terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7630: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (43): Na Kontra Ka Kontra: 7.º episódio





1. Sétimo episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 17 de Janeiro de 2011:



NA KONTRA
KA KONTRA


7º EPISÓDIO

Logo a seguir e, cumprindo a ordem de operações, monta-se uma emboscada no trilho com mais probabilidades de passagem de elementos do PAIGC. Passadas umas três horas em silêncio absoluto e porque nada aconteceu foi levantada a emboscada e inicia-se o regresso a Madina Xaquili caminhando agora paralelamente ao trilho anterior. Chega-se à tabanca ao anoitecer mas a horas de ouvir o relato dum Sporting/Académica.

Claro que nessa noite não há conversa com o João, o cansaço falou mais alto. Já na cama o Alferes Magalhães não deixa de pensar na Asmau, cuja imagem já se começa a desvanecer. Torna-se imperioso voltar a vê-la. Se não fosse o cansaço talvez não pregasse olho nessa noite mas, dadas as circunstâncias, acaba por adormecer.

Na manhã seguinte o nosso Alferes levanta-se cedo, como era de esperar dada a sua ideia frontal obsessiva. Sentado à mesa, à espera que o “legionário”, o cozinheiro, que tinha pertencido à Legião Estrangeira, preparasse o café para o pessoal, viu aproximar-se o João Sanhá. Caminhava de forma esquisita, com as pernas abertas. Na impossibilidade para já de rever a bajuda, entendia que o João era o elo de contacto prioritário, por isso chamando-o perguntou:

- Que se passa João, tem algum problema?

O João, que também tinha participado na operação, mostra as coxas que estavam em carne viva. O roçar das pernas uma na outra com as calças de permeio tinham provocado aquilo, até porque ele era um pouco anafado. Na tabanca, todo o serviço quer militar, quer das lavras era feito pelos milícias à sua ordem. O “enfermeiro” tratou-lhe das pernas e o Alferes Magalhães anteviu mais um adiamento da tão desejada conversa.

O Alferes precisava da conversa com o João, como de pão para a boca. No dia anterior deixara-o em paz até porque, ao orientar os trabalhos, teve a oportunidade de saber algumas coisas sobre a que ele já considerava a sua bajuda. O milícia Braima lembrava-se do nascimento da Asmau, teria ele uns quinze anos, e da pele clara que ela sempre tinha tido. Foi o suficiente para atear o fogo que parecia estar a extinguir-se. De qualquer forma, quer pelo Braima não falar bem português e também porque estava à espera de respostas bem precisas sobre determinados assuntos, resolve esperar que o João se restabeleça.

Entretanto tenta comprar um kora que o Braima possui, feito de meia cabaça, pele de macaco e cerca de vinte e cinco cordas de fio de pesca. Não o consegue. O Braima diz que com aquele som não conseguiria outro, para além de que já era do pai dele. Mas numa atitude simpática cede-lhe um “ori” a que chamava “iuri” e que ele próprio escavara em forma de canoa, num tronco de pau sangue. Mais tarde veio a verificar-se que seria um crime levá-lo a desfazer-se do kora. À noite, no “bentem”, debaixo do mangueiro no centro da tabanca, com o relampejar ao longe, ouvi-lo tocar era verdadeiramente sublime.

O Braima com as suas características incisões junto aos olhos.

O nosso Alferes via mais um dia passar sem ter a conversa com o João. Dedica-se ao trabalho, orientando os camaradas na construção dos abrigos e ele próprio trata de fazer um fornilho detrás dum poilão existente na orla da mata, instalação mais que provável dos guerrilheiros no caso de um ataque.

Nesta noite, como era de esperar, o João não aparece pelo que perdeu, além do mais, o autêntico concerto dado pelo Braima.

Pelo conhecimento que o Alferes Magalhães tem do modus operandi dos guerrilheiros naquela área, que invariavelmente atacam sempre ao anoitecer, só exige aos seus um estado de alerta rigoroso a essa hora. Passadas duas horas de anoitecer vai para a sua morança, enfia um pijama e, de auscultador num ouvido, ao som de uma qualquer sinfonia, pega no sono e tem os sonhos que quer ter… pelo menos acordado.

O dia seguinte era promissor pois não havia “nuvens no horizonte”, no entanto algo iria acontecer que ofuscaria a conversa com o João. Pela manhã o João resolve apresentar formalmente as suas duas mulheres que viviam na tabanca, pois tinha mais duas noutras tabancas. A primeira, Kadidja, mãe do Bonco, e a Mariama.

Fim deste episódio

Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7624: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (42): Na Kontra Ka Kontra: 6.º episódio

1 comentário:

Fernando Gouveia disse...

Glossário do 7º episódio:

ORI: Jogo com 6x2 cavidades e 48 “pedras”, (sementes de ori ou outras)
FORNILHO: Armadilha de guerra composta por vários explosivos e materiais contundentes.
POILÃO: Árvore corpulenta e magestosa muito comum na Guiné.

Um abraço a todos e até ao próximo.
Fernando Gouveia.