segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5281: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (20): (Im)possível regress(ã)o

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > 1968 > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato Mendonça > Duas Fotos falantes... do seu álbum. A (im)possível regressão...


Fotos: © Torcato Mendonça (2009). Direitos reservados.


1. Mensagem do Torcato Mendonça, Fundão, 26 de Outubro de 2009 :

Caros Editores

São inquietações, dúvidas e outros temores de uma manhã de domingo. Muda a hora e a madrugada e nós vivemos duplamente a hora. Como, e porque não no relato do facto há muito passado? Com que direito ou quem me deu o direito a esse relato?

Ontem fui 'garatujando'... hoje para não me desiludir com o meu Benfica, erro meu, fui teclando e aí vai esta inquietação.

Ah, o Benfica ganhou 6-1 (1 foi fora de jogo) e eu creio não estar louco.

Abraços fortes e fraternos do,
Torcato



2. Blogoterapia > REGRESSÃO PROIBIDA
por Torcato Mendonça

Sento-me, na manhã ensolarada de fim de Outubro, domingo de mudança de hora e não sei se estou no antes ou no depois. Estou.

Entretenho-me, lentamente, a tomar o pequeno-almoço, a sentir o calor outonal a vir da varanda fechada, a ver a encosta da Gardunha a desmaiar o verde e lá no alto, as nuvens ralas a deixarem-se atravessar pelos traços rectilíneos dos poucos aviões que passam. São poucos hoje, porventura como eu perderam a hora. Não perdem certamente o destino; uns para Lisboa, outros para essa Europa de minha saudade. Há tempo, há tanto tempo, demasiado até que não cavalgo o céu num voo qualquer.

Mesmo sem o querer, sem sentir volto à Europa e logo regrido mais e estou em África. Não queria lá voltar e volto. E estou, sem o querer num passado longínquo. Trago ao presente o que queria ser o vazio, o nada, o esquecimento. Volta sempre e vivo-o como a hora da madrugada de hoje que se finou para, de pronto, recomeçar a ser ela de novo. Vêm-me ao presente os ontem de há muito. Este não se passa logo ali. Não, este cristalizou num recanto bem fundo da memória, num pequeno espaço e volta sempre.

Porquê? Não sei. Ficou lá e foi desvanecendo, esvaziando e um dia começou a encher, a vir cada vez mais forte, violento e claro. Protestou por tanto tempo ter sido reprimido e acabou por ser aceite.

Mas questiono-me: como me atrevo hoje a relatar essas vivências passadas sem pudor, sem ter certezas absolutas do correcto relato desses factos. Porquê e para quê? Porque o faço?

Ainda há dias, depois de muito tempo sem nada relatar, o fiz: escrevi, relatei o facto vivido há muito e depois, mais abertamente até dele falei.

Pior ainda, foi lido por não sei quantas pessoas e até falei com uma: a personagem do relato e ele foi ler.

Depois ligou e falamos, falamos e revivemos esse passado e outros por nós vividos, jovens estudantes, jovens a viver a vida alegremente ou, mais tarde mais tristemente e de verde vestidos. Dizia ele:
- Como te lembras de ditos tão meus ? Onde escreveste isso?
- Não escrevi. Guardei num recanto da memória. Parece que ficou marcado com ferro em brasa. Género ferra de gado, lembras-te?

E continuamos a recordar e a esperar pelo encontro da Companhia. Este ano em Évora. Talvez antes, talvez antes o abraço na Pax-Júlia da nossa juventude (*).

Mas temo cada vez mais em escrever, em contar esse passado. Ainda por cima de forma tão intimista.

Será que temporal, factualmente, está correcto e não incomodo ninguém? Que direito tenho eu? Porque e para que escrevo então?

Já nem sei o porquê de trazer ao presente esse passado, essa parte de meu passado, não tão agradável assim e nada digo, nem me atreveria a contar outras partes de um passado que, sem vaidade, valeu a pena viver.

Trago ao presente o momento. O presente não é mais que o breve momento, o instante e logo passa a passado. E esse relato interessará a alguém? Fica a dúvida, o vazio, o nada e a incerteza. Então porque torná-lo presente?

Ah porque não esqueces? Descrevendo-o deixa de ser vazio, alivia e, mesmo não vivendo duplamente a hora como a de ontem, encontro mais tranquilidade. Será? Não sei. Talvez seja um regredir proibido.

[ Revisão / fixação de texto / título: L.G.]

___________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 22 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5140: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2330) (9): Mistura 79 ou quando tive que mandar o Manel a Moricanhe...

8 comentários:

Antonio Graça de Abreu disse...

Escrever para nos entendermos melhor, sermos mais nós, dar mais qualidade à qualidade que temos.
Um forte abraço, meu caro Torcato.
António Graça de Abreu

Joaquim Mexia Alves disse...

Mas já reparaste meu caro Torcato que tu não escreves?!

Tu apenas falas alto com a tua memória e por qualquer razão inexplicável, para já, aparecem escritas as palavras que pensas e falas.

Ó meu camarigo, que seria de nós sem memórias?!
E não falo só de nós ex-combatentes, (ou será que não o somos ainda um pouco, combatentes?), mas de todos os homens que têm passado, presente e futuro.

Já reparaste, (ocorre-me agora), que as tuas memórias, (assim como as nossas), serão futuro de história?

O que nós somos agora teria algum sentido se não tivéssemos já sido o que fomos?

Parece-me também, que estou sentado a tomar o pequeno-almoço contigo, e deixo que os meus pensamentos falem alto e mais rápido do que a escrita!

Olha, meu amigo, camarigo Torcato, gostei de falar contigo este bocadinho!

A manhã já vai alta, o dia avançou para a tarde e eu saio do pé de ti, com um sorriso nos lábios, o sorriso de quem teve uma conversa boa, uma conversa que traz a paz ao passado, a serenidade ao presente, a esperança ao futuro, e assim na despedida abraço-te camariga e fortemente.

Juvenal Amado disse...

Meu caro Torcato
Por diversas ocasiões comentei postes teus, depois li-os, reli-os e por fim apaguei-os de seguida.
Não sei por me acanho, quando afinal eu nem sou homem para esconder, o que me vai na alma.
Talvez porque escreves como diz o Mexia, falas com os teus botões, vais desenrolando os teus pensamentos e recordações, como água que corre hoje livre, mas que já fez andar muitos moinhos, antes de ser esse espelho em que todos nos revemos um pouco.
Também gostaria de estar presente nesse pequeno almoço, onde cada um daria a beber as suas memórias, numa chávena de café bem fumegante.

(Desta vez vai).

Um abraço
Juvenal Amado

MANUEL MAIA disse...

CARO TORCATO
O PRESENTE É TAMBÉM O FUTURO DO PASSADO E ESTE FAZ PARTE DE NÓS,NÃO PODEMOS DISSOCIAR-NOS DELE,ESTÁ GRAVADO NO NOSSO SUBCONSCIENTE,DAÍ QUE A REGRESSÃO NÃO SEJA IMPOSSÍVEL MAS SIM VIÁVEL E RECOMENDÁVEL...
A EVOCAÇÃO É UM SUPORTE SAUDÁVEL E RIJO,DURO,FORTE,SUSTENTÁVEL,QUE SERVE DE MULETA ,DE APOIO,DE INCENTIVO PARA AS VOLTAS QUE A VIDA NOS PREGA.
HÁ QUE USAR OS MECANISMOS DE CONDUÇÃO AO PASSADO PORQUE SE ESTÁ A "DAR CORDA AO FUTURO"...

UM GRANDE ABRAÇO
MANUEL MAIA

Anónimo disse...

Torcato,(desculpe, são normas do Blogue)
O pouco que escreve, põe muita gente a pensar. Eu, que pouco ou nada tenho a ver com a Guiné, dou por mim a pensar nas Pessoas que por lá andaram.
Escreva mais.
Filomena

Anónimo disse...

Torcato

Se bem que gostando, não venho comentar a lihguagem e o estilo intimista.
Venho somente dizer-te que "...os traços rectilíneos dos poucos aviões que passam." a grande altitude, não vão "...uns para Lisboa, outros para essa Europa...". São pertença de outras guerras...

Um abraço
Alberto Branquinho

Hélder Valério disse...

Caro Torcato
Tal como refere o Mexia Alves, já uma vez te tinha dito também que tu não estás propriamente a escrever, estás mais a pensar em voz alta e a passar para escrita esses teus pensamentos, reflexões e interrogações.
Mas quanto às tuas preocupações relativas ao 'regresso mental' a outros tempos, a outras situações, acho que isso não deve constituir motivo para te afligires.
Também como já foi dito, faz bem, faz-te bem, faz-nos bem, esse relembrar, até mesmo para que possa servir de orientação no futuro, nosso ou de terceiros, pois também é sabido que o nosso presente é consequência do passado e o futuro será decorrente das opções que tomarmos hoje.
Um abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Dizer-te o Quê?!

Se escutares uma turbina,sou eu, a dar um pouco de apoio, ...
Continua a recordar , continua.
Eu, vou fazendo passagens baixas que é o que faço melhor
Abraço
Jorge Félix