terça-feira, 28 de março de 2006

Guiné 63/74 - P637: Tratado sobre a liderança em tempo de guerra (João Tunes)

Guiné > Algures durante a guerra de libertação > Amílcar Cabral, mais do que um ícone revolucionário (tal como Che Guevara), foi um dos maiores líderes africanos do Século XX. "Amílcar não escreveu uma única frase de pensamento sem olhar para a espingarda. Amílcar não mandou dar um único tiro de espingarda fora da lógica política da estratégia da libertação anticolonial e da emancipação africana, pensada e repensada na sua profunda cultura marxista e criativa, no seu modo próprio de pensar a Guiné, África e o mundo" (João Tunes).
Fonte: Foto de origem desconhecida (PAIGG ?).

Camarada Luís,

Com o trato da questão da liderança (estilo de comando) no viver militar, foste buscar o nosso camarada da Marinha, teu amigo e colega académico, Correia Jesuíno, que não tenho prazer de conhecer, nem sequer de vista. Mas acontece que o Prof Correia Jesuíno é santo cá da minha casa (por via conjugal, vivendo eu, em vida partilhada de vinte anos, podando a quatro mãos um rebento a ameaçar ser adulto já em Julho, com uma sua antiga aluna e discípula no ISPA) e permite que conteste a tua afirmação que ele só conheceu, do ex-império, e de passagem, Cabo Verde. E então o papel fulcral e determinante que ele teve em Angola na chamada fase de transição da descolonização? Ó camarada Luís, aquilo não valeu, custou, mais que vinte comissões no mato? Não sei, não.

Depois, permite-mo, não concordo nada, nadinha mesmo, com essa de meteres Amílcar Cabral na redoma do líder político-intelectual, dizendo "Cabral não foi um operacional, um verdadeiro guerrilheiro como o Nino...."(1). Como assim? Dizes isto, com tamanha ligeireza, e logo a propósito de um exemplo acabado de praxis feito gente como foi Amílcar?

Eu não tenho idolatria por Cabral, não lhe meto tijolo na adoração como mito. Aliás, sou altamente crítico quanto ao preço pago pela sua utopia (ego-étnica) da unidade (absurda, autojustificativa como desiderato da sua condição de mestiço) Guiné-Cabo Verde e que Cabral impôs ao PAIGC e dando, neste absurdo (mas, se calhar, condição necessária para o sucesso), o trunfo maior, no divisionismo e na traição, para o trabalho sujo da Pide e do Exército Colonial (que custaria a própria vida, dele Cabral, e hoje termos a Guiné-Bissau entregue a um apenas bom guerrilheiro como Nino, faltando-lhe o resto, se calhar o mais importante).

Mas Amílcar Cabral foi um dos líderes mais inteligentes e geniais de toda a África (assumamos a honra de termos combatido um Chefe IN de tamanha envergadura, o maior líder africano!). E foi-o pela praxis, porque foi teórico enquanto operacional, operacional enquanto pensador revolucionário.

Amílcar não escreveu uma única frase de pensamento sem olhar para a espingarda. Amílcar não mandou dar um único tiro de espingarda fora da lógica política da estratégia da libertação anticolonial e da emancipação africana, pensada e repensada na sua profunda cultura marxista e criativa, no seu modo próprio de pensar a Guiné, África e o mundo.

Amílcar que teve a sorte trágica de ter sido assassinado e transformado em mártir antes de lhe chegar a hora de ver e ser julgado pela obra feita, prestando contas, com o Estado às costas, perante a história e os seus seguidores, das consequências da eficácia e absurdos da sua lógica, dos seus acertos e desacertos.

Mas vamos à substância. Que só pode ser dada pela vida vivida, ou seja, pela experiência feita corpo e alma. E, neste campo, se me permitem, tu e os restantes camaradas tertulianos, dou-te dois, como testemunhos.

1º) Um dos merdas militares que conheci logo na ida e chegada à Guiné foi um major que fazia as vezes de 2º Comandante (depois pirou-se para uma repartição e não nos acompanhou na ida para o mato no Pelundo). Era, como muitos outros, um cagarolas apesar de já ter feito várias comissões na guerra colonial.

No primeiro dia da ocupação periquita do Quartel de Santa Luzia em Bissau, apanhei, como oficial de dia, um levantamento de rancho organizado pelos velhinhos que esperavam embarque de regresso porque os cozinheiros periquitos do meu Batalhão tinham entornado sal a mais na comida (a maioria deles nunca tinha cozinhado na puta da vida) (1).

Um gozo do camandro aquele, o dos velhinhos, sentados no refeitório quietos e com gozo sádico, a praxarem periquitos e a malta não comia e dizia em coro:
- Piú, piú, velhinhos, fartos de mato, não comem comida salgada por piriquito, piriquito vai pró mato, piú, piú.

Eu, fodido, a comprovar que a comida estava mesmo salgada, a sentir escorrer o suor dos cozinheiros novatos em pânico, apardalado como periquito que era, pedindo ajuda ao major para sair da embrulhada, o gajo encafuado nos galões do traço grosso junto a um traço fino, eu dependente porque só tinha um traço fino em cima do ombro e a perguntar-lhe:
-Meu major, como vamos resolver? - E o gajo a ficar mais à rasca que eu, a suar mais que eu e que os cozinheiros nossos camaradas e feitos merda, atarantado, atarantado, e depois sair-se:
- Ó alferes, para que é que tem essa pistola à cintura? Abata um ou dois, depois os outros comem! - E eu, feito palerma, mais palerma que periquito, a olhar o merdas do major a mandar-me dar tiros nos velhinhos praxistas da perda da solidariedade, e a ver o major a desaparecer atrás da secretária e a querer dizer-me que não estava ali, nem tinha vindo em comissão, apesar de ir na terceira comissão e com a terceira comissão ir acabar de pagar os prédios que comprara em Lisboa, com o pé de meia da guerra, da guerra por Minho a Timor.

E eu ali, feito parvo, entre aquele major de merda, a preparar transferência para uma repartição no quartel general, os velhinhos da praxe, os cozinheiros ainda sem dedo para o sal. Mais a Walter pendurada no cinto que o major me mandava descarregar em cima dos velhinhos para os obrigar a engolir a comida salgada. E subiu-me o calor à cabeça, fazendo luz, arranquei a Walter da cintura, meti-lhe bala na câmara e atirei-a ao major de merda e disse-lhe:
- Vá lá você, ó valentão, ó seu major de merda, corra lá a tropa a tiro, se é capaz, eu cubro-lhe a retaguarda.

E o gajo, o major, quieto, enfiado na secretária, a suar, a suar, sem pio e sem se mexer. Feito merda, afinal merda feita major. Virei costas ao major, veio-me o sentido da lucidez, do comando, da liderança, do consenso. Disso tudo que tu, Luís, tão bem falas por tão bem saberes falar. E, calmo, periquito feito velhinho instantâneo pelo aperto, acordei logo ali a anulação do levantamento de rancho com uma patuscada de recurso de salsichas, ovos estrelados e batatas fritas à maneira, e com maneira no sal, com que os velhinhos se deliciaram e os periquitos secaram os suores.

Aprendi ali, logo ali, que, em questão de liderança e bom senso, um traço grosso só atrapalhava na companhia ao traço fino. Devia saber isso, mas, na altura, eu ainda era periquito.

2º) O Alferes Chico, operacional junto à CCS, era o meu melhor amigo, ali no Pelundo. Um gajo porreiro e puro. Algarvio, com um curso de professor de educação física, aliava excelentes sentimentos e boa consciência social e política, com um gosto físico pela actividade, pelas operações, pelo fazer a guerra. Estava contra a guerra colonial mas, no fundo, fervia-lhe a apetência de guerreiro e pela acção. Era o meu principal companheiro de tertúlia, também para as farras selectas com bajudas selectas - alma aberta e límpida, ingénua também.

Uma noite, o PAIGC resolveu perturbar a calma do Pelundo com umas rajadas soltas de costureirinha, para avisarem que estavam lá, existiam, tentando quebrar a modorra da psico que ia tecendo harmonia entre tropa e população, num rame-rame que era favorável à consolidação do domínio-tampão sobre o chão manjaco.

O tenente coronel nabo que comandava as tropas, reuniu o oficialato de emergência. O homem estava possesso, como assim, tanto bem que lhes fazemos, mais isto, mais aquilo, estes cabrões dos pretos da tabanca estão feitos com os turras, alferes Chico forme já o seu pelotão, saia e dê uma lição à pretalhada, eles precisam de umas porradas bem dadas, foda-lhes os cornos que eles precisam de aprender que não se brinca com a tropa.

Eu a ouvir o discurso e a olhar para o Chico, o meu amigo Chico, e a medir-lhe a reacção. E a ver-lhe na cara a contradição entre senso e acção. E a medir-lhe pelo subir do seu bigode algarvio que o apelo da acção lhe estava a aquecer a cabeça e a pesar-lhe na mão agarrada á G3.

Deu-me um vaip, um vaip guerreiro, e logo me ofereci para o combate:
-Meu tenente-coronel, se me permite, ofereço-me para incorporar a acção punitiva, convém manter as transmissões operacionais com o quartel, permite que seja o oficial de transmissões do Alferes Francisco?.

De orgulho escancarado foi a reacção do oficial comandante. Com certeza, com certeza, muito bem, muito bem. Cheguei-me ao Chico, a tropa alinhada, artilhada, pronta para tudo, disposta a tudo que o alferes mandasse, o Chico todo marcial na sua missão de comando e represália, e eu a dar-lhe missa mansa:
- Ó Chico, como é que é, vamos arrear nas bajudas e nas mães das bajudas com que roçamos? - E o Chico, hirto:
- Tem que ser, Tunes, tem que ser, se os gajos mijam fora do penico levam para aprenderem, não ouviste o comandante. E eu, calmo e sem desarmar:
- Não me fodas, Chico, vamos primeiro ver se tudo está ou não está a dormir, nas calmas, só para ver, pode ter sido malta de fora, para desestabilizar, depois lixamos as bajudas e ficamos sem bajuda para dançar, o que é preciso é calma, ó Chico, porque se estragamos a psico amanhã temos o Caco a dar-nos na mona.


Guiné > Região do Cacheu > Pelundo > Alferes milicianos da CCS do BCAÇ 2884, com sede no Pelundo, em alegre e descontraído convívio, no dia 1 de Janeiro de 1970. João Tunes, oficial cripto, é o segundo da esquerda, de costas e de quico na cabeça, abraçando um camarada (talvez o médico ou o capelão) ..."E lá fomos, em guerreira missão, apanhando e comendo tomates da horta militar com a tropa toda a desopilar em risos e em descarga guerreira. Voltámos em alívio e em alegria, sem parar para pensar o que seriam aqueles mesmos lúdicos militares por roubarem tomates a um major se o comando, a liderança, lhes apontasse, impulsionasse, impusesse, antes, o caminho da filha de putice. Da barbárie até" (João Tunes).

© João Tunes (2005)


Vi logo nos olhos do meu amigo Chico ele quebrou, ficou mais algarvio que guerreiro, mais a puxar para a bajuda que para a porrada, mais para a consciência que para a pulsão. Não me respondeu, mas aquele silêncio disse-me tudo. Entrámos numa palhota, tudo dormia como se nada tivesse acontecido. O Chico riu-se. E tomou-me a dianteira:
- Eentão aquele cagarola queria que andássemos à porrada com mulheres a dormir, ó Tunes, já viste o que aquele cabrão queria armar?.

Dei-lhe razão sem muita ênfase. Estava no papo. O melhor do Chico tinha vindo ao de cima. Não interessava forçar a nota. A questão era como regressar ao quartel, recolhendo à tenda. A ideia veio-me, sei lá como:
- Ó Chico, vamos fazer um golpe de mão e mamar a horta do major Pinho, sacando-lhe os tomates! - O Chico riu-se com uma das suas inigualáveis e mais sonoras gargalhadas, concordando.

E lá fomos, em guerreira missão, apanhando e comendo tomates da horta militar com a tropa toda a desopilar em risos e em descarga guerreira. Voltámos em alívio e em alegria, sem parar para pensar o que seriam aqueles mesmos lúdicos militares por roubarem tomates a um major se o comando, a liderança, lhes apontasse, impulsionasse, impusesse, antes, o caminho da filha de putice. Da barbárie até.

Abraços. Para ti e para toda a digna e marcial Tertúlia.
João Tunes
____________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 21 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXLV: Estilo de comando e espírito de casta (João Tunes)

(2) Este episódio já aqui foi evocado pelo João Tunes, em post de 17 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CXCII: Os nossos (des)encontros: do Niassa ao Pelundo, passando por Bissau (João Tunes)

segunda-feira, 27 de março de 2006

Guiné 63/74 - P636: Os donos dos carimbos (Zé Neto)

Guiné > Bissau > Outubro de 1968. Esplanada do Café Bento, a famosa 5ª Rep onde se juntavam (mas não se misturavam) o pessoal da guerra do ar condicionado e os apanhados do clima que vinham do interior. Comentário do Zé Neto: "A pele e o monte de ossos do Zé Neto que sobrou da Comissão Liquidatária da CART 1613".

© José Neto (2006)


Luís: Guarda aí esta croniqueta para quando te der jeito meteres no blogue. Se for caso disso, a apresentação é por tua conta. Boa noite, um abração e até breve. Zé Neto (26/2/2006).

Comentário de L.G.:

Os burocratas são mais ou menos iguais em toda a parte e em todas as épocas. Nas empresas, na administração pública, nas forças armadas. Em Portugal ou nos Estados Unidos. Com uma única diferença: podem ser mais arrogantes e prepotentes nas sociedades não democráticas, como era aquela em que a gente vivia durante a guerra colonial. Também dependia do seu sentido de impunidade: por exemplo, no mato, era mais difícil ao burocrata levar a burocracia à letra (por exemplo, o RMD - Regulamento de Disciplina Militar)...

Esta estória, aqui contada pelo Zé Neto, é edificante. Acaba bem. Tem moral e tudo. Mas podia ter sido um pesadelo para o nosso amigo e camarada, responsável e único membro da Comissão Liquidatária da sua unidade, a CART 1613... No fundo, a estória teve um desfecho feliz, ou melhor, à portuguesa, graças ao nosso proverbial sentido de desenrascanço...

Felizmente que os sistemas de acção humana organizada (como as forças armadas,a s escolas, as empresas, os hospitais...) são suficientemente flexíveis e contingentes (diz-se hoje, que são sistemas inteligentes) para darem lugar a (ou tolerarem) comportamentos desviantes, logica e formalmente não previstos nem desejados... Neste caso, o efeito não-previsto chamava-se Furriel Miliciano João Paulo...

Enfim, confesso que não fazia a mínima ideia do que era o trabalho dos nossos sargentos nas comissões liquidatárias. Por isso o testemunho do Zé Neto - em complemento das suas memórias de Guileje (1) - merece, mais uma vez, a nossa atenção e o nosso interesse. As guerras também se ganham (ou perdem) com os burocratas e com o seu poder, a burocracia (do francês, bureaucratie, o poder dos escritórios, das repartições).

O Zé Neto tem razão: o que um homem tinha de saber de legislação militar! Vão espreitar o famoso livrinho que nos davam na altura do embarque (Estado Maior do Exército - Missão na Guiné. Lisboa: SPEME, 1971. pp 68 e ss.). É só uma amostra...

Os donos dos carimbos (por Zé Neto)



Guiné-Bissau > Guileje > 2005 > Aqui era o aquartelamento de Guileje... © AD - Acção para o Desenvolvimento > Projecto Guileje (2005)


Preâmbulo

Não me surpreende a constatação do facto de que, até agora, só eu tenho trazido ao blogue um pouco da vivência intramuros (melhor, intra-arame farpado) das unidades combatentes no que concerne ao sector administrativo, por vezes uma guerra tão violenta e suja como a que se travava nas matas.

Aos alferes, furriéis, cabos e soldados pouco importava a manobra dos papéis desde que a pensão na Metrópole, a subvenção de família, o requerimento para a licença, os descontos dos débitos na cantina, o pré e vencimentos pagos na hora e outros assuntos estivessem em dia. Os bipés, carregadores, cantis, facas-de-mato e outros artigos perdidos nas operações eram problemas que, depois de comunicados, ficavam para o pessoal do arame farpado resolver.

Gostava de saber qual dos ex-graduados deste blogue teve o cuidado de, ao render outros num destacamento, conferir minuciosamente todos os artigos de material da Folha de Carga, ou até se essa folha lá estava, como era regulamentar.

Guiné > Guileje > CART 1613 (1967/68) > Alguém, numa unidade de quadrícula, algures no mato, tinha de se preocupar com os papéis, para se poder pagar a pensão na Metrópole ou a subvenção de família, autorizar o requerimento para a licença de férias ou ter o pré e os vencimentos pagos na hora... © José Neto (2006)

Compreendo. Fomos treinados para combater e não para burocratas. Será a resposta.
Só que a soma desses pequenos descuidos sobravam sempre para o Chico chato que responde pela companhia, o primeiro-sargento que, no meu caso, nem esse posto tinha.

Por isso vos trago hoje esta memória da minha campanha contra os donos dos carimbos de Bissau.

Os carimbos e os seus donos

A comissão acabou, o Niassa levou o pessoal com um saco de bagagem e duas mudas de roupa apenas e tudo o que restou ficou com a Comissão Liquidatária da companhia.

Durante duas semanas após o embarque ainda tive a preciosa ajuda do meu Capitão que se recusou a embarcar por saber da montanha de problemas que me deixava.

Depois da sua profícua actuação em que alguns Autos tramitavam de cima para baixo, ou seja, quando chegavam à secretaria do Serviço por onde deviam entrar já levavam o despacho do Chefe, que ele obtinha junto dos seus amigos e condiscípulos da Academia Militar, depois disso, repito, a Comissão Liquidatária era composta por mim de manhã, eu à tarde e o desgraçado do Zé Neto à noite.

A Guia de Desembaraço da Liquidatária só depois de carimbada por todas as chafaricas nela inscritas me dava o direito de pedir o meu transporte de regresso. Avisado de antemão e já com a experiência da comissão anterior em Cabinda guardei 20 miniaturas do Guião da companhia para os subornos, pois os donos dos carimbos tinham uma apetência muito acentuada por esses troféus.

Quando cheguei à parte de liquidar o material de guerra só restava um e esse era o meu. Por nada deste mundo alguém mo arrancava.

Lá me arrastei até à Bolola com uma pasta atafulhada de Guias de entrega, Autos de ruína, extravio, etc. aprovados e fiquei diante dum 1º sargento amanuense, pomposamente intitulado Chefe da Secção de Ficheiros do Serviço de Material, assessorado por um furriel miliciano do recrutamento local, mestiço, ali tratado por João Paulo. Foi o que me ficou do nome do rapaz.
-Hei! nosso sargento. Você tem para aí tralha a dar com um pau! …Traz o Guião?

Arrumei uma mentira dizendo que a Casa das Bandeiras (em Lisboa) se enganara na confecção e que tinham sido devolvidos, com muita pena nossa, bralaubau e por aí fora…

O homem esboçou um sorriso cínico (nunca mais esqueci aqueles dentes amarelos acastanhados que provavelmente nunca viram uma escova) e calendarizou as conferências:
- Amanhã quero o acerto da carga que trouxeram da Metrópole, depois se marca a de Guilege e ainda fica a restar a de Buba e destacamentos.

A primeira sessão foi de arrasar! Estaca práqui, pinchavelho pracolá, o homem tinha estudado aturadamente a maneira de me massacrar. Saí dali com vontade de lhe dar o meu Guião, mas o raio da peta que lhe meti, não se conjugava bem com a situação.

No Clube dos Liquidatários, que reunia ao fim da tarde na esplanada do Bento, comentei o aperto que tinha levado e logo o Parracho (meu conhecido de Macau), que já andava por lá há quatro meses naqueles trabalhos, me afiançou:
– Estás fod... com o gajo. Vai-te espremer até ao tutano. Já em Moçambique esse filho da p... fez mossa nessa função em que se especializou. Estive lá com ele. Arranja maneira de lhe dar a volta.

E arranjei. Ou melhor, os meus santinhos ajudaram-me a dar a volta por cima.
Uma tarde em que não me apeteceu aparecer no Clube, sentei-me na esplanada do Zé da Amura a emborcar cafés para curar o desalento. Senti uma leve batida no ombro e o João Paulo perguntou-me:
- Posso pagar-lhe uma cerveja?
- Não bebo disso, mas sente-se e mande vir que pago eu. Então? Conte lá.
- Passei o dia a separar as suas fichas para a conferência de amanhã e está lá uma que, calculo, lhe pode dar mais um mesito de Guiné. O meu sargento tem a Guia de Entrega assinada das cento e tal espingardas Mauser distribuídas aos núcleos de população em auto-defesa, à responsabilidade da companhia operacional de Buba?
- Espingardas Mauser??? Vi algumas em Nhala, mas até pensei que eram oferecidas como ferro-velho para os nativos caçarem. Ai que estou tramado!!!
- Acalme-se, meu sargento. Eu não estou aqui por acaso. Andei à sua procura.
- Como me incomodam as atitudes do nosso primeiro para consigo, eu resolvi arriscar o extravio dessa ficha que ele ainda não viu, e mais tarde, quando o senhor embarcar, volto a pô-la no lugar, fora de ordem para disfarçar. Depois...que Deus nos ajude.

Para que não ficassem dúvidas da lisura da sua intenção, fez questão de pagar a despesa e foi à sua vida.

No dia seguinte, chegamos à última ficha e, num gesto que me pareceu durar uma eternidade, o ogre ergueu o carimbo, humedeceu-o com o seu bafo mal cheiroso, deixou-o cair no rectângulo respectivo e, com aquele sorriso grosseiro e alvar, pegou na caneta e rabiscou o nome. Nome que conheço, mas não quero escrevê-lo para não manchar este espaço.

Dos nove quilos que perdi na Guiné, creio que nessa noite recuperei uns gramas graças à atitude indisciplinada do Furriel Mil João Paulo qualquer coisa.

Ai, meu caro João Paulo. Se a tua forte compleição física e o teu espírito de bem-fazer te conservaram a vida, andas agora pelos sessenta e eu já vou nos setenta e muitos anos. Podes crer que sempre ocupaste um lugar muito especial na memória deste velho soldado.

José A S Neto
____________

Nota de L.G.

(1) vd post de 25 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (Fim): o descanso em Buba

domingo, 26 de março de 2006

Guiné 63/74 - P635: Bafatá: o Café do Teófilo, o desterrado (Manuel Mata / Humberto Reis / Luís Graça)


Foto nº 1




Foto nº 2


Foto nº 3

Guiné > Zona Leste > Bafatá > Estrada de Bambadinca-Batatá, vista de heli (foto nº 1); vista aérea de Bafatá, com o Rio Geba do lado direito (foto tirada de helicóptero, do lado oeste) (foto nº 2); o Humberto Reis na piscina de Bafatá (foto nº 3),


Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-fur mil op esp, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Fotos:  © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. O Café do Teófilo era conhecido por todos os tugas que estiveram em Bafatá, ou iam a Bafatá, em serviço ou em lazer. 

Era o caso do pessoal metropolitano da CCAÇ 12 que, mais ou menos de mês a mês, conforme a frequência e a intensidade da actividade operacional, ia a Bafatá comer o seu bifinho com batatas fritas (em geral na Transmontana), visitar as amigas do Bataclã, fazer compras na Casa Gouveia ou simplesmente distrair a vista pelas montras da civilização...

Com cerca de 4 mil habitantes (no princípio dos anos 60), Bafatá era a sede de concelho do mesmo nome e a segunda maior cidade da Guiné (passou de vila a cidade só em Março de 1970!)...

O Teófilo (ninguém sabe o seu nome completo) foi aqui evocado pelo Manuel Mata, do Esquadão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71):

"Café do Teófilo: À saída de Bafatá, na estrada para Bambadinca. Este homem era sobrevivente de um grupo desterrado para a Guiné nos anos 30. No período da guerra era apontado como sendo informador do IN. Foi pessoa com quem me dei particularmente bem, pois tinha pelos alentejanos (em especial de Portalegre) um carinho especial. Era sítio que eu visitava com alguma regularidade, tomava-se uma cerveja gelada, com alguma descrição, acompanhada de uma breve conversa. Era uma pessoa de parcas palavras" (*).

Mandei a seguinte mensagem ao Manuel Mata:

"A história do Teófilo intressa-me. Eu julgo que ele era das Caldas da Rainha, do Oeste (eu sou da Lourinhã). Seria ? Fiquei com essa ideia, das minhas conversas (escassas) com ele... Eu ia lá algumas vezes, recordo-me da filha [, a Rita]. Ele era de poucas palavras (acrescentei eu, à tua legenda).

"Sabes o motivo por que foi desterrado (ou deportado, como se dizia na época) para a Guiné ? Por razões políticas ? Seria ? Terá estado envolvido nalgum movimento de contestação ao Estado Novo nos anos 30 ? Recorde-se que em 1936 foi criado o campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde (**), e que entre 1916 e 1939, mais de 15 mil portugueses foram presos e, muitos deles, deportados (para as ilhas adjacentes e colónias) por razões políticas, segundo estimativa do historiador Fernando Rosas ...

"De facto, no meu tempo, ele já tinha 40 anos de Guiné... Nunca aprofundei essa estória. Voltaste a saber dele ? Vou perguntar também ao meu camarada Humberto Reis, da CCAÇ 12" (***)...

2. Informações adicionais do Manuel Mata sobre o Teófilo:

No que respeita ao sr. Teófilo, soube em certa altura após o 25 de Abril de 74, suponho que por um dos meus amigos de Castelo Branco, donde a esposa do senhor era natural, que a Ritinha e o irmão (furriel na altura, em Bissau) viviam em Lisboa.

Quando cheguei a Bafatá, em Novembro de 1969, alguém me disse:
- O fulano ali do café procura militares de Castelo Branco e de Portalegre.

Lá fui eu e dois companheiros de Castelo Branco, acabámos por jantar com o senhor.

Posteriormente em conversas havidas, recordo de me contar que era sobrinho do dr. Tapadinhas, proprietário da Tipografia Tapadinhas, em Portalegre.

Contou-me que tinha sido desterrado para a Guiné no inicío dos anos trinta, num grupo de 40 elementos dos quais restavam três à data, estando ele e um outro em Bafatá de quem não me recordo o nome - sei que tinha uma taberna na Tabanca entre a casa dele e o Hospital (pessoa com que, de resto, privei algumas vezes, para ouvir os programas em Português da BBC de Londres).

Sei que o sr. Teófilo tinha vindo à Metrópole apenas duas vezes, tinha uma estima profunda pelos Guineenses, pois foi esse povo maravilhoso que o tratou de inúmeras doenças, e só assim conseguiu sobreviver.

Deu-me muitos conselhos, contou-me muita coisa confidencial, mas nunca quis falar da razão que deu origem ao seu desterro. Sempre respeitei a sua vontade, não o pressionando.

Manuel Mata

3. Comentário de L.G.:

Esta história é fantástica: o Manuel Mata veio-me refrescar a memória.

Lembro-me muito bem do velho Teófilo, que era apontado com um caso excepcional de sobrevivência às duras condições da Guiné: ele sobreviveu a tudo, o paludismo, a bilharziose, a doença do sono e tantas outras doenças tropicais; ao isolamento, ao desterro, à deseperança...

Como todos os brancos (em especial, comerciantes) que eu conheci na Guiné, o Teófilo tinha fama de estar feito com o IN (ou, noutros casos, era-se inevitavelmente suspeito de ser informador da PIDE/DGS, como era o caso de um comerciante de Bambadinca, cuja casa frequentei /frequentámos algumas vezes)... Não me recordo de ter visto os agentes da PIDE/DGS de Bafatá no Café Teófilo...No Transmontana, sim...

De qualquer modo, o Manuel Mata (que passou a sua comissão em Bafatá e era visita da casa do Teófilo) sabe mais histórias sobre este grupo de deportados que não nos quer contar, por razões que eu respeito... Tratava-se de homens que não morriam de amores pelo Estado Novo, conhecidos por serem do reviralho... E daí a suspeita (grosseira) de pactuarem com o IN (leia-se: os turras)... Enfim, é pelo menos uma primeira conclusão que eu posso tirar...

Mas há mais malta da nossa tertúlia que esteve em (ou passou por) Bafatá, para além do Manuel Mata (Esq Rec Fox 2640), do pessoal da CCAÇ 12 (eu, o Humberto, o Tony Levezinho, o Fernandes) e outra malta que esteve no Sector L1 (Bambadinca)... Refiro-me ao A. Marques Lopes (CART 1690), o Jorge Varanda (CCAÇ 2636), o Jorge Tavares (CCS do BCAÇ 2856), o Maurício Nunes Vieira (CCS do BART 3884) , etc.

O Teófilo, cuja memória evoco aqui oom o respeito que é devido aos "nossos mais velhos" (hoje se fosse vivo teria mais de 90 anos, mesmo perto dos 100), fez-me lembrar-me o caso dos lançados... Eram tipos (desde os condenados pela justiça do rei aos aventureiros, os judeus e depois aos cristãos -nosos, aos ‘assimilados’, etc.) que desde o tempo de D. Henrique eram literalmente lançados, sozinhos, com a missão de explorar, por conta e risco, a costa da África Ocidental, os países subsaarianos, até à próxima viagem das caravelas ...

Os lançados eram, na época dos Descobrimentos, uma espécie de guias e picadores, de espiões, de antropólogos, de mediadores culturais,  de embaixadores, de bandeirantes: iam à frente, para conhecer e mostrar uma caminho… Também eram conhecidos por tangomaus. Nem sempre foram bem vistos pela autoridade régia (que pretendia manter o monopólio do comércio com a África Ocidental, enquanto os lançados também faziam negócios com os ingleses, os franceses e e os holandeses) nem muito menos pelos missionários que os acusavam de estarem completamente cafrealizados, vivendo em poligamia, no pecado, à maneira dos cafres...

Estamos a falar ainda do Séc. XV… Os nossos amigos tertulianos estão a imaginar serem lançados no Xime, com uma missão (contactar os povos da margem direita do Corubal) e a promessa de voltarem a casa no ano seguinte ?

Estas são outras histórias do Império que muitos de nós desconhecem... Sobre os Lançados, vd. Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses (ed lit Luís de Albuquerque). Vol II. Lisboa: Círculo de Leitores. 1994.582-584.

Ver também o texto do senegalês Mamadou Mané - Algumas observações sobre a presença portuguesa na Senegâmbia até ao séc. XVII, publicado na Revista ICALP, vol. 18, Dezembro de 1989, pp. 117-125, disponível em formato pdf na página do Instituto Camões.
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Notas de L.G.

(*) Vd post de 25 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLII: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71) (Manuel Mata) (3)

(**) Segundo o historiador Fernando Rosas, o número de deportados nas ilhas e nas colónias, em finais de 1931, meados de 1932, entre oficiais, sargentos praças e civis, era de 1421 (a maior parte em Angola, Timor, Cabo Verde e Açores).

Na Guiné, o número de deportados reviralhistas (opositores ao regime instalado em Portugal depois do golpe militar de 28 de Maio de 1926) era de 46, dos quais 18 oficiais, 5 sargentos, 5 praças e 18 civis... Será que entre estes civis poderia estar o nosso jovem Teófilo ? Recordo-me do Teófilo me ter sempre falado de um grupo original de 40 portugueses que veio para a Guiné, e de que ele era já (em 1969/71) um dos últimos sobreviventes. Julgo que mais tarde (se não mesmo logo em 1932) ele e os seus companheiros de infortúnio terão beneficiado de uma amnistia.

Fonte: História de Portugal (ed. lit. José Mattoso), Vol. 7: O Estado Novo (1926-1974). Lisboa: Circulo de Leitores 1994. 209.

(***) Eis o que o Humberto Reis me esclareceu sobre o assunto:

"Do Teófilo apenas me lembro de que era lá que se formava a coluna de regresso a Bambadinca, por isso aí se bebiam os últimos copos. Também me recordo que a filha, Rita, trabalhava nos correios lá em Bafatá e que a balança se queixava, cada vez que ela se punha lá em cima (era uma miúda nova mas já bastante forte para a idade). De resto já não me recordo de mais nada ".

Guiné 63/74 - P634: Uma mina na estrada de São Domingos para Susana (Manuela Gonçalves)

Mensagem da Nela (Manuela Gonçalves) (de quem eu disse há dias, no Dia Internacional da Mulher, que não fazia mas devia fazer parte da nossa tertúlia, juntamente com o seu marido) (*):

1. Já tinha colocado o post 4 quando visitei o blog e escrevi o post 5. O meu marido era na altura o Alferes Miliciano Nelson Gonçalves. Obrigado por me considerar Tertuliana, mas, de facto, enquanto eu gosto de escrever, ele detesta. Quem sabe se o virá a fazer! (**)

Saudações amigas

Blog > Caminhos por onde andei > Post: Guiné- Bissau (5)


2. Com a devida vénia reproduz-se aqui esse post, datado de 25 de Março de 2006:

Na minha visita habitual ao Blogue-fora-nada , acabei por mudar de caminho e bater à porta do Africanidades, onde entrei, mesmo sem licença, e soube, pelo que é possível saber, da explosão de uma mina na zona de São Domingos.

O flagelo das minas continua e não sei mesmo se muitas delas não serão ainda daquelas que foram colocadas na guerra colonial. A coincidência transportou-me até Novembro de 69.

Foi naquela mesmo estrada - de São Domingos para Susana - numa operação de reconhecimento da via, que o Unimog em que o maridão seguia, pisou uma mina anti-carro. No Unimog, uma outra mina anti-carro, levantada cerca de 300 metros antes, era transportada atrás e, por mero acaso, não rebentou, o que teria sido catastrófico para todo o pelotão!

A mina tinha sido accionada pelo pneu do lado direito, pelo que o maridão foi atirado para fora, em estado crítico, não tendo o condutor sofrido senão pequenos ferimentos, apesar da força do embate!

Um helicópetro transportou-o para Bissau, tendo acordado uns dias mais tarde numa cama no Hospital Militar, sem uma perna e tendo por companheiro de quarto o capitão Peralta, cubano, cuja captura tão noticiada era nos media de então (***).

Antes como agora, aquela estrada era perigosa, antes como agora aquela estrada era a única via de saída e/ou entrada na região do litoral, antes como agora, parece, que a principal preocupação dos comandos era e é cortar a possibilidade de fuga às populações!

Antes como agora morrem soldados, fogem populações que não querem a guerra, que estão cansadas de lutas, de morte, de fome, de pobreza! Até quando a dor e o sofrimento? Até quando as minas nas estradas? Até quando?

Nela
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Notas de L.G.:

(*) Vd. post de 8 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXVIII: Dia Internacional da Mulher (6): a guerra no feminino (Manuela Gonçalves)

(**) Cara amiga: 

Infelizmente ainda são poucas as mulheres que lêem e sobretudo escrevem neste blogue. Contam-se pelos dedos da mão as nossas tertulianas. Pelo que a Nela é bem vinda. Não há razão para não ser tertuliana, de jure e de facto. Já o é. Ou passa a ser automaticamente. Por muitas razões:

 (i) pelo seu maridão ter ido connosco, no mesmo navio, o N/M Niassa, em Maio de 1969, para a Guiné; 

(ii) por você ter, heroicamente, acompanhado a sua convalescença no Hospital Militar de Bissau à distância de milhares de quilómetros; 

(iii) por você ler o nosso blogue regularmente;

 (iv) por ter, tal como todos nós, uma grande paixão pela Guiné e pelo seu povo; 

(v) por ser uma mulher de armas... e, ainda por cima, ter sentido de humor, a avaliar pelo delicioso endereço do seu e-mail...

Bem vinda, Nela! Ou melhor: sê bem-vinda, que os camaradas e amigos da Guiné tratam-se todos por tu!

(***) O capitão Pedro Rodriguez Peralta, capitão do Exército Cubano, de 32 anos, instrutor ao serviço do PAIGC, foi gravemente ferido a 18 de Novembro de 1969, no corredor de Guileje, junto à fronteira com a Guiné-Conacri, no decurso da Op Jove, conduzida por forças paraquedistas e destinada a capturar o próprio 'Nino' Vieira. Enviado para Lisboa, só depois do 25 de Abril de 1974 é que o capitão Peralta é libertado.

Fonte: Policarpo, F. - Guerras de África: Guiné, 1963-1974. Matosinhos: QuidNovi.2006. 102. (Batalhas da História de Portugal, 21).

sábado, 25 de março de 2006

Guiné 63/74 - P633: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71) (Manuel Mata) (3)

Guiné > Zona Leste > Bafatá > 1970 > Vista aérea da sede de concelho de Bafatá, elevada a cidade em Março de 1970. Vista da bela mesquita local.

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006).





Texto do Manuel Mata, ex-1º cabo apontador de Carros de Combate M 47 > III Parte da História do Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71) (*)


Guiné > Bafatá > 1970 > Vista aérea em época seca, vendo-se a posição do aquartelamento do comando do Agrupamento e do Esquadrão na parte superior da foto. © Manuel Mata (2006)


Guiné > Bafatá > Vista parcial do quartel do Esquadrão. À esquerda oficina, messe de sargentos e messe de oficiais ao fundo e gabinete do Comandante, onde ocorreu o acidente do Furriel H. Sertório (vd. sinalética na foto seguinte). © Manuel Mata (2006)

Guné > Bafatá > Vista parcial do quartel. À direita depósito de géneros e caserna do pessoal de comando e serviços. Ao fundo duas casernas dos pelotões operacionais e residência do comandante junto das árvores. © Manuel Mata (2006)



O Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71) era constituído por:

1 Pelotão de Comando e Serviços;
3 Pelotões de Reconhecimento, equipados com as seguintes viaturas:

- Três Auto Metralhadoras DAIMLER
- Duas Auto Metralhadoras FOX
- Um Granadeiro com blindagem lateral sendo a sua guarnição composta por atiradores.
- Um Unimog cuja secção tinha um morteiro 81.



Guiné > Bafatá > Esq Rec Fox 2640 > Vista parcial. Entrada da cozinha e refeitório do lado esquerdo; viatura Fox frente à oficina e paiol ao fundo do lado direito. © Manuel Mata (2006)


Pelo Comando do Agrupamento Leste 2957 foi entregue o plano de operações Cavalo Veloz das quais faziam parte entre outras, (i) efectuar patrulhamentos de reconhecimento, (ii) manter contactos com as populações, (iii) participar na defesa próxima de Bafatá em colaboração com o Batalhão aí sediado, (iv) ter em permanência um pelotão de Reconhecimento em Piche em coordenação com o Batalhão ali estacionado, (v) realizar escoltas solicitadas pelo Comando do Agrupamento, (vi) fazer segurança à pista de aviação, (vii) assegurar a liberdade de movimento nos itinerários que irradiam de Bafatá, com destaque a estrada de Bambadinca – Bafatá – Nova Lamego, sempre em estreita colaboração com a rapaziada do Batalhão de Bafatá e de Galomaro, no sentido de controle das populações num raio considerável. Exercendo assim um esforço de acção psicológica sobre as populações, tendo sempre por objectivo uma campanha educativa e de formação social.


Guiné > Bafatá > Esq Rec Fox 2640 > Vista parcial, canto da sucata e parte do ringue de futebol 5 ao fundo do lado direito. Pista de aviação ao fundo e casa do serviço meteorológico.
© Manuel Mata (2006)

Em 26 de Novembro de 1969 segue para Piche o 3º Pelotão para render o Pelotão ali destacado pelo Esq 2350 (certamente terão também estes camaradas muito para nos contar da sua passagem pela Guiné, aguardamos…), pelotão esse que veio a ser rendido em 26 de Dezembro acusando um enorme esforço pelo trabalho efectuado ao longo do mês, salientando as patrulhas efectuadas às tabancas de: Madina Bonco, Sinchã, Assumani e Tabatô, onde foram detectadas e levantadas 21 minas A/P e uma A/C. O esforço reflectiu-se particularmente nas viaturas pois algumas vieram a reboque, tal era o seu estado!

No dia 29 de Dezembro de 1969 este Pelotão, destacado em Piche, teve o seu baptismo de fogo, foi uma flagelação com certa gravidade, não tendo os nossos homens sofrido qualquer baixa ou ferido. Estes mostraram a sua garra, patrulharam activamente as picadas da tabanca de Piche, no sentido de expulsar o IN infiltrado durante a flagelação. As tropas estacionadas em Piche sofreram 3 mortes e 2 feridos graves.

Em Janeiro de 1970 recebe o Esq a missão e montar guarda permanente à ponte do Rio Colufe, perto de Bafatá, com alguma estranheza pois estava o Esq preparado e motivado para actividades mais dinâmicas.


Guiné > Bafatá > Ponte do Rio Colufe com a sua celebre estrutura em troncos de palmeira, junto da qual foram encontrados os dois dilagramas. © Manuel Mata (2006)


Dia 29 de Janeiro é rendido o Pelotão Rec. destacado em Piche, continuou a acentuar-se significativamente o esforço dispendido por homens e viaturas, assim foi continuando a vida do Esq. (mina aqui e acolá, levantada ou destruída sem estragos pessoais, patrulhas e escoltas permanentemente).

Nesta mesma data o Comandante-chefe General Spínola visita as tropas de Bafatá reunindo em formatura geral na sede do Esq. Rec. Feita a apresentação da formatura, ditas algumas palavras pelo General Spínola, de boas-vindas, juntou os militares ao seu redor e ali falou ao coração dos praças, chegando mesmo a comentar a dificuldade em homens e material de guerra para a defesa da zona. Era a decadência visível do sistema aos olhos de todos!

Lá foram decorrendo as semanas, os meses, com muitas escoltas, patrulhas, psicos, flagelações constantes na zona de Piche, felizmente continuavam os nossos destemidos homens com as viaturas a cair em pedaços, a fazer o que parecia impossível, mas sempre havia tempo para ir ao Café do Tofico, beber uma cerveja!

Quando se chagava a Bafatá, para retemperar forças lá vinha um fim-de-semana, uma folga, que era reconfortante, com uma ida ao cinema, ao café da D. Rosa, do Teófilo (1), da Transmontana, ao Bataclã, à piscina da nossa bela Bafatá que, em 12 e 13 de Março de 1970, teve as cerimónias de elevação a cidade, onde esteve presente o Ministro do Ultramar.


Guiné > Bafatá > Bataclã, um dos pontos de lazer e divertimento da rapaziada.
© Manuel Mata (2006)
(Continua)
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Nota do autor
(1) Café do Teófilo: À saída de Bafatá, na estrada para Bambadinca. Este homem era sobrevivente de um grupo desterrado para a Guiné nos anos 30. No período da guerra era apontado como sendo informador do IN. Foi pessoa com quem me dei particularmente bem, pois tinha pelos alentejanos (em especial de Portalegre) um carinho especial. Era sítio que eu visitava com alguma regularidade, tomava-se uma cerveja gelada, com alguma descrição, acompanhada de uma breve conversa. Era uma pessoa de parcas palavras.
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Nota de L-.G.

(*) Vd post anteriores:

2 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DXCVII: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71) (Manuel Mata) (1)

"No ano de 1969, mês de Agosto, com a apresentação no Regimento de Cavalaria 8, em Castelo Branco, foram mobilizados, para o T.O. da Guiné, os 142 militares que vieram a formar o Esq Rec Fox 2640, mais o Pelotão Rec Fox 2175, este independente e composto por 38 militares.

"Terminado o período de organização do Q.O. da unidade, veio a I.A.O. [Instrução de Aperfeiçoamento Operacional] durante o mês de Setembro de 1969. Aí começou a guerra: o exército não tinha viaturas AM Fox, disponíveis para instrução na Metrópole, as poucas AM Daimler tinham feito Pum!!!, na última instrução de especialidade de 1969.

"Ficámos então esclarecidos da razão que levou à nossa mobilização, os 16 apontadores de Carros de Combate M47, coisa que ainda não tinha acontecido até então, em todo o período de guerra. Como não podia haver especialidade de apontador AM Fox e AM Daimler, socorreram-se dos apontadores CCM47, do RC 4, de Santa Margarida, grupo de especialidade terminada em Maio de 1969 (...)"

3 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIII: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Manuel Mata) (2)

Guiné 63/74 - P632: Tabanca Grande: Carlos Vinhal, ex-Fur Mil Art MA da madeirense CART 2732 (Mansabá, 1970/72)

Guiné > Região do Oio > Mansabá > CART 2732 (Mansabá, 1970/72)> 1970 > : 3.º Pelotão, secção do Fur Mil Vinhal (primeira fila, à direita, ladeado pelo seu amigo Ornelas). 
© Carlos Vinhal (2006)

Guiné > Região do Oio > Mansabá > CART 2732 (Mansabá, 1970/72)> 1970 > 3º Pelotão a que pertencia o Fur Mil Vinhal (na primeira fila, à esquerda).
© Carlos Vinhal (2006)

Amigos e camaradas de tertúlia: Abram aulas para receber mais um camarada da Guiné. Aqui vai o testemunho do Carlos Vinhal, ex-furriel miliciano da CART 2732 (Mansabá, 1970/72):

Caro Luís Graça

Entrei recentemente no seu site e, como antigo combatente da Guiné, queria deixar o meu modesto contributo para aumentar o número daqueles que não têm complexos em assumir-se como antigos combatentes de uma guerra que, a não querendo, dela não fugiram.

A propósito, lembro-me que após o 25 de Abril foi um tal de aparecerem heróis que fizeram a "guerra colonial" em França, na Suécia e outros países similares que albergavam aqueles que tinham mais coragem para fugir do que para enfrentarem a dura realidade de uma guerra sem fim. Questões ideológicas? Talvez.

Passo a apresentar-me:

(i) chamo-me Carlos Esteves Vinhal, fui Furriel Miliciano Atirador com a especialidade de Minas e Armadilhas;

(ii) fui incorporado como instruendo do CSM em Abril de 1969 nas Caldas da Rainha (RI5);

(iii) a especialidade de Atirador tirei-a em Vendas Novas (EPA);

(iv) em Novembro fui para Tancos (EPE) onde tirei o XXXIII Curso de Minas e Armadilhas;

(v) em Dezembro rumei para o Funchal onde ajudei a dar a Especialidade de Atirador a um grupo de militares madeirenses com os quais se formaram as duas primeiras Companhias do Grupo de Artilharia de Guarnição n.º 2 (GAG2) a irem para o Ultramar: a CART2731 foi para Angola e a minha, a CART2732, embarcou no Cais do Funchal para a Guiné no dia 13 de Abril de 1970, onde chegou a 17;

(vi) uns quantos dias em Brá e no dia 21 do mesmo mês seguimos para Mansabá, situada entre Mansoa e Farim, onde permanecemos em quadrícula até finais de Fevereiro de 1972.

Como se tratava de uma Companhia independente ficámos dependentes administrativa e operacionalmente ao BCAÇ 2885, sediado em Mansoa. Os Oficiais, Sargentos, Cabos e Soldados especialistas eram todos continentais. Os madeirenses, homens de comprovada bravura, eram aquilo que poderíamos chamar a carne para canhão. A verdade é que muitos deles foram feridos em combate mais de uma vez e nunca viraram a cara à luta. Verdadeiros heróis anónimos, embora alguns reconhecidos e louvados até pelo General e Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné.

Perdemos três militares madeirenses, dois em combate quase no fim da comissão (o Vieira e o Barbosa) e um por acidente (o Silvestre). O soldado Malcata, oriundo do continente, morreu de doença. Perdemos também o Alferes Couto que, tendo como eu o Curso de Minas e Armadilhas, viu-lhe rebentar nas mãos uma mina antipessoal.

Futuramente escreverei mais umas coisas, porque memórias não faltam.

É com muita honra e a título de homenagem aos meus valorosos camaradas madeirenses da CART2732 e em particular ao meu 3.º Pelotão que anexo duas fotografias. Na de cima a minha Secção e na de baixo o meu Pelotão.

Refira-se que nesta altura - e só tínhamos 6 meses de comissão - já a Companhia se encontrava desfalcada. Já havia morrido o Alferes Couto e estava hospitalizado o Alferes Bento, comandante do meu Pelotão, vítimas do mesmo incidente. Estou presente nas fotografias, na da Secção estou em baixo à direita, ladeado pelo meu grande amigo Ornelas e, na do Pelotão, em baixo à esquerda.

Cordiais saudações para todos os camaradas combatentes da Guiné. Espero e agradeço futuros contactos.

Leça da Palmeira
Carlos Vinhal

sexta-feira, 24 de março de 2006

Guiné 63/74 - P631: Preocupação com a situação humanitária em Susana e Varela (região do Cacheu)

Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Varela > Iale > 2004 > Festa da saída da cerimónia de circuncisão ("fanado") da etnia felupe. © AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)

1. Anteontem demos conhecimento, através de e-mail, aos nossos amigos & camaradas da Guiné, membros da nossa tertúlia, do teor de um comunicado de imprensa do Conselho de Concertação Nacional da Plataforma de Concertação das ONG Nacionais e Internacionais na Guiné-Bissau (PLACON-GB), sobre a situação, sobre o ponto de humanitária e da protecção dos direitos humanos, resultante dos violentos combates na fronteira Norte do País com a Província de Casamance (ou Casamança, em português), enclave da República do Senegal, entalado entre a Guiné-Bissau e a Gâmbia (até à constituição da África Ocidental Francesa, fazia parte da Senegâmbia; a presença portuguesa chegou a ser forte até ao Séc. XVII e a língua portuguesa ainda é falada naquela região do sul do Senegal)(1).

Em princípio, não queremos transformar o nosso blogue num portal (noticioso ou outro) sobre a Guiné-Bissau, sob pena de desvirtuarmos o espírito que nos mantém unidos, à volta da nossa experiência comum da guerra colonial e da nossa amizade para com o povo da Guiné-Bissau.

Tal não significa que não estejamos seriamente preocupados com a situação criada pelos confrontos (que já não são de hoje, são cíclicos) das forças armadas guineenses com os rebeldes autonomistas de Casamança (um território que chegou a fazer parte da antiga colónia portuguesa)… Pelo contrário, estamos solidários com os povos de um e de outro lado da fronteira que estão a sofrer com este conflito armado (que, recorde-se, é uma das mais antigas guerras civis latentes em África, há mais de mais vinte anos), bem como com os homens e mulheres de boa vontade que trabalham nas organizaçõ3s não-governamentais, nacionais e internacionais…

Podemos (e até devemos) utilizar o e-mail para trocar informações, factos e opiniões sobre a actualidade guineense, mas não devemos saturar o nosso blogue com informação noticiosa, os comunicados e contra-comunicados, os boatos e os desmentidos, os faits-divers, etc. A Guiné-Bissau é hoje um país independente, que faz parte da comunidade internacional. Não podemos (nem queremos) interferir sobre os seus assuntos internos, independentemente do nosso direito a ter opiniões e a expressá-las, em privado.

Há outros sítios (2) que fazem muito melhor do que nós a cobertura noticios e a reflexão crítica sobre a Guiné-Bissau de hoje e a região em que está inserida...É o caso, por exemplo, do nosso amigo Jorge Neto, jornalista free-lancer em Bissau, e animador do blogue Africanidades, que acaba de deslocar-se para a região de Cacheu, a caminho de Susana. Segundo leio no seu blogue, uma viatura accionou uma mina ao final da tarde de ontem, na estrada que liga S. Domingos a Suzana, no noroeste da Guiné-Bissau.

É o regresso das malditas minas anticarro que foram um dos nossos pesadelos durante a guerra colonial. Neste acidente morrerram dois soldados guineenses e quatro ficaram feridos. Há uma semana atrás, houve outro acidente do género: uma viatura de transporte público despoletou um engenho explosivo semelhante, tendo morrido 11 pessoas.

2. Também o nosso camarada João Tunes se referiu, no seu blogue Água Lisa (6),em post de 20 de Março de 2006, às "nuvens sobre a Guiné", nestes termos:

"De novo, a Guiné-Bissau, em vez da paz e progresso, vê-se a contas com o ferro e o fogo, em que ressaltam as fugas em ondas de refugiados. Agora é no norte, numa teia bélica pouco clara que mete fracções dos separatistas de Casamança (Senegal) e o exército guineense.

"O Jorge Neto não perde a vivência das alegrias (poucas) e dos dramas (muitos) dos guineenses, como se fosse (ele que é alentejano) um fula ou balanta de gema. E vai-nos dando notícias e imagens. Sempre em cima dos acontecimentos. Fazendo a blogo-ponte com os que amam África e que só podem desejar que (mais) esta nuvem negra nos céus da Guiné-Bissau passe depressa. Bem hajas, Jorge".


3. Registe-se, por fim, a mensagem (que é de preocupação, esperança e solidariedade) do Albano Costa:

Caro amigo Luís:

Mais uma vez está na berlinda, por más razões, a «nossa» Guiné... Digo "nossa" porque no fundo, nós portugueses, também a sentimos como nossa... Temos sentimentos e como tal lá estamos nós mais uma vez a lamentar o sofrimento daquele povo, eu pelo menos sinto o sofrimento deles, não merecem, são tão afáveis, tão amigos do seu amigo... Como é possível não poderem viver a sua vida em paz e prosperidade ?!

Fiquei mais uma vez desiludido com tudo o que se está a passar, mas não se pode abandonar aquele povo, temos de os ajudar e eles, povo, merecem. Não vai ser por isso que não vou deixar o meu filho ir à Guiné, claro ele também admira os guineenses, e está já tudo pronto para a viagem que vai ser no dia 5 de Abril. Só que não podem entrar por S. Domingos, irão entrar por outra fronteira mais a leste, Kolda (Farim), ou Cuntima também a leste, por Pirada... O resto da Guiné continua belo e sem problemas.

Em relação ao comunicado, eu também concordo que o nosso blogue não deve ser politizado, deve ser para falarmos sobre o que foi a guerra colonial e para unir os dois povos ainda mais. Bem hajas pelo teu desenpenho.

Um abraço
Albano
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Notas de L.G.

(1) Vd., por exemplo, o interessante paper do senegalês Mamadou Mané sobre a presença portuguesa na Senegâmbia até ao Séc. XVII, disponível no sítio do Instituto Camões (originalmente publicado na Revista ICALP, vol.18, Dezembro de 1989, pp.

(2) Vd. por exemplo:
Notícias Lusófonas > Guiné-Bissau
Expresso > África

quarta-feira, 22 de março de 2006

Guiné 63/74 - P630: Álbum fotográfico de Humberto Reis (1): Bambadinca, vista aérea

Post nº 649 (DCXLIX)



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Espectacular vista aérea do aquartelamento, tirada no sentido leste-oeste, ou seja, do lado da grande bolanha de Bambadinca.

Do lado esquerdo da imagem, para oeste, era a pista de aviação (1) e o cruzamento das estradas para Nhabijões (a oeste), o Xime (a sudoeste) e Mansambo e Xitole (a sudeste). Vê-se ainda uma nesga do heliporto (2) e o campo de futebol (3). A CCAÇ 12 começou também a construir um campo de futebol de salão (4), com cimento roubado à engenharia nas colunas logísticas para o Xitole.

De acordo com a fotografia, em frente, pode ver-se o conjunto de edifícios em U: constituía o complexo do comando do batalhão (5) e as instalações de oficiais (6) e sargentos (8), para além da messe e bar dos oficiais (8) e dos sargentos (9). Apesar do apartheid (leia-se: segregação sócio-espacial) que vigorava, não só na sede dos batalhões, como em muitas unidades de quadrícula, uns e outros, oficiais e sargentos, tinham uma cozinha comum (19).

Do lado direito, ao fundo, a menos de um quilómetro corria o Rio Geba, o chamado Geba Estreito, entre o Xime e Bafatá. O aquartelamento de Bambadinca situava-se numa pequena elevação de terreno, sobranceira a uma extensa bolanha (a leste). São visíveis as valas de protecção (22), abertas ao longo do perímetro do aquartelamento que era todo, ele, cercado de arame farpado e de holofotes (24). A luz eléctrica era produzida por gerador... Junto ao arame farpado, ficavam vários abrigos (26), o espaldão de morteiro (23), o abrigo da metralhadora pesada Browning (25). Em 1969/71, na altura em que lá estuivémos, ainda não havia artilharia (obuses 14).




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > 2001: Uma presença fantasmagórica da guerra colonial... Restos de peças de artilharia (dois obuses 14) que os tugas não quiseram ou não tiveram tempo de desmontar ou destruir. No tempo da primeira comissão da CCAÇ 12 (1969/71) ainda não existia artilharia. (LG)

Foto: © David J. Guimarães (2005). Direitos reservados


A caserna das praças da CCS (11) ficava do lado oeste, junto ao campo de futebol (3). Julgava-se que o pessoal do pelotão de morteiros e/ou do pelotão Daimler ficava instalado no edifício (12), que ficava do outro lado da parada, em frente ao edifício em U. Mais à direita, situava-se a capela (13) e a secretaria da CCAÇ 12 (14). Creio que por detrás ficava o refeitório das praças. Em frente havia um complexo de edifícios de que é possível identificar o depósito de engenharia (15) e as oficinas auto (16); à esquerda da secretaria, eram as oficinas de rádio (17).

Do lado leste do aquartelamento, tínhamos o armazém de víveres (20), a parada e os memoriais (18), a escola primária antiga (19) e depósito da água (de que se vê apenas uma nesga). Ainda mais para esquerda, o edifício dos correios, a casa do administrador de posto, e outras instalações que chegaram a ser utilizadas por camaradas nossos que trouxeram as esposas para Bambadinca (foi o caso, por exemplo, do Alf Mil Carlão, nosso camarada da CCAÇ 12).
Esta reconstituição foi feita pelo Humberto Reis, completada por mim (LG).

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Outra vista aérea do aquartelamento, tirada no sentido noroeste-sudeste. Em primeiro plano, a pista de aviação, o perímetro em L de arame farpado, o campo de futebol, a antena das transmissões...

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados

Guiné-Bissau > REgfião de Bafatá > Bambadinca > 1997 : Antigas instalações dos oficiais (à direita) e dos sargentos (à esquerda). A messe de sargentos ao fundo, do lado esquerdo. Eram excelentes instalações hoteleiras, para a época e por comparações com outros outros aquartelamentos. A regra geral era a "bunkerização" (por ex., Mansambo).

Em 31 de Maio de 1969, quando o pessoal metropolitano da futura CCAÇ 12 estava a chegar à Guiné, Bambadinca sofreu um grande ataque do PAIGC. Quando lá passámops uns dias depois, eram ainda visíveis os impactes das granadas de morteiro (por ex., num dos quartos dos sargentos, à esquerda). Bambadinca foi palco de trágicos acontecimentos a seguir à independência: julgamento e execução, por fuzilamento, de régulos fulas, além de combatentes que estiveram integrados nas NT. (LG)

Foto: © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá, professor em Bambadinca, em 1997). Direitos reservados.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > A escola primária (no telhado, ainda vísiveis as letras pintadas a branco com o nome da localidade...), frente à parada, o pau da bandeira e os memoriais das unidades que por lá passaram; à direita, a árvore de maior porte que lá existia no nosso tempo, a casa do chefe de posto (se não me engano) e, por detrás, o depósito de água... (LG)

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > 1997 : Capela de Bambadinca e, à direita, as antigas instalações da secretaria da CCAÇ 12 (1969/71)

Foto: © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá, professor local). Direitos reservados.



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > O Humberto Reis junto ao pau da bandeira e aos memoriais das unidades que por ali passaram... A foto foi tirada ainda no tempo do BCAÇ 2852 (1968/70). O único brasão que se consegue identificar é o do BCAÇ 1888 (à direita), presumivelmente da época de 1966/68... (LG)

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > 1997 : Vinte e sete anos depois, a escola, já em completa ruína... Em 1970, a professora portuguesa chamava-se Dona Violeta...

Foto: © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá, professor local). Direitos reservados.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Vista aérea da tabanca de Bambadinca, tirada no sentido sul-norte. Em primeiro plano, a saída (nordeste) do aquartelamento, a ligação (B) à estrada (alcatroada) Bambadinca-Bafatá (C), paralela à antiga estrada (A) que cortava a tabanca ao meio. Ao fundo, o Rio Geba Estreito (E). Junto ao rio, as instalações do Pelotão de Intendência (D).

Foto: © Humberto Reis (2006)



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Entrada principal, pelo lado leste (sentido Bafatá), do aquartelamento... Uma rampa bastante íngreme, poeirenta e movimentada, onde se verificaram alguns acidentes, por falha das viaturas ou erro de condução. Recordo-me, nomeadamente, do acidente com o jipe conduzido pelo major Eléctrico (alcunha). Este oficial superior, que deslocava-se sempre de jipe e que conduzia de uma maneira frenética, um dia perdeu o controlo da viatura nesta rampa, o que lhe custou a fractura dos membros inferiores e o regresso mais cedo à Metrópole... (LG)

Foto: © Humberto Reis (2006)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Vista aérea da tabanca de Bambadincazinha (D), a sudoeste de Bambadinca, a escassas centenas de metros do centro (A)....
Em primeiro plano, a estrada nova (C) para o Xime (posteriormente alcatroada) e, mais acima, a antiga estrada (B), paralela à pista de aviação.... Atravessando a tabanca de Bambadincazinho (D), seguia-se em estrada (picada...) até aos aquartelamentos de Mansambo, Xitole e Saltinho (E). Vê-se ao fundo a bolanha de Bambadinca...

Foto: © Humberto Reis (2006)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Vista parcial da tabanca de Bambadinca, cortada ao meio pela antiga estrada com acesso (muito íngreme) ao aquartelamento (entrada principal, de leste). Foi aberta a uma nova estrada que contornava o aquartelamento pelo lado da tabanca (a leste) e da bolanha (a sul).

Do lado direito são vísíveis casas comerciais, de estilo colonial, a última das quais era a do Zé Maria (onde comíamos os famosos camarões do Rio Geba, ao fundo). São também visíveis, junto ao ancoradouro do Rio Geba, as instalações do Pelotão de Intendência. Os barcos, de pequeno calado, e nomedamenmte civis (da Casa Gouveia e outros), chegavam facilmente aqui, transportando víveres e outras mercadorias, ao serviço da intendência militar. Era a partir de Bambadinca que se fazia o abastecimento de grande parte das NT instaladas na Zona Leste (Bafatá e Gabu). (LG).

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Outra vista parcial da tabanca de Bambadinca, tirada do lado da entrada leste do aquartelamento. Como se pode ver pelos sinais de queimadas, esta foto toi tirada no tempo seco... Ainda se vê ao fundo uma nesga do Rio Geba (Estreito). Emn primeiro plano, a cerca de arame farpado e um conjunto de moranças desta populosa tanbanca, de maioria fula (com mandingas à mistura) (LG).

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.



Fotos do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

terça-feira, 21 de março de 2006

Guiné 63/74 - P629: Estórias do Zé Teixeira (6): Abelhas, inimigas de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

Abelhas, inimigas de guerra

Por José Teixeira (ex- 1º cabo enfermeiro, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).

A primeira vez que caímos num ataque de abelhas foi o caos.

A coluna com trinta viaturas carregadas e três obuses de 14 mm, protegida pela CCAÇ 2381 e pelos pelotões da Companhia do Capitão Rei, estacionada em Aldeia Formosa que nos tinha vindo buscar a Buba, ficou na sua maior parte à mercê do IN, perto de Sinchã Cherno.

Só que este, o IN, não tinha na sua agenda atacar naquele local, mas mais à frente. Atacou só no dia seguinte depois de nos fazer um morto numa A/C [mina anticarro] comandada que rebentou só na quinta viatura, a do rádio.

Também eu, aqui, fui um homem de sorte. O milícia que ia a meu lado, ao ver as abelhas aos milhões, agarrou-me por um braço e metemo-nos atrás de um arbusto:
- Fermero fica quieto, abelha, não faz mal ! Não meche, não respira, nem que lhe passe um c... pela boca.
Assim quieto senti-as à minha volta. Pude ver os meus colegas todos a fugir, a sacudir, a coçar e a desaparecer. Ficaram apenas as viaturas e os obuses, na picada. Passados alguns minutos, foram começando a aparecer e tudo voltou ao normal. Eu apenas com duas picadelas, ria-me dos colegas que apareceram a gemer por todos os lados, mas aprendi a lição e preparei-me para um possível segundo ataque que sucedeu meses depois.

Andávamos a montar segurança à engenharia que construía a estrada Buba / Aldeia Formosa. Sentado ao lado do manobrador do caterpillar apreciava como esta máquina derrubava árvores gigantescas, quando de lá de cima cai um grande enxame. Formou-se uma nuvem e toda a gente a gritar pernas para que vos quero. Até uma cadelinha, nossa mascote, que nos acompanhava desapareceu, até hoje. Numa fracção de segundos vejo-me só.

Quico atravessado na cabeça, para me proteger do zumbido, braços cruzados, impávido e sereno (a tremer por todos os lados), sentado no caterpillar a aguardar o ataque. Imaginem o Zé Teixeira como que vestido com um fato novo. Fiquei coberto de abelhas da cabeça aos pés. Só o zumbido me incomodava.

Passado algum tempo começaram a levantar, pois eu não dava luta e com este gajo é melhor não se meterem. Deixaram-me sem uma beliscadura. Os camaradas foram-se aproximando todos picados. Ficaram mais espantados que eu, por me verem são e salvo de um ataque de abelhas. Pomada para toda a gente. Tive inclusive de injectar anti-histamínicos ao Ferraz para evitar a morte por asfixia devido ao facto de ser alérgico.

Ainda hoje tenho mais medo das formigas, mas essas tem outras histórias já contadas.

Zé Teixeira

Guiné 63/74 - P628: Estórias do Zé Teixeira (5): O lugar do morto (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

Mensagem de José Teixeira:

Luís: Saúde, paz e felicidade.

Já pensavas em te veres livre de mim, mas estás enganado, eh ! eh! eh!

Aí vão mais duas estórias para a malta digerir: (i) Às vezes é preciso ter sorte; (ii)abelhas, inimigas de guerra.

Um abraço
Zé Teixeira


Às vezes é preciso ter sorte

A coluna arrancou de Buba, de madrugada.

Dois pelotões tinham partido antes, a bater a zona por onde o IN costumava aparecer.
Dois pelotões seguiam pela mata, um de cada lado, à frente da coluna para refrear os ânimos dos nossos amigos.

Eu ia com o pelotão dos picadores à frente da coluna. Por segurança, seguia atrás da primeira viatura, no trilho do seu rodado, pois o seguro morreu de velho e eu não queria morrer tão novo.

Dá-se uma avaria numa viatura da rectaguarda e a coluna retém a sua marcha. Os picadores seguiram em frente e este vosso amigo sentou-se no sítio do rodado da viatura.

Dada ordem de recomeço de marcha, os picadores já iam a quilómetros. Estando o caminho livre, as viaturas aceleraram a marcha. A primeira viatura (o arrebenta-minas) ia carregada de bebidas e sacos de areia à frente e … africanos em cima. Até os assentos eram sacos de areia, o que concerteza não é novidade para os camaradas bloguistas.

Para não desatar a correr como fizeram os camaradas da segurança à coluna, sentei-me no lugar do morto, na dita rebenta-minas, mas de repente tive um rebate de consciência:
- Então tu que, servindo-te da tua categoria de enfermeiro, nunca deixas ir um colega na primeira viatura e agora colocas-te lá tu, todo refastelado! - E saltei, pondo-me à frente da viatura em marcha de corrida, para não ser atropelado.

Passados uns segundos apenas, dá-se um grande estrondo e sou projectado para o chão. Sinto algo a cair-me nas costas e pensei:
- Já estou ! É desta que vou de vez ! - Espero reacções de dor e nada. Passo a mão pelas costas e trago lama e terra.
- Alto lá, parece que escapei !

Então começam a chover pretos à minha frente. Três dos que vinha em cima da viatura. Os outros, e eram vários, também foram ao ar, mas estavam bem. Felizmente só um se feriu com alguma gravidade e um outro apareceu com um olho ao dependuro (2).

A mina rebentou do lado de onde eu tinha saltado uns momentos antes e o condutor foi ao ar e regressou ao lugar de onde saiu pela impulsão, sem qualquer ferimento.

Fiquei apavorado, sem saber o que fazer. Tinha feridos para tratar, tremia por todos os lados e a bolsa de enfermeiro tinha ficado na viatura. As minas podiam estar lá e estavam mesmo. Lá fui à viatura buscar a bolsa e entretanto apareceu outro enfermeiro.

Lavei muito bem a zona ocular do gajo, que estava cheia de lama, coloquei-lhe o olho no sítio e mandei-o para Buba para ser evacuado.

Tudo resolvido, o capitão dá ordem de marcha e . . . pum ! uma anti-pessoal rebenta debaixo de um pneu de um atrelado, também este carregado de bebidas. Tinha sido colocada na berma, fora da linha de actuação dos picadores. O atrelado ao desviar-se do buraco feito pela anti-carro foi descobri-la a cerca um metro do sítio para onde eu tinha sido projectado e naturalmente pisada por muita gente, ao atender os feridos e naquela azáfama de sacar bebidas (2).
_____________

Notas do autor

(1) Encontrei-o depois em Bissau e pude constatar que ficou bem. O nervo óptico não tinha sido afectado.

(2) Logo após o primeiro acidente foi um fartar vilanagem : toda a gente saltou para a viatura e começou a sacar bebidas. Tudo desapareceu rapidamente.

Guiné 63/74 - P627: Para compreender o conflito de Casamança (Jorge Neto)

Guiné-Bissau > "A população da zona fronteiriça de S. Domingos, norte da Guiné-Bissau, está a fugir da região. Os confrontos que ocorreram na madrugada e manhã de hoje [17 de Março de 2006] entre os rebeldes separatistas do sul do Senegal (MFDC) e as forças guineenses estão a fazer aumentar a apreensão no norte do país" (JN)...

Mais uma vez, a população guineense - as mulheres, as crianças, os velhos, os mais pobres e os mais indefesos - têm de fugir das suas casas, por causa das rivalidades dos senhores da guerra... Infelizmente, na origem deste conflito estão causas remotas ou condições antecedentes a que os governos portugueses e franceses da época colonial, que (re)desenharam regiões inteiras a régua e esquadro, não serão alheios (LG)...

Com a devida vénia: Fonte: Africanidades, blogue do nosso amigo Jorge Neto, membro da nossa tertúlia:

17.3.06 > Conflito de Casamança

Os confrontos entre forças guineenses e rebeldes de Casamança são cíclicos. Acontecem sempre que o Exército da Guiné tem a dirigi-lo alguém hostil à guerrilha, como acontece neste momento. Tagmé Na Wai, chefe de Estado Maior General das Forças Armadas da Guiné-Bissau tem um passado de lutas com o movimento rebelde.

Mas nem sempre foram hostis as relações entre as autoridades guineenses e a guerrilha. A Guiné já foi um dos principais fornecedores de armamento ao Movimento das Forças Democráticas de Casamança (MFDC). Diversos relatórios de política internacional asseguram que foi o tráfico de armamento de Bissau para a região do sul do Senegal que despoletou a guerra civil que opôs Nino Vieira a Ansumane Mané.

A guerrilha casamancence reclama, no essencial, a independência do território; um pedaço de terra do tamanho do Alentejo, encravado entre a Gâmbia e a Guiné-Bissau.

O movimento surgiu em 1982 pela mão de um ex-padre católico. Os diversos acordos de paz assinados desde há 24 anos não conseguiram colocar fim ao conflito mais antigo da África Ocidental e um dos mais antigos de toda a África.

Na sua actuação, os rebeldes servem-se da permeabilidade da fronteira da Guiné com o Senegal. Os guerrilheiros usam este facto e o isolamento da região, para fugir às autoridades dos dois países. Por detrás da disputa do território de Casamança há questões económicas: a costa marítima possui importantes reservas petrolíferas. Mas há também questões culturais: os casamancences não se assumem como senegaleses porque desde logo falam outras línguas, o djola, língua étnica, e o crioulo, herança da passagem portuguesa por ali até finais do século 19.

Jorge Neto

Guiné 63/74 - P626: Estilo de comando e espírito de casta (João Tunes)

Comentário do João Tunes ao comentário do Luis Graça:

Tens razão, Luís, toda a razão. Nem sempre evitamos o risco das generalizações ou assim sermos entendidos. Confirmo aquilo que contas – houve muitas vezes, se calhar a mais das vezes, uma disponibilidade de correr riscos, todos, para ajudar outros camaradas de outras unidades em apuros. Até porque NT era NT e IN era IN. E deste um exemplo através de uma narrativa do Humberto Reis (1).

Mas havia o contrário, também. Não porque tenha havido um qualquer acaso a conglomerar almas egoístas. Apenas pelas circunstâncias e, sobretudo, pelo estilo de comando. E, como se sabe, na vida militar e sobretudo em guerra, para mais em situações de isolamento, o estilo de comando é a pedra de toque para os padrões de comportamentos e até da modelagem dos sentimentos.

Pela minha parte, vi de tudo na guerra. Preto, branco, cinzento. E o que mais vi foi cinzento. Sobretudo cinzentos e numa miríade de tonalidades. Como na sociedade. Como dentro de nós, que nunca somos todos bons nem todos maus, puxando a mor das vezes assim a fugir para um tom de cinzento. No fundo, o que mais rareia são os santos e os malvados.

O particularismo do gregarismo grupal-militar e a sua predominância em situações de absoluto isolamento, nas circunstâncias em que estivemos, era inevitável. E como a dureza da situação tinha sempre os seus gradientes, natural que, com o tempo, se acentuassem os fenómenos de hiper-identificação com os seus e o afastamento, que podia ir da frieza até ao escárnio, com os outros (e as praxes dos velhinhos para com os periquitos foi talvez o rosto mais benigno das fracturas de casta).

Com o tempo, os operacionais criavam o seu espírito de casta relativamente aos do apoio, os do mato contra os do ar condicionado em Bissau, cada companhia ou destacamento largava raízes no chão onde éramos atirados à terra.

Eu senti isso porque vivi isso. Na chegada à Guiné havia um predomínio do chamado espírito de batalhão, a guerra estava para vir e as diferenças estavam menorizadas, sentíamos que íamos todos ao mesmo e passar pelo mesmo; depois quando o batalhão avançou para a sua quadrícula, espalhando as companhias, cada uma com a sua própria realidade local, foram-se construindo, sem quase se dar por isso, identificações e diferenças; com o passar do tempo, as sinalizações de rivalidades foram-se acentuando - os da CCS eram os lordes vistos pelos que não lhe pertenciam, cada especialidade ia-se cristalizando na sua especificidade (os da saúde, os rodinhas, os das transmissões, sobretudo os cripto, um subgrupo, os operacionais, os artilheiros, por aí fora). E também se iam construindo os castelos na implantação no terreno – os do Pelundo estavam no bem-bom; os de Jolmete sentiam-se os mais sacrificados (por mais isolados); os de Có, idem idem, aspas aspas.

E são identidades que ficam para o resto da vida, pois ainda se assiste aos ecos disso nos convívios de hoje entre ex-combatentes, passados que são trinta anos e picos.

Mas, se foi como penso, o fundamental, mais determinante, entre tudo, estava no estilo de comando. E se havia uma filosofia de comando global, com pautas de comportamento, vi de tudo, entre o óptimo e o miserável. Vi oficiais e sargentos/furriéis que puxavam pelo melhor dos seus homens, desenvolvendo-lhes comportamentos saudáveis e abrangentes. E vi o oposto disto. Confirmando, num caso ou noutro, que a tropa tendia a identificar-se com o estilo do comando. Para mais, na nossa altura, havia um medonho gap cultural-social que segmentava a sociedade portuguesa. E muita da maturação e socialização dos soldados (sobretudo o grosso, os de origem camponesa) era feita em contacto, e sob batuta, dos exemplos recebidos dos oficiais e furriéis mais próximos, os seus.

Abraço. Como costume, para ti e restantes tertulianos.
João Tunes (2)
___________

Notas de L.G.

(1) Vd post de 17 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXVIII: O espírito de união dos operacionais: uma coluna de socorro à malta da CCAÇ 12

(2) Sempre lúcido e oportuno este nosso camarada !...Que pena não o ter apanhado lá para os meus lados, na zona leste!... Apesar de vizinhos (ele mora na outra banda do Rio Tejo e eu estou no lado de cá), e com duas tentativas para marcar um encontro, ainda não nos conhecemos... Ou melhor: já falámos duas vezes ou três ao telefone...

De facto, João, é(era) a liderança que faz(ia) a diferença... Os franceses têm a palavra commandement... Nós tínhamos a expressão estilo de comando... Os anglo-saxónicos falam em leadership, que não é uma atributo (como chefia) mas uma relação... Líder (do inglês antigo laeder), é aquele que vai à frente, mostrando o caminho.... Líder é aquele que se assume como tal e que é reconhecido pelo grupo como tal. Chefia (do latim, caput, que deu o francês antigo, chief, chef, cabeça)é um atributo, um cargo, uma função: etimologicamente falando, chefe é aquele cuja cabeça sobressai da multidão... Daí ter um penacho, uma coroa, um trono (muitas vezes para compensar a falta de atributos físicos, como a altura...) ou, mais prosaicamente, galões, divisas ou outros símbolos da autoridade (que é outro conceito diferente de poder, sociologicamente falando)...

Creio que só no exército de Israel os comandantes operacionais (de grupos de combate) são escolhidos, não em função de atributos sócio-económicos (como a escolaridade) mas por qualidades pessoais como liderança e por provas dadas, no terreno... Em Israel um professor universitário pode ser um simples soldado e um operário da construção civil ser um tenente... Na Guiné era raro encontrar-se militares de carreira com formação, treino e qualidades de liderança: homens como o Salgueiro Maio, já referido e citado vários vezes por camaradas nossos que estiveram no Olossato (Paulo Salgado) ou em Guidage (Albano Costa)...Milicianos conheci alguns, poucos, com capacidade de liderança...

No terreno, nunca vi nenhum oficial superior, a caminhar ao meu lado e dos meus soldados (já não digo à minha frente...). Uma única excepção: o tenente-coronel Polidoro Monteiro, um spinolista, que um belo dia me acompanhou num passeio para os lados do temível Poindon...

Todos os oficiais superiores dos batalhões a que esteve afecta a CCAÇ 12 durante o meu tempo - BCAÇ 2852 (1968/1970) e BART 2917 (1970/1972) - comandavam (!) as nossas operações através do famoso PCV (posto de comando a partir de um avioneta tipo Dornier-27)...

O estilo de comando dos oficiais militares do Estado Novo era de opereta: as excepções confirmavam a regra!... Não falo do Spínola, uma vez que nunca estive com ele em actividades operacionais... Foi-me apenas cumprimentar uma vez, já no final da minha comissão, à Ponte do Rio Undunduma! (1)...

Dos africanos que estavam connosco (da tropa-macaca aos comandos) é difícil falar: eles estavam ao serviço do exército colonial... Sempre foram auxiliares ou subalternos dos tugas, desde Teixeira Pinto... Os meus soldados eram de 2ª classe (só por que não tinham a escolaridade obrigatória!). A liderança entre eles também passava pelo estatuto social, pela linhagem... Mas havia homens com qualidades pessoais: determinação, capacidade de influenciar o comportamento do grupo, coragem física...

Quanto ao PAIGC, gostava de saber mais... Por exemplo, como é que um homem como Nino chegou aonde chegou... Há muitos mitos à volta da sua actuação como comandante... Mitos alimentados por nós mas também pelos seus homens... Eis um excelente tema para uma próxima discussão... Alguém o conheceu na frente de combate ? O PAIGC teria sido diferente com Amílcar Cabral vivo ? Mas Cabral não foi um operacional, um verdadeiro guerrilheiro como o Nino...

Como se faz um bom líder (incluindo na frente de batalha), ninguém sabe, não há receitas. A liderança continua a ser, em grande parte, um conceito de tipo caixa preta... Em todo o caso, o homem que mais sabe destes coisas em Portugal (e que, de resto, foi pioneiro na introdução do tema da liderança na formação dos oficiais portugueses durante a guerra colonial) é o meu amigo Jorge Correia Jesuíno, comandante da Marinha e professor universitário (Confessou-me há dias que nunca esteve na Guiné, e do nosso antigo império só terá conhecido, de passagem, Cabo Verde).

Enfim, eu falo destas coisas, com reserva e humildade: nunca passei de um simples comandante de secção (suplente, saltitão, sem secção certa, pião de nhicas...) e, além disso, era um combatente passivo, de arma calada, mais presa do que predador... No exército de Israel, não passaria de um soldado raso, se é que me aceitariam nas fileiras deles...

(3) Vd. post de 3 de Janeiro de 2005 > Guiné 63/74 - CDXVI: Herr Spínola na ponte do Rio Undunduma

segunda-feira, 20 de março de 2006

Guine 63/74 - P625: Projecto Guileje (10): obus 14, procura-se! (Hugo Moura Ferreira)

Guine > Guileje > c. 1970 > Dois militares portugueses, junto ao Obus 140. Segundo informação do Carlos Schwarz (mais conhecido por Peito), fundador e director executivo da AD, esta fotografia do Obus 14 foi-lhe dada por um militar português que lá esteve entre 1970 e e 1971, e qpe pertencia à CCAÇ 2617. É um dos militares que aparece na imagem, de seu nome Abílio Alberto Pimentel da Assunção. A esta companhia seguiu-se a CCAV 8350 (1972/73), a que pertenceu o Fur Mil Op Especiais Carvalho, membro da nossa tertúlia (José Casimiro Carvalho), e que foi a última, a defender Guileje.

Foto gentilmente cedida por © AD - Acção para o Desenvolvimento > Projecto Guileje (2005)


Texto do Hugo Moura Ferreira:

Caros tertulianos, Carlos Schwarz (Pepito), Jorge D. Neto e José Neto:

Como tertuliano que também sou e interessado em tudo o que se relaciona com a nossa Guiné-Bissau, viajo muito para ali através da Net, mas como são tantos os locais relacionados, de certo modo, me perdi.

Parece-me ter lido algures, no que se refere à reabilitação do quartel do Guileje, que algum dos intervenientes teria solicitado informação de alguém que soubesse onde podia existir um Obus 14, para que pudesse ali ser colocado (1).

Depois de ter lido essa solicitação (?), estive uns dias afastado da Net e próximo de um quartel de artilharia. Mais propriamente o do Campo Militar de Sta Margarida.

Ocorrendo-me precisamente o que tinha lido, desloquei-me ali e pedi informações acerca da melhor forma de obter o pretendido. Fui então levado à presença de um Major que, por impossibilidade de me facultar informação objectiva, me colocou em ligação directa com o EME [Estado Maior do Exército].

Fui atendido por um Capitão que me informou, após ouvir as minhas explicações e qual o objectivo que se pretendia, que para se obter o material em questão e outro que porventura fosse necessário (o que, em função da conversa, se me afigurou absolutamente viável), teria que ser dirigido ao Exmº. General Chefe do Estado Maior do Exercito, à atenção do Exmº. Ten-Cor Pimenta Couto, o pedido formal, por quem detenha a responsabilidade da execução do projecto.

Mais me disse que tal pedido poderia ser enviado por correio electrónico para o seguinte endereço: info@mail.exercito.pt.

Espero ter dado alguma ajuda, pois essa foi a intenção.

Abraço.
Hugo Moura Ferreira
Ex-Alf.Mil.Inf. (1965/1968)
CCaç.1621 e CCaç 6
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Nota do autor:

A CCAÇ 1621, depois de estar em Cufar e Cachil, foi terminar a comissão em Sangonhá (2). Portanto tembém está de certo modo ligada a este projecto. Eu para ali não acompanhei a Companhia porque fui transferido para Bedanda (CCAÇ 6 - antiga 4ª CC) (3)(4).

Notas de L.G.:

(1) Vd post de 16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIX: Projecto Guileje (9): obus 14, precisa-se!

(2) Fica a sul de Gadamael Porto (vd mapa de Cacoca)

(3) Vd post de 22 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXCV: CCAÇ 16121 (Cufar); CCAÇ 6 (Bedanda) (1966/68)

(4) Vd post de 10 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXVII: Cufar, a Bissalanca do Sul (Moura Ferreira)