1. Em mensagem do dia 8 de Março de 2013, o nosso camarada Abílio Magro (ex-Fur Mil Amanuense. CSJD/QG/CTIG, 1973/74), enviou mais uma crónica para a sua série Um amanuense em terras de Kako Baldé.
Um Amanuense em terras de Kako Baldé
(Para quem não sabe, Kako Baldé era o nome por que era conhecido, entre a tropa, o General Spínola. Kako – (caco) lente que o General metia no olho. Baldé – Nome muito comum na Guiné)
9 - Rancho melhorado
Tal como nas outras Unidades militares, segundo creio, também no QG/CTIG as refeições para o Oficial de Dia, Oficial de Prevenção e Sargento da Guarda, provinham das respectivas Messes e eram levadas por um ordenança até aos militares em serviço naquelas tarefas.
Durante mais um serviço de Sargento da Guarda que fiz ao QG/CTIG, fui inesperadamente contemplado com um rancho melhorado como nunca mais fui até ao fim da comissão.
Não era o dia da Unidade, nem o dia do meu aniversário!
Seria uma gentileza do Brig. Banazol pelo meu aprumo e competência no comando da Guarda de Honra?! Quem sabe!
"Isso agora não interessa para nada e vamos é 'enfardar' isto e o que for, soará!" - Pensei eu com os meus botões.
"Abarbatei-me" ao apetitoso conteúdo do prato e, à medida que "metia p'ra blusa", mais aumentava a empatia entre mim e o serviço de Sargento da Guarda.
Efectivamente sentia que, finalmente, alguém dava valor ao esforço e empenho que eu colocava na execução de uma Guarda de Honra a um Comandante estrelado. No resto..., nem por isso, mas agora também não interessa nada.
Terminado o faustoso repasto, abeira-se de mim o Capitão - Oficial de dia - que simpaticamente me pergunta:
- Já almoçou?! Então, e o almoço estava bom?
- Sim, obrigado, por acaso hoje até que nem estava nada mau.
E a simpatia continuava, levando-me a pensar que estaríamos com toda a certeza no dia do "Sargento da Guarda". E porque não, ele há dias para tudo?!
Pergunta-me então:
- E um cafezinho, não ia agora?
Nessa altura até já me apetecia dar-lhe um beijo na boca, tanta era a simpatia com que me tratava!
- Ah sim, obrigado, por acaso agora até caía bem um cafézinho.
Ao contrário do que sucedia com muitos oficiais, a este Capitão os galões não o impediam de ter um gesto de cortesia para com um seu subordinado. E se ia pedir ao ordenança para lhe trazer dois cafés (para ele e para o Oficial de Prevenção) que lhe custava pedir que trouxesse mais um para o desgraçado do Sargento da Guarda?!
O café não fazia parte do "Menu do dia" e teria de ser pago. Achei que não seria correcto da minha parte entregar-lhe, logo ali, o dinheiro correspondente ao meu "cimbalino" (1 escudo, salvo erro) e não o fiz, até porque seria pouco provável que o Capitão o aceitasse (julgo eu).
Sentia-me que nem um Abade e, sentado à mesa, de papo cheio, debaixo da ventoinha da Casa da Guarda, aguardava o cafezinho, imaginando até o Capitão a providenciar para que o "cimbalino" fosse devidamente acompanhado com um bagacito pr'ajudar à digestão.
Os minutos foram passando e o café não aparecia. Comecei a pensar que talvez o Capitão tivesse ficado chateado por eu não lhe ter pago o café antecipadamente, mas isso parecia-me pouco plausível.
Também não me parecia normal que o café já tivesse chegado e que fosse o Capitão a trazer-mo à Casa da Guarda. Assim, fui passando várias vezes pela porta do Oficial de Dia (mesmo em frente à do Sargento da Guarda) para ver se o café já tinha chegado. Também pensei que, quando chegasse, o Capitão me chamaria com toda a certeza.
O tempo continuou a passar e, de café, nem cheiro!
Era também estranho que, não havendo café p'ra ninguém, não tivessem a gentileza de me informar.
Rebobinei a cassete toda e comecei a rever o filme. Juntei algumas peças do puzzle e, de repente, fez-se luz no meu espírito!
Um almocinho "à maneira" - o Capitão a perguntar: "E um cafézinho, não vai agora?!... "Querem ver que o ordenança trocou as "marmitas" e eu "mamei" o almoço do Capitão e esta conversa do cafézinho é só tanga?!
Pois, aquele "E um cafézinho, não vai agora?!", não se tratava de qualquer cortesia do Capitão, mas sim de alguma ironia de quem se via na contingência de almoçar "que nem um Sargento".
Resumindo:
Entregaram-me o almoço, estava bem servido e eu estava com fome - atirei-me a ele!
E, digo-o com toda a sinceridade, nunca supus que tivesse havido troca, tanto mais que do outro lado eram dois almoços e, a haver troca, a mesma seria imediatamente detectada. Provavelmente o Alferes também se aviou primeiro, não sei. Apenas sei que almocei melhor do que era costume.
O cafezinho é que, pelos vistos, tinha ficado na Alfândega!
Durante a minha vida militar no TO da Guiné, vários pequenos episódios sem grande importância foram acontecendo e a sua grande maioria estava já no arquivo morto e só agora, depois que me tornei escriba desta grande Tabanca, é que alguns me têm vindo à memória. Parecendo-me, no entanto, que o pessoal das "bolanhas" demonstra algum interesse em conhecer este tipo de episódios vividos pelo pessoal do "ar condicionado" e ainda que sejam, realmente, episódios insignificantes do meu dia-a-dia no QG/CTIG, continuarei a relatá-los até que alguém me mande calar, tenha eu "pachorra" e tempo para o efeito.
Convencido que estou de que isto não sairá daqui por me encontrar entre ex-camaradas da Guiné, vou, aqui e agora, fazer uma confissão que nunca fiz publicamente, para que se perceba minimamente o contexto em que alguns episódios se deram e tendo em conta que estávamos num Quartel General em pleno Teatro de Operações da ex-Província Ultramarina da Guiné (considerada, na altura, zona 100% operacional).
Como já deveriam ter percebido, este vosso ex-camarada, cujas acções militares na Guiné roçaram, ainda que ao de leve, as façanhas do famoso Rambo, fez vários serviços de Sargento da Guarda ao QG/CTIG.
Durante esses serviços nunca visitou nenhuma guarita, nem nunca quis saber, sequer, onde se situavam as mesmas.
Acredite quem quiser, mas é realmente verdade e passo a justificar:
Como sabem, havia sempre uma senha e uma contra-senha para efeitos de ronda. A senha era-me transmitida pelo Oficial de Dia através de uma carteira de fósforos, ou outro artefacto do género e era usual (para mim acho que foi sempre) utilizarem nomes de frutos (banana/pêra - uva/maçã - cereja/morango, etc.). Pelo mesmo método eu transmitia as senhas ao Cabo da Guarda.
O pessoal era sempre guineense com excepção do Cabo da Guarda que, uma ou outra vez, era europeu. Imaginem a confusão que se poderia fazer com uma salada de fruta de senhas e contra-senhas!
Nunca efectuei qualquer ronda, nem sabia onde ficavam as guaritas (eu era Amanuense, porra!). Estão a imaginar-me na escuridão da noite a aproximar-me de uma sentinela e não me lembrar de qual era a fruta da época e o "bacano" já ter entornado alguma "água de Lisboa"?! "Bai lá bai, até o Barack Obama!"
Recordo-me de uma certa noite, já com os portões fechados, me aparecer do lado de fora e agarrado às grades do portão, um soldado negro a quem só se via o "teclado" de tanto se rir e apenas dizia:
- "esfuriel... esfuriel... esfuriel".
Estava com uma "tosga do caraças", pois tinha abandonado a guarita para ir até à messe, onde trabalhava, beber uns copos.
Aquela triste figura só me dava vontade de rir, mas, por outro lado, tinha receio que o Oficial de Dia se apercebesse (nessa dia era um Capitão do QP) e lá estaria eu metido em sarilhos e aquele desgraçado com a vida estragada, pois a tropa era o seu ganha-pão (ou arroz). Abrir-lhe o portão para ele entrar, podia alertar o Capitão.
Disse ao Cabo da Guarda, também negro, que colocasse um substituto no posto e que fosse dar a volta ao Quartel, saindo pela CCS, e o trouxesse caladinho e o enfiasse na cama. Assim fez e tudo correu sem problemas.
Uma outra vez, sendo o Oficial de Dia novamente um Capitão do QP, aparece-me um 1º Sargento, daqueles que gostam de mostrar serviço, com uma G3 na mão dizendo que tinha encontrado uma sentinela a dormir e que lhe tinha sacado a arma. Sugeria que eu fosse lá à guarita ver o homem e fazia-o em voz alta para o Capitão ouvir e me tramar a vida a mim e ao soldado. Já algo furioso com ele, lá consegui que baixasse o tom de voz e me entregasse a G3.
Resumindo:
O pessoal, que era quase sempre o mesmo, já devia conhecer o meu modo de actuar e, quando eu estava de Sargento da Guarda, era uma "rabaldaria do caraças"! Eu só queria que não dessem muito nas vistas. Quanto ao resto, cada um que se desenrascasse que eu tentava fazer o mesmo, papando os almoços aos Oficiais de Dia.
Ainda uma outra vez em que me encontrava de Sargento da Guarda, logo pela manhã aparece-me esbaforido o Cabo da Guarda informando-me de qualquer coisa que se estaria a passar na casa de banho.
Para lá me dirigi de imediato e encontrei no chão, acometido de um ataque epiléptico, um nosso camarada que estava de Sargento de Dia. Lá providenciei para que o levassem de Jeep ao HMBIS.
Era um camarada ainda mais franzino do que eu e deixei de o ver durante uns tempos. Teria sido evacuado para a Metrópole?! Não!
Num outro dia em que voltei a fazer serviço de Sargento da Guarda, lá estava ele novamente de Sargento de Dia.
"Que Deus me perdoe, mas eu adoro isto aqui"
(Frase do General George Patton proferida no decorrer de uma batalha).
"Que Deus me perdoe, mas eu piro-me já d'aqui"
(Frase do Furriel Abílio Magro proferida no decorrer de um serviço de Sargento da Guarda).
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Nota do editor:
Vd. último poste da série de 14 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11250: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (8): O meu "25 de Abril"
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Uma delicia!
Magro junta isto tudo e publica em livro, são passagens que mostram que a nossa guerra não foram só tiros. Um abraço. Francisco Pinho
Ó Magro!
Já reparaste que tu e o Patton são equidistantes?
Só falta conhecer o ponto de referência, talvez as marmitas do almoço. Os historiadores, infelizmente, não são como o reporter que está no sítio, e desenchem-se as páginas douradas com episódios tão singulares.
Um abraço
JD
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