Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 2 de outubro de 2006
Guiné 63/74 - P1139: A fantástica estória do soldado Fernandes, da CCAÇ 1686, Mansoa (Aires Ferreira)
Guiné > Região do Oio > Mansoa > Jugudul > 1969 > O Alf Mil Aires Ferreira, em Jugudul, a 4 Km de Mansoa, na estrada Bissau-Bafatá. A placa quilométrica assinalava as distâncias para os principais povoações, a leste de Mansoa/Jugudul: Bindoro: 10 km; Porto Gole: 25 km; Enxalé: 47 km; Bambadinca: 62 km; Bafatá: 90km... O troço estava interdito pelo menos até Porto Gole...
Fotos: © Aires Ferreira (2006)
Texto do Aires Ferreira, Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas (CCAÇ 1686, BCAÇ 1912, Mansoa, 13 de Abril de 1967/13 de Maio de 1969) (1)
A estranha estória do soldado Fernandes
Camaradas Luís Graça e Beja Santos, a demora na resposta a este assunto, é apenas devida à minha ausência lá para os lados de Ourém/Leiria por motivos profissionais e de, por lá, não ter acesso à Internet. Aqui ficam as minhas desculpas.
O soldado Fernandes pertenceu à CCAÇ 1686 e o Comandante do seu Grupo de Combate foi o Alf Moreira, que por certo se lembrará destas histórias, muito melhor do que eu.
Lá para o fim de 68, quando a Companhia já tinha uns 18 meses de comissão, a sua actividade operacional foi seriamente reduzida, não só porque estava esgotada, mas também porque houve necessidade de assegurar a ocupação dos destacamentos próximos, que pertenciam ao sector.
O soldado Fernandes - que designarei por Atleta, porque era assim que era conhecido - não era homem dado a grandes meditações e não se enquadrava bem na vida algo sedentária da tropa em quadrícula.
Habituado que estava a uma intensa actividade operacional, passou a organizar, ele mesmo, os seus patrulhamentos, sem dar conhecimento a ninguém. Não sei por quantas vezes se ausentou, talvez umas três ou quatro. Andava sempre com a sua G3 e regressava sempre passados uns dias, como se não tivesse acontecido nada. Não falava no assunto e às perguntas que lhe faziam, respondia sistematicamente com um sorriso envergonhado e um encolher de ombros.
Certo dia, chegou ao Batalhão uma informação dizendo que andava ali na zona um cubano
que assediava tudo o que fosse bajuda ou mulher grande. O Atleta é algarvio e muito moreno.
Quando alguém contou isto na messe, houve gargalhada geral e a exclamação:
- O Atleta!!!
Ninguém apresentou queixa e o assunto morreu.
Passados uns tempos, o Atleta desapareceu de novo e acho que ninguém deu importância ao caso, uma vez que já era quase habitual e era convicção geral que ele voltaria, como sempre fez.
Só que desta vez, apareceu sim, mas passado um mês, ou talvez um mês e meio, e em Mansoa nunca se soube por onde tinha andado ou o que lhe tinha acontecido.
Foi passados 38 anos que através dum Post do Camarada Beja Santos (2), fiquei a saber que o Atleta foi parar ao Destacamento de Missirá e devolvido a Mansoa num DO !
Missirá dista de Mansoa uns bons 60 km, pela estrada Mansoa - Porto Gole - Enxalé - Missirá que, pelo menos no troço Mansoa - Porto Gole, estava interdita, só se passando por lá com uma Companhia e com muita atenção.
Esta estrada passava perto da base do Locher/Changalana,que foi destruída várias vezes e sempre reconstruída nas proximidades. Proporcionou-nos magníficos combates, nos quais participou o Atleta, pelo que conhecia bem esta zona e não acredito que se fosse meter sozinho neste vespeiro.
Aquela história que ele contou, do banho na bolanha, captura pelo IN e fuga, não é verosímil, porque em Mansoa não havia necessidade disso, não havia bolanha onde tomar banho e portanto não havia esse hábito.
Por outro lado, era nossa convicção que se o IN o quisesse apanhar à mão, há muito que o teria feito.
Há que considerar uma outra hipótese, que nos pareceu na altura a mais viável. Por aqueles dias esteve atracada no Rio Mansoa, junto à ponte, uma LDM e claro está, o nosso Atleta não se privou de ir confraternizar com a tripulação e certamente arranjar boleia para qualquer sítio, talvez clandestinamente. Acho que esta é a hipótese mais plausível, ir por via fluvial até lá para os lados de Porto Gole ou Enxalé, que ele conhecia duma operação que fizemos à zona de Mato Cão e daí, então sim, ir a pé até Missirá.
O seu regresso a Mansoa foi muito discreto, nunca soubemos por onde tinha andado e o
Comando do Batalhão optou por silenciar o caso porque de facto não servia de nada punir este soldado, que não devia ter sido mobilizado para a Guiné.
Apesar do susto que apanhou e da fome que terá passado, esta não foi a sua última aventura. Houve mais. Sobreviveu, vive no Algarve e em Abril [de 2007], no nosso próximo almoço de confraternização, lá estará seja onde for, em bom convívio com os seus ex-camaradas.
Um abraço a todos os camaradas da Tertúlia.
Aires Ferreira
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1002: Um novo recruta, Aires Ferreira (BCAÇ 1912, CCAÇ 1686, Mansoa, 1967/69)
(2) Vd. posts:
15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1070: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (10): A visita do soldado desconhecido.
15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1075: O soldado desconhecido de Mansoa (Aires Ferreira, CCAÇ 1686, BCAÇ 1912)
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1 comentário:
Boa noite, pertenci à Cart 1660 e estive em Mansoa e arredores entre Feveriro de 1967 a Agosto de 1968. Fico admirado de ler aqui que no ano de 1999 a estrada mansoa/Portugol estava impedida de transitar. Em 1968 fui 2 vezes de Mansoa a Porto Gole e passava-se bastante bem. Conheci esse camarada a que apelidava de atleta. Acho que ele teve alguns louvores e também punições. Abraço. 1º cabo atirador, Lobo cart 1660.
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