domingo, 1 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9690: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (51): Bula - A guerra das minas

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 22 de Março de 2012:

Olá Vinhal
Saúde boa, disposição em cima, força que baste? Óptimo.

Segue novo “lanço” na “Viagem…” que a vai aproximando do final que, é uso dizer-se ser normalmente “o mais difícil de esfolar”. Assim também aconteceu na ”viagem real “, por lá.

Um abraço , saúde e boa disposição para todos
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (51)

Bula – A guerra das minas

Pela fresca da manhã os “eleitos” preparam-se para montar nas viaturas escoltadas rumo à nova guerra onde o IN eram uns engenhos diabólicos montados por nós (NT), camuflados em quilómetros de terrenos muitas vezes adulterados pela pluviosidade e diferente bicheza autóctone, fazendo com que por vezes a sinalética mapeada transformasse a sua localização correcta em verdadeira “caça ao tesouro” por tentativas, raramente infrutíferas mas vezes demais extremamente dolorosas!

 (Google) Estrada Bula - Pta S Vicente - Ingoré 

Ao que tenho na ideia, este “campo de mutilação” que tínhamos que enfrentar nascia pelo quilómetro oito, alongando-se para Norte por uns bons quilómetros (creio que seis?) ao longo da lateral Leste da estrada Bula – S. Vicente (onde se fazia a travessia do rio Cacheu para Ingoré). Era constituído por uns largos milhares de minas plásticas (“encriers” devido à sua forma de tinteiro) e portuguesas (metálicas de fragmentação) na proporção de quatro para uma, ao que lembro dispostas em cachos orientados e compostos por quatro plásticas em quadrado e uma portuguesa ao centro, afastadas entre elas o suficiente para não estourarem por simpatia. Já não recordo se era uma ou duas filas paralelas de cachos. Não encontro essa nota, mas tenho ideia de que seriam umas dez mil minas (?), a passar.

Para enfrentar este desafio demoníaco o equipamento base do pequeno grupo de “eleitos” era simples e fiável: pica em verga de aço, bússola, mapa, croquis de implantação e claro está faca de mato. Ah, convém não esquecer a “vara-medida” com 1,5 ou 2 metros de comprimento (já não recordo mas era da medida que distava entre a central portuguesa e as exteriores), instrumento muito útil que simplificava a localização aproximada dos engenhos desde que detectado o principal, a mina metálica. Tínhamos também à disposição um detector de metais que se necessário usávamos na detecção destas minas portuguesas de fragmentação extremamente perigosas. Para alem deste equipamento havia quem lhe acrescesse outros que julgasse conveniente para segurança e até quaisquer amuletos que acreditasse protectores e da sorte! Pelo que me tocava havia três ou quatro coisas que faziam parte integrante do equipamento: pistola no coldre, a, para mim fundamental, bota de fuzileiro e o lencito vermelho usado ao pescoço, este sim uma espécie de talismã mas também útil! Não posso esquecer a varinha de vime ou o pingalim de tiras de couro entrelaçadas l!

Tinha uma explicação para o uso destes “complementos”que passo a expor o mais concretamente possível: - Pistola “Walter” – não estorvava e podia vir a ser útil em defesa ou mesmo resolutiva noutro tipo de situação! - Botas tipo Fuzileiro - em couro, de meio cano-alto ajustado por fivelas laterais, que acreditava darem-me uma certa protecção à extensão dos “estragos” em caso de pisar um engenho. Não convinha nada que a perna tivesse que ser amputada acima do joelho!!! - Pequeno lenço vermelho - tinha-me sido oferecido no “Puto”e usava-o muitas vezes em operações, amarrado ao cano da G3 ou ao pescoço. Era uma espécie de amuleto e que podia ser útil pelo menos com os suores. - Varinha / pingalim – preênsil nos dedos, usada(o) para ajudar a detectar eventuais arames de tropeçar interpostos pelo IN no acesso ao “campo de trabalho”.

Sobre esta estória da varinha explico: Um belo dia, antes deste trabalho mas creio que por causa dele também, fui incumbido de verificar, desarmar e levantar várias armadilhas por mim montadas e “croquisadas” ano e tal antes, lá para a frente da zona da “curva do café” onde se pensava ser zona de atravessamento do IN e onde, para além disso, havia por baixo da estrada uma conduta pluvial (?) larga que a atravessava e que se queria não viesse a ser aproveitado pelo IN para quaisquer utilizações bélicas. Por essa área tinha montado uma dezena, talvez mais, de armadilhas a meu ver bem “engendradas” e para “vários gostos”! Como tal deveriam também ser bem descritas e sinalizadas em “croquis” fiéis, com referência a pontos considerados seguros e de difícil mutação, o que facilitaria uma posterior desactivação das mesmas.

No dia aprazado, dirijo-me para a zona, acompanhado como não podia deixar de ser por segurança que tomou posição do outro lado da estrada. Pés ao caminho, munido dos apetrechos necessários e do croqui por mim feito anteriormente, vou desactivando os engenhos, concentrado mas sem dificuldades de maior até que a dada altura e em local não referenciado, ao dar um passo senti no tacão da bota atrasada uma resistência que me inquietou. Não podia ser?! O chamado “sexto sentido” terá feito o automatismo funcionar preventivamente e à contagem “um - dois” estava aterrado e espalmado no chão um pouco mais adiante! O estouro não se fez esperar.

Afinal sempre era, sendo que a “geringonça” não era nossa e sim uma intrusa, posteriormente confirmado por contagem. Mais uma vez por Graça, e talvez um pouco por Lamego (onde colados ao terreno detonámos granadas que pousávamos à distancia de um braço) nada me aconteceu, para além do valente susto. Coisa para não esquecer! O que aconteceu fez-me pensar que tinha que tentar prevenir situações semelhantes. O engenho a par da nossa bela “arte do desenrasca” veio ao de cima : a solução seria uma fina e lisa varinha, pênsil dos polegar e indicador que, ao quase varrer o chão dianteiro sinalizaria e faria investigar qualquer resistência anormal ou entrave à sua progressão. Também cheguei a usar o meu ”chicote” de tiras de couro entrelaçado, mais cómodo e à mesma sem peso suficiente para descavilhar qualquer engenho munido de arame de tropeçar.

Algumas vezes parei para investigar mas felizmente foram alarmes falsos. Chegados à zona de apeamento e após a segurança estar montada em proximidade não intrusiva, os “eleitos” dirigiam-se, creio que em equipas para os locais determinados, dando início a uma luta em que facilitar era potenciar o risco de rebentamento e suas consequências nefastas. Acabou por ser uma batalha que se ganhou, mas infelizmente e quase logo de início à custa de sangue, dor e em que o esforço e sofrimento ao que sei não foram agradecidos ou reconhecidos, muito menos louvados ou premiados e onde até o prometido (pelo menos a mim) não foi sequer cumprido, antes pelo contrário. Creio que também ninguém estava a contar com quaisquer “honrarias” mas, falo por mim, esperava que o prometido fosse cumprido! Apesar dos alguns “briefings” havidos com o Comando, o que não permitia evocar “desconhecimento” dos acontecimentos, os “mandantes” andavam de certeza absorvidos e distraídos com outras coisas de maior interesse próprio naqueles finais de comissão!

Bom… é sabido que havia Comandantes e comandantes por aquelas guerras!

Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9536: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (50): Bula, uma nova missão

10 comentários:

armando pires disse...

Camarada Luis.
A 1 de Agosto de 1969, 10.40 da manhã, ao estacionar antes do Cacheu, uma manobra de protecção à coluna que seguia para Ingoré, o Daniel, meu soldado maqueiro, acionou uma mina anti-pessoal, ficando com o pé amputado abaixo do joelho. O Daniel era da CCS do BCAÇ 2861, estacionado em Bula. Uma história que, em breve, aqui contarei. Abraços
armando pires

Anónimo disse...

Pelo que entendo, talvez esteja enganado, mas parece-me que a unidade do Luis Faria procedeu ao levantamento das armadilhas, porque estava para terminar a comissão e regressavam à metrópole.

Será que é isso mesmo e os substitutos refaziam novamente? e assim por diante?

Ou o meu raciocínio está errado?

Sei que ainda ficaram granadas à beira de algumas estradas, com muito poucos acidentes pós guerra, mas parece que houve um ou outro acidente.

Antº Rosinha

Unknown disse...

Camarada Luis Faria
Segui um pouco da vossa epopeia do leventamento do campo de minas. Com as condições postas ao vosso dispor a vossa acção revelou uma grande coragem. 4o anos depois tiro-lhe o meu chapeu. Julgo também que eram mais de 10.000 minas
Augusto Veiga
ex-Alf mil do SM (Bra 1970/72)

Luis Faria disse...

Caro A.Rosinha

Efectivamente e ao que me parece recordar,levantamos o campo que nos tinha sido passado "plantado" dois anos antes pelo Batalhão anterior-"Chicotes(?)" .
No final da comissão levantamo-lo e tanto quanto me recordo "atrás de nós" ia sendo "plantado" de novo pelos piras que nos vieram render .
Julgo que posso afirmar que da nossa parte não ficou uma mina sequer por levantar.Quanto a armadilhas,tinha sido eu a montá-las,poucas,e todas foram levantadas.Falo daquela zona em Bula.
Abraço
Luis Faria

Anónimo disse...

É escusado eu opinar, acerca desta sobremesa que nos foi servida, no final da comissão.Tendo feito parte da mesma companhia, que o Luís Faria, tendo ambos andado em Lamego, em que recebemos instrução rigorosa sobre minas e armadilhas e tendo os dois ida para Tancos, tirar o respectivo curso, eu virei um sortudo, na aplicação prática, na montagem e na desmontagem das mesmas.Na montagem, colidiu com a ida do meu Grupo de Combate, onde estivemos fora da companhia por alguns meses.Na desmontagem, o Capitão resolveu dar-me mais a função de prestar a proteção, à distância.Assisti e prestei auxilio aos acidentados mas fui poupado aos acidentes!Sofri com o que assisti mas não deixo de me considerar um sortudo.Por tudo aquilo que vocês passara e de que fui testemunha, a minha vénia e o meu apreço.Para ti em particular, meu grande amigo, aquele abraço que ninguém consegue separar!...

Manuel Carvalho disse...

Caro Camarada Luís Faria
Embora um ano antes meados de 68 a meados de 69 também andei por Jolmete e faziamos muitos passeios para Badã, Pêcê, Catafe mesmo aí ao lado dessas minas todas que susto e que trabalheira.Não era seguramente serviço para o alentejano da anedota.Agora é que eu estou a ver porque é que eles passavam todos pelo lado do Jol. E para pagar isso tudo?
10.000 minas 10.000 de obus 10.000 de morteiro, para aqui e para ali é muita fruta. Por essas e por outras é que fomos à falência.
Já falei demais um grande abraço para ti e para todos.

Manuel Carvalho
C Caç 2366 Jolmete

Luís Dias disse...

Caro Luís Faria

O meu apreço por aqueles que tinham de proceder ao levantamento das minas que tinham sido colocadas e porque não obstante os mapas, croquis e medições havia sempre a possibilidade, bem real, de haver qualquer falha e resultar na morte ou na amputação de parte de uma perna.Isto muito em especial para os engenhos enterrados. Na minha companhia (CCAÇ 3491-Dulombi), seguindo o que os velhinhos já haviam feito, as minas eram colocadas a encimar um ferro, com a altura pelo joelho, ligadas por arame de tropeçar, sensivelmente todas colocadas em linha, na orla da mata do aquartelamento, na frente que nós denominávamos "o lado dos turras", onde não havia plantações da população. E mesmo assim houve um acidente quando em determinada altura uma secção inspeccionava as mesmas (conforme história já contada neste blogue), após um rebentamento causado por um animal, deu-se um outro rebentamento, logo seguido segundos depois por outro, que causaram 3 feridos, que foram evacuados, mas que algum tempo depois regressaram à companhia. Foi uma grande sorte.
Um abraço.
Luís Dias

Antº Rosinha disse...

Não conheci pessoalmente casos de civis na Guiné, vitimas de minas abandonadas no pós guerra.

Mas em vários anos que passei lá (por todo o lado)falava-se em alguns casos, não se sabendo se se falava de minas dos tugas ou dos turras.

Mas na berma da estrada Quebo-Buba um empreiteiro teve que fazer limpeza de minas que apareceram na berma.

Provavelmente seria da nossa tropa.

No perímetro de protecção do aeroporto tambem havia algumas granadas armadilhadas, mas aí não havia acesso a civis, pois era dentro de arame farpado.

Penso que na pressa, de abandonar a Guiné alguns campos de minas teriam ficado para traz.

Se ao fim de vários anos ainda era possível ver Unimogues abandonados, (Xime) morteiros 81 completos em postos junto ao aeroporto escondidos pelo capim, embora localizadas e assinaladas algumas minas terão ficado por lá.

Como conheci apenas a guerra de Angola, (durante 13 anos inteirinhos), onde praticamente se fala do terrorismo da UPA de 1961 e a reacção dos brancos, como resumo da guerra, e de Moçambique se fala de Wiriamu como resumo da guerra naquele território, era bom que "uma enorme percentagem" do milhão de homens que serviram na Guerra do Ultramar em Angola, Moçambique e Caboverde e Timor, lessem este blog.

Embora noutra dimensão, naqueles territórios tambem havia uma guerra que não se vencia com armas, mas há batalhas "invensíveis" que têm que ser feitas.

Anónimo disse...

Uma ocasião tive que patrulhar a fronteira com o Senegal a partir de Canquelifá. Conhecia mal a região. Meti-me por um trilho,levado pela curiosidade de passar a fronteira e visitar o estrangeiro. Seguia na frente, o pessoal tinha uma vaga ideia por onde andava. A certa altura parei, surpreendido: ali a três metros estava um corpo atravessado, com vestes de civil, sêco e carcomido.
Aproximei-me. Outros quiseram ver. Porra! para trás!
Pensei que ali poderia haver minas ou armadilhas. Mais adiante, tomei outro trilho, mas tirei mal o azimute, pelo que só paràmos à aproximação de uma aldeia.
Ora, sem passaporte, nem visto, regressámos sem outras ocorrências.
JD

manuelmaia disse...

Caro Luís,

Não há duvida que os psicotécnicos da recruta eram importantes...
Escolhiam as pessoas certas para o trabalho certo.
Tenho a certeza que nunca "funcionaria" como especialista de minas.
Para mim,a mina era a arma mais cobarde e mais nojenta...
Matava sem olhar a vítima,não permitindo a esta esboçar sequer reacção.
Parabéns pelo trabalho que realizaram.
abraço
manuelmaia