1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Janeiro de 2013:
Queridos amigos,
Um dos pontos mais curiosos destas memórias é a evolução do combatente, sobretudo o que ele viu na Guiné entre 1962 e 1974. Descreve a explosão dos acontecimentos no Sul, quando escreve é percetível que há uma enorme confiança coletiva em estancar aquela rebelião para a qual os guerrilheiros, nos primeiros meses, não dispõem de qualquer informação.
Promovido a sargento, avalia a progressiva escalada de meios e o moral das tropa especiais e das forças em quadricula. Transmite por escrito um estado de desfalecimento pessoal e coletivo, as escoltas aos comboios de navios, sobretudo no Sul, são sempre atos temerários. Apercebe-se que há um estado de decomposição, um encolher de ombros, uma fuga ao confronto direto, de 1973 para 1974.
E participa no fim da guerra, dizendo sem rebuço que a partir do 25 de Abril todos quiseram depor as armas.
Um testemunho íntegro e genuíno, o do Homem Ferro.
Um abraço do
Mário
Homem Ferro, Memórias de um combatente (2)
Beja Santos
A segunda comissão de Manuel Pires da Silva envolve sobretudo escoltas e diversas atribulações operacionais. Colocado em Ganturé, os fuzileiros sabem que têm um inimigo motivado e bem municiado na região de Sambuiá, bem ali perto. Em Janeiro de 1970, o Homem Ferro acompanha o DFE 7 à península de Sambuiá, nada de espetacular. O DFE 8, em Fevereiro, segue para uma operação em frente a Cumbamori. “Nessa operação vai o Homem Ferro com a respetiva secção de morteiro 81, sob as ordens do COP3. Na véspera a secção reunira para acertar alguns detalhes e qual não foi o espanto do Homem Ferro quando lhe aparecem, a oferecer-se como voluntários, o Pinto e o Alfaiate”. Mais adiante fala na deserção destes três marinheiros, descreve as dificuldades em desalojar os guerrilheiros de Sambuiá, em Agosto regressa a Bissau para voltar às escoltas. Surge entretanto uma nova dificuldade, agora o PAIGC já usa minas aquáticas, é necessário levar uma equipa de mergulhadores para as desativar. E com todas estas idas e vindas a Companhia de Fuzileiros 10 é rendida em Janeiro de 1971.
O Homem Ferro tinha agora família constituída. Questiona-se se deve continuar neste vaivém de comissões. Oferecera-se como voluntário na Marinha, cumprira 6 anos de contrato, depois fizera curso para sargento, chegara a primeiro-sargento com 27 anos. Não queria pôr em causa a carreira que conquistara com tenacidade e muito sacrifício. Teve um desaguisado quando concorreu a oficial do Serviço Especial, sentiu-se preterido, encarou seriamente a hipótese de deixar a Marinha, a resposta que lhe deram é que só teria direito a uma pequena pensão a partir de 1975. Depois de algumas andanças, parte para a terceira comissão na Guiné, em Outubro de 1972, integrado na Companhia 2. Passa os primeiros 4 meses em missões de segurança interna. E começa a reparar que a tropa nos aquartelamentos começa a baixar os braços, tornou-se inequívoco que era às tropas especiais quem os altos comandos constantemente recorriam. Com a chegada dos misseis aumentaram as dificuldades com a perda da supremacia aérea, o Homem Ferro chegou a ir numa operação com o DFE 1 em buca dos destroços de 2 aviões abatidos na zona de Talicó. Comenta que esta nova arma obrigava a rever todos os procedimentos operacionais e logísticos, já que toda a estratégia assentava nos reabastecimentos feitos ou vigiados pela Marinha e nos apoios rápidos à responsabilidade da Força Aérea.
O Homem Ferro volta às escoltas e aos comboios de navios, intensificaram-se as medidas de segurança nos rios Cobade e Cumbijã. As operações do PAIGC em Maio, tanto em Guidage como em Guilege e Gadamael Porto deixaram mazelas, percebia-se bem que o inimigo fazia ofensivas à carta, estabelecia as regras de jogo, quem fazia escoltas nos rios do Sul estava sempre à espera do pior, ele sentia sempre receio enquanto percorria os rios a caminho de Cacine, Cufar ou Catió, entre outras paragens. De forma intermitente, assiste ao espetáculo dos misseis a voar por cima dos aquartelamentos. As escoltas para Cacheu, Ganturé e Binta são outras missões que lhe cabem. Mostra-se muito crítico sobre as forças na quadrícula, em meados de 1973: “Os quartéis no mato pareciam fechados para férias. Ninguém saía para lá do arame farpado e os relatórios das patrulhas eram viciados. Parecia um jogo combinado com os guerrilheiros, tu não atacas, eu também não ataco”. Mais adiante, observando a situação em Novembro: “No mato, a desmoralização é total. A toda a hora chegam notícias de novos ataques a Gadamael Porto, Chugué, Bedanda, Cameconde, Jemberém, Cafal Balanta, Buba, Gampará, Cadique, Bigene e Canquelifá. Tudo está a ferro e fogo. Fuzileiros, paraquedistas e comandos já não chegam a todo o lado, como faziam dantes. As operações são, agora, todas em grande escala, mas os guerrilheiros já nem as tropas especiais respeitam, têm armamento mais sofisticado do que o dos portugueses. Fala-se numa invasão eminente, a Guiné-Bissau declarou a sua independência, supõe-se que será uma invasão apoiada pela Organização da Unidade Africana”. Em Janeiro de 1974, o Homem Ferro regressa às escoltas. Em Fevereiro, tem pela frente uma estadia em Ganturé, prevista até fins de Maio. Retomam-se as idas a Sambuiá, quase sempre muito fogachal, às vezes o inimigo debanda e tece considerações sobre as emboscadas nos rios: “Não há comparação entre uma emboscada em terra e uma sofrida a meio do rio. Aí todos são obrigados a ser audazes, pois não têm por onde se esconder. Só quem passou por elas faz ideia do como são terríveis. Normalmente, só à traição um fuzileiro podia ser derrubado. Mesmo nestas difíceis condições, em que já nem com o apoio aéreo podiam contar, os fuzileiros nunca fraquejavam”. Observa uma escalada ofensiva na região Norte, sem resposta à altura: “A tropa está desmoralizada e os fuzileiros já nem têm sargentos especiais. Começam a aparecer os subsargentos, equiparados a furriéis, mas as praças mais antigas, também com duas ou três – algumas com quatro! – comissões cumpridas já não acreditam neles como acreditavam no sargentos. Chegam informações de que já têm navios rápidos e aviação forte”.
Informações sobre o 16 de Março e o 25 de Abril chegam a Ganturé. O regozijo é geral: “A guerra na Guiné acabou logo ali. Não houve mais tiros. Havia, agora, que negociar independência”. Há encontros amistosos com grupos do PAIGC. Parte com saudades, gosta muito daquele povo: “Apesar de todos os sacrifícios sofridos na pele e das desagradáveis surpresas da guerra, com tantas emboscadas violentas, nunca foi maltratado por nenhum guinéu. Pelo contrário, a lealdade que sempre lhes conheceu, levou-o a sentir grande consideração por todo o povo guineense”.
Aos 38 anos despediu-se da Briosa, guarda a Escola de Fuzileiros no coração. Partia rumos a novos sonhos. Pôs em letra de forma as suas memórias porque entende que os portugueses têm direito a saber o que fizeram os fuzileiros na Guiné.
Junta as suas fotos na recruta, na Escola de Fuzileiros, nas primeiras operações na Guiné, na guarda aos prisioneiros do PAIGC, nas batidas em Jabadá, na operação Tridente, nas patrulhas do rio Cacheu, percebe-se bem que foi esta primeira comissão que mais o tocou, andou sempre na primeira linha do combate; depois as fotos nas operações em Sambuiá.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 3 de Maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11521: Notas de leitura (477): Homem de Ferro, edição de autor, por Manuel Pires da Silva (1) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
1 comentário:
Diz o Mário:
"E participa no fim da guerra, dizendo sem rebuço que a partir do 25 de Abril todos quiseram depor as armas."
Exactamente, depor as armas, sem rebuço, ninguém mais queria combater, depois do 25 de Abril foi a tal "derrota" militar
porque uma das partes abandonou o combate.
Para que é que se fez o 25 de Abril?
E andei eu por aqui, há anos, a discutir com o MBSantos a tese falsa da derrota militar antes do 25 de Abril.
Abraço,
António Graça de Abreu
Enviar um comentário