1. Mensagem de Sousa de Castro (*), ex-1.º Cabo Radiotelegrafista da CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1971/74, com data de 29 de Maia de 2009:
Assunto: As lágrimas de um ex-combatente no momento de enfrentar a memória
http://semanal.omirante.pt/index.asp?idEdicao=393&id=54202&idSeccao=5930&Action=noticia
Com os cumprimentos do
Sousa de Castro
2. Fazendo uso da informação que o nosso camarada Sousa de Castro nos fez chegar, e com a devida vénia ao semanário regional "O Mirante" (**), reproduzimos uma notícia inserida na sua edição online do dia 28 de Maio de 2009.
O Mário Beja Santos da defesa dos consumidores volta a vestir o camuflado(***)
As lágrimas de um ex-combatente no momento de enfrentar a memória
Não há nada que sacie a vontade que os ex-militares têm de contar o que se passou e o que passaram na guerra colonial. Mas depois de anos de um silêncio muitas vezes auto-imposto queixam-se que a sociedade continua sem querer saber.
Mário Beja Santos lê devagar. Pausadamente. Suspeita que se vai emocionar. “Ergui a tua cabeça e tu disseste-me baixinho: “Alferes, dá-me um tiro para acabar tudo”. Afastei-te a espingarda, o Jolá rasgou-te o dólman, tirou-te os restos das botas. Tu estavas muito mal, o braço esquerdo todo rasgado, buracos no peito, estilhaços nas pernas, pensei que tinhas perdido os dois olhos, tal o mar de sangue.”.
Silêncio total no pequeno auditório da biblioteca. O ex-oficial miliciano do exército português, mais conhecido como um dos primeiros portugueses na frente de luta em defesa dos consumidores do que como combatente na frente Leste da Guiné-Bissau entre 1968 e 1970, é traído pela emoção. Chora. Pede desculpa e retoma a leitura de um dos textos do seu livro “Diário da Guiné (1º volume) - Na terra dos Soncó ”. A voz sai marcada pela emoção. O episódio tem por título “O presépio de Chicri”. Tudo aconteceu há mais de 40 anos. Tudo acontece naquela tarde de sábado, 23 de Maio de 2009.
“Retirámos aos tombos, eu levava entre os dentes o teu braço esfacelado, e vamos percorrer os quilómetros mais dolorosos da minha vida até chegarmos ao anfiteatro de Chicri. Não sei quanto tempo durou esta viagem alucinante. Finalmente, depositei-te, cheio de ternura, no chão. O Teixeira tentou uma ligação, a ver se conseguia que um helicóptero te viesse buscar. Não se conseguiu a ligação. O Sol estava no zénite”. Perante o olhar tenso de antigos militares que passaram pelos vários teatros da Guerra Colonial em África, Beja Santos limpa as lágrimas com um lenço enquanto tenta recompor-se.
No início da conferência, em Alverca, numa sala onde não estava mais de uma dezena de pessoas, o ex-combatente conta como o pudor o impediu de falar da sua comissão na Guiné durante dezenas de anos. “Quando estava na guerra e apesar de não ser permitido eu contava o que acontecia. Aos meus pais, aos meus amigos. Mas não encontrava ressonância. Era como se não dissesse nada. Cá recebemos o teu aerograma eu ficava furioso”.
Não foi só Beja Santos que calou a Guerra dentro do peito. No início da conversa, integrada no ciclo “Guerra Colonial realidade ou ficção”, organizada pelo serviço de bibliotecas da Câmara de Vila Franca de Xira, o orador convidado lembrara que ainda hoje não há muitas obras de artistas plásticos sobre aquele período da guerra colonial, antes de dizer os primeiros versos do poema Nabuangongo, de Manuel Alegre. “Em Nambuangongo tu não viste nada/não viste nada nesse dia longo longo/a cabeça cortada/e a flor bombardeada/não tu não viste nada em Nambuangongo”.
“Quando regressei da Guiné suspendi as minhas recordações. Baixei os painéis. Queria acabar o meu curso. Iniciar a minha vida de casado. Criei uma carapaça para fugir à tormenta das minhas memórias dolorosas”. O ex-combatente sentiu que mesmo após o 25 de Abril ninguém queria tocar no assunto. “O que estava na agenda era a descolonização. As pessoas andam todas à procura da prosperidade. Nós fazíamos parte do passado. Do período colonial. Ninguém queria ouvir as nossas histórias e nós não sabíamos onde colocar aquilo em que tínhamos participado”.
Trinta anos depois Beja Santos juntou os mais de 500 aerogramas (cartas sem franquia para troca de correspondência entre militares e família) enviados à sua mulher, libertou-se do peso que o sufocava e começou a escrever sobre a sua comissão. “Era uma vez um menino alferes que chegou à Guiné e foi lançado no regulado do Cuor, no Leste, em 1968. A sua missão principal era proteger o rio Geba, garantindo a sua navegação, indispensável para a continuação da guerra. O alferes comandava dois aquartelamentos e alguns dos soldados mais valentes do mundo: caçadores nativos e milícias, gente que vivia no Cuor, em Missirá e em Finete”
Depois de “Na terra dos Soncó” em 2008, saiu já este ano “Tigre Vadio” o segundo volume do seu Diário da Guiné. “Agora falo do que se passou com grande naturalidade” diz a certa altura da sua exposição, algum tempo antes de se emocionar e deixar correr as lágrimas ao lembrar o episódio do soldado ferido.
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 29 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4438: Convívios (136): Pessoal da CART 3494/BART 3873, no dia 13 de Junho de 2009, em Santa Catarina de Vagos (Sousa de Castro)
(**) Sobre "O MIRANTE online"
Em Novembro de 2002 O MIRANTE passa a disponibilizar a quase totalidade dos conteúdos da edição semanal através de um site colocado no endereço http://www.blogger.com/www.omirante.pt. A novidade foi o facto de tal edição ficar acessível às quartas-feiras a partir das 13h00 permitindo aos assinantes e a outros leitores da edição em papel um primeiro contacto com os conteúdos do jornal – O MIRANTE é colocado à venda à Quarta-feira de manhã e é também às Quartas-feiras que é entregue pelos correios em casa dos assinantes.
A 13 de Outubro de 2004 é disponibilizada no mesmo endereço uma edição com actualizações permanentes dando resposta a uma crescente necessidade de informação regional diária.
(***) Vd. poste de 30 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4269: Agenda Cultural (11): Ciclo de Encontros Guerra Colonial: Realidade e Ficção - Alverca do Ribatejo (Beja Santos)
7ª Sessão - 23 de Maio, às 15.30h, com o Dr. Mário Beja Santos, na Biblioteca Municipal de Alverca.
“Era uma vez um menino alferes que chegou à Guiné e foi lançado no regulado do Cuor, no Leste, em 1968. A sua missão principal era proteger o rio Geba, garantindo a sua navegação, indispensável para a continuação da guerra. O alferes comandava dois aquartelamentos e alguns dos soldados mais valentes do mundo: caçadores nativos e milícias, gente que vivia no Cuor, em Missirá e em Finete. Mas havia outras missões, para além de proteger o rio: emboscar, patrulhar, minar, atacar e defender, garantir um professor para as crianças, reconstruir os quartéis flagelados, levar os doentes ao médico, praticar com o régulo, um destemido Soncó, neto de Infali Soncó que derrotara Teixeira Pinto no dealbar do século XX. Era uma vez um alferes que aprendeu a trabalhar com um morteiro 81, a emboscar na calada da noite, a enterrar os mortos e a levar os moribundos às costas. Era uma vez um alferes que se deslumbrou com as terras dos Soncó e que resolveu escrever um diário para se manter vivo e lembrar aos entes queridos que se estava a fazer um homem. A partir daquela guerra, Cuor e os Soncó viveram para sempre no coração do alferes. Era uma vez…”
Documentos de Divulgação em anexo.
Vd. último episódio da série de 5 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4283: Recortes de imprensa (19): O pesadelo das minas (Nelson Herbert)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
#Não há nada que sacie a vontade que os ex-militares têm de contar o que se passou e o que passaram na guerra colonial. Mas depois de anos de um silêncio muitas vezes auto-imposto queixam-se que a sociedade continua sem querer saber.#
Vem escrito no Mirante e enviado pelo Sousa de Castro.
Pode servir para depois de ler reflectir. Ou não.
O Mário Beja Santos foi um bom Combatente. Testemunho isso.
Consegues chorar Mário? Deve ser bom. Um Abraço Camarada.
Abraços do Torcato
Apesar de adoentado, estive, na companhia do nosso camarada António Pimentel, a ouvir o também nosso camarada Mário Beja Santos.
Sobre a conferência,enviei directamente para o jornal um comentário que não vale a pena aqui reproduzir...,pois a qualidade da comunicação é fácil de adivinhar: basta ligá-la ao nome do autor.
Estou aqui só para dizer que as lágrimas que eu também verti, foram disfarçadas pelo meu estado gripal; estou aqui só para agradecer ao nosso camarada Sousa de Castro por ter dado conhecimento ao nosso Blogue de mais uma participação de um camarada nosso a convite de uma Câmara Municipal; estou aqui só para dizer que o nosso Blogue "Luís Graça e Camaradas da Guiné" foi por diversas vezes referido na dita conferência; estou aqui só para dizer que "O presépio de Chicri" é um texto de Antologia, como o são outros textos de tantos outros camaradas; estou aqui só para dizer que temos muito, mas mensmo muito material que podemos e devemos juntar em algo que temos o dever, julgo que também temos capacidade, de publicar- só não temos é muito tempo para o fazer; estou aqui só para dizer que todos os nossos esforços se unam com o objectivo de dar algo à estampa e que não nos dispersemos em questões menores.
Um abraço para todos
Vasco da Gama
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