segunda-feira, 3 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24448: Notas de leitura (1594): "Mariazinha em África, o bestseller de Fernanda de Castro com ilustrações de Ofélia Marques (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
Fernanda de Castro teve para este best seller da literatura infantojuvenil colonial duas ilustradoras topo de gama da chamada segunda geração do Modernismo português: Sarah Afonso e Ofélia Marques, a primeira de um grande ecletismo, desde a pintura de trabalhos artesanais, a segunda inequivocamente uma grande ilustradora, aguarelista exímia, e de uma obra complexa, onde pôs a nu aspetos da sua vida íntima. O livro de Fernanda de Castro foi estudado não exclusivamente pelas razões do seu sucesso mas pelo significado da evolução das representações coloniais, é do maior interesse acompanhar o olhar da autora sobre o guineense, selvagem ou ingénuo, criado fiel, sempre atrapalhado com a linguagem, as mostras do deslumbramento pelo feitiço africano, e a memória autobiográfica que a autora jamais escondeu, ficou-lhe uma saudade enorme daquela Guiné onde lhe morreu a mãe em Bolama e aonde ela retorna numa poesia vibrátil, de grande poder evocativo, caso do livro África Raiz, já na década de 1960. É desta parceria entre Fernanda de Castro e Ofélia Marques que aqui se presta esta homenagem.

Um abraço do
Mário



Mariazinha em África, o bestseller de Fernanda de Castro com ilustrações de Ofélia Marques (1)

Mário Beja Santos

Em termos de literatura infantil de caráter colonial, não houve obra que competisse com as dez edições que conheceu "Mariazinha em África", obra de Fernanda de Castro. A primeira edição foi de 1925, teve desenhos de Sarah Afonso, a edição de 1940 e a seguinte, de 1947, teve desenhos de Ofélia Marques. Fernanda de Castro nunca escondeu que este livro era marcadamente autobiográfico, em pequena acompanhou a mãe e foi para Bolama, onde o pai dirigia a capitania. Há algo de catártico nesta história de ternura, a sua mãe morrerá inopinadamente na capital da colónia, Fernanda de Castro dedicar-lhe-á versos de uma grande beleza. De que trata esta consagrada obra de literatura infantil? Mariazinha tem vários irmãos, vamos vê-la em amena conversa com dois deles, Chico e João, Mariazinha dá-lhes conta que vai visitar o pai: “O pai destes meninos era oficial de Marinha, e havia perto de três anos que estava em África, na Guiné portuguesa, em comissão do Governo. Em todas as cartas mandava dizer que tinha muitas saudades da mulher e dos filhos e, um dia, acabada quase a época das chuvas, pediu à mulher que fosse passar uns meses com ele e que levasse Mariazinha, que era a mais velha, e Afonsinho, que era o mais novo, e não podia ainda separar-se da Mãe”. E começa a azáfama dos preparativos, sobretudo da roupa adequada aos trópicos, a mãe não esconde a inquietação de deixar os filhos, mas terá que ser.

Escolhi este desenho da partida porque nos dá conta do profundo talento de Ofélia Marques, ela aparece sempre classificada como uma exímia desenhadora de crianças, de traço seguríssimo, esculpindo imagens de desvelo e ternura, pois o que vemos neste seu primeiro desenho é uma justa proporção, o perfeito equilíbrio entre aqueles seres humanos que acenam em terra e no navio, a imagem fica completa com outro barco lá ao fundo e com as mercadorias e a própria figura do estivador que se agiganta diante de uma pequena multidão. Uma imagem com tudo o que é indispensável para nos falar de uma partida ali para os lados do Cais de Alcântara.

Mariazinha é irrequieta e travessa, sempre curiosa, começa por ter enjoos, passam depressa. Faz imensas perguntas à tripulação, no mar vê grandes animais luzidios que davam saltos e pergunta se são tubarões, afinal era toninhas, e fala-se de peixes voadores, quando se mostra uma lanterna, eles saltam e caem a nossos pés, no convés, e vemos na segunda imagem Mariazinha a olhar surpresa para o trabalho do marinheiro que parece estar a praticar a pesca do candeio, atenda-se ao fulgor que desponta da escuridão, na justa medida da luz que rompe da escuridão. E chega-se a terras de África, entra-se no canal do Geba, um rebocador traz pilotos que ajudam a navegar em segurança e assim se entra em Bissau onde o pai os espera e partem todos para Bolama.

E assomam outros motivos de curiosidade quando chegam a casa, foi-lhe preparado um quarto que Fernanda de Castro descreve assim:
“Era um lindo quarto pintado de azul, com uma porta para o jardim. A cama era de metal amarelo e tinha um colchão de arame. Nada ali faltava, nem mesmo uma secretária com tinteiro, papel de carta, mata-borrão e uma caneta de tinta permanente! Numa pequena estante, muito bem arrumados, estavam uns poucos de livros de aventuras, um dicionário Larousse Ilustrado e uma História de Portugal, em dois volumes. Mas o que a mais surpreendeu foi uma espécie de cortinado de tule que estava enrolado no teto, mesmo por cima da cama”. Era um mosquiteiro. Atenda-se às representações coloniais que nas sucessivas edições a autora foi polindo, por imposição do politicamente correto.

Aparecem os empregados da casa: Lanhano, um preto fardado de branco, com uma risca muito bem feita na carapinha; Adolfo, bom rapaz mas não vê dois palmos diante do nariz, Undôko, o jardineiro, trabalhador, fiel, boa pessoa mas é como os crocodilos: tem dentes a mais; Mamadi, filho de um dos régulos mais ricos da Guiné, estava lá em casa para aprender o português e para entreter o Afonso; e o cozinheiro Vicente, dele se dá imagem que fala uma língua de trapos, é muito engraçado e ingénuo.

Começam as aventuras naquela terra cheia de calor onde se fazia a cesta entre as onze da manhã e as três da tarde. A menina faz perguntas aos criados, vêm as respostas num português mascavado. “No jardim havia um mirante alto, uma espécie de caramanchão coberto de trepadeiras, alguns metros do solo, onde corria sempre uma leve aragem e onde Mariazinha costumava instalar-se para ler ou para estudar. Subiu as escadas do Mirante, seguida pelo cão Guiné, e instalou-se confortavelmente. Mas não tinha ainda lido três páginas quando um barulho ensurdecedor lhe chamou a atenção… Curiosa, espreitou para a rua através das trepadeiras. Dezenas de pretos, soltando gritos agudos, desciam a rua numa algazarra infernal. Traziam nas mãos grandes folhas de palmeiras e, ágeis como macacos, faziam extravagantes cabriolas”. Nova preciosidade de Ofélia Marques, o equilíbrio do conjunto de autóctones, a menina no alto, a economia de dois arbustos para marcarem as bermas da imagem garantem uma leitura pronta em toda a sua amplitude. Mesmo nas imagens mais pequenas o poder imaginativo de Ofélia Marques parece inesgotável. Mariazinha conhece Ana Maria, a filha do governador. Farão a viagem de automóvel bem acidentada, acabam por ser transportadas por quatro pretos robustos, já que o chão estava completamente enlameado, e Ofélia Marques desenha o que é preciso ver: dois transportadores, as meninas repimpadas, um pedaço de vegetação onde até aparecem catos e uma ave voa ao fundo do lado esquerdo, nada mais é preciso.

Haverá depois um passeio no mato, irão até ao Oio, os adultos vão preparados para uma caçada, a viagem é deslumbrante, vêm arrozais a perder de vista, depois a paisagem muda, surge o capim alto, uma fauna perigosa e hostil por ali proliferava e rastejava. Há uma avaria, põe-se o problema da gasolina, as meninas quase desfalecem porque precisam urgentemente de água, surgem cocos e depois chega uma caravana salvadora. Haverá uma caçada a valer, as meninas conversam com nativos, que admirados olham para aquelas meninas brancas. No acampamento há um ataque de formigas, tudo se resolve e na manhã seguinte partem para Farim. “Passaram o dia a ler, a dormir, a jogar o crapeau, a pôr talco nas mordeduras das formigas. À noite, foram para a cama com as galinhas. E na manhã seguinte, bem repousadas, partiram para Bolama, onde a mãe de Mariazinha começava a estar inquieta".

Para o leitor mais interessado no estudo das representações coloniais desta obra, recomenda-se o trabalho de Margarida Isabel Melo Beirão intitulado Mariazinha em África, de Fernanda de Castro – Representações coloniais, tese de Mestrado do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, 2018: https://ria.ua.pt/bitstream/10773/25216/1/Documento.pdf.

(continua)


Na antiga Calçada dos Caetanos, hoje Rua João Pereira da Rosa, muito perto do edifício da Liga dos Combatentes, que foi a habitação da escritora Ana de Castro Osório, perfila-se um prédio onde viveram Oliveira Martins, Ramalho Ortigão, José Gomes Ferreira, Fernanda de Castro e António Ferro, Ofélia Marques e Bernardo Marques. Lá em baixo é a Rua do Século e lá em cima o Conservatório Naiconal e a Igreja dos Inglezinhos. Felizmente que todo este património arquitetónico está classificado.
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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24442: Notas de leitura (1593): Flora da Guiné-Bissau (2) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Houve muitos milhares de Mariazinhas, nas colónias portuguesas.

Embora esta Mariazinha venha do tempo longínquo e romântico do Tarzan
em que ainda havia tipoias, havia poucas que escreviam livros.

Mais tarde apareceram muitas crianças, umas brancas outras mestiças que foram criadas também com criados, cozinheiros, jardineiros, lavadeiras (profissionais indispensáveis e obrigatórios), mas que já escreviam, e alguns estudavam muito.

Eram filhos em geral de comerciantes ou fazendeiros, ou funcionários, professores, chefes de posto, etc.

Exemplos:José Vieira Mateus da Graça Nascimento, Antonio Jacinto, vários Laras e alguns Cabrais, Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, Mia Couto, etc.

África inspirava muito, agora inspira menos.