quarta-feira, 20 de abril de 2011

Guiné 63/74 - P8138: Memória dos lugares (152): A cidade de Bissau em 1968/70: um roteiro (Carlos Pinheiro)

1. Mensagem de Carlos Manuel Rodrigues Pinheiro* (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), com data de 17 de Abril de 2011:


Camarigo Carlos Vinhal
Aqui vai mais um texto para o nosso blogue se entenderes que o mesmo merece ser publicado.

Um abraço
Carlos Pinheiro


A Cidade de Bissau em 68/70

A esta distância no tempo, recordar a cidade de Bissau onde passei mais de 25 meses da minha vida, obrigatoriamente e sem alternativa de escolha, mesmo assim é bom recordar Bissau, para que a memória não esqueça e para que outros possam também recordar e testemunhar.

Bissau era uma cidade simpática onde havia um pouco de tudo e acima de tudo muita tropa, muitos militares em movimento, a chegar, a partir e a estar. Não era uma grande metrópole mas tinha infra-estruturas que uma cidade de província, na Metrópole de então, não tinha, não podia ter e nem tinha que ter. Tinha por exemplo um Aeroporto, na Bissalanca, que é certo se confundia de algum modo com a BA 12, já que as pistas eram as mesmas e, aliás, o Boeing da TAP só lá ia uma ou duas vezes por semana, levar de regresso combatentes que tinham vindo de férias, buscar outros em sentido contrário e acima de tudo levar e trazer correio tão indispensável para o apoio moral das tropas e especialmente dos seus familiares cá na santa terrinha. 

Na maior parte do tempo eram os FIAT G91, os T6 e os DO27, para além de outros meios aéreos, os únicos a utilizar as pistas quando eram lançadas Operações onde o apoio aéreo tinha uma preponderância mais que evidente. E, claro, também era dali que saíam os helicópteros, os Alouette III, para as Operações, mas acima de tudo para fazer as evacuações dos doentes e dos feridos.


Tinha também um porto de mar, que por acaso era no rio Geba onde, por vezes, os barcos maiores, o UIGE ou o NIASSA, não atracavam.

Mas barcos como o Rita Maria, o Ana Mafalda, o Alfredo da Silva, o Manuel Alfredo, todos da Sociedade Geral, da CUF, esses porque eram mais pequenos, atracavam. Também o Carvalho Araújo, penso que dos Carregadores Açorianos, nos seus últimos tempos de vida, também ali atracava. Mas era um porto com poucas condições. Este último barco, porque tinha pouca autonomia, tinha que ir, na viagem de ida, a S. Vicente, Cabo Verde, meter água e nafta e no regresso, era no Funchal que atestava.
Tinha ainda outro porto, este mais de pesca, o Pidjiguiti, tristemente célebre pelos massacres que precederam a guerra da independência.


Mas tinha o Palácio do Governador, tinha a Associação Comercial, tinha algumas casas apalaçadas de arquitectura tipicamente colonial, tinha um cinema, a UDIB (1), tinha dois campos de futebol, o campo da UDIB e o “estádio dos cajueiros” à Ajuda, tinha um comércio florescente, especialmente dominado pelos libaneses, onde tudo se vendia desde o alfinete ao camião, tudo importado, principalmente do Japão, mas também dos States, da Inglaterra, da Escócia, da Itália, da Holanda, da Checoslováquia, da França, etc., e naturalmente da Metrópole.

E Bissau tinha algumas casas que toda a malta conhecia pois era lá que convivia, que matava saudades e acima de tudo matava a fome e a sede. Logo à saída do QG havia o Santos, a que simplesmente, mas com muito carinho, chamávamos o “farta brutos”, onde se comia, talvez a maior febra de Bissau. Parecia que tinha as orelhas de fora do prato, tal era a sua dimensão. Mas as batatas fritas a acompanhar também mereciam respeito. Quanto à cerveja, ela era igual em todo o lado, desde que estivesse bem fresca e isso às vezes conseguia-se e muita até era da Manutenção Militar.

Mas lá em baixo, na cidade, tínhamos outras casas emblemáticas. Tínhamos a Solmar, que não tinha nada a ver com a outra de Lisboa, mas que já era um bom restaurante que também vendia muita cerveja para acompanhar as ostras e o camarão.  

Tínhamos o Solar do 10, casa mais pequena mas mais requintada, onde por vezes à noite se cantava o fado depois de uma jantarada ou ceia.

Tínhamos o Zé da Amura onde se comiam uns chispes que iam para lá enlatados não sei de onde, mas que, à falta de melhor, eram apreciados.

Tínhamos, na Praça Honório Barreto, o Internacional, o Portugal e o Chave de Ouro, tudo cafés/cervejarias mas também onde se comiam umas febras ou uns bifes, quando havia.
Mas na Avenida principal, do porto ao Palácio do Governo, também havia o “Bento”, café e esplanada característica da cidade a que vulgarmente nós, os militares, chamávamos de “5ª Rep.” já que o Quartel-general só tinha 4 Rep’s, 4 Repartições.


Para a malta, ali era portanto a 5ª repartição onde quem chegava do mato se encontrava com os residentes, onde se trocavam informações e onde, se dizia, que essas informações vadiavam ali dum lado para o outro do conflito. Ao lado do “Bento” mais para o interior, era a Bolola, onde esteve o Serviço de Material, depois transferido para Brá, e onde era o Cemitério que ainda guarda os restos mortais de muitos camaradas nossos.

Nessa avenida estavam talvez as maiores casas comerciais. Por exemplo a “Casa Gouveia”, da CUF, que vendia ali de tudo e que tudo comprava o que os naturais produziam, principalmente a mancarra (2), o Banco Nacional Ultramarino, o banco emissor da Província, o Cinema UDIB e ao lado uma boa gelataria, mais acima a Pastelaria, Padaria e Gelataria Império, assim baptizada por estar já na Praça do Império onde se situava o Palácio do Governo e Associação Comercial.

Também era nessa Avenida que estava a Sé Catedral, templo de linhas tão simples quanto austeras.



A caminho de Brá e da “SACOR”, havia um local chamado “Benfica” onde havia um café com o mesmo nome e onde se apanhavam os transportes para os vários quartéis daquela zona como eram o Hospital Militar 241, o Batalhão de Engenharia 447, os Comandos, os Adidos e mais à frente a BA 12 e o BCP 12.

Mas havia outros estabelecimentos dignos de recordação. A casa de fados “Nazareno”, mais tarde rebaptizada de “Chez Toi, a “Meta” com as suas pistas de automóveis eléctricos, e como novidade também apareceu naquela altura “O Pelicano”, café-restaurante construído pelo Governo e explorado por privados, com uma belíssima vista sobre o Geba e avenida marginal.


Na Avenida Arnaldo Shulz, que ligava a Estrada de Santa Luzia à tal SACOR, a caminho de Brá, sempre ao lado do Cupelão [ou Pilão], estava o Comando Chefe das Forças Armadas à esquerda de quem subia, um pouco mais abaixo, os Bombeiros Voluntários de Bissau num grande quartel nessa altura muito bem equipado, a Cruz Vermelha, estes do lado direito e até a Sede local da PIDE, que nessa altura já se chamava DGS, também do lado direito mas já junto ao Largo do Colégio Militar.

Era uma avenida nova, como se fosse uma circular urbana onde as boas vivendas também começaram a aparecer.

No princípio da Avenida que ia para Santa Luzia, antes de se chegar ao Hospital Civil, estava o Grande Hotel, nome pomposo do melhor estabelecimento hoteleiro da cidade. O resto era pensões, algumas de quinta escolha.

Mas o comércio de Bissau não era constituído só por cafés, restaurantes e tascas. Havia de tudo. E há nomes que não se esquecem. Para além da Casa Gouveia, o maior empório daquele então Província Ultramarina, como então se dizia, a Casa Pintosinho, a Taufik Saad, a Costa Pinheiro, e muitas outras vendiam de tudo, são nomes que ficaram para sempre na memória. 

Havia, claro, várias casas de fotografia, como por exemplo a AGFA perto da Amura, que ganhavam muito dinheiro na medida em que era raro o militar que não tivesse comprado a sua FUJICA, PENTAX, NICON, etc., a que davam muito uso. Muitas casas vendiam roupa barata, nessa altura já confeccionada em Macau, especialmente aquelas camisas de meia manga, calças de ganga e sapatos leves.
Era assim Bissau naquela época.


(1) UDIB - União Desportiva e Internacional de Bissau
(2) Mancarra - Amendoim

Carlos Pinheiro
16.04.11

Texto e fotos de Carlos Pinheiro
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 14 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8099: Convívios (226): Reencontro ao fim de 41 anos (Carlos Pinheiro)

Vd. último poste da série de 4 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8045: Memória dos lugares (151): Bedanda 1972/73 - O Seis do Cantanhez (António Teixeira)

5 comentários:

Anónimo disse...

Camarigo Carlos Pinheiro

Gostei de ler este teu desfiar das memórias de Bissau, de que naturalmente fixaste melhor, já que cumpriste aí a tua comissão.

Tirei algumas dúvidas que tinha, já que as minhas estadias foram muito curtas e por isso mais fugazes as lembranças.

Agora confirmo que o Hotel onde me encontrei pouco depois da chegada com um colega, foi mesmo esse tal de Grande Hotel que me parecia ser de facto naquela longa avenida que vinha da Amura e se prolongava para Santa Luzia e perto do Hospital Civil.

Também verifico que muito provavelmente desembarquei, do Alfredo da Silva, no Cais perto da Amura e não no de Pidgiguiti, como supunha.

Agora criei outra dúvida com a localização que fazes do Comando Chefe das Forças Armadas. Dizes que era para os lados do Palácio do Governador, entre a esrada de Santa Luzia e a saída para a SACOR, quando eu estava convencido que as poucas vezes que lá fui, ele era na Fortaleza de Amura.
Afinal estive estes anos todos enganado? ou não?

Abraço
Jorge Picado

Carlos Pinheiro disse...

Camarigo Jorge Picado
Como deves calcular, foram 25 meses, 10 dias e não sei quantas horas que passei em Bissau, pelo que este trabalho e outros que já tenho publicado e outros que ainda penso vir a publicar, podem sofrer alguns lapsos de memória derivados dos mais de 40 anos passados e acima de tudo da idade que não perdoa. Mas neste concreto da localização da Avenida Arnaldo Shulz e do Comando Chefe não tenho a menor dúvida. Entreguei lá centenas de mensagens. Alguns dias, várias vezes. Era sempre a aviar.
Para verificares melhor, passo a transcrever a parte em que me referia à tal Avenida e ao Comando Chefe:
“Na Avenida Arnaldo Shulz, que ligava a Estrada de Santa Luzia à tal SACOR, a caminho de Brá, sempre ao lado do Cupelão, estava o Comando Chefe das Forças Armadas à esquerda de quem subia, um pouco mais abaixo, os Bombeiros Voluntários de Bissau num grande quartel nessa altura muito bem equipado, a Cruz Vermelha, estes do lado direito e até a Sede local da PIDE, que nessa altura já se chamava DGS, também do lado direito mas já junto ao Largo do Colégio Militar.
Era uma avenida nova, como se fosse uma circular urbana onde as boas vivendas também começaram a aparecer.”
Como vês não há confusões. No entanto, admito, que antes de 1968, pode o COMCHEFE ter estado instalado na Amura uma vez que as instalações da Arnaldo Shulz e até a Avenida propriamente dita era tudo novo em 1968. Nesse aspecto não confirmo nem desminto, como dizem os políticos.
Voltando à Amura, no meu tempo esteve lá instalada a Intendência que nos primeiros meses de 1969 foi transferida para o “600”, que era em frente ao QG, tendo nessa altura ali sido colocada a PM que tinha estado no QG. Lembro-me até de um serão de variedades, na Amura, ainda no tempo da Intendência, quando o Marco Paulo, que ali prestava serviço, dedicou uma canção ao seu querido comandante, como ele disse na altura.
Quanto ao cais do Pidgiguiti era de facto um cais pequeno destinado só a barcos de pesca. Não quer isto dizer que a Marinha, uma vez que a Defesa Marítima era ali ao lado, não tivesse por ali, de vez em quando, uma vedeta ou uma LDP, uma vez que os Patrulhas, as LDM’s e as LDG’s quando estavam em Bissau, estavam atracados à Ponte Cais, do lado de dentro já que do lado de fora atracavam então os barcos grandes. E tudo isto porque ali havia segurança sempre reforçada por parte da Marinha.
Penso ter sido suficientemente claro e esclarecedor em relação aquele período de tempo.
Obrigado pelo teu contacto e dispõe sempre.
Um abraço
Carlos Pinheiro
20.04.11

Cherno Baldé disse...

Caro amigo Carlos Pinheiro,

Obrigado por esta pequena mas importante descrição do que era a cidade de Bissau nos anos 60 que, com a permissão dos editores, vou gravar e guardar.

Eu só conheci Bissau depois da independencia (1978), mas ainda hoje, na memoria dos mais velhos, sobretudo velhos colons, mantem-se viva a lembrança do que foi Bissau, uma cidade limpa e bem arrumada, dizem. Contudo, na opinião de muitos, Bissau era só para uns poucos privilegiados (brancos e mulatos)ligados a administração colonial onde o grosso da população, os indigenas, por várias razões, tinham acesso muito limitado. Isto não é politica, faz parte da vida de uma cidade.

Um grande abraço,

Cherno Baldé

Unknown disse...

Entre as dúvidas do Jorge Picado e a explicação do Pinheiro, sobre a localização do Comando Chefe, não era por aí que estava o Clube da Força Aérea ou lá como se chamava?Sobre o possível privilégio dos "colonos" e dos "mulatos" - talvez se queira referir aos cabo-verdeanos - em Bissau, como se refere o Cherne Baldé, não creio que seja verdade. No cinema, nos bares e cafés, no futebol, nas Associação Comercial, durante as várias etapas que passei em Bissau, não notei nenhum "apartheide".

Carlos Pinheiro disse...

Caro amigo Cherno Baldé
Privilegiados sempre houve em todo o lado em todos os tempos e cada vez há mais disso. Sobre aparteid naquela altura não existia nada disso. Só no cinema UDIB é que havia 5 filas de bancos corridos, à frente da Fila A, para os naturais da provincia, como então se dizia. Penso que era lugares grátis onde de facto os brancos não se podiam sentar na medida em que, presumivelmente, podiam pagar o seu bilhete e não deviam tirar o lugar a quem não podia pagar. Mas isso não quer dizer que os naturais não se pudessem sentar na plateia ou no balcão desde que tivessem comprado o seu bilhete como os outros.
Quanto à limpeza da cidade sempre te digo que nunca lá vi nenhum carro do lixo. A limpeza era feita pelos abutres que tudo levavam e a cidade não era suja de facto.

Para o Jorge Portojo e no que respeita à localização do Clube de Oficiais da Força Aérea não me recordo. Conheci bem foi a Messe de Sargentos da FAP na cidade e era na baixa relativamente perto da casa do Comandante Militar e eram instalações muito boas.
Um abraço para os dois
Carlos Pinheiro