segunda-feira, 14 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15853: Notas de leitura (817): "As Memórias de Um Comando", por Zé Carlos, Edita-Me, Editora, Lda., 2014 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Maio de 2015:

Queridos amigos,
Quando ouvi falar neste livro de memórias de um Comando, alguém que, aos 64 anos, completava o 12.º ano pelo RVCC [Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências escolares e profissionais] e que correspondeu ao que a professora lhe pedia da sua "história de vida" com páginas singelas da sua meninice até ser trabalhador de casino, não resisti a ler um relato elaborado, parece-me, em condições francamente singulares no contexto da chamada literatura da guerra.

É um relato que nos prende pela indiscutível sinceridade, pela singeleza de quem corresponde ao pedido de um professor e conta tudo, sem jactância nem prosápia, tal qual foi desde a infância dura aos diferentes aprendizados, à formação para Comando, ao arrebol de operações no Leste e no Norte de Angola, aproveitando as horas vagas a consertar relógios.

Um abraço do
Mário


As memórias de um Comando, por Zé Carlos

Beja Santos

Estas memórias reservam-nos uma surpresa. O seu autor, Zé Carlos, ou Carlos Teixeira, ou Carlos Marques Teixeira, voluntariou-se para os Comandos, esteve em Angola, antes fora relojoeiro e é atualmente Presidente do Sindicato dos Trabalhadores das Salas de Jogos. Aos 64 anos, completou o 12.º ano pelo RVCC (Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências) e foi durante este processo de aprendizagem que escreveu as memórias de um Comando. Tanto como me é dado saber, é o primeiro caso de incursão literária motivado por um processo escolar. Escreve a sua formadora:

“Este milagre aconteceu na sequência da primeira fase do seu envolvimento no RVCC, quando lhe foi solicitada a execução da sua história de vida. A aventura redundou numa profusão de páginas, cheias de passagens reveladoras de rara mestria ao nível do manuseio da palavra, da frase, do parágrafo, das estórias dentro da narrativa principal”.

São memórias em edição de autor (Zé Carlos Teixeira, Edita-Me, Editora, Lda., Porto, 2014).

O Zé Carlos cativa-nos pela singeleza, não esconde a admiração pela mãe que teve que lidar sozinha com a educação dos filhos. Trabalhou numa tabacaria até aos 12 anos, foi depois aprendiz de relojoeiro, seguiu para a fábrica de relógios Soumar, instalada na Rua Dezanove em Espinho. Era saudável mas muito franzino, inscreveu-se num ginásio, vivia fascinado pelos filmes do Hércules e no ginásio entusiasmou-se com o culturismo. O tempo passa, e o mancebo assenta praça no RI 5, estamos em 1969, a recruta não o entusiasmou, com um grupo de amigos inscreve-se para os Comandos. Inicia-se o processo da seleção: obstáculos, prova de boxe, seguem-se as eliminações, vertem-se lágrimas. Segue para Lamego. Na parada, é-lhes dito que iriam proceder a uma primeira chamada, os convocados iriam constituir as 24.ª e 25.ª Companhias de Comandos. Inicia-se a instrução militar e no dia 1 de Dezembro embarcam.

Estamos agora no Centro de Instrução de Comandos, ali vai aparecer o Comandante da Instrução, Gilberto Santos e Castro. Ordens súbitas para formar na parada, e depois da formatura relâmpago parte-se em caravana, acampa-se, desperta-se bem cedo e começam as provas duras, crosses à torreira do sol, um cantil de água por dia, era a prova da sede, preparação física e psicológica que não permitiam vacilações. A seguir a semana maluca em que tinham que fazer tudo ao contrário do que seria um dia normal, o dia começava às sete da tarde, com a noite cerrada havia a formatura para o pequeno-almoço, à meia-noite começava o almoço e às seis da manhã formatura para o jantar. São provas que desorientam os instruendos, correm pelos trilhos, chegam a uma clareira e ouvem-se disparos, entra-se na mata e ultrapassa-se obstáculos. E depois a prova dos mosquitos, uma noite pesadelo.

Em resumo, o Zé Carlos tirou o curso de Comandos em três meses e três dias, são encaminhados para as operações do Leste. As memórias começam a ganhar vivacidade. Vão numa operação na zona do Buçaco, aqui havia atividade de guerrilha bastante intensa. Encaminham-se para o acampamento quando se ouvem os gritos do Bernardo, tinha um pé atravessado por uma lança, caíra numa armadilha de caça, um grupo teve que retirar, foi uma prova extremamente dura. Os Comandos estão sediados no Luso. Zé Carlos conta-nos a operação Siroco, de certo modo foi aqui que mudou a sua vida, encontraram um grupo de guerrilheiros que lhes fez frente, apercebem-se da coragem de quem existe dentro do acampamento, capturaram alguns deles. Esta operação estendeu-se por todo o Leste angolano, desde o Lumege à fronteira com o Congo. As operações sucedem-se umas às outras. Há prisioneiros que olham impávidos os seus filhos mortos no solo. Há prisioneiros que se oferecem para levar os Comandos até aos acampamentos que dizem conhecer, após a destruição ficam aturdidos pelo contributo que deram àqueles que eram seus camaradas.

Dentro de toda esta singeleza, o Zé Carlos exalta a camaradagem, o espírito de corpo. Findo o tempo do Leste, são acantonados em Luanda, agora as operações serão feitas no Norte. Aceita voltar a consertar relógios, desmonta-os, lava-os, coloca as peças em cestinhas, repõe os mecanismos, fica contente quando os relógios voltam a trabalhar. Faz amizades no mundo civil. Mas houve um momento que lhe trouxe, com grande estrondo, o regresso à realidade, abruptamente deixou aquela vida pacata e recomeçaram as operações. Vemo-lo a caminho de Bonangongo. Com melancolia, vai-nos referindo os feridos e os mortos. Cinge-se a sua atividade militar meramente ao operacional, nunca deixa de fazer as operações mas paga os serviços de faxina que está incumbido.

Fez férias, veio visitar a família, mas também o camarada Carneiro, ficou deficiente, bem como a família do alferes Gomes. Com o seu trabalho de relojoeiro e a credibilidade daí resultante, chegou a pensar se não prosseguiria a sua vida civil a trabalhar com o senhor Cunha. Mas decidiu voltar para Espinho. Depois trocou uma vida ligada aos relógios por um emprego no Casino de Espinho, em Junho de 1974, passa a ser um trabalhador da noite, deitava-se no final do seu dia de trabalho à hora em que a maioria das pessoas acordava.

Aqui estão as suas memórias, graças ao RVCC. A formadora foi lendo página a página esta forma de crescer todos os dias na guerra, impressionou-se com as páginas de solidariedade, com a vivência pura e dura no mato angolano. Acontecera um milagre, as memórias de Zé Carlos tinham chegado ao fim, eram páginas de franqueza, desde menino a trabalhador de casino, pelo meio temos páginas de camaradagem, relatos de dor, registos de sacrífico e martírio. Uma história daquelas que podia caber dentro do poema de Fernando Pessoa O menino de sua mãe (tão jovem, que jovem era…”).
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de Março de 2016 Guiné 63/74 - P15842: Notas de leitura (815): “A Marinha em África (1955-1975), Especificidades”, publicação da Academia da Marinha, 2014 (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Luís Graça disse...

Mário: O RVCC [Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências escolares e profissionais] deu oportunidades a alguns portugueses da nossa geração a quem "a ascola e a vIda foram madrastas"... Aliás, quem da nossa geração pôde prosseguir os estudos para além da 4ª classe obrigatória (para os homens) ?

O exemplo do Zé Carlos é de louvar... O nosso camarada está de parabéns por ter ousado escrever e publicar um livro com a sua história de vida. A formadora do RVCC está de parabéns pela sua sensibilidade em relação à autenticidade da escrita do Zé Carlos e por incentivá-lo a publicar a sua história. Tu, Mário, mais uma vez mereces o nosso apreço por trazeres à tua/nossa série, "Notas de leitura", mais um bravo autor da nossa guerra... que de outro modo passaria despercebido da maior de nós...

Só um reparo ou pedido de esclarecimento:

tecnicamente, não me parece que esta seja um edição de autor... O livro vem no catálogo da editora Edita-me...

http://www.edita-me.pt/product_info.php?products_id=217

Sobre este projeto editorial "alternativo", vd aqui:

http://www.edita-me.pt/about.php


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Antº Rosinha disse...

Graças a BS tomo conhecimento de leituras que dificilmente eu faria, tanto porque já me falta paciência para ler muito, e segundo porque não ando por aí à procura de novidades.

Deve haver poucos Comandos a escrever Livros.

Devem ter sido nos ex-Comandos onde houve mais gente com traumas e decepções de vida militar, penso eu.

Embora não fosse com Comandos que se ganhava esta guerra, não foi com eles que se viram os maiores sucessos, que houve muitos na nesta guerra impossível de ganhar por ninguém, os Comandos no entanto faziam falta com sua loucura e a sua adrenalina.