quarta-feira, 30 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22329: Historiografia da presença portuguesa em África (269): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (6) (Mário Beja Santos)

Uma das salas com os tesouros da Sociedade de Geografia de Lisboa


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
Estamos em 1890, aquele Ultimatum que surgiu em janeiro ajuntou uma comoção nacional, estava-se há pouco tempo a cerzir o tecido do III Império Português, a procurar dar-lhe forma, isto no meio de uma tormenta económico-financeira completamente nova, parecia que se voltara ao tempo anterior à Regeneração, os sócios fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa pareciam apóstolos iluminados pelo farol da civilização, pediam tudo ao Governo, cultuavam os nossos heróis africanos, Capelo e Ivens, Serpa Pinto, dentro em breve Caldas Xavier, Mouzinho de Albuquerque, Paiva Couceiro. Querem-se caminhos-de-ferro, inflexões no surto migratório, quem vive mal no continente europeu deve ser canalizado sobretudo para Angola e depois para Moçambique, apela-se a leis que ponham o indígena a trabalhar. Estas atas são o espelho de um admirável mundo novo onde os portugueses retomam a sua consciência colonizadora, o Oriente longínquo a poucos interessa, fazem-se fortunas nas roças de São Tomé, em Portugal insiste-se na industrialização, ela está a chegar sobretudo a Lisboa, uma parte da intelectualidade, da pequena burguesia e a massa operária aproximam-se do Partido Republicano, que quer uma mudança de regime mas que prossegue de braço dado com o sonho imperial que está a sarar a ferida do trauma brasileiro.

Um abraço do
Mário


O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (6)

Mário Beja Santos

Como é óbvio, é pedir demasiado às atas das sessões dos sócios da Sociedade de Geografia, no período correspondente aos cerca dos primeiros quinze anos de vida, que elas exprimam com meridiana clareza o que de mais vigoroso sobressaía na época quer ao nível do entusiasmo pelo ressurgimento imperial, quer pelos interesses económicos subjacentes, e até mesmo é difícil poder contabilizar as aspirações científicas exclusivamente pelas propostas apresentadas nestas reuniões. Mas que é uma ferramenta indispensável para o culto dos heróis, para o estudo da vida portuguesa neste período em que já passara a Regeneração e que emergiam alterações no xadrez político, não tínhamos dúvidas. Vimos como em 20 de janeiro de 1890 os sócios-fundadores se revelaram compungidos com a natureza do Ultimatum, e reagiram, pedindo afastamento do mundo da libra. É sintomático que nesse dia se tenham apresentado propostas para o estabelecimento de carreiras de navegação regulares entre a barra principal do Zambeze e o começo das Cachoeiras; deu-se a sugestão da abertura de estradas e permitiu-se o trânsito tão longe destas Cachoeiras; e mais se pedia ao Governo: a construção de linhas telegráficas ligando Quelimane, o Lago Niassa, Tete, Zumbo, Manica, Beira, Sofala, Inhambane e Lourenço Marques; e que se mandasse proceder ao estudo das linhas férreas de penetração de Inhambane à fronteira do Transval. Uma leitura possível de tal proposta é que houvesse afastamento dos interesses exclusivamente britânicos e se privilegiasse a região Bóer.

No início de fevereiro, o rei D. Carlos recebe os Órgãos Sociais da Sociedade que protestam contra o insólito procedimento do Governo britânico. O Presidente da Sociedade expôs ao monarca o que estava a ser idealizado para a celebração do IV Centenário da Partida para a Descoberta da Índia e pediu a confirmação da Carta Régia pela qual o chefe de Estado se declarara em 1878 protetor da Sociedade de Geografia. Tudo quanto afirmasse a solidez de Moçambique era de bom augúrio, e na primeira sessão de fevereiro o presidente anunciou que a embaixada da regente de Maputo visitara a Sociedade e manifestara fidelidade à soberania portuguesa. Quatro figuras foram proclamadas sócios honorários: Joaquim José Machado (que proferira antes do Ultimatum conferências avisando para a natureza a cobiça britânica nos territórios situados entre Angola e Moçambique), António Maria Cardoso, Henrique de Carvalho e Victor Cordon. E discutiram-se direitos majestáticos para as companhias que se pudessem implantar em Moçambique, a opinião dominante foi de rejeição, entrara-se num quadro nacionalista e de profunda desconfiança dos interesses britânicos: “Deve ser rejeitada como contrária ao direito constitucional português e como politicamente inconveniente e economicamente errónea a ideia de entregar parte ou todo o território de uma província ultramarina à ocupação e exploração de uma grande companhia mercantil de todos os quaisquer direitos, privilégios ou poderes de soberania ou de jurisdição pública”.

Em junho, muito à moda da época, apresenta-se a proposta de um estudo que hoje é encarado como caricato por qualquer cientista: “Proponho que se promova um inquérito ao estado hodierno físico, moral, intelectual, industrial e artístico do povo português, comparando-o, tanto quanto possível, com o das suas épocas passadas e com o das outras nações europeias”. Pedia-se o impossível, seguramente que se andava à procura de uma base da lusitanidade, queria-se ir ao âmago de uma raça portuguesa, e num país de penúria, já sacudido por uma crise financeira sem precedentes, parecia que se queria conhecer tudo: dados antropométricos; dados sobre a natalidade, mortalidade, crescimento da população, emigração; estudo de todas as doenças, não esquecendo as nervosas e mentais, as dos órgãos de respiração e circulação, lepra, paludismo, febres tifoides e raquitismo; estudo sobre a alimentação principalmente das classes trabalhadoras; estudo tendente a determinar se a indolência, a falta de energia física, que alguns viajantes nos atribuem, é maior que a de outros povos europeus do Sul. Era um estudo de arromba, os membros da Sociedade de Geografia devem ter ficado a olhar uns para os outros e a não saber como moderar o ímpeto do proponente. Porque o estudo ia em todas as direções: pretendia determinar as nossas aptidões industriais e artísticas; até determinar se o uso ou desuso dos antigos jogos tradicionais contribuía para a conservação ou diminuição das forças físicas do povo. E queria-se apurar o estado intelectual do país, até os progressos das ciências desde o estabelecimento do regime institucional, comparado com o absolutismo, em praticamente todas as áreas: matemáticas, física e química, história natural, fisiologia e medicina, ciências sociais, ciências históricas e geográficas, ciências filológicas e filosofia. Que grande empreitada!

Suceder-se-ão propostas mais conformes ao realismo como o pedido de um estudo sobre a iluminação e balizagem no arquipélago de Cabo Verde e a homenagem prestada a Henrique Dias de Carvalho, um militar que se revelara um importante administrador colonial. O pretexto da homenagem viera da análise de um documento de Henrique Dias de Carvalho intitulado “A questão da Lunda”, seguira-se um agradecimento de comerciantes da região do Malange aos empreendimentos deste prestigiado major, e é neste papel que vem um curioso apelo colonizador:
“Uma missão que por modesta que seja, no meio da barbárie indígena, significa sempre um esforço generoso da civilização e do cristianismo para melhorar a condição social dos nossos irmãos, e, portanto, é respeitável e respeitada. Uma ocupação militar no meio do sertão, realizada por alguns soldados pretos e um cabo, só desafia o ridículo, e apresenta perante o indígena a fraqueza e a decrepitude daqueles que este julgava fortes e invencíveis. Deixemos, pois, quanto for possível as espadas nas suas bainhas e as balas nos seus cartuchos e lancemos mão do homem da cruz do missionário, e não só do missionário, da irmã educadora, do negociante e de todos os que tiveram a coragem das privações e do sacrifício”.

E com alguma regularidade constata-se que continua a insistir-se na urgência de haver caminhos-de-ferro em Angola e Moçambique. Aparece nesta sessão um texto de uma conferência sobre o Porto, o caminho-de-ferro e o distrito de Lourenço Marques onde em dado momento o Major de Engenharia António José de Araújo proferiu o seguinte:
“O indígena de Lourenço Marques conhece do europeu apenas as vantagens que ele pode proporcionar-lhe, mas recusa completamente, ou executa de má vontade, os encargos que tais vantagens exigem. O indígena deste distrito considera-se credor do dever do europeu em fazê-lo viver, reservando, porém, para si, o gozo da liberdade. O indígena de Lourenço Marques adquiriu os vícios que o convívio do homem branco lhe incutiu, mas guardou bem vivaz a noção da liberdade ociosa e selvagem que gozavam os seus antepassados. Em 1882, via eu o indígena lançar orgulhosamente fora a moeda portuguesa de cobre com que se lhe pagava um pequeno serviço que prestara. Em 1883, via eu os indígenas serviçais dos habitantes do distrito abandonarem a cidade, porque estranhos bem intencionados lhes sugeriram que uma corveta portuguesa de guerra, então surta em Lourenço Marques, pretendia obter indígenas para serviço de bordo, sendo preciso nada menos que a palavra de um governador para que o régulo do Amule fosse visitar aquela corveta, muito embora acompanhado pelos seus secretários grandes e ficando os seus súbditos esperando, armados, na praia, o seu regresso.

Em 1886 e 1887, graças à fome que assolava o distrito, tive o prazer de vê-los a fluir em abundância ao trabalho, mediante 225 reis diários, mas logo no ano seguinte os encontrei exigindo 2,3 e 4 xelins diários para salários. Como, pelas atribuições do meu cargo, eu podia de algum modo regular o custo do braço indígena, intentei lutar, mas fui vencido! E quando eu penso que estes semisselvagens, estes homens problematicamente civilizados, consomem salários superiores aos dos nossos trabalhadores europeus, bebendo álcool e sustentando até ao último requinte o gozo dos seus prazeres sensuais; quando os vejo miseravelmente cobertos, cheios de andrajos, sofismando as leis, mesmo envergonhando-nos, compreendo então que há uma grande lacuna no nosso regime colonial; que é indispensável a todo o custo criar, não só uma lei de trabalho prática, útil e sobretudo eficaz, mas ainda uma reforma judicial que habilite os magistrados a rapidamente aplicarem justiça”
.

(continua)

Durante anos, era este o aspeto do vestíbulo da Sociedade de Geografia, o quadro de Veloso Salgado estava à altura dos nossos olhos
Pormenor da Sala Portugal no decurso de uma exposição
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22310: Historiografia da presença portuguesa em África (268): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (5) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Houve um major que disse isto:

“O indígena de Lourenço Marques conhece do europeu apenas as vantagens que ele pode proporcionar-lhe, mas recusa completamente, ou executa de má vontade, os encargos que tais vantagens exigem..."

Houve outro major que disse isto:

"Uma ocupação militar no meio do sertão, realizada por alguns soldados pretos e um cabo, só desafia o ridículo,..."

Não sei se o primeiro major se analisava bem os laurentinos ou não, mas penso que não se referia apenas aos laurentinos, hoje maputos (?),mas a todos os moçambicanos, como nunca estive em Moçambique é melhor eu não comentar, mas o major disse, palavra de oficial, nesse tempo era lei.

O segundo major, esse eu comento porque estive onde ele andou em Angola, Lunda/Malange, 60 anos depois dele.

Dou razão ao Major Henrique de Carvalho, que até emprestou o seu nome à vila de Saurimo na Lunda.

É verdade que houve cabos naqueles "cus de judas", que velhos régulos e sobas contavam que certos caminhos e pequenos pontões muito antigos e muito rudimentares foram cabos que os construíram, provavelmente com mão de obra local, penso eu.

Esses velhos régulos que seriam crianças no tempo desses cabos, até se lembravam do nome deles.

Quantos de nós não terão conhecido velhos reformados tenentes, que chegaram aí, por promoções merecidas, após algumas comissões naqueles cus-de-judas?

Ai se não fossem os cabos meu major!