domingo, 2 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3394: Blogoterapia (68): Amnésia, vergonha, denegação ou ocultação dos próprios nossos mortos (Luís Graça)


Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Capela de Nossa Senhora do Socorro (1877) e Cemitério da freguesia (c. 1890) > 1 de Novembro de 2008 > O recinto de festas da N. Sra. do Socorro, na freguesia de Paredes de Viadores, enche-se de viaturas e pessoas que, aproveitando o feriado de Todos os Santos, vêm celebrar o Dia dos Fiéis Defuntos, ou Dia de Finados, ou simplesmente Dia dos Mortos, que no calendário religioso é a 2 de Novembro. Hoje há missa às 2 horas da tarde. Depois o padre segue para o cemitério para uma breve cerimónia religiosa, aspergindo com água benta as sepulturas. É um acto de comunhão entre vivos e mortos. Antigamente, creio que antes do Vaticano II, havia três missas, seguidas... Mas mesmo hoje a capela, que data de 1877, torna-se pequena para a multidão que aqui se junta. A fé já não é (nem pode ser) a mesma, mas o ritual mantém-se. Como há séculos.


O cemitério local enche-se de flores -hoje ostensivamente - e durante toda a tarde as famílias da freguesia visitam as campas dos seus mortos e convivem, ruidosamente umas com os outros. A festa dos mortos é também a celebração da vida, da convivialidade e do reforço dos laços dos vivos, que são vizinhos uns dos outros, e que também estão na lista dos candidatos ao além, só que não sabem em que lugar... Só o barqueiro de Caronte (*) é que tem a lista dos passageiros. É também quiçá a recusa da morte, da partida definitiva, do fim da peregrinação terrena, a reivindicação da imortalidade, a manifestação da culpa por se estar vivo em lugar daqueles de nós, que nos eram muito queridos, e que morreram (ou partiram) antes de nós...

Quem vive mais longe (Porto, Lisboa...), vem de propósito neste dia enfeitar as campas dos seus entes queridos, aqui enterrados... Terra de antigos rendeiros, pobres, que fazem hoje questão de mostrar, aos ricos e aos fidalgos de antigamente, que a democracia e a liberdade trouxeram também a igualdade de oportunidades e a mobilidade social... No meio do pequeno cemitério da freguesia de Paredes de Viadores, há ostensivamente uma capela, a da família da Casa da Igreja, que foram desde os tempos do liberalismo, os verdadeiros donos e os senhores desta terra e dos seus habitantes... No cimo da porta da capela, em estilo revivalista, neogótico, pode ler-se a frase niilista, latina, Memento homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris (Lembra-te, ó homem, que és pó e em pó te hás-de tornar)... Mesmo na morte, os homens tentam, patética e inutilmente, reproduzir a segregação sócio-espacial que mantinham em vida... É por isso que eu gosto da designação dada a alguns cemitérios (públicos) no sul: Campo da igualdade... Metaforicamente falando, a gadanha da morte ceifa tudo e todos, ceifa rente a vida, e não poupa tanto a espiga de trigo como a erva do campo, o rico e o pobre, o herói e o cobarde, o novo e o velho, o são e o doente, o herói e o cobarde, o amigo e o inimigo...




Marco de Canaveses > Freguesia de Paços de Gaiolo (outrora pertencente ao concelho de Bem Viver, extinto em meados do Séc. XIX) > Cemitério local > As duas únicas campas de terra batida, num cemitério de mármores e granitos reluzentes... São de dois já esquecidos combatentes da guerra do Ultramar: Joaquim M. P. de Araújo, morto em Angola, em 21/6/63 (ao que parece, de acidente), e Francisco Gonçalves Soares, "morto em combate em Moçambique", em 27/6/68... Há mais de quatro décadas: já é muito para a memória dos povos...

Passei por lá, e havia gente à volta das campas, de todas as campas, menos destas duas... Tirei fotografias aos grandes, vistosos e dispendiosos arranjos florais, sobre as pedras de mármore que devem ter custado os olhos da cara aos herdeiros... Fotografei grupos de familiares e amigos em amena (e aqui e acolá alegre, viva, saudável) cavaqueira. Percebi que a homenagem aos nossos mortos é também ( e sobretudo ?) para os vivos se mostrarem uns aos outros... Que estão vivos, e de boa saúde, e que estão prósperos, bem de vida... Mas que também têm sentimentos e que têm decência e recato e memória e saudades... E que sabem chorar, sinceramente, os seus mortos.

No sul, também há o culto antiquíssimo, pagão, dos mortos... Mas aqui, no norte, o cristianismo (e a Igreja Católica Apostólica Romana) soube enquadrá-lo melhor...

Por todo o país, no Portugal profundo, os mortos são lembrados no seu dia. All souls' day, diz-se em inglês. O dia das alminhas (que ternura de termo!), como diz o nosso povo. Leio na Enciclopédia Católica (cuja origem remonta a 1917) que "the theological basis for the feast is the doctrine that the souls which, on departing from the body, are not perfectly cleansed from venial sins, or have not fully atoned for past transgressions, are debarred from the Beatific Vision, and that the faithful on earth can help them by prayers, almsdeeds and especially by the sacrifice of the Mass. (See PURGATORY.)"...

Traduzindo para a língua do Gil Vicente, Camões, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, Ruy Belo ou Herberto Helder: A fundamentação teológica desta festa é a doutrina segundo a qual as almas que, ao partirem do corpo, não estejam perfeitamente limpas dos pecados veniais, ou não tenham totalmente expiado as suas transgressões passadas, ficam privadas da Visão Celeste. No entanto, os fiéis sobre a terra pode ajudá-los por intermédio de orações, esmolas e sobretudo do santo sacrifício da Missa. (Ver Purgatório.)

Marco de Canaveses > Freguesia de Paços de Gaiolo, junto ao Rio Douro > Cemitério local > 1 de Novembro de 2008 > Um dia do ano, lembramos também os nossos mortos, os que partiram antes de nós no barco de Caronte... E alguns, como os antigos combatentes da guerra do ultramar/guerra colonial, partiram nos seus verdes anos, muito antes da sua vez... Em Paços de Gaiolo, encontrei duas campas, lado a lado, de terra batida... Dois modestos jarros com malmequeres davam a entender que ainda têm entes queridos, lá na terra, que se lembram deles... Ou amigos ou vizinhos... A modéstia dos malmequeres constrastava com os caríssimos arranjos florais que, mesmo em época de crise, os vivos fazem questão de trazer da cidade para homenagear os seus mortos na aldeia... Como este que aqui se reproduz...


Não sei qual é o entendimento da Igreja Católica em relação aos seus membros que morrem em combate... Pode ser-se herói da Pátria e mesmo assim não se estar na lista dos eleitos... Pode ter-se morrido pela Pátria e mesmo assim esse sacrifício ter sido perfeitamente inútil... Ou no mínimo, branqueado, ignorado, esquecido, ocultado ou até mesmo denegado. Pode-se ter morrido pela Pátria, Mátria ou Fátria, em Angola, Guiné ou Moçambique, e mesmo assim ser-se completamemente esquecido (o pior dos abandonos) nos nossos cemitérios, no dia das alminhas...
Para onde vão as almas dos combatentes ? Quase sempre, muitas vezes, em toda a parte, para o limbo, para o purgatório do esquecimento. Como em Paços de Gaiolo, ou em tantas outras freguesias do nosso querido Portugal profundo...

De facto, a guerra do ultramar nunca existiu. Os mortos do Ultramar nunca existiram. Há uma amnésia geral em relação aos nossos mortos do Ultramar, uma espécie de denegação, de branqueamento, de alívio... Por que o fim daquela guerra foi literalmente o fim de um pesadelo... Para os jovens da minha geração. E é bom que os jovens de hoje saibam isso: havia o serviço militar obrigatório e era altíssima a probabilidade de se ser mobilizado para uma das três frentes de guerra que Portugal mantinha em África... Hoje há pudor em falar desta guerra, pudor, vergonha, culpa... Da guerra e dos seus mortos, dos trasladados e dos insepultos, dos seus desaparecidos, dos seus estropiados, dos seus mortos-vivos, dos que vagueiam, ainda hoje, como fantasmas pelas margens do Rios Geba, Corubal, Mansoa, Cacheu, Buba, Cumbijã, Cacine, na Guiné, ou nos rios de Angola e de Moçambique...

Se calhar a amnésia é recíproca: de nós, felizardos que estamos vivos, em relação a eles que tiveram o azar de morrer (quase sempre de morte matada); e se calhar deles em relação em nós, já que não mais nos visitam, nem nos assombram, nem nos incomodam, nem nos questionam...

No dia dos Fiéis Defuntos, os que morreram de morte matada no campo de batalha, na África remota, distante, não têm uma menção especial, uma atenção especial, um ramo de flores especial... Será que deveriam tê-lo ? (**)

Fotos e legendas: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.

__________

Notas de L.G.:

(*) Na mitologia grega, Caronte ou Kharon (do grego, Χάρων - o brilho, o fulgor) era o barqueiro do inferno (onde reinava Hades) que cambava as almas dos recém-falecidos para a outra margem do rio que dividia o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Era costume, entre os gregos da Antiguidade Clássica, deixar na boca do morto uma moeda - geralmente um óbulo - para pagar a Caronte o bilhete da viagem (que era sem regresso).

Aqueles que não podiam, por qualquer motivo, pagar a tarifa, ou cujos corpos ficavam insepultos (no campo de batalha ou em caso de catástrofes naturais, por exemplo), vagueavam pelas margens do rio durante um período de cem anos. Só muito poucos - heróis como Eneias, músicos e poetas como Orfeu... - tiveram o privilégio de viajar no barco de Caronte, com bilhete de ida e volta...

(**) Vd. o magnífico texto escrito, sobre este tópico, pelo nosso Esquilo Sorridente, nome de guerra do Zé Teixeira entre os escuteiros> 2 de Novembro de 2008> Guiné 63/74 - P3391: In Memoriam (10): Recordemos os camaradas que se foram desta vida (José Teixeira)

3 comentários:

Anónimo disse...

Luís,
Desculpa mas como católico tenho obrigação de dizer, em nome de Cristo Filho de Deus feito Homem, que foi morto por pregar o amor entre os homens e regeitar a Guerra, todo o ser humano é igual perante Deus. Hoje em dia o Catolicismo é o Deus Verdadeiro,não o do inferno, mas o do amor, que recebe o Homem verdadeiro, independentemente de ser praticante ou não.

Quanto a recordações dos que fizeram a Guerra, informo que no dia dois em todos os Cemitérios que visitei, havia uma placa que dizia mais ou menos isto: "Aqui jazem valorosos soldados Portugueses que morreram em nome da Pátria.

Na minha pequenina aldeia da Planície, também tive conhecimento que essa lápide, foi descerrada por um camarada de Op. Especiais na presença do padre Moisés pároco da freguesia e do major Balsinha presidente do Núcleo de Elvas, da Liga dos Combatentes.

Mais uma vez as minhas desculpas, mas estes são casos verídicos.

Um abraço,

Mário Fitas

Luís Graça disse...

Querido Mário, Lassa, ranger, amigo e camarada da Guiné, português, alentejano:

Mas não tens que pedir desculpa, nem a mim nem a ninguém… Pedir desculpa de quê ? Podemos não usar os "mesmos óculos" para ler a realidade, o que nem sequer é o caso ? Ou não chegarmos às mesmas conclusões ?

Na tua aldeia, há desvelo, carinho, cuidado, saudade, em relação nossos camaradas que morreram na guerra do ultramar… Óptimo, fico contente e dou-te os parabéns; noutras aldeias, pode dar-se uma situação inversa... Repara: não fiz nenhum estudo sociológico, a nível nacional, sobre a atitudes e os comportamentos da nossa população em relação aos nossos mortos da guerra do ultramar, que me autorize a tirar conclusões (nem provisórias nem definitivas)...

No meu texto pus apenas as minhas observações particulares, a minha sensibilidade, a minha idiossincrasia, em relação ao que vi, com os "meus óculos", num pequeno cemitério do Douro Ribeirinho, no dia 1 de Novembro de 2008... Não posso (nem devo) fazer generalizações (abusivas) para todo o país... Por (de)formação profissional, como sociólogo, costumo fazer essa prevenção...

Reconheço, por outro lado, que também se está a fazer um esforço, nas nossas aldeias, vilas e pequenas cidades, para que os mortos do Ultramar não morram duas vezes (a segunda por esquecimento e abandono). Mal ou bem, vão se levantando pequenos monumentos às vítimas (portuguesas) da guerra do ultramar, geralmente da iniciativa de associações ou grupos de veteranos. Para todos os efeitos, foi o último grande conflito armado em que o exército português esteve envolvido, longe de casa, e por muito tempo (13 anos).

Agora, a minha impressão (e posso estar errado) é que há, inevitavelmente (?), um processo, intencional ou não, natural ou não, de "apagamento da memória" desse tempo, que foram anos de brutais mudanças da sociedade portuguesa (desagregação do império colonial, urbanização e industrialização aceleradas, liberalização, mudança de costumes e de hábitos de consumo, êxodo maciço dos portugueses, que saem das suas terras para ir combater em África, ou para trabalhar na cidade, ou para "dar o salto" para França, etc., etc.).

Espero, por outro lado, que não te tenhas sentido ofendido por eventuais incursões minhas no terreno da fé... Sou um homem de ciência, respeito a tua fé de católico, o que não me impede de gostar do mito (grego, homérico) do barqueiro de Caronte.
A nossa civilização europeia, ocidental, bebe de duas grandes fontes: a helénica e a judaica... A nossa riqueza é também a nossa diversidade cultural... O teu e o meu comentário são também a garantia de que podemos, no nosso blogue, abordar todas essas complexas questões do sentido da vida e da morte, com serenidade, com tolerância, com respeito mútuo... Saber discordar, de resto, é muito saudável, mas não é infelizmente um traço muito característico da generalidade dos portugueses... Somos gente mais do NIM do que do NÃO...

Um Alfa Bravo apertado como o Geba Estreito em Mato Cão.

Luís

Anónimo disse...

Caro Luís,

Acho que estamos em sintonia.
Diferentes, mas ambos vimos verdades que acontecem neste pequenino pedaço de Terra.

O apagamento da memória, infelizmente é verdadeiro, o pouco que alterou, foi esforço de todos nós. Resta-nos a esperança que os nossos filhos cheguem a ter conhecimento de toda a verdade. Por isso lhe vamos escrevendo Aqui a nossa História.

Quanto à Fé!?
A Religião não se discute!
Sou de facto católico, ecuménico do Vaticano II. Embora a roda dos tempos, olho com admiração Oscar Romero, Helder Camara, etc. etc.
Falo destas coisas, para que as pessoas me conheçam.
Sem complexos digo-te, admiro Francisco de Assis! Por ter sido militar e ser ferido em combate? Por ser aslcunhado de louco ao tratar dos leprosos e gostar dos passarinhos? Não o sei!
Sei que tenho a capacidade (sem pruridos) de falar com Judeus, Islamitas, Budistas (adorei ler Sidarta)e Indus, etc.
Não somos donos da verdade.
Limito-me neste campo, a respeitar a dos outros.

É bom falar porque a luz brota.

O velho abraço do tamanho do Cumbijã,

Mário Fitas