nos anos 1960

Exmos Senhores,

O meu nome é Manfred Stoppok, sou investigador pós-doc na Universidade de Bayreuth,  Alemanha. 

Já fui várias vezes à Guiné-Bissau, e neste momento faço um estudo sobre a história da eletricidade no país.

Eu descobri nos arquivos históricos ultramarinos em Lisboa que, durante a guerra de 1961/74,  uma grande parte da capacidade de produção de eletricidade estava nas mãos das forças armadas portuguesas: dos 59 lugares com geradores fora de Bissau, 47 tinham somente um gerador nas mãos das forças armadas, e somente 19 tinham uma distribuição civil.

Em termos da capacidade de produção, ambas, a administração civil e as forças armadas,  tinham cerca de 1 MW cada um no total.

Este aspeto é provavelmente uma coisa muito especial no desenvolvimento do sector de energia. Neste sentido, tenho algumas perguntas, na resposta às  quais os senhores talvez me possam ajudar.

(i) Os geradores dos militares forneciam eletricidade em geral somente para os quartéis – para uso próprio – ou também forneciam eletricidade para as unidades administrativas, escolas, hospitais,  etc.? Ou até mesmo para alguns particulares ou comerciantes?

(ii) Ou havia uma iluminação pública das ruas naqueles lugares? 
Em pelo menos alguns casos isso acontecia, havia eletricidade para a administração, mas eu não sei se isso  era a regra ou a exceção.

(iii) E, bem interessante para mim, o que é aconteceu com os geradores militares na hora da independência da Guiné-Bissau? O mais provável é que os geradores tenham sido levados para Portugal, o que significou a perda de quase 50% da capacidade de produção fora do capital Bissau. Ou será que estes equipamentos ficaram na Guiné?

Eu agradecia muito se os senhores puderem e quiserem partilhar as suas experiências comigo ou então indicar-me  onde posso encontrar documentação sobre estas coisas.

Eu também estarei em Lisboa por duas ocasiões nos próximos meses – no final do outubro de 2022 e no início de fevereiro de 2023 – e teria muito gosto em ter um encontro pessoal com quem quiser partilhar as suas informações e memórias relativamente a este assunto,

Com os melhores cumprimentos
Dr. Manfred Stoppok

[Revisão e fixação de texto, negritos: L.G.]

Manfred Stoppok | Post-Doc Researcher

f: funded by Fritz Thyssen Foundation
a: University of Bayreuth – Social Anthropology
e: manfred.stoppok@uni-bayreuth.de
w: www.history-electrification.com



Capa do livro "A Engenharia Militar na Guiné: o Batalhão de Engenharia". Coordenação do Gabinete de Estudos Arqueológicos da Engenharia Militar. Lisboa: Direção de Infra-estruturas do Exército, 2014, 166 pp.


Guiné > Região de Bafatá > Sector L1 > Bambadinca > CCS / BART 2917 (1970/72 > Vista (parcial) da tabanca de Bambadinca, com o Rio Geba ao fundo, e a saída para leste (no sentido de Bafatá)... Em primeiro plano, lado nordese do quartel e um dos abrigos, sobranceiros à tabanca, e a morança do comerciante português Rodrigo Rendeiro, do outro lado do arame farpado... Ficava do lado direito, quando se subia, vindo de Bafaté e do rio Geba, a famosa rampa de acesso ao quartel e posto administrativo de Bambadinca. São visíveis, na foto (se for ampliada), os postos de iluminação pública, ao longo da rua principal (que ia do quartel até ao porto fluvial).

Foto: © Benjamim Durães (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região do Oio > Porto Gole > Março / Abril de 1968 > CART 1661 > Trabalhos de electrificação do aquartelamento a cargo de uma equipa do BENG 447, onde se integra o José Nunes, autor desta imagem...

Foto (e legenda): José Nunes (2009).  Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Comentário do editor LG:

Meu caro Manfred: vamos tentar  ajudá-lo (*). Obrigado pelo seu contacto. Procurei  melhorar a sua mensagem em português. Mas não temos, à partida, grande informação (e muito menos conhecimento)  sobre a eletrificação da Guiné-Bissau no nosso tempo (1961/74). E falta-nos, enquanto antigos combatentes, uma visão geral sobre a situação da eletrificação do território... 

Nos quartéis, havia pelo menos um gerador (nalguns casos, haveria um sobresselente para suprir avarias) que funcionava preferencialmente à noite. Nunca ou raramente estavam a operar 24 horas por dia. Fez-se um esforço por eletrificar todos os aquartelamentos localizados em povoações importantes. E isso competia à engenharia militar (BENG 447).

Havia quartéis maiores do que outros, e alguns estavam implantados nas próprias povoações, sendo natural que contribuissem para a ilumição pública fora do perímetro do arame farpado, nas proximidaxes da porta de armas e na rua principal da localidade (caso de Bambadinca, Teixeira Pinto, Nova Lamego, Farim, Catió...). 

Em localidades como Bambadinca (onde eu estive, de julho de 1969 a março de 1971, e que teria, na altura 2 mil habitantes, e cerca de 400 militares), e que era um posto administrativo fazendo parte do município  de Bafatá (a segunda maior cidade do território, a 30 quilómetros, a nordeste),  o perímetro militar integrava as instalações e a casa do chefe de posto, a escola (com a casa da professora, cabo-verdiana), bem como uma capela cristã... O edifício dos correios, se bem recordo, já ficava fora... As casas comerciais estendiam-se ao longo de uma rua de trezentos metros que era ilumianada, tanto quanto me lembro... O resto (duas tabancas) ficava às escuras... O gerador militar também fornecia luz ao posto de intendência no porto fluvial, na margem esquerda do rio Geba Estreito, a escssas centenas do aquartelamento, sede de um batalhão (BCAÇ 2852 e depois BART 2917)...

Os frigoríficos (tanto dos comerciantes civis como os da tropa, e de um ou outro particular) eram alimentados a petróleo. E alguns de nós, graduados,  tinham também pequenos frigoríficos, nos quartos para manter frescas as bebidas  como a cerveja... (Um luxo, a cerveja gelada, o gelo para o uísque, a água de Vichy e de Perrier...).

Por outro lado, temos ainda a memória do cinema ambulante, que passava, mesmo no tempo da guerra, por algumas povoações mais importantes do leste da Guiné. E havia localidades que tinham sala de cinema (Bafatá, Teixeira Pinto, Nova Lamego...).

É importante que fale com os nossos camaradas do BENG 447, o Batalhão de Engenharia nº 447, que estava sediado em Brá, Bissau, e era responsável também pela construção e eletrificação das instalações militares no mato.

Fica aqui o seu apelo. Vamos ver se aparece informação relevante para si e o seu projeto sobre a história da electricificação da Guiné, terra a que nos ligam fortes laços afetivos e muitas memórias (boas e más). Vejo que fala e/ou escreve português. Isso facilita os contactos. Boa sorte, boa saúde, bom trabalho. LG

PS1 - Temos ideia que houve, no tempo do governador  Sarmento Rodrigues (1945/49) e depois do general António Spínola (1968/73), uma melhoria da eletrificação do território. Mas não temos informação detalhada. Por outro lado, Bissau estava muito melhor iluminada, à noite,  antes da independência do que depois. Em 2008, quando lá voltei, a cidade vivia às escuras. Fale também com o nosso camarada Mário Beja Santos, que é um enciclopédico estudioso da história da presença portuguesa no território, bem como  o nosso camarada Patrício Ribeiro, fundador e diretor da empresa, com sede em Bissau, Impar Lda, do sector de energia.  Dar-lhe-ei depois os contactos,

PS2 - O nosso José Nunes (José Silvério Correia Nunes), ex-1º Cabo Mecânico de Eletricidade no BENG 447 (Brá, 15Jan68 - 15Jan70) esteve na Central Elétrica do Quartel General, em Bissau. Tem, por certo, conhecimento da matéria. (Vd. o precioso poste P2470, de 22 de janeiro de 2008 " (**)
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(**) Vd. 22 de janeiro de  2008 > Guiné 63/74 - P2470: Diorama de Guileje (5): Geradores na Guiné (José Nunes)

(...) Estive na Guiné de 15 de Janeiro de 1968 a 15 Janeiro de 1970. Fiz assistências e electrificações em aquartelamentos, Porto Gole, Enxalé, Ponta do Inglés, Bolama, Bissum-Naga.

Acerca dos manuais que o Camarada Coronel NUno Rubim precisa, deve ser difícil pois nunca os vi em 2 anos e um dia de Comissão, nem na escola Militar tivemos acesso a eles.

Os grupos geradores mais utilizados eram: 500/250 KVA, 150, 50/47,5 KVA.

No Quartel General (QG), na Central nova, havia dois Dorman de 250 KVA, com 6 cilindros, refrigeração a água por radiador e, um grupo gerador de emergência Lister de 75 KVA.

Na Central velha, existia operacional um Deutz de 12 cilindros em V, refrigerado a ar e um Lister de 50 KVA.

Na Engenharia 
 [ BENG 447] e no Hospital Militar estavam os grupos geradores maiores.

No mato, normalmente, encontravam-se geradores com potências de 50, 20 e 7,5 KVA.

As marcas Stanford e Frapil para pequenas potências até 20 KVA. As motorizações eram diversas: Dorman, Deutez, Lister e EFI produção nacional.

Em Porto Gole havia um Lister de 47,5/50 KVA, na Ponta do Inglês havia um Gerador de 20 KVA que lá fui levar com um operador de Motores Fixos 
[ e que se avariou, obrigando o pessoal a recorrer à iluminação a petróleo com garrafas de cerevja] .

Ajudei a transferir o grupo gerador, na lama, da LDP (Lancha de Desmbarque Pequena)  para cima do Unimog, a descarregar no local e a fazer ligações de potência.

Por azar, o meu camarada inverteu a polarização na excitação e o gerador ficou inoperacional.

Tive de me pirar porque fui lá desenfiado só para ajudar e para ver se o Operador vinha no mesmo dia para Bissau, mas ficaram sem iluminação e o Engenheiro ficou lá até ao próximo transporte, regressando eu a Porto Gole onde levei uma valente piçada.

Ponta do Inglês 
[destacamento do Xime, na foz do rio Corubal], iluminação? A bazucas [garrafas de cerveja, de 0,6 l] cheias de petróleo penduradas no arame farpado.

A iluminação nos aquartelamentos era feito com cibes 
[ rachas de troncos de palmeira] a fazer de postes, linhas de cobre nú de 2,5 mm2, circuito fechado em anel, lâmpadas Philips 150 Watts spot.

Os quadros eléctricos eram em baquelite, equipados com fusíveis ou disjuntores quando os havia.

Não havia uniformização nos geradores, tal como muita coisa era comprada ao sabor de quem dava melhor percentagem, mas a maioria dos aquartelamentos tinha geradores de 7,5 ou 20 KVA. (...)

 

Vd. também postes de:

26 de agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4867: Memória dos lugares (35): Porto Gole, Março/Abril de 1968, CART 1661 (José Nunes, ex-1º Cabo, BENG 447, Brá, 1968/70)

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23646: Convívios (942): Ontem, dia 24 de Setembro de 2022, realizou-se no Grande Hotel do Porto o almoço de confraternização da CART 1745 (Bigene, 1967/69) (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico)

Grande Hotel do Porto, 24 de Setembro de 2022 > Eu sou o terceiro a contar da esquerda. O Ruca está à minha direita e o Laranjeira, de camisa azul, à minha esquerda. Em primeiro plano o Alves e ao fundo, de camisa escura, o António Dias.

1. Mensagem do nosso camarada Adão Cruz, (ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68), médico cardiologista, pintor e escritor, com data de 29 de Setembro de 2022:


O SENTIDO DO SANGUE

adão cruz

Ontem, estive com os dois da foto anexa, o Laranjeira à minha esquerda e o Ruca à minha direita, sentados à mesa. Na mesma mesa, além das respectivas esposas, o amigo António Dias e o Alves. Não nos víamos há cinquenta e três anos.

Ontem realizou-se o almoço de confraternização, no Grande Hotel Do Porto, ao fundo da Rua de Santa Catarina, da CART 1745, 67/69, da guerra da Guiné. Esta Companhia foi a última em que estive e que foi substituir a minha CCAÇ, a 1547, 1966/68, em Bigene, no norte da Guiné. Quando faltavam pouco mais de dois meses para a minha Companhia acabar a comissão e vir embora, o capitão recebeu uma ordem superior para ser realizada uma perigosa emboscada nocturna no corredor de Sambuiá, onde, eventualmente, iriam passar Amílcar Cabral e seus homens. A tão pouco tempo de vir embora, todo o pessoal, já fisicamente debilitado por quase dois anos de mato, foi psicologicamente ao fundo, compreensivelmente aterrorizado. Morrer agora, no fim? O comandante e eu éramos bastante amigos. Propus-lhe que enviasse um rádio para o Estado-Maior dizendo que o médico considerava a Companhia inoperacional, com o que ele concordou. Recebeu como resposta a mesma ordem, dizendo exigir-se um último esforço. O capitão voltou a responder, dizendo que o médico considerava muito difícil qualquer esforço. Tudo isto se passou durante uma madrugada inteira. Ao romper do dia, aterrou na pequena pista de Bigene um helicóptero trazendo a bordo o Comandante Supremo Arnaldo Shulz, o major-médico do serviço de saúde e um colega meu do hospital militar. Vinham fazer uma inspecção à Companhia. Soube mais tarde que me valera a razão, de outra forma teria ido parar à pildra. A companhia foi dada como inoperacional e iria ser substituída pela CART 1745, com a qual, ou melhor com os poucos elementos que dela restam, eu almocei ontem, no Grande Hotel Do Porto.

Numa tempestuosa noite, no minúsculo cais do Rio Cacheu, deu-se a rendição das Companhias. A minha embarcaria rumo a Bissau, após o desembarque da CART 1745, comandada pelo Capitão Miliciano, Torre do Vale. Na altura da troca, este novo comandante recebeu um rádio dizendo que embarcava toda a Companhia menos o médico. Não é fácil descrever, quer da minha parte quer da parte dos soldados e oficiais, a onda de emoção, tão torrencial como a chuva. Com lágrimas de raiva, recusei-me a ficar. O Capitão Torre do Vale, mais tarde um grande amigo, infelizmente já falecido, muito amavelmente fez-me ver que era uma ordem superior à qual não podia desobedecer e que seria obrigado a prender-me, se eu insistisse. Uma mesquinha e inesquecível vingança do Estado-Maior, pelo meu atrevimento!

Estes almoços, como o de ontem e outros em que estive, sobretudo da minha CCAÇ 1547, não são almoços que possam assemelhar-se a ouros quaisquer. Não sei dizer o que sentimos. Trata-se de um sentimento muito específico, um sentimento difícil de definir, um sentimento de tristeza e alegria, um sentimento muito enraizado de unidade, de irmandade, de cumplicidade que está para além do natural sentimento da amizade. De Saudade não será, mas é um sentimento que arranca cá do fundo uma espécie de estranha nostalgia, um rebuscar no fundo do tempo o sentido do sangue que nos corria nas veias, a memória de todos os medos e fraquezas, uma sensação de perda profunda que até hoje aceitámos como vitória e que nos trouxe a um futuro do qual nunca saberemos o valor. Sabemos apenas que sem essa perda e essa vitória, sejamos nós quem formos, nunca seríamos quem somos.

Mantive-me nesta nova Companhia os quase três meses em que, por direito, devia estar em Bissau, descansadamente, a beber umas cervejas. Quando vim embora, o último abraço, já sentado na avioneta, foi-me dado, de forma bem apertada, pelo meu caro Ruca. Pouco tempo depois de chegar a Portugal, soube por um dos muitos amigos nativos que lá deixei, que o “alfero” Ruca tinha perdido uma perna.

Ontem, felizmente, reconheci que o tal abraço não fora o último, pois ao fim de cinquenta e três anos, o que não faltou neste almoço foram abraços. Ao fim da tarde, não me despedi sem perguntar ao meu caro Ruca: olha lá, Ruca, tu que eras um rapazinho de vinte e poucos anos, por acaso muito bonito, com um prometedor séquito de namoradas, como é que lidaste no teu futuro com as mulheres? O Ruca respondeu, sorridente: olha, meu caro Adão, tinha uma prótese e as próteses, na altura eram tecnicamente pouco evoluídas. Eu via-me à rasca para camuflar o melhor que podia, até ao terrível momento de dizer à namorada que só tinha uma perna.

O Larangeira à esquerda e o Rogério Silva (Ruca) à direita
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23635: Convívios (940): Um total de 72 inscritos no 49.º almoço-convívio do pessoal da Magnífica Tabanca da Linha, amanhã, quinta feira, dia 22/9/2022, em Algés, o que é um número muito bom depois do "longo inverno social" que foi a pandemia de Covid-19

Guiné 61/74 - P23645: Notas de leitura (1498): "Ussu de Bissau", por Amadú Dafé; Manufactura, 2019 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
Amadú Dafé, estou seguro, vai ser um grande escritor, este Ussu de Bissau é eloquente comprovativo. Oxalá que ele não perca esta veia esplendorosa de escrita luso-guineense, por onde perpassam feiticeiros e balobas, mufunessas, poilões e bambarans. É uma denúncia vigorosa que ele nos dá nesta narrativa que se lê e relê com gosto, uma denúncia do tráfico de crianças que são exploradas, obrigadas a pedinchar, submetidas a negócios de pedofilia, tudo a pretexto de que frequentam escolas corânicas. Não sei como é que o islamismo reage a tais situações criminosas, a religião e os governos, como é óbvio, o que aqui se conta tem a ver explicitamente com a Guiné-Bissau e o Senegal. A escrita é admirável, é uma brisa de revelação, um escritor de formação universitária que não enjeita os problemas do seu povo humilde, a sofrer toda a casta de infortúnios, Ussu é um porta-bandeira de um crime que precisa de ser mais denunciado e castigado.

Um abraço do
Mário



Um vulto literário emergente na Guiné-Bissau: Amadú Dafé (1)

Mário Beja Santos

Estou absolutamente convicto que Ussu de Bissau, por Amadú Dafé [foto à direita], Manufactura, 2019, vai ficar no pódio das melhores narrativas da novel literatura deste país irmão. Melhor surpresa no arranque deste ano de 2020 não me podia ter sido dada. No dizer do autor temos aqui uma história aficionada de um aluno de escolas corânicas, faz parte daquele pesadelo de milhares de crianças da costa ocidental africana que são sujeitas aos terríveis maus-tratos onde não faltam a mendicidade, o viver nas condições mais abjetas, a escravatura pedófila.

Não é um romance, nem novela nem noveleta, é um relato em que uma criança é entregue a um escritor, ainda muito mal conhecido em Portugal, que esgrime o pensamento dessa criança com intensa vibração, levando-nos, na plenitude, aos recantos da miséria, tudo isto feito numa linguagem em que se desossa o português vernacular posto ao serviço de um idioma específico a que chamamos luso-guineense. Ussu tem uma mãe exigente, que sonha alto, quer este filho lançado na vida, no presente tudo é mais negro para a criança do que a cor da sua pele. É um mundo animista entrelaçado dessa esperança que uma escola corânica possa pôr o menino num patamar mais elevado. São episódios sucessivos dessa história que tem títulos condizentes: despatriado, escolhido, descartado, mendigo, faminto, punido, desperto, prevaricado, evadido, compaixão, suborno, norteado, pasmo, confuso, livre, elucidado, espectro, posto.

Não é só o tráfico de crianças que é denunciado em toda a sua extensão, é um mundo de curandeiros, de uma vertente do islamismo que precisa de ser execrada e perseguida no continente inteiro, por permitir que escroques aufiram dinheiro fingindo que educam crianças, no fundo escravizadas, não muito longe da escravidão antiga, tudo isso aparece posto em causa numa criança que conta a sua saga pelo punho de Amadú Dafé, numa das mais belas escritas que conheço.

Dura é a vida de Ussu, com aquele pai ausente, como se conta:
“Ademais, porque a minha mãe não me devolveu ao meu pai ainda estou por entender. O meu pai parecia ter-me abandonado, não ignorava esse facto, mas não me parecia capaz de me rejeitar caso ela decidisse que eu fosse viver com ele. Tenho memórias dos telefonemas dele e das suas palavras mélicas a perguntarem-me se a minha mãe me tinha sovado. Eu sempre respondi, prontamente, que sim, e nunca o vi fazer nada a esse respeito.
Às tantas achava-o mentiroso e fantoche, e desculpei-o sempre como uma pessoa muito ocupada. Que nem tem tempo de me telefonar sempre tinha, quanto mais de me ir visitar de quando em quando.
Cresci esperando por um convite seu para ir passar uns dias com ele, por uma prenda simples para o eternizar como um pai querido, por um acontecimento memorável por forma a nunca o perder nos meus sonhos. Nunca pude contar com ele e talvez por isso mesmo é que a minha mãe decidiu sempre sozinha tudo sobre a minha vida”
.

Se maus-tratos recebia, se havia sovas e açoites, lá no seu chão de origem, o que o espera do dito mestre corânico, aproxima-se do inferno, o ambiente doméstico é desolador, as crianças que vê cirandar dão-lhe a antevisão do mundo tétrico que o espera:
“As crianças que passavam por mim ali sentado, que entravam e saíam com latas penduradas no pescoço e roupas sujas e retalhadas, não me parecia pertencer à casa. Continuei, porém, sentado no meu cantinho, já não chorava, continuava a não sentir a minha alma, mas o estado de ausência total de mim mesmo não me permitia mais sentir a minha tristeza.
Não sabia se tinha fome, se tinha sono, se estava cansado de tanto andar, se estava desesperado ou se apenas queria a minha mãe de volta. O meu mundo resumia-se à minha vaguidade, ao meu estado leve de alma e à minha perdição. Tudo o que tinha, tudo o que sabia, de tudo o que me lembrava estava ali resumido e refletia-se nos olhos daquelas crianças que entravam e saiam com latas vermelhas e roupas esfarrapadas. Era esse o meu destino, o meu mundo era a minha fome, o meu sono e o meu cansaço. O meu mundo era também o desprezo e a indiferença daquelas pessoas em relação à minha pessoa”
.

Leva pontapés e passa fome, tem que andar na mendicância, leva açoites e vergastadas, e vamos saber como é que se aprende o Alcorão naquele ambiente sórdido:
“O senhor levou-me para a casa, a suposta escola, e mandou-me ficar sentado na rua à espera até o sol levantar-se. Quando os outros alunos começaram a aparecer, mandou-me segui-los para o quintal, onde se encontrava, afinal, a sua escola de Alcorão. Os alunos tomaram lugar em círculo à volta de um empilhado de lenhas e cinzas no centro. Dava para perceber que as lenhas estiveram a arder no dia anterior. Tentei olhar, por forma a fixar a cara de cada um deles, mas não fui capaz de reter nada. Todos tinham quase o mesmo aspeto. Esbranquiçados de pele, roupas esfarrapadas, cabelos encaracolados e empoeirados, corpos magros e olhos fundos de tristeza. Liam em voz alta, cada um levava uma tábua escrita a tinta preta à mão e todos com lições diferentes. Era um caos, uma dessintonia total, como jogo de sortilégio”.

Ussu é chicoteado, vergastado por aqueles jovens à ordem do senhor. E mandado a caminho da feira, vai pedinchar, ai dele se voltar para casa sem dinheiro ou arroz. E Amadú Dafé, no mais belo recorte lírico, dá-nos o estado de alma de Ussu no seu pedinchar:
“Aqui, a minha cama é o meu chão, o meu manto é a areia, a minha casa é a terra. A lua continuava a guiar-me, a correr atrás de mim e a andar ao meu lado em todas as direções e condições, iluminando-me.
Comia o vento enquanto tinha a companhia da lua. Não podia ser mais grato à natureza e a Deus. Às tantas, não queria largar a vida de talibé (aluno), realizava-me de alguma forma. Era uma vida engraçada que aprendi a ter. Ganhei-a à custa das minhas costelas, das minhas lágrimas, sobretudo da minha alma, dura e persistente”
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E era aquele terror de voltar sem dinheiro ou arroz, o prémio das chibatadas. Tem a felicidade de conhecer Lamine, mas até lá chegar teve que descer ao fundo da existência:
“Meti-me no lixo da feira e procurei, até que encontrei, uma lata vermelha igual à que os meus companheiros portavam no pescoço. Cheirava a caca, mas não me importei, nesta vida, caca é preferível a chibatadas, caca alterna nas refeições”. É neste vórtice da degradação que ele encontrou o tio Lamine, faz-se amigo do seu filho, Adulai, enquanto mendigava o tio Lamine dava-lhe de comer. “Com a barriga cheia era mais fácil pedir esmolas e as forças nas pernas eram maiores para visitar várias lojas e casas da cidade e da feira onde sabíamos que, com sorte, conseguíamos sempre um pouco de arroz ou uma moedinha. No entanto, sempre nos mantínhamos preparados para fugir às ameaças de porrada que nos prometiam, à água quente que nos atiravam, ou às humilhações que nos submetiam”.

Temos aqui a promessa de um grande escritor.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23640: Notas de leitura (1497): "Orgulhosamente Sós - A Diplomacia em Guerra (1962-1974), por Bernardo Futscher Pereira; Publicações D. Quixote, 2022 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23644: Voltamos a recuperar as antigas cartas da província portuguesa da Guiné, um dos recursos mais preciosos do nosso blogue - Parte I: De Aldeia Formosa a Buruntuma

1. Certos recursos do blogue, tais como as cartas ou mapas da Guiné, alojadas desde finais de 2005 na página pessoal do editor Luís Graça, cujo servidor era o da ENSP/NOVA, ficaram  temporariamente, indisponíveis, há alguns meses atrás. 

A página "Saúde e Trabalho" tinha já 23 anos, remontando a 1999... Chegou agora ao fim, por razões técnicas, que são alheias ao seu autor. (A "webpage" da ENSP/NOVA foi complemente redesenhada e reformulada ) 

Pedimos, na altura,  desculpa, aos nossos leitores, pelo incómodo, uma vez que ficaram privados da consulta "on line" das cartas da Guiné e outros recursos. Mas felizmente, já recuperámos todos esses ficheiros (através do gabinete de informática da ENSP/NOVA), e  começamos hoje a pôr as cartas de novo "on line", mas no nosso blogue, a partir do Arquivo.pt. 

Para já podem ser consultados no Arquivo.pt (https://arquivo.pt):  podem usar descritores  como por exemplo "mapa de Bedanda", "mapa de Bissau", "mapa de Bolama".

Repomos já aqui algumas das cartas, é só carregar no link:


Cartas na escala de 1/50 mil - Parte I

Aldeia Formosa (hoje Quebo) (vd. Xitole)

Bafatá (1955)
 
Bambadinca (1955) 
(inclui rio Geba Estreito, Nhabijões, Finete, Missirá, Fá Mandinga, Geba...)

Banjara (1956)

Bedanda (1956) (inclui Cufar, rio Cumbijã...)

Beli (1959) (inclui Rio Corubal...)

Bigene (1953) (inclui Barro, Ganturé, rio Cacheu, fronteira com o Senegal...)

Binta (1954) (inclui Olossato...)

Bissau (1949) (inclui Brá, Bissalanca, Nhacra, Safim, Cumeré, estuário do Rio Geba...)

Bissorã (vd. Mansoa)

Bolama (1952) (inclui Ilha das Galinhas)

Buba (vd. Xitole)

Bula (1953) (inclui João Landim, rio Mansoa, Binar, Encheia, Biambe...)

Buruntuma (1957) (inclui fronteira com a Guiné-Conacri)

Madina do Boé (1958) (inclui fronteira com a Guiné-Conacri...)

Mansoa (1954) (inclui Bissorã, Emcheia, Jugudul, rio Mansoa...)

(inclui Buba, Mampatá, Chamarra, rio Corubal, rápidos de Cusselinta, Aldeia Formosa...)

 (Continua)

2. Recorde-se a história destas cartas ou mapas:


Quando voltou à Guiné-Bissau, em 1996, em viagem de negócios (mas também em romagem de saudade), o Engenheiro Técnico Humberto Reis (ex-furriel miliciano da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71) já tinha adquirido as 72 cartas da antiga província portuguesa, à escala de 1/50.000. 

"Em Dezembro de 94 já me custaram 450$00 cada uma". O mapa geral custou 600$00." (A valores de hoje, correspondem a  3,8 euros e 5,07 euros, respectivamente).

Para os eventuais interessados, essas cartas podem (ou podiam em fevereiro de 2006...) ser adquiridas no Centro de Documentação e Informação do Instituto de Investigação Científica e Tropical, em Lisboa. 

Alertava-se para o facto de algumas cartas poderem já estar esgotadas. Na altura fora exigida ao Humberto Reis uma declaração da embaixada da República da Guiné-Bissau, a qual se transcreve, como simples curiosidade, com data de 29 de Dezembro de 1994:

"A Embaixada da República da Guiné-Bissau em Portugal declara, para os devidos efeitos que está o sr. Eng. Humberto Simões dos Reis autorizado a adquirir cartas geográficas da Guiné-Bissau.

"Para que não haja nenhum impedimento a tal objectivo, se passou a presente declaração que vai ser assinada e autenticada com o carimbo a óleo em uso nesta Missão Diplomática".


Presumimos que esta exigência de autorização da embaixada da Guiné-Bissau, em Lisboa,  para um turista levar consigo cartas geográficas do país, fosse ditada, na época, por razões de "segurança de Estado".

Na altura declarámos expressamente que a divulgação destas cartas, no nosso blogue.  de modo algum pretendia pôr em risco a independência e a soberania do país irmão. Nem muito menos podia ser interpretada como uma provocação. 

Também não tinha quaisquer propósitos comerciais ou outros, de índole lucrativa. Pretendia-se apenas prestar um serviço útil a todos os antigos combatentes da guerra da Guine (1961/74), independentemente do lado em que combateram, e nomeadamente aos membros da nossa tertúlia. Julgamos que podia (e pode)  ser útil também a todos os demais amigos do povo guineense e aos próprios guineenses.

Além de serem um documento de interesse historiográfico (e sentimental), e apesar de algumas lacunas (tem já mais de meio século, são muitas delas dos anos 50/60), estas cartas são sobretudo importantes  para a reconstituição da memória dos lugares e a reorganização da memória (individual e colectiva) dos antigos combatentes portugueses (sem esquecer os do PAIGC) que estiveram aquartelados e/ou envolvidos em operações na antiga província portuguesa da Guiné, hoje Guiné-Bissau. Para já dão-nos um retrato muito fiel da geografia da Guiné antes da guerra (incluindo a dimensão aproximda das diversas povoações, muitas delas desaparecidas com o início da guerra: houve regulados inteiros que ficaram sem gente, sem tabancas...).

Fica também aqui a nossa homenagem aos nossos valorosos cartógrafos militares portugueses. A cartografia portuguesa deu cartas (no duplo sentido do termo) ao mundo, é bom é dizê-lo. Às vezes (muitas vezes, quase sempre) tenho orgulho de ser (por)tuga. 

Estas cartas da Guiné são pequenas obras-primas, resultantes do levantamento efectuado aos longo dos anos 50 pela missão geo-hidrográfica da Guiné – Comandante e oficiais do N.H. Mandovi e do N.H. Pedro Nunes. A fotografia aérea é da Aviação Naval. O trabalho de restituição foi feita pelos Serviços Cartográficos do Exército. As fotolitografias e a impressão foram feitas em várias casas, de Lisboa, Porto, V.N. Gaia. 

A imagem em geral é  de boa qualidade, graças também à fotolitografia de casas como a  Papelaria Fernandes e a Arnaldo F. Silva (em geral, são os melhores trabalhos, os destas casas)… e à posterior digitalização feita na Rank Xerox. 

A imagem original tem 10 MB. Como habitualmente, a imagem que está disponível on line foi reduzida a um 1/3 da dimensão original…

A edição é da antiga Junta das Missões Geográficas e Investigações do Ultramar, do antigo Ministério do Ultramar.  

Convirá recordar que a sua paciente digitalização foi efectuada pelo Humberto Reis na Rank Xerox, em 2006. (Ele não nos disse quanto pagou, mas não deve ter sido barato...). Eu passei cada um destes pesadíssimos ficheiros (10 ou mais Mb) para outros mais leves (da ordem dos 2 Mb), procurando manter a qualidade da imagem (que tem alta resolução)...

Ao Humberto Reis, nosso mecenas,  mais uma vez a nossa gratidão pela sua generosidade (todo este trabalho foi pago do seu bolso) e a nossa homenagem ao seu carinho pela Guiné-Bissau e pelos guineenses. Não é por acaso que ele é o nosso "cartógrafo-mor" e colaborador permanente, desde então. (*)
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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 19 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12476: Blogoterapia (245): Homenagem ao nosso 'cartógrafo-mor', Humberto Reis, para o quem o nosso blogue tem uma dívida de gratidão... Que o bom irã do nosso poilão lhe dê amor, saúde, patacão, longa vida... e bons augúrios para 2014!...