segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23012: O segredo de... (37): Demburri Seidi: demorou mais de dois anos para sair da sua boca o testemunho sobre os trágicos acontecimentos de Cuntima, em novembro de 1976, devido em parte ao medo que sentia e a manifesta dificuldade em falar sobre a "justiça revolucionária" praticada pelos vencedores contra os vencidos (Cherno Baldé)



O Comandante das FARP Quemo Mané (Canjabel, região de Quínara, c. 1932 - Moscovo, 1985). Fonte:  Plataforma Casa Comum / Fundação Mário Soares > Arquivo Amílcar Cabral... Pasta 05248.000.024Reproduzido com a devida vénia...

Citação:
(1966-1973), "Quemo Mané", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43764 (2022-2-19)



Título de viagem (servindo de passaporte),  emitido pelo Ministério da Defesa e da Segurança Nacional,  da República da Guiné. Data: Conacri, 17 de junho de 1968. Titular: Quemo Mané, de nacionalidade guineense, nascido por volta de 1932, em Canjabel, caçador de profissão (sic), residente em Conacri,  B, 1º 298. Motivo da viagem: tratamento médico na URSS. Validade: um ano.

Fonte:  Plataforma Casa Comum / Fundação Mário Soares > Arquivo Amílcar Cabral... Pasta   07200.172.017. Reproduzido  com a devida vénia...

Citação:
(1968), "Título de viagem", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP:
http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41544 (2022-2-19)


1. Em 2013,  quando publicámos o relato de Cherno Baldé sobre os acontecimentos em Cuntima, no norte da Guiné-Bissau (*), estávamos perante  a revelação de um duplo segredo:  (i) o de Demburri Seidi (nome fictício, por razões de segurança) de quem foi obrigado a assistir às execuções públicas, da inteira e única responsabilidade do comandante das FARP Quemo Mané (c.1932-1985); (ii) mas também do Cherno Baldé, que levou o seu tempo (dois anos) a recolher e a traduzir esse depoimento... e mais uns tantos até decidir publicá-lo no nosso blogue...

Daí fazer todo o sentido publicar um comentário do Cherno Baldé ao poste P11762 (*), transformando-o em poste desta série "O segredo de...".  Passados mais de 8 anos não temos conhecimento de mais nenhuma outra versão sobre estes acontecimentos que, de resto, são do domínio público na Guiné-Bissau, mas que o tempo já fez esquecer. Infelizmente Cuntima não foi exceção, nos primeiros anos que se seguiram à independência.

Em 23 de junho de 2013 escrevemos (*):

(...) Estamos então em condições de publicar hoje, num único poste, o notável e inédito documento que ele nos pede para publicar no nosso blogue (que também é dele, e de todos os guineenses, homens e mulheres de boa vontade, que querem construir connosco as pontes do futuro sem destruir os vestígios dos bons e dos maus momentos do nosso passado comum). 

 Embora extenso, é importante que se publique na íntegra, num só poste, para manter a unidade de leitura. Naturalmente, estamos abertos à publicação de outros testemunhos, de outras fontes, que contestem, ou corrijam, ou complementem, ou melhorem esta versão que contem as recordações de Demburri Seidi quando jovem, em Cuntima, novembro de 1976. (...)

Mais recentemente, republicamos em parte este poste (**).  


2. Aqui vai então o comentário do Cherno Baldé (***)

"Pode ser até que se trate de uma etapa obrigatória da evolução de todos os povos... É só analisar a História dos povos velhos do mundo e tirarmos as conclusões objectivas." (A.P. Costa)

"Sejamos pragmáticos com a História, o país Guiné-Bissau nasceu assim. Houve vencedores e vencidos e as represálias dos vencedores sobre os vencidos pressentiam-se na sua 'cartilha' comportamental, no uso, pelo PAIGC, da violência interna para dirimir conflitos». M. Joaquim.

"...Para tudo há explicações, mas para isto não há justificação". (L. Graca).


Caros amigos, ex-combatentes,

Muito obrigado pelo feedback ao pequeno texto que se foi relativamente facil de traduzir e trabalhar, demorou mais de dois anos para sair da boca do Demburri Seidi que testemunhou estes acontecimentos em 1976, em parte pelo medo que ainda o habita e, também, por manifesta dificuldade de falar sobre esta justiça revolucionária praticada contra os "fracos".

Para quem não sabe, eu venho de longe e, como tal, durante muitos anos, acreditava no que o Manuel Joaquim, na esteira do A. P. Costa, chama de "conclusão objectiva" (ver citação acima).

Inclusive acreditava piamente que as vítimas do comunismo da era estalinista se justificavam plenamente em nome da necessidade suprema do progresso dos povos. Hoje sei, felizmente, que estava redondamente enganado.

Eu, pessoalmente, estou tanto revoltado contra a prática criminosa do PAIGC como a prática, não menos criminosa e insensata, das chefias do MFA que, aparentemente, não só não tinham o controlo da situação, mas também não quiseram ter em conta a posicão da JSN - Junta de Salvação Nacional, no processo da descolonização. 

Se calhar já era tarde demais, não sei, mas se a solução era política e não militar, como se dizia, não se compreende que sejam os militares a ditar as linhas basilares da orientação estratégica a seguir num momento e sobre assuntos cruciais da história de Portugal e das suas extensões territoriais em África.

De qualquer modo e para não me alongar muito, vou ao encontro do Luís Graça para dizer que, de facto, para tudo pode haver explicacões... mas não há justificação para o que aconteceu na Guiné no pós-independência.

Não consigo esquecer uma frase que o Marcelino da Mata proferiu numa das suas raras interevenções públicas, mais ou menos nestes termos: "Nós éramos muitos, provavelmente muito mais numerosos que as FARP, e, se nos permitissem, podíamos impor uma solução negociada que conduzisse a um referendum nacional sobre o território"-

Se havia o perigo do deflagrar de uma nova guerra, de qualquer modo, no fim haveria, presumo, maior respeito e contenção entre os adversários e não a humilhação que foi a sina de todos quantos estavam do lado Português. Revejam as palavras de Abbaro Candé que preferia a morte à humilhação a que estavam sujeitos, todos os dias.

Espero não ter posto mais lenha no fogo. Mantenhas.

Um abraço amigo a todos,
Cherno Balde
26 de junho de 2013 às 11:46 


3. Informação de hoje, em que o Cherno Baldé dá mais detalhes sobre o testemunho de Demburri Seidi:


O Demburri Seidi (nome fictício) é Oinca (da região do Oio, sector de Cuntima) que viveu alguns anos refugiado no Senegal (Casamansa) durante a guerra colonial. 

Fula de origem, mas mandinga de educação e cultura, um pouco como todos os fulas do Norte, pela longa convivência num meio de maioria mandinga, nesta região em concreto. Ele domina ambas as línguas desses grupos. 

A tradução foi de fula para o portugués, mas o mais difícil, primeiro, foi convencé-lo a depor e depois, foi preciso esperar que ele pudesse se recompor e ultrapassar a evidente dificuldade de falar sobre um acontecimento que o tinha profundamente traumatizado, pelo que, algumas vezes, tivemos que interromper por vários dias/semanas/meses, porque de cada vez que revia aquelas cenas macabras consumia-se num choro convulsivo e não conseguia continuar a narrativa porque ainda se ressentia do efeito, passados que eram mais de 35 anos sobre os acontecimentos. 

Foi preciso muita paciência e alguma insistência da minha parte, pois como dizem na Guiné "Quem teve a amarga experiência com um Cankuran, tem medo do Baga-Baga", porque ambos sao da mesma cor de terra vermelha.

A localidade de Candjabel ou Gan-Djabelia (em Biafada) que consta no documento sobre Quemo Mané, está situada no troço que liga Fulacunda a Nova Sintra, onde foi sepultudo, mesmo à beira da estrada do lado direito, no sentido Fulacunda/Nova Sintra.

Abraços,

Cherno Baldé

21 de fevereiro de 2022 às 14:39



Guiné > Região de Quínara > Carta de São João (1955) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Canjabel, a nordeste de Nova Sintra.

Imfografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)

___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11762: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (45): Horror e terror em Cuntima, em novembro de 1976: a revolta de um grupo de antigos milícias, a execução pública de Soarê Seidi e de Abbaro Candé, por ordem do histórico comandante do PAIGC, Quemo Mané (Recordações de Demburri Seidi, tradução e texto de Cherno Baldé)

(**) 18 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23006: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - IV (e Última) Parte: Cuntima, 16 e 17 de novembro de 1976: terror e violência de Estado, a execução sumária e pública de antigos milícias, "cães dos colonialistas", por ordem do famigerado comandante das FARP Quemo Mané

(***) Último poste da série > 11 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22988: O segredo de... (36): Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 (Xime e Mansambo, 1971/74): louvado pelo comando do BART 3873, por, no decorrer da Acção Guarida 18, em 3/2/1973, em Ponta Varela, "ter a peito descoberto enfrentado o IN, abatendo um guerrilheiro"

5 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Cherno, bom dia: deduzo que o Demburri Seidi (pseudónimo) fosse (ou seja) mandinga... uma vez que dizes que leviu dois anos a recolher e a traduzir o seu depoimento... Faço votos para que esteja vivo e de boa saúde. Se o encontrares, manifesta-lhe o apreço e a gratidão da Tabanca Grande pelo seu impressionante depoimento.

E, quanto a ti, mais uma vez manifesto o meu/nosso obrigado pelo talento, sensibilidade, oportunidade e coragem com que recolheste e trataste esta delicada informação, transformando-a num grande texto de antologia. Com ele, cumprimos também a nossa missão de "serviço público", dando voz a quem a não tem.

Mantenhas, Luís

Valdemar Silva disse...

"Nós éramos muitos, provavelmente muito mais numerosos que as FARP, e, se nos permitissem, podíamos impor uma solução negociada que conduzisse a um referendum nacional sobre o território".
Disse o grande combatente, homem da guerra Marcelino da Mata, calhando como chefe dos mais numerosos que as FARP.
Como não conheço o resto/continuação desta sua ideia, fico sem saber o que seria 'um referendum nacional sobre o território' e qual a questão imposta a referendum.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

Boa tarde Luis Graça,

O Demburri Seidi (nome ficticio) é Oinca (da regiao do Oio, sector de Cuntima) que viveu alguns anos refugiado no Senegal (Casamansa) durante a guerra colonial. Fula de origem, mas mandinga de educaçao e cultura, um pouco como todos os fulas do Norte, pela longa convivencia num meio de maioria mandinga, nesta regiao em concreto. Ele domina ambas as linguas desses grupos. A traduçao foi de fula para o portugués, mas o mais dificil, primeiro, foi convencé-lo a depor e depois, foi preciso esperar que ele pudesse se recompor e ultrapassar a evidente dificuldade de falar sobre um acontecimento que o tinha profundamente traumatizado, pelo que, algumas vezes, tivemos que interromper por varios dias/semanas/meses, porque cada vez que revia aquelas cenas macabras consumia-se num choro convulsivo e nao conseguia continuar a narrativa porque ainda se ressentia do efeito, passados que eram mais de 35 anos sobre os acontecimentos. Foi preciso muita paciencia e alguma insistencia da minha parte, pois como dizem na Guiné "Quem teve a amarga experiencia com um Cankuran, tem medo do Baga-Baga", porque ambos sao da mesma cor de terra vermelha.

A localidade de Candjabel ou Gan-Djabelia (em Biafada) que consta no documento sobre Quemo Mané, esta situada no troço que liga Fulacunda a Nova Sintra, onde foi sepultudo, mesmo a beira da estrada do lado direito, no sentido Fulacunda/Nova Sintra.

Abraços,

Cherno Baldé

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O "passaporte" do Quemo Mané é uma delícia : a profissão é "caçador", "chasseur" em francês... Não iam dizer que o homem era "combatente da liberdade da Pátria" uma vez que ele estava "emigrado" ou "exilado" barcos República da Guiné...E depois "combatente" não é profissão civil..
"Caçador" ficava-lhe melhor... E com aquela espécie de passaporte o homem não podia ir longe, a não ser ir para Moscovo tratar-se e voltar para a guerra...na sua terra.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Gralha: queria dizer "exilado" na República da Guiné..