sexta-feira, 1 de junho de 2007

Guiné 63/74 - P1806: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (48): Junho de 1969: Missirá em estado de sítio


Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 28 de Maio de 1969 > Aerograma enviado pelo Beja Santos à sua noiva, Maria Cristina Allen, logo a seguir ao ataque do PAIGC a Bambadinca, sede do sector L1 da Zona Leste (1). O aerograma, que tem a data do correio de 31 de Maio de 1969, dá pormenores do ataque e confirma a ida (temerária) do Beja Santos com um grupo de voluntários em socorro de Finete (que se julgava estar a ser atacada nessa noite) e depois, possivelmente, já pela manhã, a sua visita a Bambadinca, ainda não refeita do susto. Passo a transcrever (LG):

(...) "Mas foi Bambadinca que foi atacada! Julguei delirar, impossível! Mas lá fomos a toda a velocidade pela bolanha [de Finete] fora até ao cais, onde já nos esperavam três tanques ligeiros do Machado [, coamdnate do Pel Rec Daimler]; após travessia com lodo até à cintura, lá chegámos à área desvastada, onde os meus camaradas iam dando pormenores da refrega.

"Os rebeldes vieram pela pista de aviação e cemitério, atacaram o quartel frente à porta de armas, a tabanca fula [Bambadincazinha,], onde o Almeida [, comandante do Pel Caç Nat 63,] tem a sua tropa nativa, começou a ser incendiada, enquanto as morteiradas caíam na central eléctrica, residência de oficiais e sargentos.

"Todos, que nunca sonharam ser possível um tal arrojo, encheram-se de pânico, e vieram para a a parada onde desataram a fazer fogo desnorteado, e só um milagre salvou os resultados trágicos. Os abrigos encheram-se, mas ninguém fazia fogo. Só o Capitão Neves se pôs no morteiro, e a tropa do Almeida repeliu os rebeldes que já avançavam para a residência de oficiais. E lá retirarm quando o pesado morteiro de Bambadinca começou a fazer os seus estragos. Muitos quartos esburacados, tectos desfeitos. Crises de histeria entre a filharada e mulheres de oficiais e sargentos.

"Com a nossa chegada, só aquela espontaneidade possível em actos de guerra - abraços, a rapaziada negra dando aso ao seu contentamento por não ter havido mortos nem feridos graves. Só o apontador do morteiro do Almeida, que de manhã estivera em Finete, enquanto fôramos a Chicri, foi atingido , mas sem consequências de maior" (...).

Fotos: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.

Caro Luís, aqui vai folhetim da semana, com o texto revisto. Toma esta como a versão definitiva. Reenvio-te uma fotografia do furriel Pires. Sexta feira 18, reencontrarei o Augusto e o Calado para falarmos da flagelação de Bambadinca a 14 de Junho. Voltarei ao teu contacto a partir de 14. Os livros aqui referidos seguem pelo correio. Quando tiveres um período mais brando no teu trabalho, não te esqueças que me prometeste as cartas de Bambadinca/Mansambo/Xitole e Bambadinca/Xime. Adeus e até ao meu regresso, Mário.

48ª Parte da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (2). Texto enviado a 9 de Maio de 2007. Subtítulos do editor do blogue.

A noite em que Missirá viveu em estado de sítio, por Beja Santos


O Pires sugeriu que o nosso encontro se realizasse na Livraria Barata, na Avenida de Roma, em Lisboa, pelas 18 horas. Foi mais pontual do que eu, o que deu para eu me ir aproximando e medir as transformações operadas neste camarada da guerra, de quem me despedira em 1970.

Ainda nos encontrámos uma vez a seguir ao 25 de Abril, numa récita da ópera La Bohéme, no Coliseu dos Recreios, mas não pudémos conversar. O Pires, que depois do Saiegh e do Casanova foi o furriel a quem devo mais atenções, mantém o seu sorriso doce, modos calmos, voz ponderada mas o rosto está marcado por uma exaustão patológica (virei a saber que teve um enfarte, há mais de 10 anos).


O reencontro com o Furriel Pires

Escrevera-lhe a pedir esta reunião, explicando-lhe taxativamente que gostava de ter a sua ajuda, nomeadamente para os acontecimentos de Junho de 69 em diante. Rememorou episódios depois de me ter advertido que tudo estava esfumado e com pouca sequência.

Chegara a Bissau em Janeiro desse ano, vindo no Alfredo da Silva. Estivera uns meses em Bissau até que foi informado que ia partir para Missirá. Tinham-lhe dito que era uma zona calma. Chegado a Bambadinca, talvez para o praxarem, a informação passou a ter um sentido totalmente oposto . O que mais o chocara fora a falta de informação sobre usos e costumes, o tipo de guerra, as melhores respostas para conviver com a população civil, a total ausência de informação cultural, religiosa ou etnográfica.

Lembrava-se dos episódios da flagelação de 17 de Julho, da brutalidade da época das chuvas, da dureza dos nossos abastecimentos, dos bidões a rolar de Missirá para a fonte de Cancumba e desta para o balneário de Missirá, dos macacos cães a roubarem a batata doce e os agricultores aos gritos. Trazia algumas fotografias, e de repente vejo-o perto do poço cuja construção tinha vindo a ser adiada desde a visita do Capitão Neves, em Fevereiro. O régulo Malã tinha dúvidas se era possível captar água no centro de Missirá. Depois, descobriu-se um especialista em fazer poços e lá para Maio arranjou-se uma verba, o especialista veio do Cossé, era um mandinga que se sentava com as pernas cruzadas, começava a cavar à volta dele, tirava terra e voltava a cavar, desbastou , foi fazendo buracos dentro de um círculo onde formou paredes e que eram o seu suporte para subir e descer enquanto fazia o poço. Até que um dia que nos avisou que havia água a 5 metros de profundidade. O poço nunca foi muito utilizado e curiosamente ficou danificado na flagelação de 17 de Julho.


Um mês de Junho de 1969, a ferro e fogo

Eu procurava intervir e fazer perguntas, em muitos casos havia o bloqueio de "não me recordo" ou "não sei se estava lá". Não, não se lembrava daquela noite em que eu ficara angustiado com doze soldados mais inválidos que sãos e uma população civil armada de Mauser, à espera do pior, depois de ter ouvido fogo para lá de Finete e ter esperado horas em vão pela vinda da coluna comandada pelo Casanova. Vale a pena contar.

O mês de Junho foi vivido a ferro e fogo em todo o sector L1 [da Zona Leste] : emboscadas, ataques brutais a tabancas em autodefesa, minas, operações com e sem contacto, flagelações nas operações de desmatelação, de Xime a Amedalai, do Xitole à Ponte dos Fulas, obuses sobre Mansambo, a surpresa e o pavor do fogo a todos tocou.

A 4, a meio da manhã, o Pimbas saiu de surpresa de um helicóptero e veio ver o andamento dos trabalhos, creio que por imposição do Felgas. Será a sua derradeira visita a Missirá Aproveitou para desabafar:
- Olha, ficas a saber que devo ter os dias contados aqui. A toda a hora recebo questionários de Bafatá, o Felgas fala-me com rispidez, acusa-me de inoperância. Sei que não vou aguentar esta pressão. Pá, faz as tuas emboscadas nocturnas, vai a Mato de Cão, não me peças mais tropa que não tenho, vamos dividir o mal pelas aldeias, mantém o quartel limpo para evitares novas reprimendas e aproveito para te agradecer teres ido naquela noite de flagelação a Bambadinca.

A 14, Bambadinca voltaria a ser flagelada durante alguns minutos e a partir daí o Pimbas não voltou a ter descanso e acabaria por ser punido. É por essa altura que nasceu a peregrina ideia de fazer o destacamento no rio de Udunduma, um buraco onde havia uns abrigos mal amanhados, umas valas, e nada para fazer já que a tropa ali sediada não podia abandonar, fosse em que circunstâncias fosse, a posição defensiva.

Em Missirá, com cada vez gente mais doente, íamos à Aldeia do Cuor para vigiar o que se passava do lado de lá em Bissaque, já que o roubo de vacas passara a ser denunciado por gente de Mero em Bambadinca.

Mato de Cão, escrevi eu, passa a ser uma penitência duas vezes ao dia, o que obriga a duas colunas de 15/20 homens cada e a fazer com que metade de Finete esteja permanentemente a circular pelas picadas de Malandim até Gambaná, encontrando-se com os elementos de Missirá. O Geba, pelas minhas contas, está a escoar toda a mancarra do Leste e a trazer cada vez mais munições e armamento pesado.

É no meio deste pesadelo de fogo que se ouve no fim da tarde pela madrugada fora, de gente que vai carregada de malária para os reforços, de colchões que aparecem a boiar nos abrigos depois de dias seguidos de intempérie, que pelas 10 de manhã o Casanova à frente de uma coluna vai buscar arroz para uma esfomeada população civil. Antes destas partidas, fazíamos as contas até uma ginástica impossível de garantir contigentes em Finete e Missirá, gente em Mato de Cão e mais alguma gente a aprovisionar o Cuor. Seriam 6 da manhã quando negociei os horários:
- Fico aqui com doze homens nas obras, nos postos de sentinela estarão civis, vocês regressam o mais tardar pelas 5, eu parto para Mato de Cão às 8 da noite , os doze que ficam irão para uma emboscada não mais de duas horas, no regresso irão também fazer reforço. Que ninguém saia de Finete, entrega esta carta ao Bacari Soncó, regressarei de Mato de Cão ao amanhecer e ele partirá para novo patrulhamento pelo meio dia. Não quero confusões nos horários.

Passaram-se as cinco e as seis da tarde, anoitece e ouve-se fogo de canhões sem recuo, morteiros e bazucas, há quem diga que é Amedalai, talvez Demba Taco, talvez o Xime, a serem flagelados . Não será Finete? Não estará o Casanova a defender Finete? O escuro sepulcral esbate todas as formas, obriga a tomar decisões urgentes, extraordinárias. Convoco o chefe de tabanca Mussá Mané que me ouve atónito: até chegar a coluna de Finete, as mulheres e as crianças vão para os abrigos; a partir dos 16 anos, todos os homens pegarão nas suas Mausers e estarão nos postos de vigia, levem toda a comida que possam, ninguém está autorizado a voltar às cubatas; os doze militares disponíveis, caçadores nativos e milícias, são distribuídos pelas metralhadoras, recebem dilagramas, vão para os morteiros. O régulo aparece e faz perguntas. Eu respondo:
-Estamos em estado de sítio, não sei se vai haver ataque, até acredito que nada aconteça, mas o pior seria não estarmos precavidos. Conto que me vai ajudar, ninguém dorme até chegar a coluna de Finete.

E assim aconteceu e se viveu a noite mais insólita de Missirá, com o choro de crianças, os civis a bombear petromaxes , um soldado a dormitar junto do morteiro enquanto outro vigiava, o Teixeira a fazer perguntas para Bambadinca, mensagens sem resposta. Ninguém sabia da coluna de Finete, não havia pormenores sobre as flagelações, no meio dos equívocos já me perguntavam se Missirá fora atacada, pediam-me para não sair.

A coluna de Finete chegou às 8 da manhã e encontrou uma população barricada e ensonada. Como África é África, tudo acabou às gargalhadas, já que havia uma explicação plausível para o Casanova não ter saído de Finete. A coluna estava pronta para sair pelas 5 da tarde, altura em que se ouviram tiros de obus no Xime e pensou-se que havia uma grupo rebelde a cambar o Geba perto de Mato de Cão ou Enxalé. Fizeram-se contas e pensou-se que era a vez de Finete ser atacada. Por isso a coluna permanecera até ao amanhecer, à espera do pior. Ouvi tudo a cair de sono, fui tomar banho e parti para Finete. Rezei a todos os santos para que nunca mais voltasse a ter uma experiência como esta.


Passou um ano desde que desfilei no 10 de Junho no Terreiro do Paço

O meu estado de saúde não melhorou desde que o David Payne me pediu para repousar e eu desobedeci. O correio em chamas da minha família deixa altas colunas de fumo na minha ala. Sei que não posso contar com mais tropa e que esta época das chuvas está a deixar muita gente enfermiça. Consulto amigos, escrevo e peço conselhos: devo casar por procuração, deixar a Cristina em Bissau, à espera de uma transferência para um território mais pacífico? Não posso tomar decisões de ir a Lisboa, ainda não recebi o veredicto ao meu recurso. É uma época em que escrevo pedaços de diário num aerograma, adormecendo a meio, deixando frases ininteligíveis com que devo assustar quem me lê do outro lado do oceano.

Passou um ano desde que desfilei no 10 de Junho, no Terreiro do Paço. Sente-se que a guerra está a conhecer uma nova evolução e nós impotentes. Os vermes do cansaço, os gestos automatizados, as viaturas atascadas, as colunas de víveres com transporte a tiracolo, é o que recordo deste tempo dominado pelos tornados, chuvas torrenciais, soldados e civis à porta da enfermaria de Bambadinca, um PAIGC que instalou a supremacia da surpresa. Vou ainda tentar reagir.

Para a semana, ainda sem saber que em breve haverá modificações na constituição dos sectores e que Enxalé sairá do sector de Mansoa e passará para o sector de Bambadinca, meto-me à estrada e regresso a esse Enxalé donde os meus soldados partiram para Missirá, em 1966 . Não há sinal de qualquer reacção à emboscada de Sinchã Corubal. No fim do mês, farei uma viagem relâmpago a Bissau para ir testemunhar a favor de Ieró Djaló. Consola-me ler no aerograma que vieram algumas toneladas de materiais e que o Serifo Candé ficou a tomar conta do gerador. Haverá ainda uma pequena flagelação, mas será a partir de Julho que o bigrupo de Madina/Belel irá estar presente na evolução da nossa guerra. É o que por ora vos tenho para contar, relembrando com calafrios os segundos, minutos e horas daquela noite de estado de sítio.

O Leproso, um conto do Miguel Torga cuja leitura me marcará durante décadas

Exausto , procurei releituras ou leituras aligeiradas. A minha mãe emprestou-me Novos Contos da Montanha, uma edição de 1945. Até então Torga para mim era A Criação do Mundo e os Bichos. Comove a grandiosidade destes relatos onde a paisagem rural predomina, entre pedras, barrocos e pastoreio, uma religiosidade trágica, relatos de contrabando, ajustes de contas à facada e a tiro de zagalote.

Capa, da autoria de Victor Palla, do livro de Miguel Torga, Novos Contos da Montanha, Coimbra Editora, 1945.

Foto: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.


Mas destes contos um vai ficar, impressivo, a boiar na memória e entrará em funções décadas mais tarde. Trata-se de "O Leproso". Durante uma cava, Julião fez a corte a Margarida que o trata por "leproso dos infernos". De uma horrível inquietação passou-se mesmo à condenação como Torga descreve:

"Havia muito que qualquer coisa em si medrava como o morrão nas espigas por amadurar. Cresciam-lhe na cara gomos de carne dura, insensível e vermelha...". Votado ao abandono, ninguém quer saber do Julião, todos fogem dele, imagem da peste. Confirmada a doença, resta-lhe ainda uma última esperança, um remédio que o livre da sua cruz. Então toma banho em azeite, cheio de fé olhando os pés transformados em patorras, os caroços no peito, sôfregos como cogumelos numa podridão. Depois, agarrou na vasilha e revendeu o azeite em que se banhara a um comerciante que por sua vezo passou para a população. Um dia soube-se tudo e instalou-se o terror no povoado:

"Ficavam como petrificados no mesmo sítio, invadidos de nojo, agoniados, a deitar contas à última almotolia que tinham comprado. E no fim, quando a dura certeza se lhes impunha, queriam arrancar o estômago, purificar-se daquela peçonha, vomitar no mesmo instante a lepra que já sentiam no sangue".

Mais tarde, quando precisei de um texto que falasse de terrores alimentares foi a este "O Leproso" que recorri, lido a horas desencontradas no novo abrigo de Missirá. Releio igualmente Ficções de Jorge Luís Borges, mas confesso que estes caudais de cultura, prodigiosamente redigidos, deslumbram mas parecem ser alimento de pouca dura. Mal sei eu que este Borges vai permanecer um grande companheiro, um mestre insuperável que ajuda a tornar mais simples as complexas maquinações do conhecimento.

Em Bafatá encontrei Mickey Spillane e o seu mais fogoso cavaleiro andante, Mike Hammer. Em O Reverso do Espelho este detective digno dos livros da série negra é confrontado com um génio criminoso, uma criança obrigada a crescer e usada à exposição do seu génio até saltar todas as fronteiras da perversidade. Nesta época, o gráfico da Colecção Vampiro é o pintor Lima de Freitas que nos deixa neste livro a marca do seu talento.

Capa, da autoria do pintor Lima de Freitas, do romance policial de Mickey Spillane, O reverso do espelho. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Vampiro, 235).

Foto: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.


Antes de adormecer, escrevo a 11 de Junho à Cristina:

"Peço-te o favor de visitares a D. Alzira Pimentel Bastos, a mulher do meu Comandante, que se encontra em Lisboa a cuidar da sua octogenária sogra. A morada é Rua Ponta Delgada, 65, 2º esq, telefone 44033. Chove agora muito, as trovoadas voltaram, há formigas e bicharada que nos obriga constantemente a levantar de noite. Tenho tantas saudades tuas!".

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Nota de L.G.:

(1) vd. post de 25 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1786: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (47): Finete já está a arder ? Ou o ataque a Bambadinca, a 28 de Maio de 1969

1 comentário:

Anónimo disse...

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