quarta-feira, 1 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25465: 20.º aniversário do nosso blogue (13): Alguns dos melhores postes de sempre (IX): Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé): Spínola, o Desejado - II (e última) Parte


Guiné > Região de Bafatá > Fajonquito > 1972 > A equipa juvenil da "Ferrugem", futebol de cinco, orientada pelo 1º cabo Sérgio Rodrigues ("Gasolinas"). De pé: Adama Suntu e Saido ("Barbosa"); ajoelhados: Amadi, Cherno Balde ("Francisco") e um colega que não consigo identificar ainda. 

Legenda do Cherno Baldé. Foto (adaptada) na página do Facebook de Sérgio Rodrigues, publicada na sua página do Facebook, em 28/10/2019, 21:28 (com a devida vénia...) 

Acrescenta o Cherno: "na altura era o Chico que fazia a faxina no quarto do Dias, Augusto Teixeira, Silva e o Elsa enquanto esteve em Fajonquito. Um abraço. A foto deve ser de 1972, pois ainda o teu João não estava connosco."... O ex-1º cabo mecânico Sérgio Rodrigues pertencia à CCAÇ 3549, "Deixós Poisar" (Fajonquito, 1972/74).

Guiné > Região de Bafatá > Fajonquito > Junho de 1972 > CCAÇ 3549 / BCAÇ 3884, "Deicós Poisar" ( Fajonquito, 1972/74) > Equipa dos Condutores e Faxinas: da esquerda para a direita: José Maria, Vasconcelos, Carvalho e Fernando Mandinga. Na primeira fila: Jorge Suleimane, Barbosa (Mama Saido), Braima Banassé e o Francisco (Cherno Dabo).

Foto (e legenda): © Cherno Baldé (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Trinta e seis anos depois da "troca de bandeiras" , em 10 de setembro de 1974... Visita do Cherno Baldé e família: Local onde estava situado o pau da bandeira; à esquerda as ruínas do forno de cozer o pão que fazia as delícias do "Chico, menino e moço".

Foto (e legenda): © Cherno Baldé (2010).
Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. No 25 de Abril de 1974, o Cherno Baldé estava em Fajonquito, com os seus 14 ou 15 anos (?) (nem ele sabe o ano exato em que nasceu, c. 1959/60/61) .  Ficou, perplexo, como todos os "djubis", "cães rafeiros do quartel", sem poder (nem querer) acreditar nas vozes que repetiam "A guerra acabou!... A guerra acabou!"... Para logo se interrogar, com angústia: "E agora ?!... O que será de nós?!" (*)...

O sonho daqueles miúdos, fulas de Sancorlã,  era virem a integrar os "Comandos Africanos", o Batalhão de Comandos da Guiné, "manga de ronco"... 

Mas, para ele, Cherno. ainda djubi,  o verdadeiro 25 de Abril já tinha acontecido há pelo menos quatro anos antes, com a aparição fulminante e justiceira, em Fajonquito, numa manhã de nevoeiro, do "Caco Baldé", Spínola, o Desejado.

Ele conta como foi, no poste P11008, de 26 de janeiro de 2013 (**), da sua excecional série, "Memórias do Chico, menino e moço" (uma série que, já o dissemos mais do queuma vez, merecia ser publica em livro)... 

Republicamos, com revisão e fixação de texto, do nosso editor, a segunda (e última) parte (**)

Cherno Baldé, nosso amigo e colaborador permanente do nosso blogue, formado na antiga União Soviética em Planificação e Gestão Económica (Universidade de Kiev, 1990), com uma pós-gradução no ISCTE-IUL (Lisboa, 1992/94), é uma testemunha privilegiada dos acontecimentos do seu tempo, desde miúdo ("djubi"),  quando foi apanhado pela "guerra de libertação" ou guerra colonial ou guerra do ultramra (ao gosto do freguês...), logo em 1964, na sua terra natal, no regulado de Sancorlã.  

De 1964 a 1974 viveu em Fajonquito, tendo-se tornado um "cão rafeiro" do quartel local, fqzendo pequenos serviços, sobretudo ao pessoal da "ferrugem", em troca dos cais, ia partilhndo as sobras do rancho.  Afeiçoou-se aos militares portugueses que passaram por aquele arquartelamento da região de Bafatá, sector de Contuboel, perto da fronteira com o Senegal, e que lhe puseram a alcunha de "Chico"... 

É autor de um notável série, "Memórias do Chico, menino e moço" (de que já publicámos, a partir de 2011, mais de meia centena de postes).  Integra a nossa Tabanca Grande desde 18 de junho de 2009 )**). Tem  lá cerca de 300 (!) referências no nosso blogue, é um dos autores e comentadores mais ativos e regulares. Note-se: nunca foi "combatente", nem chegou a fazer o serviço militar na sua terra, "finalmente liberta do jugo colonialista", como diria a "Maria Turra".

Depois da independência, foi estudar para Bafatá, em 1975 (ciclo preparatório e parte do ensino secundário). Em 1979 vai frequentar o liceu de Bissau, que acaba em 1982. Em 1986 parte como estudante bolseiro para a URSS (Moldávia e Ucrânia). Teria já os seus 26/27 anos (nasceu por volta de 1959/60). Ganhar uma bolsa nesse tempo era a sorte grande de um jovem guineense!

Regressa, com uma licenciatura, ao seu país em 1990, já depois da queda do "muro de Berlim" e a "implosão" da União Soviética. Casa-se em 1992 e faz uma pós-graduação no CEA - Centro de Estudos Africanos /ISCTE, em Lisboa (1992/94).

Em 1998, está em Bissau, a trabalhar como quadro superior na administração pública, mais exatamente no Ministério das Infraestruturas, Transportes e Comunicações onde exerce as funções de director do gabinete de estudos e planeamento. Vive em Brá, no chamado Bairro Militar, com algumas regalias.

No dia 7 de junho de 1998 é apanhado pelo golpe de Estado e a subsequente guerra civil de 1998/99. É obrigado a deixar a sua casa, no Bairro Militar, e sair de Bissau com a família (ele, a esposa, o filho de 3 anos e uma sobrinha de cinco ), mais a família da irmã da sua esposa, de nome Djenaba, num total de 10 pessoas (3 adultos e 7 crianças), refugiando-se na sua terra natal, Fajonquito, regulado de Sancorla, junto à fronteira com o Senegal.

Deixam a casa, em Bissau, no dia 11, chegam a Safim, procurando desesperadamente por um transporte que os leve para longe da guerra, para Fajonquito. Consegue, através dos seus conhecimentos, uma boleia para Mansoa, a 13 de junho, até apanhar um camião, que o leva ao seu "refúgio", em Fajonquito, aonde chega no dia seguinte, passando por Bambadinca e Bafatá. Nesta viagem faz também uma "retrospetiva" do seu passado recente (os anos passados em Bafatá, em 1975/79, e depois na URSS, 1986/90).

Em 2001/02, o Cherno viu-se na contingência de ter de emigrar para Portugal, onde trabalhou na construção civil, como simples "trolha" na construção do complexo Alvalade XXI. É sportinguista de coração.

A sua vida tem sido, afinal, uma dura  pr"ova de obstáculos" que ele vai superando com fé , esperança, coragem, inteligência emocional, amor à família, lucidez e sentido de solidariedade.



Dr. Cherno Baldé, Bissau, foto atual

MEMÓRIAS DO CHICO, MENINO E MOÇO (43) - O GENERAL SPÍNOLA E A POLITICA “POR UMA GUINÉ MELHOR” - II ( E ÚLTIMA) PARTE  (*)

por Cherno Baldé

O CAPITÃO CARVALHO

Este acaso aconteceu em finais de 69 
ou princípios de 70, não posso precisar, 
e teria eu na altura cerca de 10/11 anos de idade 
e havia poucos meses que tinha mudado 
com os meus pais de Cambajú para Fajonquito. 

Aqui, não nos deixavam entrar no interior do quartel, mas a atracção que causava em nós era tal que não conseguíamos ficar longe dos arames farpados. Para facilitar as coisas o meu pai trabalhava no mesmo edifício comercial que albergava, também, nas suas traseiras, a residência do Capitão e comandante da companhia, assim como a messe dos oficiais e sargentos.

Depois de algumas horas de aulas de manhã, e com o pretexto de ficar a ajudar o meu pai, conseguia esquivar-me dos trabalhos de campo e passar grande parte do tempo a espreitar o movimento da tropa dentro do quartel, usando o espaço da loja e a presença do meu pai como refúgio sempre que um ou outro elemento mais zeloso quisesse importunar-me. Gostava, sobretudo, de acompanhar o vaivém do Capitão no seu pequeno jipe de campanha donde sempre descia saltitando ao lado antes de este se imobilizar por completo. Eram imagens que me fascinavam.

Em Cambajú, onde estava estacionado um pelotão da mesma companhia (a CCAÇ 2435), não existia este fosso de separação entre brancos e pretos, militares e civis,  e por isso, convivíamos de perto com a tropa portuguesa e com as milícias, inclusive já tivera a oportunidade de esfregar as minhas mãos na pele branca e gorda ou agarrar nos cabelos hirsutos das mãos e braços do nosso amigo, o furriel Libural (Liberal?), que frequentava assiduamente a nossa casa, não sabendo ao certo o que o atraía mais, se as simpáticas palavras do meu pai sempre cordial e respeitoso para com as autoridades, fossem elas civis ou militares (que o obrigava a tirar o chapéu da cabeça quando as cumprimentava e num excelente português nos apresentava dizendo “minha filho” quando queria dizer “meu filho”),  ou se eram as minhas primas-irmãs com os seus sorrisos de dentes de marfim, nádegas bamboleantes e seios redondos brilhando em céu aberto.

Em nossa casa toda a gente gostava do furriel Liberal com seu ar bonacheirão que, muitas vezes, trazia consigo uma terrina cheia de comida do quartel para a meninada. Bem, para ser sincero, nem toda a gente apreciava as suas investidas dentro da nossa morança, arvorando os seus “bumdias e buatardes”, mesmo trazendo comida. 

E a primeira pessoa a manifestá-lo fora a minha avó paterna, Eguê, que se insurgia contra a intrusão do branco e, quando isso acontecia, amaldiçoando o destino que não quisera que tivesse morrido mais cedo, dizia sempre num tom de profunda e incontida amargura: 

- Áh Allâ..., e tinha que viver para presenciar isto...!?

Nunca soubemos, ao certo, o que ela queria dizer com “isto”, se era o atrevimento do olhar direto e fulminante com que despia os seus interlocutores, em particular as bajudas, se era a maneira diferente como ele falava, lembrando o som gutural de um pombo apaixonado ou a aparente depravação dos gestos e abraços, as vezes, desmesurados do furriel e dos seus companheiros da tropa. 

O que valia mesmo é que ninguém se preocupava com as palavras da avó Eguê que vivia agarrada ao passado, passando a maior parte do tempo a falar sozinha com pessoas imaginárias, insistindo em trazer de volta os ecos de uma vida que já não existia. 

−  Uoúh…, a velhice é mesmo uma merda!  − arrematava ela, encolhendo os ombros, diante dos risos e da indiferença geral, antes de se refugiar dentro da sua casa escura e com um estranho cheiro a merda.

Em Fajonquito era diferente e, pela primeira vez, via um capitão assim de perto, o comandante dos brancos em pessoa. Muitas vezes, quando ele descia do seu jipe aproximava-me, discretamente, esperando dele um olhar, um sorriso ou um gesto de amizade que nunca aconteciam. Por isso, não me lembro da cor dos seus olhos, escondidos debaixo de umas sobrancelhas fartas, que fugiam do meu olhar, mas lembro-me, mesmo que vagamente, do seu rosto sempre hermético e impenetrável como que querendo dizer-me que não tinha tempo para crianças intrometidas.

O seu nome era capitão Carvalho, estatura baixa, andar pausado, pés firmes no chão, sentidos obscuros e como que carregados de uma missão impossível. Foi a sua companhia (CCAC 2435) que, de facto, construiu o aquartelamento de Fajonquito em 1969, com o reordenamento da aldeia e construção de um dispositivo de defesa que dizia aos inoportunos visitantes nocturnos:

 
− Olha, estamos aqui deste lado, para vos receber com metralha!.

Estes dispersaram-se indo para os lados de Oio e Joladu e nunca mais voltaram.

Ainda na metrópole, antes do embarque, que se esperava fosse tudo menos a Guiné, a divisa que tinham arranjado para a companhia, assim do jeito “pessoal manga-di-ronco”, era qualquer coisa que dizia assim: “Os tigres, juntos venceremos” e por cima destas palavras via-se a cabeça de um tigre ameaçador, mostrando seus dentes aguçados. 

Outra companhia que se lhe seguiu as pegadas usava outro lema do tipo: “Deixós poisar”. Não percebíamos nada desta linguagem de caçadores, no entanto, o nosso avô materno, caçador profissional que participara na guerra contra os Canhabaques em 1935 e que conhecia todos os animais da floresta, nos dissera com ar muito sério: 

− Com os tigres não se brinca”. 

Mas, em Fajonquito e lá para o fim da comissão, estando mais velhos e realistas tinham alterado a mesma divisa para: “Os tigres, juntos resistiremos” e a outra companhia que lhes seguirá nas peugadas dirá mais tarde a todos os que a queriam ouvir: “Deixós-estar”.


O CAPITÃO, SPÍNOLA E O DJINNE DJUNCORE

Devo esclarecer que, de todos os membros da família, o nosso avô materno era o mais bem informado sobre os aspetos bons da presença portuguesa e com ele mantinha um relacionamento íntimo e confidencial, tanto assim que seria dele a ideia magistral de infiltrar-se dentro do quartel com a missão bem definida de coletar uns pequenos pacotinhos de cor verde escura que eram distribuídos à tropa como ração de combate e que mais não eram senão o popular e vulgarmente conhecido caldo de galinha.

A tropa não usava aqueles pacotinhos os quais, invariavelmente, deitava no caixote do lixo juntamente com os comprimidos a que se juntavam, também, e que, por minha conta, passei a colecionar para tratar da saúde contra o vírus da fome.

A missão foi bem sucedida porque juntava o útil ao agradável. O útil era os pacotinhos de caldo de carne que o velho caçador, especialista na arte de conserva e consumo de carnes secas, cego e sentado na sua varanda, tinha descoberto dentro do quartel e com o qual passou a melhorar, substancialmente, os ingredientes e o gosto do seu intragável prato de farinha de milho preto. 

O agradável para mim era a possibilidade de poder ludibriar as sentinelas, deambular impunemente dentro do quartel, enfrentando o perigo das botas da tropa, sempre prontas para enfiar pontapés certeiros no cu dos pobres djubis e, quando calhava, um pedaço de pão com um saboroso chouriço de carnes vermelhas vindo de uma alma caridosa. Para sobremesa serviam as cartelas de comprimidos das rações de combate, doces por fora, amargos por dentro, como o coração dos nossos políticos.

Mas, vamos deixar de lado o meu avô para lembrar que um dos ctos mais temerários, para além das suas frequentes saídas para as matas do Oio e Cola/Caresse por que ficou conhecido o capitão Carvalho, era o rebentamento de granadas. Sim, granadas lançadas a poucos metros de distância. 

Levantava-se numa bela manhã e de repente, como quem cumpria um ritual funesto, ouvia-se um ”buuuum” enorme dentro do quartel e a seguir, no mesmo instante em que o cheiro irritante de pólvora invadia o espaço do refeitório e da messe dos oficiais, viam o capitão a sair do interior de uma gigantesca bola de fumo e poeira, no seu passo pausado e firme de militar, vestido com o seu rigoroso e invariável camuflado. Nunca conseguimos saber que tipo de granadas usava nem descobrir o prazer que este oficial sentia nesses exercícios macabros de lembrar a todos que estávamos em tempo de guerra e de morte.

No meio dos nativos, muitos acreditavam que ele era invulnerável aos estilhaços das granadas. Na opinião de muitos, ele era detentor de um baki-tcham ou seja mesinha contra balas, para outros seria um protegido do próprio Djuncoré, o rei dos Djinnés que habitava o poilão luminoso da bolanha de Sunkudjumá, no prolongamento do rio Canjambari. 

Como sempre acontece em situações de guerra, era difícil separar o trigo do joio, o mito da realidade. O certo, porém, é que,  com conivência ou sem ela, o capitão impunha, a seu belo prazer, a sua lei e as suas ordens na quadrícula a seu mando, excetuando, claro, o território a oeste que o inimigo ia conquistando pouco a pouco alargando o corredor de Sitatô. E, quem se alia ao poder dos Djinnés, mais cedo ou mais tarde terá que pagar as contas, diziam os mais velhos e entendidos na matéria. Seria este o caso do Capitão?

Naquele dia, estava no perímetro habitual, entretido a apanhar pequenas pedrinhas na estrada para as brincadeiras habituais,  quando, de repente, começa um movimento de vaivém da tropa que ocupa o local para uma improvisada parada militar. Da pista de aviação, onde aterrou um ou dois helicópteros, chega um veículo que se imobiliza junto a parada, de onde descem algumas pessoas, dentre as quais um velho oficial em farda de camuflado, corpo ligeiramente dobrado à frente, qual imbondeiro fustigado pelos ventos tropicais, uma bengala na mão direita. Disseram-nos depois que era o general Spínola.

O que aconteceu a seguir foi rápido e indescritível, não me lembro de ter ouvido o som da corneta, não houve discursos para a ocasião e os militares da parada, provavelmente, teriam executado os habituais gestos teatrais que culminavam no “apresentar aaaaaaarma!”, prática marcial que o General não vira ou não tivera tempo de corresponder e, dirigindo-se ao capitão perfilado à sua frente, ter-lhe-ia assestado uma violenta bofetada para depois puxar dos seus ombros as patentes que este orgulhosamente ostentava. 

E, naquele mesmo instante e no mesmo veículo, voltaram para a pista, levando consigo o capitão Carvalho que, talvez pela primeira vez, na sua vida de oficial, viajava nas traseiras de um Unimog e, pior ainda, sem os seus lustrosos galões de comando. 

Mais tarde juntar-se-iam outros elementos do poder local para um desterro de muitos anos. Quando os helicópteros levantaram voo, ouviu-se um convulsivo choro da tropa metropolitana que assim demonstrava, aos olhos da população, os seus sentimentos de grande estima e de apego ao seu comandante de companhia.

Nunca antes, na minha vida, tinha assistido a uma cena tão comovente protagonizada por homens brancos e, como estavam de luto e não tinham nenhuma vontade de comer o guisado de carne de vaca que os esforçados cozinheiros nativos tinham preparado, um grupo de rafeiros famintos foi lá dar uma mãozinha, enchendo cada um a sua marmita bem àmedida.

"Por uma Guiné Melhor", ninguém podia fazer mais e melhor que este show-off público, em nome da justiça e da dignidade dos Guinéus, indiferentemente da cor da pele, da classe social ou do nível da patente militar. Os indígenas tinham ficado confusos e boquiabertos, pois desde os tempos de Mussa Molo que ninguém tinha visto um capitão do exército,  português e branco,  a sofrer uma tão humilhante afronta ao seu estatuto de oficial superior por causa de alegados atropelos aos direitos humanos do gentio rebelde e num território em guerra.

Os discursos vieram depois com a entrada em cena de Issufo Sandem, dos nossos vizinhos mandingas e ferreiro bem conhecido por sua eloquência verbal. Saindo do nada, gesticulando freneticamente as mãos e fazendo jus à sua cidadania, num bem aprimorado português, explicava para a curiosa multidão que entretanto se tinha juntado no local, sobre as atividades e os métodos usados pelo capitão nas sessões de tortura dos presos e que, por conseguinte, ficaria mui célebre:

O capiton pega num gaijo, mete dentro de um bidon d´iagu, cabeças pra baixu e cús pra cima, dipois, com barriga grandi como prenhadas, tira i deita na tchon, piza barrigas com botas de tropa e iagu sair na bocas i na cus (4).

Tá percebido?

De seguida, o grupo dos prisioneiros, que durante a visita do General tinha sido escondido no interior da tabanca, encabeçados por Tchamá ou Intchamá que, pela primeira vez, eram alvo de alguma atenção e envergando roupas mais ou menos decentes e sem o cheiro nauseabundo que lhes era característico, foram apresentados um a um como se fosse a primeira vez que eram vistos, quando na realidade, todos os dias e durante toda a fase da construção do aquartelamento, tinham sido utilizados como mão-de-obra nos trabalhos de escavação dos abrigos, valas, valetas e ainda na limpeza de toda a área que circundava o quartel e para onde estavam apontadas as metralhadoras que defendiam a aldeia.

Claro que aos olhos da população local, estrategicamente guiada e manipulada, tratava-se de turras, catalogados como IN e gente do mato que aterrorizava, matava e pilhava as nossas aldeias e, por isso, simplesmente, não podiam ter qualquer direito de existir e merecer a menor consideração e como tal eram simplesmente invisíveis. Era isto a realidade crua de uma guerra onde cada um tinha que escolher um dos lados, estivesse certo ou errado.

Voltando ao episódio de 69/70 com o capitão, é claro que não vamos aqui afirmar, sem cairmos no risco de um grande equivoco, que aquilo que aconteceu teria sido o mau desfecho de um sinistro contrato satânico, como pensava o Aliu Samba e os restantes indígenas da aldeia no delírio das suas mentes animistas, mas não deixa de provocar certa perplexidade o facto de que, depois deste fatídico acontecimento de mau agouro, não houve nenhum outro capitão que tivesse cumprido a sua missão até ao fim sem problemas, nesse subsector.

O primeiro a chegar, o cap Carlos Borges de Figueiredo (CART 2742, 1970/72), teve um fim trágico a escassos meses do fim da sua comissão, quando estava a trabalhar no gabinete que o próprio tinha construído no local, onde dois anos antes o cap  Carvalho tinha perdido os seus galões. 

O segundo, o cap QEO José Eduardo Marques Patrocínio (CCAÇ 3549 / BCAÇ 3884, 1972/74), com seis meses apenas, seria convocado junto a sede do Batalhão, em Bafatá, para receber uma “porrada” que o arredaria, definitivamente, da sua companhia, obrigando-nos a assistir a mais uma cena de choros e ranger de dentes dos seus desamparados rapazes.

O último, bem, o último tinha sido o cap Pedreiro Martins (2ª C / BCÇ 4514/72, Junho de 1974), a guerra já tinha chegado ao fim e de mais a mais, para uma companhia que tinha participado no trabalho titanesco de furar o cerco de Guidage e tinha depois passado algum tempo no inferno de Gadamael, os irãs, provavelmente, teriam concordado em poupá-los um pouco, deixando-os cumprir com pompa e circunstância a (des)honra que representou, para Portugal e os seus aliados fulas de Sancorlâ, a entrega final do aquartelamento de Fajonquito aos maquisards do PAIGC para que assim se cumprisse a profecia de Cabral e pudéssemos, finalmente, passar de “uma Guiné melhor” com roupagem e estilo neocolonial para “uma Guiné bem pior” revolucionária, conforme estava superiormente predestinado.

Mas, na opinião de Aliu Samba e dos seus conterrâneos, a situação era bem mais complexa que isso e, estavam convencidos que a extinção da luz do poilão luminoso do lago Djuncoré, significava o desaparecimento do rei dos Djinnés, no preciso momento em que o PAIGC teria penetrado no coração sagrado do recinto dos poilões de Canhámina, capital de Sancorlã, marcando assim o fim do regulado e de uma dinastia.

− Viva PAIGC!... 

− Viva!!!

− Viva Titina Silá!... 

− Viva!!!

− Abaixo a FLING!... 

− Abaixo!!!
 
− Abaixo o imperialismo!... 

− Abaixo!!!

−  Viva PAIGC!... ~

− Viva!!!

− Viva Osvaldo Vieira!... 

− Viva!!!

− Abaixo os oportunistas!... 

− Abaixo!!!

−  Abaixo o Colonialismo!... 

− Abaixo!!!

 Viva Amílcar Cabral!... 

− Viva!!!
 
− Vivam os Heróis da luta!... 

− Viva!!!

 −  Abaixo barrigas de meia!... 

− Abaixo!!!

− Abaixo Neocolonialismo!... 

− Abaixo!!!

Aplausos, camaradas , aplausos, enquanto o pano deslisa, pouco a pouco, para cobrir o triste cenário do palco quotidiano da alegria das nossas vidas.

Bissau, 21 de Janeiro de 2013.
Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)
__________

Nota do autor
 
(4) - “O Capitão pega num gajo, mete dentro de um bidão cheio d’agua, cabeça para baixo e cu pra cima. Depois, com a barriga cheia e grande como uma mulher grávida, retira-o e deita-o no chão pisando a barriga com as botas de tropa, fazendo sair água na boca e no ânus”.
____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 30 de abril de 2024 > Guiné 61/74 -. P25463: 20º aniversário do nosso blogue (13): Alguns dos melhores postes de sempre (VIII): Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé): Spínola, o Desejado - Parte I

(**) Vd. poste de 18 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...

7 comentários:

Abilio Duarte disse...

Olá a todos,
Formidável testemunho e recordações, de alguém que por onde andamos, viu os acontecimentos.

Os meus agradecimentos.
Abílio Duarte. C.Art.11

Tabanca Grande Luís Graça disse...

No nosso tempo (1969/71), este caso (cap Carvalho, acusado, justa ou injustamente, de maus tratos a prisioneiros) não era único... Recordo-me do cap Pratas, por exemplo. Spínola quis, e bem, "moralizar" a guerra: o tema é delicado, e nós costumamos "assobiar para o lado", quando se fala em interrogatórios com tortura... "Ah!, isso era com a PIDE"... Bem, não só... Nos batalhões por onde passei, os prisioneiros eram "apertados"... Fiz várias operações com guias-prisioneiros...LG

Eduardo Estrela disse...

Obrigado Cherno pelo magnífico texto/testemunho.
Quanto à questão da tortura durante interrogatórios a prisioneiros garanto-vos camaradas que a história do capitão Carvalho não é única.
Vi por duas vezes, em locais diferentes da Guiné, essa prática abominável de tentar arrancar confissões através da violência física.
Não era só a polícia política que o praticava.
Abraço fraterno
Eduardo Estrela

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Eduardo, outros mais "viram, ouviram e leram", como diria a tua/nossa Sophia (cujo livro Sexto me ajudou muito a manter a minha sanidade mental durante a minha "comissão de serviço"...).

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Cherno, tens que nos explicar o que era ou quem era os/as "barrigas de meia"...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Num texto de Celina Tavares Spencer ("Sufoco na Guiné-Bissau!"), de 04.05.2009, publicado na página do Didinho, lê-se:

(...) Subordinámo-nos aos espertalhões que lutam apenas pelo poder pessoal. Eles sim, é que são "barrigas de meia", não como o Mário Cabral e a Carmen Pereira, um dia nos gritaram pela rádio “barrigas de meia”, isso nos velhos tempos de discursos baratos, obrigando-nos a lavar a cara para cima! (...)

https://www.didinho.org/Arquivo/SUFOCONAGUINEBISSAU.htm

Anónimo disse...

Caro amigo Luis,

Barrigas de meia, no discurso politico e intimidatório do Paigc, seriam os oportunistas que tendo tirado proveito da vigência do regime colonial ainda queriam aproveitar-se do novo poder para satisfazer suas apetências de parasitas. É uma metáfora politica usada como arma contra os antigos funcionários do regine colonial. Fazia parte do jogo da exclusão de tudo e todos que não eram da clique do partido-estado. Como resultado dessa guerra psicológica e das rusgas, todos os antigos funcionários de valor acabaram por abandonar o país e Cabo-Verde acolheu uma boa parte.

A realidade depois demonstrou que todos eram barriga de meia, dependente das circunstâncias e dos contextos.

Cdte,

Cherno Baldé