Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969 > "O Campino era verdadeiramente um dos heróis do pelotão. Tinha pose de gingão, penteava-se imaculadamente e punha um barrete de campino, oferecido por um dos meus antecessores. Estou a ver o Brigadeiro António Spínola (1) a cravar nele o monóculo antes de lançar a sua observação cáustica quando nos visitou em Janeiro de 1969: 'Tenho a impressão que você está à frente de um circo'. Adulai vai ficar ferido no rio Gambiel, logo na primeira semana de Janeiro de 1969 bem estilhaçado nas pernas quando ripostava ao fogo dos rebeldes. Recompôs-se cedo e veio averbar páginas gloriosas de combatente destemido" (BS).
Texto e foto: © Beja Santos (2007). (Com a devida vénia ao ex-furriel miliciano Luís Casanova, que foi o fotógrafo, e que era furriel miliciano no Pel Caç Nat 52). Direitos reservados.
Texto enviado em 30 de Janeiro último. Continuação das memórias do Mário Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (2). Subtítulos da responsabilidade do editor do blogue.
Caro Luís, se tudo correr bem, esta semana enviarei ainda mais um texto. Com muito frio e tudo, espero passar uma animada semana, a próxima, em Paris, onde entro e saio a correr. A ver se tenho tempo de me passear pelo Bairro Latino, pelos alfarrabistas e visitar exposições. Escrevi ao Torcato Mendonça para ver se ele me pode ajudar acerca da Operação Fado Hilário. Vou digitalizar duas capas e envio-te os elementos correspondentes. Peço-te que não te esqueças que vou passar cerca de dois episódios em Bissau, em Março de 1969, razão pela qual espero que tu ilustres com os postais que em tempos te ofereci. Recebe um grande abraço do Mário.
Operação Anda Cá
por Beja Santos
Em 18 de Fevereiro, envio uma carta pessoal ao Pimbas (3), através de uma coluna que ia para Finete. Nela peço ao comandante de Bambandinca que me receba em privado nesse dia ou no seguinte. Terei escrito algo como isto:
- Meu Comandante, há duas noites que não durmo a pensar nesta operação que dentro de dias vem para o Cuor. O que me foi dito pelo Major Pires da Silva é que há dois destacamentos que deviam partir juntos e teme-se que não haja condições para tal. Gostava que revêssemos outras possibilidades para não deslocarmos mais de 300 militares em bicha, com todas as desvantagens. Por favor, peço-lhe como seu amigo que converse comigo em particular nas próximas horas.
Efectivamente, o convite para ir a Bambadinca chegou duas horas depois. Parti, articulando a saída com um patrulhamento a Mato de Cão, aprazado para as 10h da noite, em que passaria um forte contingente de batelões.
Tu és capaz de ter razão mas faz o que o major quer, diz-me o Pimbas
No início da conversa, expus as minhas apreensões ao Pimbas:
- O objectivo desta operação é atacar Madina/Belel e Banir (4), em dois destacamentos separados. Contava-se em cambar o Geba junto a São Belchior, e daí um destacamento partia em direcção a Madina, a partir de Missirá sairia outro destacamento em direcção a Banir. Agora, descobre-se que não há condições para cambar o Geba em São Belchior e vai tudo junto. Desculpe-me, é um erro, seria preferível o outro destacamento ir até Finete, eu preparo um grupo de picadores e guia, gente que conhece bem a região, e o destacamento vai por aí, passa por Mato de Cão e sobe até Madina. No outro destacamento, eu levo o prisioneiro de Queba Jilã (5), tenho soldados que conhecem perfeitamente esta região, dali seguiremos até Banir. O apoio aéreo não será dificultado, o inimigo será apanhado pela surpresa.
O Pimbas cofiava o bigode, aclarou a voz, olhou-me com estima e não escondeu as suas dificuldades:
- Ouve lá, tu até és capaz de ter razão mas o Pires da Silva tem desenhado esta operação com minúcia e está muito determinado. Faz-me o favor de não o causticares, actua como se ele tivesse razão.
Eu sentia o corpo moído, as pernas dormentes, a cabeça vazia, o coração atormentado, preferi renunciar a este diálogo, reservando as últimas energias do combate para a conversa que queria ter com o Pires da Silva.
O autismo e arrogância do major de operações
Era cedo, a luz da tarde começava a desmaiar, pedi para ser recebido pelo Major de operações, o que veio a acontecer. Entrei na sala de operações onde só se ciciava - falar alto era impensável - uma parede dominada por um mapa gigantesco pejado de alfinetes de cabeça verde, encarnada ou azul consoante os alvos amigos ou inimigos, e logo pensei: desta sala ao mato quantas diferenças...
O Major era um homem entusiasta, nesta altura o seu discurso era exuberante. O seu ponteiro metálico zumbia no ar, havia sempre desfechos empolgantes para o desenho das suas operações. Intitulava-as ou com uma palavra sóbria ou com duas (A e C, B e D, E e G, etc.) com sabor a criptograma, abarcando patrulhamentos ofensivos, reconhecimentos, rusgas, assaltos e golpes de mão. É nesta sala de operações que se parte para o Cuor, como para a Ponta do Inglês, Xitole ou Fiofioli ou a Mata do Poidon. Nesta tarde está visivelmente coloquial e vencedor. A operação é para começar a 22 de Fevereiro ao amanhecer. Guardo a sua voz:
- Beja, escavaque-me Madina, incendeie todas as barracas à volta, destrua o Banir. Consigo irão 300 homens.
Aproveito o balanço em que vai empolgado para lhe pedir uma recapitulação do itinerário: cambar o Geba é demorado, atravessar a bolanha de Finete a pé é cansativo, 300 homens até Missirá só a pé, mais valia aumentar a operação para 3 dias. Não, não podia ser, é dispendioso, a concentração vai acontecer ao fim da tarde de 20, avança-se até Missirá, parte-se imediatamente. Não haverá mais reuniões, o nosso Major irá falar a dois capitães, cabe ao destacamento de Missirá dar todo o apoio logístico e eu irei na vanguarda, como me compete.
A verdade que o relatório oficial da operação nunca contou
O relatório desta operação (que consta da história do BCAÇ 2852) não contava a completa verdade dos factos. É verdade que as viaturas foram buscar as tropas a Fá Mandinga, tarde e a más horas. É verdade que o Macaréu dificultou a cambança. É verdade que o martírio da viagem começou às 3h e acabou às 6h da madrugada e uma hora mais tarde chegou uma outra companhia.
Como eu suspeitava, a tropa está exausta, entrámos na época seca, vamos conhecer as quatro estações do ano num só dia, 300 homens numa floresta galeria, procurando usar de todas as cautelas, tornou a progressão lenta, incompatível com o objectivo previamente designado de atingirmos Madina ao princípio da tarde. Começaram os casos de insolação, as indisposições de todo o tipo e os nervos à flor da pele.
Quando anoitece estamos próximos de Sinchã Camisa e aí vamos pernoitar. Estou a ser tomado por uma angústia indisfarçável. Os rádios não funcionaram durante o dia todo e o PCV rondou-nos insistentemente lá do alto. Pela uma da manhã, no meio de gemidos e suspiros Bacari Soncó traz uma terrível notícia: o prisioneiro de Quebá Jilã, entregue à custódia de Ieró Seidi, acabara de fugir.
Uma das cenas mais horríveis que presenciei em toda a minha vida
De imediato, fui comunicar o sucedido aos dois capitães propondo que assim que houvesse luz eu avançaria para Madina sem perda de tempo. Ainda insisti na separação dos dois destacamentos, sem qualquer sucesso. Cerca das 5h da manhã avançámos fora de um trilho batido. Logo a seguir, Fodé Dahaba detecta uma mina antipessoal, pedi-lhe para ficar ali com a missão de afastar as tropas deste local. Relata-se que havia um segundo engenho, os meus soldados disseram-me mais tarde que não.
Toda a tropa de Missirá avançava para o acampamento de Madina, ouvia-se distintamente os pilões a funcionar e cânticos de mulheres quando uma explosão ensurdecedora encheu os ares, e após um angustiante silêncio ouviram-se os urros de dois homens. Retrocedo e vou ver uma das cenas mais horríveis que me foi dado presenciar em toda a minha vida: era uma fossa imensa, polvilhada de pedaços de metal, lá dentro agonizava um soldado e na berma gemia o Fodé sem uma perna e um pedaço de uma mão.
Lisboa > Hospital Militar Principal > 1969 > Fotografia do 2º sargento Fodé Dahaba. Pertencia ao Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Missirá ). Foi gravemente ferido em 22 de Fevereiro de 1969, na Op Anda Cá, aqui relatada.
Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.
Seguiu-se uma conversação duríssima em que eu pedia compreensão para avançar imediatamente sobre o objectivo, ao qual me foi respondido que os feridos graves tinham prioridade, que era melhor retirar para perto e pedir uma evacuação. De uma retirada para transportar feridos fomo-nos progressivamente afastando de Medina e pelas 8h da manhã eu sabia que a operação estava completamente perdida. Os rádios que não funcionaram na véspera passaram agora a funcionar, o desânimo aumenta, aqueles gritos de um soldado que vai morrer e de outro que vai ficar estropiado contagiam o moral das tropas. Já não estamos a evacuar feridos, estamos a recuar em direcção a Missirá enquanto se passa por rádio a batata quente para o PCV.
Mais uma vez as abelhas, o pânico, a debandada (6)...
Alguns soldados exaustos atiram-se para o fresco da floresta galeria e imprevistamente anuncia-se outro inimigo: as abelhas. Estala o pânico, largam-se armas, incendeia-se o capim, o pânico redobra, foge-se em todas as direcções. É nesta atmosfera caótica que desce um helicóptero de onde sai o Pimbas e se evacua um moribundo e um ferido grave. A retirada é formal, parece um exército em fuga, o dia aquece, os corpos gemem em invólucros de suor, e quando se avista Missirá guardo a recordação de uma força destroçada que se atira para o chão a pedir água fresca, a tirar as botas, os enfermeiros não param, manda-se fazer pão, toda a cerveja e refrescos que aparecem são ingeridos.
Na minha cubata reúne-se o Pimbas, os dois capitães e eu. O Pimbas insiste em que a operação recomece.
- As ordens de Bafatá (7) são para ser cumpridas. Mesmo com menos homens, vai-se partir de novo para Madina.
A discussão é interminável, há objecções que o desastre é irremedíável. Os recalcitrantes vão vencer, apoiados pelo coro de sofrimento que ecoa dentro de Missirá. E ao anoitecer o fogo de reconhecimento de Madina anuncia que os rebeldes já dispõem de informação suficiente para eliminar qualquer factor surpresa. As exigências de regressarmos ao combate vão esmorecendo. Na manhã seguinte, despeço-me da força que retira para Bambadinca e vou com os milícias recuperar o armamento que ficou abandonado no ataque das abelhas.
A 24 apresento-me na sede do batalhão para entregar todo o armamento recuperado. É aí que tomo conhecimento de que estou punido com dois dias de prisão por ter apresentado o aquartelamento de Missirá "em fracas condições de defesa e em deplorável estado de limpeza, arrumação e asseio" (2).
Quer os elefantes lutem quer copulem, quem se lixa sempre é o capim (Provérbio africano)
O Pimbas está consternado:
- Tu és o primeiro, a lista não vai ficar por aqui (8). Bom, tu podes recorrer, tens argumentos a teu favor. Desejo-te coragem.
E, com efeito, regresso imediatamente a Missirá e peço ajuda ao Furriel Pires, um hábil amanuense, um bancário que tem uma letra enfeitada e graciosa:
- Pires, vou ditar-lhe a minha resposta para a apresentar amanhã em Bambadinca, enquanto eu seguir para Mato de Cão.
Evitei defender-me com a referência a uma visita inexistente do Comandante Militar que nunca ocorrera. Limitei-me aos factos e ao conhecimento das realidades pelos superiores, com destaque para quem me punia. Dava à partida como incomprovado haver negligência nas fracas condições de defesa, demonstrando até com cartas escritas para o batalhão, a pedir insistentemente material, armamento e munições.
Recorri com veemência mas com poucas ilusões. Mais tarde virá o despacho de Hélio Felgas dando como improcedente o meu recurso. Não vou desistir de lutar, como se verá, vou até ao Comandante Militar. Será penoso, desgastante, mas estou a aprender muito com esta luta, vou conhecer o vigor de solidariedades e perceber mesmo que fui apanhado num vendaval que levará à punição de muita gente.
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 25 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1461: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (30): Spínola, o Homem Grande de Bissau, em Missirá
(2) Vd. post de 16 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1531: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (33): O Sintex: A Marinha Mercante chega até Missirá
(3) Tenente-coronel Pimentel Bastos, comandante do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Será substituído, por motivos disciplinares, a seguir ao ataque do PAIGC, de 28 de Maio de 1969, ao aquartelamento de Bambadinca. Vd. post de:
22 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1304: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (21): A viagem triunfal do Pimbas a terras do Cuor
31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1008: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2): o saudoso Pimbas, 1º comandante do BCAÇ 2852
(4) Madina e Belel: ficavam a noroeste de Missirá, já no início do Oio e no limite do Sector L1. Vd. carta de Bambadinca. Banir ou Sinhã Banir, ainda no Cuor: vd mapa de Mambonco. Sobre a caracterização do Sector L1, vd. post de 28 Abril 2005
Guiné 69/71 - VIII: O sector L1 (Xime-Bambadinca-Xitole): Caracterização (1) (Luís Graça)
(5) Vd. post de 8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1504: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (32): Aruma Sambu, o prisioneiro de Quebá Jilã
(6) Vd. post de 2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1486: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (31): Abelhas africanas assassinas
(7) Leia-se: do Tenente-Coronel Hélio Felgas, comandante do Agrupamento nº 2959 (Bafatá) a que pertencia o sector L1 (Bambadinca). Sobre a figura deste oficial superior, que se reformou como brigadeiro, e que ainda é vivo, há vários posts no nosso blogue:
24 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIX: O Hélio Felgas do nosso tempo (A. Marques Lopes)
23 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCVIII: Antologia (27): depoimento do brigadeiro Hélio Felgas (1): os aquartelamentos
25 de Novembro de 20065 > Guiné 63/74 - CCCXII: Antologia (28): depoimento de Hélio Felgas (2): as emboscadas
29 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXIII: Antologia (29): depoimento de Hélio Felgas (3): os ataques aos acampamentos do IN
9 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLIII: Antologia (32): depoimento de Hélio Felgas (4): "Ou se faz a guerra ou se acaba com ela"
13 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1365: Operação Macaréu à Vista (24): Discutindo os destinos do Cuor com o Coronel Hélio Felgas
(8) O Pimbas será também uma das vítimas da ira de Spínola,d eppois do ousado e surpreendente ataque a Bambadinca (em 28d e Maio de 1969). De resto, o mês de Fevereiro foi de má memória para as NT na Zona Leste. Logo no ínicio do mês tinha-se procedido à retirada de Madina do Boé, com as trágicas consequências que são conhecidas:
Vd. post de 2 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre de Cheche, na retirada de Madina do Boé (5 de Fevereiro de 1969)
Em Março, irá realizar-se a Operação Lança Afiada, que correu mal para o Hélio Felgas, que a comandou, e que envolveu cerca de 1100 homens, entre combatentes e carregadores. Os resultados ficaram muito aquém das expectativas do Com-Chefe. As relações entre os dois homens (Spínola e Felgas) agravaram-se depois disso, ao que parece. Mas terá sido em Madina do Boér, ou melhor, em Cheche, que começou a desgraça do Hélio Felgas (de quem iremos publicar em breve um depoimento sobre o trágico desastre do Cheche: já temos a sua competente autorização, dada por via telefónica, através da sua esposa).
Vd. posts:
31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)
15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli
9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas
9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli
14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007
quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007
Guiné 63/74 - P1541: História da CCAÇ 2700 (Dulombi, 1970/72) (Fernando Barata) (1): Introdução: a 'nossa Guiné'
Guiné > Subsector de Galomaro > Dulombi > CCAÇ 2700 (1970/72) > Cratera provocada pelo rebentamento de uma mina. A viatura que se encontra no buraco não é a que sofreu o acidente.
Em 10 de Agosto de 1970, a fim de patrulhar a região do Jifim [vd. cara de Padada], realiza-se a operação Ligeiros Quadros. Próximo daquele local é accionada uma mina a/c, resultando a morte do 1.º Cabo António Carrasqueira e 4 milícias. Foi o primeiro momento negro vivido pela nossa Companhia e particularmente pelo 2.º Pelotão, do qual o Carrasqueira fazia parte, militar muito estimado por todos os camaradas (FB).
Guiné > Zona Leste > Subsector de Galomaro > Vista aérea de Dulombi
Fotos: Fernando Barata (2007). Direitos reservados.
Damos início à publicação de um resumo da história da CCAÇ 2700 (Dulombi, Maio de 1970/ Abril de 72), unidade que pertenceu ao BCAÇ 2912, e foi render a CCAÇ 2405 do BCAÇ 2852 (1968/70), a que pertenceram os baixinhos de Dulombi, os nossos tertulianos Paulo Raposo, Jorge Rijo, Victor David e Rui Felício, os quatro alferes milicianos (1). O autor do texto é o Fernando Barata, ex-Alf Mil da CCAÇ 2700, e que nos faz, ele próprio a sua apresentação (2):
Fernando Barata nasceu a 10 de Dezembro de 1948, em Canas de Senhorim (Canas a Concelho!!!). Pai de 2 filhas, reside em Coimbra, cidade onde se radicou pouco tempo após o regresso do Ultramar. É licenciado em Relações Internacionais pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e trabalha no Gabinete de Relações Externas e Iniciativas Transfronteiriças da Comissão de Coordenação da Região Centro.
Dedicatória
A António Vasconcelos Guimarães.
A José Augusto Dias de Sousa.
A José Guedes Monteiro.
A Luís Vasco Fernandes.
A Rogério António Soares.
E, especialmente, a António Jacinto da Conceição Carrasqueira [, morto em 10 de Agostro de 1970, na região de Jifim]. Onde quer que estejas, sem que vais gostar de ler este pequeno trabalho
Agradecimentos
Este opúsculo pretende, tão somente, relatar alguns dos principais factos vividos no seio da Companhia de Caçadores n.º 2700, entre 1970 e 1972, na então província ultramarina da Guiné e particularmente naquele pequeno rincão que dava pelo nome de Dulombi.
Procurarei fazer uma descrição dos acontecimentos focada na minha experiência pessoal e tendo como apoio os documentos que se encontram depositados no Arquivo Histórico Militar, na pasta referente ao Batalhão de Caçadores n.º 2912.
Quero agradecer ao nosso companheiro de armas, hoje Major Carlos Correia, por todos os esforços desenvolvidos e pelas portas que conseguiu abrir para que esses maços de informação (o Herman diria resmas) me chegassem à mão num espaço de tempo tão curto (desde que ele se interessou pelo assunto, porque até aí, um meu primeiro requerimento já andava esquecido por alguma secretária). Para ti Correia, o meu sincero obrigado.
Queria também agradecer àquele que para nós será sempre, e com todo o respeito, o nosso Capitão, Senhor Tenente-Coronel Carlos Alberto Maurício Gomes, porque para além do que institucionalmente lhe competia - ser Comandante da Companhia - foi, para uns autêntico pai, para outros confidente, para todos um amigo. De minha parte, um sentido bem-haja.
1 - A NOSSA GUINÉ
1.1 - Breve historial
Os portugueses atingiram a costa da Guiné em 1466, com a chegada de Nuno Tristão à foz do Rio Geba, dedicando-se desde logo ao comércio, especialmente ao tráfico de escravos. Durante muito tempo a nossa presença só se fez sentir no litoral e um pouco para interior ao longo dos rios navegáveis, através dos comerciantes brancos que tiveram a particularidade de serem os pioneiros na penetração europeia nas terras da Guiné.
Só em 1630, com a criação da Capitania do Cacheu, passou a haver uma autoridade administrativa constituída. Esta autoridade tinha por missão não só dirimir desentendimentos entre dirigentes e comerciantes, como repelir ataques de outras nações.
No século XIX, as nossas tropas viram-se envolvidas em diversas campanhas para submeter quer primeiro os Papéis, quer, já no final do século, Manjacos, Balantas e Mandingas.
Após a II Guerra Mundial o continente africano entra em convulsão. Na legítima ânsia de independência, diversas colónias, tanto francesas como inglesas, entram numa fase de autodeterminação, contagiando também as nossas colónias (Salazar chamava-lhes províncias ultramarinas). A efervescência nacionalista vivida pelos vizinhos da Guiné-Conakry, que viria a alcançar a sua independência em 1958, seguida pelo Senegal no ano seguinte, tem um efeito contagiante. É neste ambiente que nasce, em 1956, o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), tendo como ideólogo o engenheiro agrónomo Amílcar Cabral, movimento que procura desenvolver a consciencialização do povo guinéu, incitando-o a resistir ao regime colonial de molde a obter a autodeterminação. Em 1961, começam a ser desencadeadas acções de terrorismo, tais como: roubos de gado e de colheitas, incêndios, ameaças e alguma violência.
O ano de 1963 marca o início das operações militares. A 21 de Janeiro, os guerrilheiros do PAIGC atacam o posto militar de Tite e fazem as primeiras emboscadas na região de Bedanda. Em Março, os navios Mirandela e Arouca são tomados, passando a dar apoio logístico aos guerrilheiros, a partir da Guiné Conakry.
A luta estende-se ao Leste com o desencadear de ataques na região de Xime, ao mesmo tempo que se começam a utilizar fornilhos e minas anticarro (a/c), o que torna ainda mais difícil a penosa tarefa das nossas tropas.
Esta luta, pela parte de Portugal, era justificada pelo sagrado princípio da defesa do território nacional, que se estendia do Minho a Timor. Pela parte dos movimentos de libertação, a guerra era justa e justificável pelo princípio da autodeterminação, com a força que lhe consignava a Carta das Nações Unidas, através do reconhecimento por parte dos países signatários, do direito dos povos disporem de si próprios.
Nestas perspectivas, a guerra colonial era considerada como subversiva por parte das autoridades portuguesas, de libertação por parte dos movimentos africanos e por último, maldita por parte daqueles (incluo-me) que todos os dias tinham que dar o corpo ao manifesto.
Dois anos antes da chegada da nossa Companhia à Guiné, assume funções de Governador da Província e cumulativamente de Comandante Chefe, o General António de Spínola, homem que pela sua personalidade e capacidade viria a ter um papel fundamental no desenrolar da guerra na Guiné. Apesar de militar, introduz uma componente política na sua actuação, quer junto das populações, quer através de negociações com Amílcar Cabral. Interpretando a célebre máxima de Mao Tsé-Tung que o guerrilheiro se deveria sentir entre a população como o peixe na água, havia, pois, que tirar a água ao peixe, isto é, dever-se-ia evitar que a população apoiasse a guerrilha. A solução encontrada foi procurar reunir as populações em aldeamentos que facilitassem o seu controlo obstaculizando o apoio e a cobertura às acções da guerrilha. Estes aldeamentos localizavam-se quase sempre junto a uma unidade militar, as habitações eram dispostas em quadrícula e dispunham de algum apoio social: escola, posto sanitário e poço.
No aspecto militar procurou modificar a situação que se vivia, caracterizada pela simples reacção às acções do PAIGC, onde apenas se pretendia a manutenção das posições no terreno. Como a iniciativa pertencia ao PAIGC, as nossas tropas sofriam ataques constantes que provocavam grande desgaste e desmoralização. Também aqui o jargão utilizado no futebol: quem joga à defesa quase sempre perde, se afigurava pertinente. É este status quo que Spínola pretende modificar com um novo conceito operacional: a ofensiva em detrimento da praxis anterior.
Em 25 de Julho de 1968, emite a Directiva 20/68. Com esta ficaria traçada a sorte de cada um de nós pois entre várias medidas estipula: "... e ocupar Galomaro com efectivo de valor que permita exercer uma acção dinâmica".
E é um facto que até finais de 1972, as forças portuguesas mantiveram a situação sob controlo, apesar de haver algumas zonas interiores dominadas pelo PAIGC, tais como os bastiões do Morés e Cantanhez.
Em 1973, com o aparecimento dos mísseis antiaéreos Strella, a Força Aérea reduziu significativamente o apoio dado às forças terrestres. A partir daqui a situação complica-se. Cria-se nas nossas tropas o desconforto por saberem que não poderiam contar com os Fiats ou com os heli-canhões para sua protecção. Atendendo à exiguidade do território a aviação estacionada em Bissau podia atingir qualquer ponto extremo do território em 10 minutos. Esta cobertura que se traduzia em segurança para as nossas tropas estava a terminar pelos sérios riscos que corriam os pilotos e pelo valor de cada avião abatido.
1.2 – Clima e vegetação
A Guiné possui um clima quente e húmido, próprio das regiões tropicais (encontra-se situada entre o Equador e o Trópico de Câncer), com duas estações: a das chuvas, que começa em meados de Maio estendendo-se até meados de Novembro, e a estação seca no restante período do ano.
A estação das chuvas é caracterizada pela alta humidade atmosférica, precipitações abundantes, variando a temperatura média à sombra entre os 26 e os 28 graus. É nesta altura que surgem os tornados, ventos que chegam a atingir os 100 kms/hora. Na estação seca as temperaturas médias rondam os 24 graus, sendo os meses de Dezembro e Janeiro os mais amenos do ano rondando temperaturas na ordem dos 15 graus.
Embora o clima da Guiné seja considerado insalubre pelas elevadas temperaturas e pela densa humidade, a região onde se situava a nossa Companhia tinha um clima mais ameno propício à adaptação do europeu.
Quanto à vegetação apresenta o território três diferentes zonas. A zona litoral é uma larga planície aluvial onde abundam palmares e mangais(*), com uma agricultura assente no milho, mandioca, arroz (preponderante na alimentação dos guineenses), amendoim (**), bananeira, laranjeira, cajueiro, ananás, mangueira e culturas hortícolas intensivas.
Na zona interior, donde sobressaem os planaltos de Bafatá e Gabu, domina a savana de arbustos e árvores isoladas. O solo é rochoso e exposto à acção dos agentes erosivos, naturalmente desfavorável à agricultura. E, por último, uma zona de transição que liga as duas zonas referidas, coberta de floresta densa, principalmente no sul e onde a presença humana é escassa. Aqui a agricultura perde importância, sendo a principal riqueza desta região as madeiras.
1.3 – População
Existia uma diversidade étnica entre os seus habitantes. Para além dos brancos, mestiços, cabo-verdianos e libaneses, da população autóctone destaco os seguintes grupos étnicos: Balantas, Fulas, Futas-Fulas, Manjacos, Mandingas, Papéis, Beafadas, Brames, Bijagós, Felupes, Baiotes, Nalus e Sossos.
Farei uma breve descrição das tribos que habitavam a nossa zona: os Fulas e os Futas-Fulas. Os Fulas subdividiam-se em Fulas-Forros e Fulas-Pretos.
Os Forros foram os primeiros a chegar ao território subjugando os Mandingas a quem passaram a designar de Fulas-Pretos. São hospitaleiros, considerando mesmo a hospitalidade como um dever sagrado. Apesar de alguma influência do Islamismo, são essencialmente fetichistas. Dedicam-se ao cultivo do arroz e à pesca (por vezes, através do envenenamento das águas). São bastante indolentes, pouco trabalhadores e viciados na cola.
Os Futas-Fulas habitavam a região do Boé. Com o abandono desta região por parte do Exército português acompanharam a debandada das nossas tropas . Têm boa compleição física, são argutos e inteligentes. Dedicam-se à agricultura, criação de gado e comércio ambulante. Alimentam-se de arroz, fundo (semelhante a alpista) e frutos. Não comem carne de porco nem bebem vinho, por o Islamismo não o permitir. Consideram-se superiores aos restantes fulas. Praticam a poligamia sendo bons pais e bons maridos, não permitindo que as mulheres pratiquem trabalhos violentos.
Entre as tribos mencionadas existem mais de vinte dialectos diferentes. O crioulo, que é uma mistura de palavras portuguesas e palavras dos dialectos locais, foi introduzido pelos colonos e permite que os nativos se entendam entre si.
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Notas de F.B.:
(*) Formação vegetal características das regiões costeiras intertropicais, constituída por florestas impenetráveis que cobrem as margens dos cursos de água. É a chamada floresta galeria.
(**) Nestas paragens conhecido como mancarra. Lembras-te, Ravasco, daquelas saborosas Luas-Cheias? Sim, se as tias na Linha desfrutavam antes do jantar, do seu Pôr-de-Sol, com os mais variados cocktails, porque não nós, também, na Linha (de combate), não poderíamos saborear um punhado de mancarra sabiamente torrada pela Binta, acompanhada por uma bazuca 'temperaturizad' pelo Matos ou pelo Vila Franca, àquela hora da noite.
(***) Foi precisamente a Companhia que nós fomos render [ CCAÇ 2405], que abandonou Madina do Boé. Aliás devem-se recordar que fomos encontrar militares extremamente desmoralizados. Na retirada, quando atravessavam o Corubal, uma Companhia que se encontrava do lado de cá, a dar-lhes protecção, começou a disparar morteirada, o que gerou o pânico (pensavam que era um ataque do inimigo), tendo perecido 40 militares afogados. O Diário de Notícias editou uma cassete vídeo “Madina do Boé - A retirada (Série Guerra Colonial),
(continua)
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Notas de L.G.:
(1) Sobre a CCAÇ 2405 (que esteve em Manosa, Galomaro e Dulombi], e os baixinhos de Dulombi, vd. os seguintes posts, entre outros:
Estórias de Dulombi, por Rui Felício:
8 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1352: Estórias de Dulombi (7): Perigos vários, a divisa dos Baixinhos de Dulombi (Rui Felício)
27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1217: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (6): Sinchã Lomá, o Spínola e o alferes que não era parvo de todo
18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1085: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (5): O improvisado fato de banho do Alferes Parrot na piscina do QG
5 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1046: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (4): a portuguesíssima arte do desenrascanço
19 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXL: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (3): O dia em que o homem foi à lua
14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVII: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (2): O voo incandescente do Jagudi sobre Madina Xaquili
9 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXIX: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (1): O nosso vagomestre Cabral
Vd. também post de 31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1006: Estórias de Mansoa (1): 'Alfero, água num stá bom' (Rui Felício, CCAÇ 2405)
O meu testemunho, de Paulo Raposo:
10 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1060: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (19): regresso a Lisboa e à vida civil (fim)
19 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1296: O cruzeiro das nossas vidas (2): A Bem da História: a partida do Uíge (Paulo Raposo / Rui Felício, CCAÇ 2405)
7 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1029: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (17): Dulombi
(2) Vd. post de 4 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1494: Tertúlia: Apresenta-se o ex-Alf Mil Fernando Barata, CCAÇ 2700 / BCAÇ 2912
Em 10 de Agosto de 1970, a fim de patrulhar a região do Jifim [vd. cara de Padada], realiza-se a operação Ligeiros Quadros. Próximo daquele local é accionada uma mina a/c, resultando a morte do 1.º Cabo António Carrasqueira e 4 milícias. Foi o primeiro momento negro vivido pela nossa Companhia e particularmente pelo 2.º Pelotão, do qual o Carrasqueira fazia parte, militar muito estimado por todos os camaradas (FB).
Guiné > Zona Leste > Subsector de Galomaro > Vista aérea de Dulombi
Fotos: Fernando Barata (2007). Direitos reservados.
Damos início à publicação de um resumo da história da CCAÇ 2700 (Dulombi, Maio de 1970/ Abril de 72), unidade que pertenceu ao BCAÇ 2912, e foi render a CCAÇ 2405 do BCAÇ 2852 (1968/70), a que pertenceram os baixinhos de Dulombi, os nossos tertulianos Paulo Raposo, Jorge Rijo, Victor David e Rui Felício, os quatro alferes milicianos (1). O autor do texto é o Fernando Barata, ex-Alf Mil da CCAÇ 2700, e que nos faz, ele próprio a sua apresentação (2):
Fernando Barata nasceu a 10 de Dezembro de 1948, em Canas de Senhorim (Canas a Concelho!!!). Pai de 2 filhas, reside em Coimbra, cidade onde se radicou pouco tempo após o regresso do Ultramar. É licenciado em Relações Internacionais pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e trabalha no Gabinete de Relações Externas e Iniciativas Transfronteiriças da Comissão de Coordenação da Região Centro.
Dedicatória
A António Vasconcelos Guimarães.
A José Augusto Dias de Sousa.
A José Guedes Monteiro.
A Luís Vasco Fernandes.
A Rogério António Soares.
E, especialmente, a António Jacinto da Conceição Carrasqueira [, morto em 10 de Agostro de 1970, na região de Jifim]. Onde quer que estejas, sem que vais gostar de ler este pequeno trabalho
Agradecimentos
Este opúsculo pretende, tão somente, relatar alguns dos principais factos vividos no seio da Companhia de Caçadores n.º 2700, entre 1970 e 1972, na então província ultramarina da Guiné e particularmente naquele pequeno rincão que dava pelo nome de Dulombi.
Procurarei fazer uma descrição dos acontecimentos focada na minha experiência pessoal e tendo como apoio os documentos que se encontram depositados no Arquivo Histórico Militar, na pasta referente ao Batalhão de Caçadores n.º 2912.
Quero agradecer ao nosso companheiro de armas, hoje Major Carlos Correia, por todos os esforços desenvolvidos e pelas portas que conseguiu abrir para que esses maços de informação (o Herman diria resmas) me chegassem à mão num espaço de tempo tão curto (desde que ele se interessou pelo assunto, porque até aí, um meu primeiro requerimento já andava esquecido por alguma secretária). Para ti Correia, o meu sincero obrigado.
Queria também agradecer àquele que para nós será sempre, e com todo o respeito, o nosso Capitão, Senhor Tenente-Coronel Carlos Alberto Maurício Gomes, porque para além do que institucionalmente lhe competia - ser Comandante da Companhia - foi, para uns autêntico pai, para outros confidente, para todos um amigo. De minha parte, um sentido bem-haja.
1 - A NOSSA GUINÉ
1.1 - Breve historial
Os portugueses atingiram a costa da Guiné em 1466, com a chegada de Nuno Tristão à foz do Rio Geba, dedicando-se desde logo ao comércio, especialmente ao tráfico de escravos. Durante muito tempo a nossa presença só se fez sentir no litoral e um pouco para interior ao longo dos rios navegáveis, através dos comerciantes brancos que tiveram a particularidade de serem os pioneiros na penetração europeia nas terras da Guiné.
Só em 1630, com a criação da Capitania do Cacheu, passou a haver uma autoridade administrativa constituída. Esta autoridade tinha por missão não só dirimir desentendimentos entre dirigentes e comerciantes, como repelir ataques de outras nações.
No século XIX, as nossas tropas viram-se envolvidas em diversas campanhas para submeter quer primeiro os Papéis, quer, já no final do século, Manjacos, Balantas e Mandingas.
Após a II Guerra Mundial o continente africano entra em convulsão. Na legítima ânsia de independência, diversas colónias, tanto francesas como inglesas, entram numa fase de autodeterminação, contagiando também as nossas colónias (Salazar chamava-lhes províncias ultramarinas). A efervescência nacionalista vivida pelos vizinhos da Guiné-Conakry, que viria a alcançar a sua independência em 1958, seguida pelo Senegal no ano seguinte, tem um efeito contagiante. É neste ambiente que nasce, em 1956, o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), tendo como ideólogo o engenheiro agrónomo Amílcar Cabral, movimento que procura desenvolver a consciencialização do povo guinéu, incitando-o a resistir ao regime colonial de molde a obter a autodeterminação. Em 1961, começam a ser desencadeadas acções de terrorismo, tais como: roubos de gado e de colheitas, incêndios, ameaças e alguma violência.
O ano de 1963 marca o início das operações militares. A 21 de Janeiro, os guerrilheiros do PAIGC atacam o posto militar de Tite e fazem as primeiras emboscadas na região de Bedanda. Em Março, os navios Mirandela e Arouca são tomados, passando a dar apoio logístico aos guerrilheiros, a partir da Guiné Conakry.
A luta estende-se ao Leste com o desencadear de ataques na região de Xime, ao mesmo tempo que se começam a utilizar fornilhos e minas anticarro (a/c), o que torna ainda mais difícil a penosa tarefa das nossas tropas.
Esta luta, pela parte de Portugal, era justificada pelo sagrado princípio da defesa do território nacional, que se estendia do Minho a Timor. Pela parte dos movimentos de libertação, a guerra era justa e justificável pelo princípio da autodeterminação, com a força que lhe consignava a Carta das Nações Unidas, através do reconhecimento por parte dos países signatários, do direito dos povos disporem de si próprios.
Nestas perspectivas, a guerra colonial era considerada como subversiva por parte das autoridades portuguesas, de libertação por parte dos movimentos africanos e por último, maldita por parte daqueles (incluo-me) que todos os dias tinham que dar o corpo ao manifesto.
Dois anos antes da chegada da nossa Companhia à Guiné, assume funções de Governador da Província e cumulativamente de Comandante Chefe, o General António de Spínola, homem que pela sua personalidade e capacidade viria a ter um papel fundamental no desenrolar da guerra na Guiné. Apesar de militar, introduz uma componente política na sua actuação, quer junto das populações, quer através de negociações com Amílcar Cabral. Interpretando a célebre máxima de Mao Tsé-Tung que o guerrilheiro se deveria sentir entre a população como o peixe na água, havia, pois, que tirar a água ao peixe, isto é, dever-se-ia evitar que a população apoiasse a guerrilha. A solução encontrada foi procurar reunir as populações em aldeamentos que facilitassem o seu controlo obstaculizando o apoio e a cobertura às acções da guerrilha. Estes aldeamentos localizavam-se quase sempre junto a uma unidade militar, as habitações eram dispostas em quadrícula e dispunham de algum apoio social: escola, posto sanitário e poço.
No aspecto militar procurou modificar a situação que se vivia, caracterizada pela simples reacção às acções do PAIGC, onde apenas se pretendia a manutenção das posições no terreno. Como a iniciativa pertencia ao PAIGC, as nossas tropas sofriam ataques constantes que provocavam grande desgaste e desmoralização. Também aqui o jargão utilizado no futebol: quem joga à defesa quase sempre perde, se afigurava pertinente. É este status quo que Spínola pretende modificar com um novo conceito operacional: a ofensiva em detrimento da praxis anterior.
Em 25 de Julho de 1968, emite a Directiva 20/68. Com esta ficaria traçada a sorte de cada um de nós pois entre várias medidas estipula: "... e ocupar Galomaro com efectivo de valor que permita exercer uma acção dinâmica".
E é um facto que até finais de 1972, as forças portuguesas mantiveram a situação sob controlo, apesar de haver algumas zonas interiores dominadas pelo PAIGC, tais como os bastiões do Morés e Cantanhez.
Em 1973, com o aparecimento dos mísseis antiaéreos Strella, a Força Aérea reduziu significativamente o apoio dado às forças terrestres. A partir daqui a situação complica-se. Cria-se nas nossas tropas o desconforto por saberem que não poderiam contar com os Fiats ou com os heli-canhões para sua protecção. Atendendo à exiguidade do território a aviação estacionada em Bissau podia atingir qualquer ponto extremo do território em 10 minutos. Esta cobertura que se traduzia em segurança para as nossas tropas estava a terminar pelos sérios riscos que corriam os pilotos e pelo valor de cada avião abatido.
1.2 – Clima e vegetação
A Guiné possui um clima quente e húmido, próprio das regiões tropicais (encontra-se situada entre o Equador e o Trópico de Câncer), com duas estações: a das chuvas, que começa em meados de Maio estendendo-se até meados de Novembro, e a estação seca no restante período do ano.
A estação das chuvas é caracterizada pela alta humidade atmosférica, precipitações abundantes, variando a temperatura média à sombra entre os 26 e os 28 graus. É nesta altura que surgem os tornados, ventos que chegam a atingir os 100 kms/hora. Na estação seca as temperaturas médias rondam os 24 graus, sendo os meses de Dezembro e Janeiro os mais amenos do ano rondando temperaturas na ordem dos 15 graus.
Embora o clima da Guiné seja considerado insalubre pelas elevadas temperaturas e pela densa humidade, a região onde se situava a nossa Companhia tinha um clima mais ameno propício à adaptação do europeu.
Quanto à vegetação apresenta o território três diferentes zonas. A zona litoral é uma larga planície aluvial onde abundam palmares e mangais(*), com uma agricultura assente no milho, mandioca, arroz (preponderante na alimentação dos guineenses), amendoim (**), bananeira, laranjeira, cajueiro, ananás, mangueira e culturas hortícolas intensivas.
Na zona interior, donde sobressaem os planaltos de Bafatá e Gabu, domina a savana de arbustos e árvores isoladas. O solo é rochoso e exposto à acção dos agentes erosivos, naturalmente desfavorável à agricultura. E, por último, uma zona de transição que liga as duas zonas referidas, coberta de floresta densa, principalmente no sul e onde a presença humana é escassa. Aqui a agricultura perde importância, sendo a principal riqueza desta região as madeiras.
1.3 – População
Existia uma diversidade étnica entre os seus habitantes. Para além dos brancos, mestiços, cabo-verdianos e libaneses, da população autóctone destaco os seguintes grupos étnicos: Balantas, Fulas, Futas-Fulas, Manjacos, Mandingas, Papéis, Beafadas, Brames, Bijagós, Felupes, Baiotes, Nalus e Sossos.
Farei uma breve descrição das tribos que habitavam a nossa zona: os Fulas e os Futas-Fulas. Os Fulas subdividiam-se em Fulas-Forros e Fulas-Pretos.
Os Forros foram os primeiros a chegar ao território subjugando os Mandingas a quem passaram a designar de Fulas-Pretos. São hospitaleiros, considerando mesmo a hospitalidade como um dever sagrado. Apesar de alguma influência do Islamismo, são essencialmente fetichistas. Dedicam-se ao cultivo do arroz e à pesca (por vezes, através do envenenamento das águas). São bastante indolentes, pouco trabalhadores e viciados na cola.
Os Futas-Fulas habitavam a região do Boé. Com o abandono desta região por parte do Exército português acompanharam a debandada das nossas tropas . Têm boa compleição física, são argutos e inteligentes. Dedicam-se à agricultura, criação de gado e comércio ambulante. Alimentam-se de arroz, fundo (semelhante a alpista) e frutos. Não comem carne de porco nem bebem vinho, por o Islamismo não o permitir. Consideram-se superiores aos restantes fulas. Praticam a poligamia sendo bons pais e bons maridos, não permitindo que as mulheres pratiquem trabalhos violentos.
Entre as tribos mencionadas existem mais de vinte dialectos diferentes. O crioulo, que é uma mistura de palavras portuguesas e palavras dos dialectos locais, foi introduzido pelos colonos e permite que os nativos se entendam entre si.
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Notas de F.B.:
(*) Formação vegetal características das regiões costeiras intertropicais, constituída por florestas impenetráveis que cobrem as margens dos cursos de água. É a chamada floresta galeria.
(**) Nestas paragens conhecido como mancarra. Lembras-te, Ravasco, daquelas saborosas Luas-Cheias? Sim, se as tias na Linha desfrutavam antes do jantar, do seu Pôr-de-Sol, com os mais variados cocktails, porque não nós, também, na Linha (de combate), não poderíamos saborear um punhado de mancarra sabiamente torrada pela Binta, acompanhada por uma bazuca 'temperaturizad' pelo Matos ou pelo Vila Franca, àquela hora da noite.
(***) Foi precisamente a Companhia que nós fomos render [ CCAÇ 2405], que abandonou Madina do Boé. Aliás devem-se recordar que fomos encontrar militares extremamente desmoralizados. Na retirada, quando atravessavam o Corubal, uma Companhia que se encontrava do lado de cá, a dar-lhes protecção, começou a disparar morteirada, o que gerou o pânico (pensavam que era um ataque do inimigo), tendo perecido 40 militares afogados. O Diário de Notícias editou uma cassete vídeo “Madina do Boé - A retirada (Série Guerra Colonial),
(continua)
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Notas de L.G.:
(1) Sobre a CCAÇ 2405 (que esteve em Manosa, Galomaro e Dulombi], e os baixinhos de Dulombi, vd. os seguintes posts, entre outros:
Estórias de Dulombi, por Rui Felício:
8 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1352: Estórias de Dulombi (7): Perigos vários, a divisa dos Baixinhos de Dulombi (Rui Felício)
27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1217: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (6): Sinchã Lomá, o Spínola e o alferes que não era parvo de todo
18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1085: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (5): O improvisado fato de banho do Alferes Parrot na piscina do QG
5 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1046: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (4): a portuguesíssima arte do desenrascanço
19 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXL: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (3): O dia em que o homem foi à lua
14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVII: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (2): O voo incandescente do Jagudi sobre Madina Xaquili
9 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXIX: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (1): O nosso vagomestre Cabral
Vd. também post de 31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1006: Estórias de Mansoa (1): 'Alfero, água num stá bom' (Rui Felício, CCAÇ 2405)
O meu testemunho, de Paulo Raposo:
10 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1060: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (19): regresso a Lisboa e à vida civil (fim)
19 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1296: O cruzeiro das nossas vidas (2): A Bem da História: a partida do Uíge (Paulo Raposo / Rui Felício, CCAÇ 2405)
7 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1029: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (17): Dulombi
(2) Vd. post de 4 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1494: Tertúlia: Apresenta-se o ex-Alf Mil Fernando Barata, CCAÇ 2700 / BCAÇ 2912
quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007
Guiné 63/74 - P1540: Os pára-quedistas também choram: Operação Pato Azul ou a tragédia de Gampará, em 4 de Março de 1972 (Victor Tavares, CCP 121)
Guiné > Bissau > Base Aérea nº 12 > O repouso dos guerreiros: pára-quedistas da CCP 121. "Daniel Piedade, com camisola branca descosida no ombro, Victor Batista, no meio, António Marques, o Chamusca, já falecido, a seu lado António Martins e, o que está sentado na mesa, sou eu" (VT).
Guiné > Bissau > Base Aérea nº 12 > O ex-1º Cabo pára-quedista Victor Tavares (BCP 12, CCP 121, Guiné 1972/74).
Fotos e texto: © Victor Tavares (2006). Todos os direitos reservados.
CCP 121 - Março de 1972 > Actividade operacional em Gampará
por Victor Tavares (1)
No dia primeiro do mês de Março de 1972, a CCP 121, comandada pelo Capitão Pára-quedista Moura Martins, seguiu em LDG com partida de Bissau, com destino à península de Gamparà [, ma margem esquerda do Rio Corubal, mais ou menos frente à Ponta do Inglês, vd. carta de Fulacunda] onde permaneceu durante cerca de dois meses, daí partindo para acções de patrulhamento, emboscadas e outras operações de grande envergadura.
Tendo chegado aqui ao meio da tarde, saiu de seguida para um patrulhamento de onde regressou ao início da noite. Aí pernoitou para, na madrugada do dia 2 de Março, partir para o segundo patrulhamento, feito pelo 2º pelotão da CCP 121, o meu grupo de combate.
Preparando a visita do Homem Grande de Bissau
Saíndo pela retaguarda do destacamento, patrulhámos uma vasta área com vários Tabancais e Tabancas isoladas. Fizemo-lo sempre a corta mato por forma a não sermos detectados, emboscámos em vários locais sem que tivessemos referenciado algo de suspeito. A população movimentava-se para algumas lavras onde efectuavam a sementeira de milho e outros cereais.
Notava-se naquela península uma grande dinâmica, comparada com outras zonas do território até pela quantidade de gado bovino que se apascentava nas bolanhas e na orla da mata.
Regressámos ao destacamento já era noite, aonde pernoitámos em pequenas valas individuais que apenas davam para colocar o colchão pneumático, para na madrugada dia seguinte, 3 de Março, iniciarmos novo patrulhamento. Desta vez para o lado oposto àquele do dia anterior. Decorreu sem incidentes, mas com algumas movimentações suspeitas por parte de alguns elementos da população local que, ao contrário do dia anterior, se mostravam menos dinâmicos e mais expectantes, algo estariam a preparar. Regressámos ao destacamento [de Gampará] no final da tarde deste mesmo dia, sem termos problemas.
Quero também dizer que aqui, em Gamparà, os patrulhamentos eram feitos a nível de pelotão. Sempre que saíamos era para zonas diferentes e de uma forma geral regressavamos todos ao destacamento, onde se pernoitava.
Durante estes primeiros dias nenhum grupo de combate da CCP121 teve qualquer contacto com as forças do PAIGC, o que era de estranhar, uma vez que anteriormente as forças do nosso Exército sempre que saíam eram atacadas. Por essa razão é que fomos colocados na península.
Outra das razões era a visita, a este local, do Governador e Comandante Chefe das Forças Armadas na Guiné, General António Spínola. Como toda a gente sabe, a envolvência e a quantidade de militares nestas visitas de propaganda psicológica às populações apenas tinham eco na comunicação social próxima do regime.
No dia 4 de Março de 1972, o comandante chefe António Spínola visitou Gampará, em mais uma acção de psico a esta zona. A visita não correu ao agrado da população, uma vez que as promessas feitas anteriormente pelo Homem Grande ainda não tinham sido compridas, causando algum descontentamento e alarido no meio dos residentes. Isso foi notório durante o discurso, e ao mesmo tempo também preocupante.
Operação Pato Azul (A operação que o primeiro bigrupo da CCP 121 acabou por não executar)
Entretanto e depois do general do pingalim e monóculo abandonar a península, é dada ordem para o 1º Bigrupo de Combate da CCP 121, composto pelo primeiro e segundo pelotões, se preparar para uma operação de três dias, na qual irão participar também a Companhia de Caçadores Pára-quedistas 123, além de outras forças. Foi dada ordem de saída cerca das 23 horas. Saímos do destacamento de Gampará rumo à Pedra de Agulha e desta até a margem do rio Corubal onde aguardaríamos uma LDG [Lancha de Desembarque Grande] que transportava a CCP 123 e outras forças vindas de Bissau para desenvolver a operação Pato Azul na zona de Tite.
Noite dentro, umas vezes utilizando a picada existente e outras, como era habitual, abrindo caminho paralelamente a estas, lá fomos progredindo na marcha possível com ligação por contacto. Embora fosse uma noite com alguma claridade, esta só se notava quando passávamos nas clareiras. Nesta altura andávamos há cerca de 45 minutos até que algo inesperado aconteceu: seguia na frente a 1ª Secção do 2º Pelotão da qual eu fazia parte e na altura seguíamos do lado direito da picada existente quando surgiu a palavra da retaguarda dada pelo nosso Comandante de Companhia, Capitão Moura Martins, informando para cortarmos à esquerda.
Seguia um pouco à minha frente o Comandante do 2º Pelotão, Alferes Afonso Abreu, que, ou não percebendo a ordem ou para confirmar a mesma, deu meia volta sobre a sua perna esquerda e colocou o seu pé direito do outro lado da picada, num trilho pedonal. Ao fazê-lo e nesse exacto momento deu-se uma explosão, seguida de gemidos de sofrimento do nosso Alferes.
Colocámo-nos em guarda a manter segurança enquanto os nossos enfermeiros - por casualidade os dois com o mesmo apelido, Sousa - se encarregavam de socorrer o ferido, fazendo todos os possíveis para que com garrotes, soro e injecções o não deixassem esvaír-se em sangue, uma vez que tinha ficado sem uma parte da perna, mais precisamente, logo a seguir ao cano da bota. Foi o resultado da explosão da mina anti-pessoal que o nosso Alferes tinha accionado. Impressionante foi que a partir desse incidente grave, o mesmo que era bastante gago, enquanto estava a ser socorrido pelos enfermeiros do 1º e 2º Pelotão, chamava a atenção para termos cuidado com a segurança montada, sem sequer gaguejar um pouco.
Entretanto improvisou-se uma maca e foi pedido pessoal para o transporte da mesma, tudo isto por volta das 24 horas do dia 4 para o dia 5 de Março, estava tudo preparado e organizado iniciando-se a deslocação da maca com o ferido.
Andados os primeiros dois ou três metros, um dos militares pára-quedistas que pegava na maca accionou um fornilho com uma potência tão grande que viria a matar seis militares pára-quedistas, incluindo o ferido, Alferes Abreu. Foram momentos de grande ansiedade e de terror, gemidos, gritos de sofrimento, de todos os lados , uns cegos - caso do Inês - , outros feridos de morte - caso do Furriel Cardiga Pinto que com as suas mãos no abdómen segurava aquilo que restava dos seus órgãos...
O Sousa, Enfermeiro, que até aí tinha sido um herói no socorro ao Alferes Abreu e que seguia ao lado da maca segurando o frasco do soro, viria a morrer ficando sem um dos braços. A cabeça e rosto ficaram bastante mal tratados, ficando completamente irreconhecível, o mesmo se passando com o Alferes Abreu. Identifiquei os dois no Hospital Militar de Bissau para onde fui evacuado de helicóptero junto com alguns dos
corpos, incluindo estes dois últimos.
No local, os que escaparam à explosão, sem descurar a segurança, foram socorrendo os feridos mais graves dentro das possibilidades da ocasião, tendo sido pedido transporte para socorro ao destacamento de onde tínhamos partido (Gampará), que viriam com uma viatura para transportar os mortos e feridos mais graves. Mesmo assim um dos nossos camaradas que tinha sido projectado pela explosão para uma distância considerável, viria a ficar até à madrugada no local onde morreu por não ter sido encontrado aquando do reconhecimento. Ficou espetado numa palmeira a 2 a 3 metros de altura, de onde foi recolhido pelos camaradas ao clarear do dia. Tinha sido feita a contagem várias vezes e faltava sempre um, quando se verificou que esse militar que faltava era o 1º Cabo Pára-quedista Almeida.
Desta tragédia para a família pára-quedista, que jamais esquecerá este dia , resultaram:
(i) seis mortes, Alf Mil Paraquedista Abreu, Furriel Pára-quedista Cardiga Pinto, PCB/Pára-quedista 47/68 Santos , PCB/Pára-quedista 129/69 Almeida , Sol/Pára-quedista 318/69 Jesus , PCB/Pára-quedista 412/69 Sousa;
(ii) 2 feridos graves e nove com menos gravidade , Furriel Pára-quedista Casalta (Comandante da 1ª secção do 2º Pelotão) , Sol Pára-quedista Inês (evacuado para a metrópole ), Ferreira , Tavares, Ventura, e 1º Cabo Pára-quedista Figueiredo, todos do 2º Pelotão, e o Sold Pára-quedista Salgado - Estilhaço de alcunha - do 1º Pelotão, faltando três por identificar pois, passado todos estes anos, já não me recordo, e ficará para sempre uma saudade enorme D’AQUELES EM QUEM PODER NÃO TEVE A MORTE.
Carregámos os mortos e feridos debaixo de uma nuvem enorme de pó e fumo, para a viatura chegada do destacamento, com um cheiro terrível a pólvora a sangue e a morte. Foram momentos horríveis que os Pára-quedistas da CCP121 tiveram que passar naquela noite triste e inesquecível de Março de 1972, que nunca aqueles que lá estiveram irão esquecer.
Os pára-quedistas também choram
Regressados ao destacamento, os feridos mais graves foram conduzidos para tendas aonde lhes foram prestados os primeiros socorros possíveis, era um amontoado de corpos a serem tratados pelos enfermeiros e socorristas, pára-quedistas e do Exército, que não tinham mãos a medir para aqueles que mais sofriam: uns choravam de sofrimento - porque OS PÁRA-QUEDISTAS TAMBÉM CHORAM! - a perda de camaradas, amigos e companheiros principalmente nestes momentos de tragédia, outros gritavam de dores e alguns, já quase moribundos, em agonia de morte, poucos minutos ou horas lhes restavam de vida, sofriam em silêncio porque já não tinham forças para dar qualquer sinal.
Infelizmente acompanhei muito de perto toda esta tragédia, porque depois de ter ajudado a socorrer os meus camaradas no local e termos feito o regresso, e os ajudar a colocar nos locais aonde foram socorridos, comecei a sentir frio e a tremer. Como me encontrava todo sujo de poeira e sangue, fui lavar-me a um bidão, ao tirar o dólmen - casaco camuflado - sentia algum ardor nas costas e braços e no ombro esquerdo. Ao passar a mão notei logo o que era, estava todo carimbado de estilhaços e estava a perder sangue, daí a razão de estar com tremuras e frio. Antes não liguei porque, como carreguei alguns feridos e mortos, pensei sempre que este sangue seria dos meus camaradas.
Quero referir que, aquando do rebentamento do fornilho accionado, eu e alguns camaradas fomos projectados para o meio da mata pelo sopro da potente explosão. Estou a recordar-me por exemplo do Capitão pára-quedista Moura Martins, meu comandante de companhia, e dos pára-quedistas Liam e Ferreira e do PCB enfermeiro Pára-quedista Sousa. Este morreu de imediato. Foram para uma distância de mais de 10 a 15 metros, caindo um deles em cima de mim, fracturando-me duas costelas, o que me levou a ser evacuado no dia seguinte para o HMB 241 em Bissau onde permaneci durante dois dias, sendo posteriormente transferido para a enfermaria da BA 12 - Base Aérea 12 - onde eram tratados e recuperados os pára-quedistas feridos.
No mesmo dia 5, no Hospital, fui solicitado para ir fazer a identificação dos corpos
Uma vez que o seu estado era arrepiante, além de duvidoso para quem não tinha acompanhado toda esta tragédia, era difícil fazê-lo com exactidão tal era o estado de pelo menos de dois dos nossos camaradas.
Entretanto já na enfermaria da BA 12, passados uns dias fomos visitados pelo General António Spínola, Comandante-Chefe da Z.A.C.V.G. e Governador da Guiné, acompanhado pelas senhorinhas do M.N. F. [ Movimento Nacional Feminino], para se inteirar do estado dos pára-quedistas feridos em Gampará.
Como nada me impedia de andar de pé, as dores mais fortes eram na caixa torácica
E tanto valia estar deitado como não, tinha sempre dores. Na ocasião desta tão ilustre visita, encontrava-me perto da porta, e ao deparar com a aproximação destes visitantes, não fiquei lá muito a vontade, estava de camisola branca - hoje chama-se T-Shirt - e calças azuis de fato de treino. No entanto coloquei-me na posição de sentido enquanto ele me perguntava aonde se encontravam os feridos. Indiquei-lhe o local e acompanhei a sua rápida visita cumprimentando a despachar os doente - parecia muito ocupado -, demorando dois ou três minutos, e acabando por dizer à saída:
- É só isto, pensei que fosse mais grave.
Ao ouvir isto, não por mim mas por alguns dos meus companheiros que se encontravam bastante mal tratados, apeteceu-me dizer-lhe que quem devia lá estar era o senhor general, mas com isso só podia arranjar era uma sanção disciplinar, mesmo revoltado com o que tinha ouvido, contive-me, despedindo-me das madames que acabaram por nos deixarem uns livros de contos da carochinha e valha-nos Deus que se derretiam em simpatia que era de meter nojo.
Enfim, eram outros tempos... Passados cerca de oito dias regressei ao pelotão, embora ainda em convalescença, e aí acabei a minha recuperação.
Estimado amigo e camarada Luís, envio-te mais este texto para se assim o entenderes publicá-lo, estás à vontade. Despeço-me com um abraço de amizade para ti e todos Tertulianos.
Vitor Tavares, que também é amigo e vizinho do Paulo Santiago.
P.S. - Quero também informar-vos que a minha companhia - a CCP 121 - já teve o seu encontro anual em Tancos e antes do almoço reunimos para falar sobre os mortos de Guidaje, aonde esteve presente o meu camarada de armas na reserva Sargento-Mor Pára-quedista Manuel Rebocho que, a nosso pedido, fez o ponto da situação. Em meu entender as coisas estão a correr bem. O pessoal está a despertar repentinamente , tenho recebido telefonemas vários, atéde camaradas pára-quedistas que estiveram noutras províncias e de outros que ainda estão ainda no activo.
Vamos ver quem mais se juntará a nás nesta justa iniciativa. Será que os organismos oficiais acordam ?
____________
Notas de L.G.:
(1) Vd. posts anteriores:
8 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1350: Ataque ao navio patrulha no Rio Cacheu (Victor Tavares)
25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os pára-quedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto
9 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1260: Guidaje, de má memória para os pára-quedistas (Victor Tavares, CCP 121) (2): o dia mais triste da minha vida
26 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1316: A participação dos pára-quedistas na Operação Ametista Real: assalto à base de Kumbamory, Senegal (Victor Tavares, CCP 121)
Guiné 63/74 - P1539: Embaixador António Pinto da França agradece-nos (Beja Santos)
Capa do livro de António Pinto da França, Angola, dia-a-dia de um Embaixador, 1983-1989. Lisboa: Prefácio. 2004. Pinto da França foi o embaixador de Portugal na Guiné-Bissau, de 1977 a 1980, e em Angola entre 1983 e 1988.
Foto: O Templário (2005) (com a devida vénia...).
Foto: O Templário (2005) (com a devida vénia...).
O Beja Santos, em email de 24 de Janeiro último, fez-nos chegar uma nota de agradecimento do Embaixador António Pinto da França:
Caro Senhor Beja dos Santos: Só hoje e por puro acaso fui dar no Google com o seu artigo sobre as minhas memórias da Guiné-Bissau (1) que me deixou encantado por tão bem me ter compreendido. Comoveu-me aquilo que escreve num português tão bonito (2). Claro que estas minhas memórias, por tratarem da Guiné, tiveram bem menor saída que as minhas memórias de Angola (3) que talvez também tenha lido. Eu, por mim, até gosto mais do primeiro do que deste último.
Com amigas lembranças
António Pinto da França (4)
____________
Notas de L.G.:
(1) Em tempos de Inocência – Um Diário da Guiné-Bissau, de António Pinto da França. Lisboa: Prefácio, 2005.
(2) Vd. post de 25 Setembro 2006 > Guiné 63/74 - P1113: Dez razões para ler 'Em tempos de inocência', diário do Embaixador A. Pinto da França (Beja Santos)
(3) Angola, dia-a-dia de um Embaixador, 1983-1989. Lisboa: Prefácio. 2004. 305 pp. (Prefácio de Marcello Mathias).
4) Outras referências ao autor, no nosso blogue > Vd. posts de:
1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1332: Antologia (55): Bambadinca, a guerra aqui tão a sério, tão cruel (Embaixador António Pinto da França)
22 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1102: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (12): Os meus irmãos de Finete
Caro Senhor Beja dos Santos: Só hoje e por puro acaso fui dar no Google com o seu artigo sobre as minhas memórias da Guiné-Bissau (1) que me deixou encantado por tão bem me ter compreendido. Comoveu-me aquilo que escreve num português tão bonito (2). Claro que estas minhas memórias, por tratarem da Guiné, tiveram bem menor saída que as minhas memórias de Angola (3) que talvez também tenha lido. Eu, por mim, até gosto mais do primeiro do que deste último.
Com amigas lembranças
António Pinto da França (4)
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Notas de L.G.:
(1) Em tempos de Inocência – Um Diário da Guiné-Bissau, de António Pinto da França. Lisboa: Prefácio, 2005.
(2) Vd. post de 25 Setembro 2006 > Guiné 63/74 - P1113: Dez razões para ler 'Em tempos de inocência', diário do Embaixador A. Pinto da França (Beja Santos)
(3) Angola, dia-a-dia de um Embaixador, 1983-1989. Lisboa: Prefácio. 2004. 305 pp. (Prefácio de Marcello Mathias).
4) Outras referências ao autor, no nosso blogue > Vd. posts de:
1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1332: Antologia (55): Bambadinca, a guerra aqui tão a sério, tão cruel (Embaixador António Pinto da França)
22 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1102: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (12): Os meus irmãos de Finete
terça-feira, 20 de fevereiro de 2007
Guiné 63/74 - P1538: Bissau: O melhor Carnaval do Mundo (Paulo e São Salgado)
iiiiiiiiiiii
Guiné -Bissau > Bissau > Carnaval de 2005.
1. Mensagem do Paulo Salgado:
Caro Luís,
Junto remeto um breve texto e fotos sobre o Carnaval em Bissau ( a Conceição e eu já assistimos a vários carnavais, sendo o primeiro em 1991 - o que nos deixou perplexos pela novidade: alegria, cor, ritmo ...)
Um abraço
Conceição e Paulo
Texto e fotos: © Paulo Salgado (2007). Direitos reservados.
2. O Melhor Carnaval do Mundo
por Paulo e São Salgado
Hoje é dia de Carnaval, terça-feira.
Por cá, esta modorra de chuva impede os foliões de saírem para as ruas, meio pintados, ou desnudados, com folhos ou penugens cobrindo-lhes os corpos brancos, e darem largas (pelo menos a alguns) de uma alegria conquistada pela imitação, as mais das vezes importada do Brasil brasileiro.
Longe vão os tempos do Entrudo – nas aldeias e vilas e cidades deste nosso querido Portugal – onde a imaginação se decalcava nos caretos, na dança das fitas, dos trajes grotescos (havia muitos que se mascaravam de mulher, quiçá com um pouco de feminismo que há em cada homem), na queima do diabo, nas cantigas à desgarrada com vozes roufenhas à porta das moçoilas que adivinhavam o convite por detrás daquela vozearia nocturna que acontecia durante a quadra entrudesca.
Por terras da Guiné, da que se revelou após a independência, o Carnaval é genuíno, é puro, é belo, é ternurento – e organizado (que o diga eu: queriam prender-me e conduzir-me à esquadra por não possuir autorização paga para colher das melhores fotos que já colhi)! Desfilam os grupos dos bairros da capital (Belém, Missira, Ajuda, Cupelon, etc.) e também de outras regiões (Bissorã, Mansoa, Bafatá…e até dos Bijagós) que deixam arrebatada qualquer alma que por ali esteja, provindo das Europas ou das Américas – numa garbosa e vistosa procissão, compassada, marcada pelo ritmo de tambores, bombolons, instrumentos de sopro feitos a partir de cornos de vaca ou de búfalo (sim, há búfalos no sul da Guiné – para quem não saiba: trata-se de búfalos pequenos que atravessam a fronteira e vão até ao Futa-Djalon, que, dizem-me serem muito interessantes do ponto de vista da fauna que estão embrenhados nas matas, e que alguns caçadores idos do nosso Portugal têm a sorte de abater…).
Percorrerão, a partir do cais do Pidjiguiti, a Avenida Amílcar Cabral (era da Pensão Central, junto à Sé Catedral e aos Correios, que este escriba apreciava tudo), a Praça dos Heróis da Pátria, onde, diante do Palácio da Presidência (agora esburacado, picado de balas e morteiradas – guerra de 1998 - esventrado, meio destelhado), um palanque está montado para a decisão final, a qual é a de premiar o melhor grupo, a melhor máscara (ah, as máscaras, meus Caros, são lindas, perfeitas, críticas, mordazes), a rapariga mais bem enfeitada, o rapaz tocador mais animado, que sabemos nós?! e, prossegue, sempre em ritmo cadenciado, sonorizado, colorido, para os lados de Brá, passando no mercado Bandim, e indo pela avenida fora a caminho de um fim que se repetirá no ano seguinte, num reencontro colectivo – pela paz, pela harmonia, pelo gosto de viver – apesar de tudo!
O trânsito pára. A população deslumbra-se, os mirones partilham o ritmo, o vinho de palma escorre…são os balantas, os pepel (papeis, dizemos vulgarmente) e os Bijagós que dominam este cortejo.
Esta genuinidade, esta beleza, esta algazarra abrangente, animam, contagiam, fascinam, seduzem. É o Povo a dizer o que lhe vai na alma, a pronunciar a sua alegria, a mostrar a sua força anímica, a criticar em cartazes e máscaras o que os seus representantes representam.
Crede: para mim, que nunca fui ao Rio ver as mulatas com as mamas e o resto que os deuses lhes deram à mostra, nunca fui a Veneza admirar as poses selectas das senhoras descendentes das prostitutas dos doges, nunca me encharquei em cervejas em Munique ao lado dos valentões enormes – mas que tudo se vê nas televisões – para mim, dizia, este é o melhor Carnaval do Mundo.
___________
Nota de L.G.:
(1) O Paulo Salgado regressou, recentemente, de Bissau, após mais um difícil ano de cooperação, na área da saúde. Para o Paulo (e a sua inseparável São, economista), a Guiné-Bissau é já o seu segundo país. O Paulo, profissionalmente, é administrador hospitalar. Ele e a São vivem em Vila Nova de Gaia. O Paulo foi Alferes miliciano na CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72), que teve como comandante o capitão de cavalaria Mário Tomé, hoje coronel na reforma.
Vd. um dos seus últimos posts > 11 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1421: Crónicas de Bissau (o 'bombolom' do Paulo Salgado) (14): Um final com homenagem a um homem grande, Fernando Sani
Guiné 63/74 - P1537: Ex-1º cabo enfermeiro da CART 3492/BART 3873 há 23 anos na Austrália (Arthur Pereira / Sousa de Castro / Mexia Alves)
Vila Nova de Gaia > Carvalhos > Quinta da Paradela > 10 de Junho de 1989 > 1º Convívio do pessoal BART 3873 > Lá está o grandalhão do Mexia Alves, de barbas, o 1º da 2ª fila, de pé, da dierita para a esquerda, com malta da CART 3494 e da CCS do BART 3873 (1).
O BART 3873, sedeado com a respectiva CCS em Bambadinca (1972/74) tinha três unidades de quadrícula no Sector L1: CART 3493 (Mansambo, 1972/1973); CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/1974); CART 3492 (Xitole, 1972/74). O Alf Mil Op Espec Mexia Alves pertenceu originalmente à CART 3492, antes de ingressar no Pel Caç Nat 52 (Bambadinca) e na CCAÇ 15 (Mansoa).
(2) Sobre pessoal do BART 3873, dv. os seguintes posts, entre outros:
30 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1473: O álbum das glórias (6): A 'dolce vita' de Bolama (Joaquim Mexia Alves, CART 3492)
5 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1401: Com a CART 3492, em Bolama, no Reino dos Bijagós (Joaquim Mexia Alves)
24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1312: Ponte dos Fulas: Estão ali uns gajos que me querem matar (Joaquim Mexia Alves, CART 3492)
18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1288: Estórias de Bissau (5): saudosimos (Sousa de Castro)
12 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1271: O cruzeiro das nossas vidas (1): O meu Natal de 1971 a bordo do Niassa (Joaquim Mexia Alves)
2 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1141: As (des)andanças do TT Niassa em Dezembro de 1971 (Lema Santos)
24 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74: P1111: A primeira mina, os primeiros suores (Joaquim Mexia Alves)
24 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P983: 'Ora di djunta mon tchiga', 4º livro de poesia do nosso camarada Carvalhido da Ponte
21 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P977: Antologia (52): A guerra que Portugal quis esquecer (Luís Carvalhido, ao Jornal de Barcelos)
16 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1078: Estórias avulsas (2): Uma boleia 'by air' até Nova Lamego para uma noite de fados (Joaquim Mexia Alves)
O BART 3873, sedeado com a respectiva CCS em Bambadinca (1972/74) tinha três unidades de quadrícula no Sector L1: CART 3493 (Mansambo, 1972/1973); CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/1974); CART 3492 (Xitole, 1972/74). O Alf Mil Op Espec Mexia Alves pertenceu originalmente à CART 3492, antes de ingressar no Pel Caç Nat 52 (Bambadinca) e na CCAÇ 15 (Mansoa).
Foto: © Sousa de Castro (2006) (ex-1º cabo de transmissões da CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74). Direitos reservados.
1. Através do Jorge Santos, chegou-nos este mail, com data de 1 de Fevereiro, enviado por um camarada que vive na Austrália, Arthur Pereira:
O meu nome é Arthur Pereira, e pertenço ao grande grupo de portugueses que foram (e que são) ex-combatentes do ultramar. Vim para a Austrália há cerca de 23 anos, mas o passado continua bem vivo em mim. Sempre tive em ideia de um dia poder estar reunido com todos os meus camaradas que estiveram comigo na Guiné.
Pertenci ao BART 3873 / CART 3492, que esteve no Xitole . Muito recentemente, através do Sapo, consegui ver que se fazem todos os anos convívios entre diversos Batalhões e Companhias. Li com emoçõo, artigos do Mexia Alves. Na altura, eu era cabo enfermeiro,mais conhecido pelo Pastilhas. A verdade é que sempre que me lembro desses tempos, sinto uma enorme nostalgia e triteza por não ter a possibilidade de me encontrar com esses velhos mas leais amigos.
Queria pedir-lhe, por favor, se tem conhecimento de algum convívio durante este ano com os meus antigos camaradas, para entrar em contacto comigo, de modo a poder deslocar-me a Portugal para tomar parte dessa festividade ou encontro.
Aceite as minhas desculpas por me dirigir a si e, ao mesmo tempo, aceite o meu muito obrigado antecipadamente pela possível ajuda em relação ao meu pedido.
Respeitosamente
Arthur Pereira
2. Comentário do Sousa de Castro:
Caro Amigo Artur Pereira, recebi e-mail do Jorge Santos com a informação de que pertenceste à à CART 3492 do BART 3873 (Xitole). Pois, devo dizer-te que eu também fiz parte do mesmo BART mas da CART 3494 (Xime).
Conheço bem o Mexia Alves, encontrei-me com ele há uns anos num convívio em Carvalhos (Porto) e também Monte Real (Leiria) (1). Aproveito para te dizer que fui 1º cabo Radiotelegrafista no Xime. Mudámos mais tarde para Mansambo quando a CART 3493 mudou para o Cantanhês. Recordo terem falado no Pastilhas num dos convívios.
Convido-te a visitares este nosso blogue, onde irás encontrar muita coisa relacionada com Xitole e estórias de ex-combatentes que estiveram em toda a Guiné. Convido-te também a fazer parte da tertúlia enviando para o Luís Graça uma foto tua da época e outra actual, para publicação no blogue.
Grande abraço.
António Manuel Sousa de Castro
Ex. 1º cabo Radiotelegrafista - CART 3494
(Xime e Mansambo, Jan 72/ Abr 74)
3. Resposta do Joaquim Mexia Alves:
Caro Artur Pereira:
Sabes que esta coisa da idade é lixada e a memória nos atraiçoa!!! O teu nome diz-me que sim mas não consigo ver a tua cara.
De qualquer modo um grande abraço do teu camarada de Companhia. Como diz o Sousa de Castro, liga-te à Tertúlia deste blogue e assim, para além de nos dares as tuas histórias, se calhar nalgumas delas estamos os dois, reavivas a minha memória, que de vez em quando vai falhando.
Manda mail para o Luis Graça e ele te dará as indicações necessárias.
Fico ansioso por ler histórias tuas, que envolvam o período que lá estive e também depois de eu ter saído da Companhia (2).
Assim que souber de um convívio eu te direi. Dantes havia o convívio do Batalhão, mas agora não sei se ainda continua.
Um grande e amigo abraço do
Joaquim Mexia Alves
____________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 19 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P969: Mexias Alves e a malta do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) (Sousa de Castro)
O meu nome é Arthur Pereira, e pertenço ao grande grupo de portugueses que foram (e que são) ex-combatentes do ultramar. Vim para a Austrália há cerca de 23 anos, mas o passado continua bem vivo em mim. Sempre tive em ideia de um dia poder estar reunido com todos os meus camaradas que estiveram comigo na Guiné.
Pertenci ao BART 3873 / CART 3492, que esteve no Xitole . Muito recentemente, através do Sapo, consegui ver que se fazem todos os anos convívios entre diversos Batalhões e Companhias. Li com emoçõo, artigos do Mexia Alves. Na altura, eu era cabo enfermeiro,mais conhecido pelo Pastilhas. A verdade é que sempre que me lembro desses tempos, sinto uma enorme nostalgia e triteza por não ter a possibilidade de me encontrar com esses velhos mas leais amigos.
Queria pedir-lhe, por favor, se tem conhecimento de algum convívio durante este ano com os meus antigos camaradas, para entrar em contacto comigo, de modo a poder deslocar-me a Portugal para tomar parte dessa festividade ou encontro.
Aceite as minhas desculpas por me dirigir a si e, ao mesmo tempo, aceite o meu muito obrigado antecipadamente pela possível ajuda em relação ao meu pedido.
Respeitosamente
Arthur Pereira
2. Comentário do Sousa de Castro:
Caro Amigo Artur Pereira, recebi e-mail do Jorge Santos com a informação de que pertenceste à à CART 3492 do BART 3873 (Xitole). Pois, devo dizer-te que eu também fiz parte do mesmo BART mas da CART 3494 (Xime).
Conheço bem o Mexia Alves, encontrei-me com ele há uns anos num convívio em Carvalhos (Porto) e também Monte Real (Leiria) (1). Aproveito para te dizer que fui 1º cabo Radiotelegrafista no Xime. Mudámos mais tarde para Mansambo quando a CART 3493 mudou para o Cantanhês. Recordo terem falado no Pastilhas num dos convívios.
Convido-te a visitares este nosso blogue, onde irás encontrar muita coisa relacionada com Xitole e estórias de ex-combatentes que estiveram em toda a Guiné. Convido-te também a fazer parte da tertúlia enviando para o Luís Graça uma foto tua da época e outra actual, para publicação no blogue.
Grande abraço.
António Manuel Sousa de Castro
Ex. 1º cabo Radiotelegrafista - CART 3494
(Xime e Mansambo, Jan 72/ Abr 74)
3. Resposta do Joaquim Mexia Alves:
Caro Artur Pereira:
Sabes que esta coisa da idade é lixada e a memória nos atraiçoa!!! O teu nome diz-me que sim mas não consigo ver a tua cara.
De qualquer modo um grande abraço do teu camarada de Companhia. Como diz o Sousa de Castro, liga-te à Tertúlia deste blogue e assim, para além de nos dares as tuas histórias, se calhar nalgumas delas estamos os dois, reavivas a minha memória, que de vez em quando vai falhando.
Manda mail para o Luis Graça e ele te dará as indicações necessárias.
Fico ansioso por ler histórias tuas, que envolvam o período que lá estive e também depois de eu ter saído da Companhia (2).
Assim que souber de um convívio eu te direi. Dantes havia o convívio do Batalhão, mas agora não sei se ainda continua.
Um grande e amigo abraço do
Joaquim Mexia Alves
____________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 19 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P969: Mexias Alves e a malta do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) (Sousa de Castro)
(2) Sobre pessoal do BART 3873, dv. os seguintes posts, entre outros:
30 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1473: O álbum das glórias (6): A 'dolce vita' de Bolama (Joaquim Mexia Alves, CART 3492)
5 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1401: Com a CART 3492, em Bolama, no Reino dos Bijagós (Joaquim Mexia Alves)
24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1312: Ponte dos Fulas: Estão ali uns gajos que me querem matar (Joaquim Mexia Alves, CART 3492)
18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1288: Estórias de Bissau (5): saudosimos (Sousa de Castro)
12 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1271: O cruzeiro das nossas vidas (1): O meu Natal de 1971 a bordo do Niassa (Joaquim Mexia Alves)
2 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1141: As (des)andanças do TT Niassa em Dezembro de 1971 (Lema Santos)
24 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74: P1111: A primeira mina, os primeiros suores (Joaquim Mexia Alves)
24 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P983: 'Ora di djunta mon tchiga', 4º livro de poesia do nosso camarada Carvalhido da Ponte
21 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P977: Antologia (52): A guerra que Portugal quis esquecer (Luís Carvalhido, ao Jornal de Barcelos)
16 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1078: Estórias avulsas (2): Uma boleia 'by air' até Nova Lamego para uma noite de fados (Joaquim Mexia Alves)
segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007
Guiné 63/74 - P1536: In Memoriam... Barbosa Henriques (1938-2007), o ex-instrutor da 1ª Companhia de Comandos Africanos (Luís Graça / Jorge Cabral)
[Octávio Emanuel] Barbosa Henriques (1938-2007), antigo capitão de artilharia, cor art na reserva: foi comandante da CCAÇ 2316 / BCAÇ 2835; esteve, de passagem, em Guileje, à frente da CART 2410, em 1969/70; foi supervisor da 1ª Companhia de Comandos Africanos ( a partir de fevereiro de 1970). e esteve ainda à frente da 27ª CCmds.
Morreu no sábado passado, dia 17, em Lisboa. Nasceu na Ilha do Fogo, Cabo Verde. Foto de jornal [, à esquerda,] enviada pelo Jorge Cabral.
1. Nota do editor do blogue, enviada por e-mail ao pessoal da tertúlia:
Amigos & camaradas:
Lembram-se do capitão 'comando' Barbosa Henriques ? Já aqui foi evocado por alguns de nós... Conheci-o (mal), no Xime e em Fá Mandinga, como instrutor da 1ª Companhia de Comandos Africanos... Fui buscá-los, a ele e aos seus rapazes, ao Xime, quando desembarcaram de uma LDG... O Jorge Cabral privou de mais perto com ele... O Virgínio Briote também o conhecia, do tempo da Academia Militar... E julgo que os demais camaradas dos comandos... Esteve também na PSP, ao que parece...
Morreu no sábado passado, foi a enterrar no domingo, no cemitério do Alto de São João. Foi o Virgínio Briote que me deu a notícia. São sempre tristes estas notícias do desaparecimento de ex-combatentes da Guiné... Acho que o blogue pode e deve falar dele...
Evoquei-o, num dos primeiros posts do nosso blogue, em 11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri (Luís Graça). É possível que o retrato psicológico que fiz dele, fosse inexacto, parcial, redutor, injusto. Era seguramente superficial... Confesso que o conheci mal. Mas não seria justo, de qualquer modo, esqueço-lo. Aqui fica um extracto desse post:
Foi então que tive a oportunidade de conhecer o instrutor da 1ª CCA, o capitão-comando B. Henriques. É a ele, muito provavelmente, que se refere o Carlos França, ao evocar a figura do capitão pretoriano, arrancado às páginas de clássicos romances de guerra como os de Jean Lartéguy. Julgo que ele já tinha feito uma comissão na Guiné, à frente de umas das companhia de comandos então existentes [, a 27ª CCmds].
(...) O capitão-comando Barbosa era, para mim, a personificação do profissionalismo militar, cada vez mais raro naquelas paragens: um tipo espartano, frio, calculista, distante, seco de palavras mas formalmente correcto… Imaginava-o programado até ao mais ínfimo dos gestos, saído da linha de montagem de fábricas de militares como as de West Point! A ele se atribuía, justa ou injustamente, a afirmação tão sintomática quanto estereotipada de que uma 'instrução de comandos sem uma boa meia-dúzia de mortos não era instrução de comandos nem era nada'.
E, no entanto, por detrás daquela máscara impassível de duro e daquele comportamento quase robotizado que me causava simultaneamente atracção e repulsa, havia um homem de carne e osso, tímido e sentimental, tão só como nós, capaz de deixar trair as suas emoções, e de falar de outras coisas bem mais comezinhas e menos metafísicas do que a arte da guerra. Ou não fora ele de origem cabo-verdiana, se não me engano...
Chegámos a conversar, em grupo, com alguma descontracção e civilidade, entre dois copos de uísque e o 'All you need is love' dos Beatles, como música de fundo, no bar do quartel de Fá Mandinga, enquanto lá fora os seus rapazes, sedentos de aventura e de emoções fortes, preparavam um festival de fogo de artifício como recepção ao periquito do alferes miliciano médico que acabava de chegar à companhia (Um luxo, diga-se, de passagem já que no TO da Guiné o que era normal era haver um médico por batalhão, ou seja, um médico, para no mínimo quatro companhias, ou sejam, 600 homens; diga-se de passagem que nunca convivi com o médico dos comandos, nem me lembro do seu nome). (...)
2. Também o Jorge Cabral (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 63) relembra a sua figura, com muito mais vivacidade e propriedade do que eu, já que foi foi seu amigo e cúmplice das noites de Lisboa, no regresso da Guiné. Aqui fica o texto que me acaba de enviar:
O Meu Amigo, Barbosa Henriques
Comandante do Destacamento, dependendo apenas de Bambadinca, não alterei em nada a minha forma de estar, continuando a andar semi-vestido, e a passar longo tempo na Tabanca, mas não hesitei em oferecer toda a colaboração, tendo até ajudado na instrução e servido de cripto.
Como Comando-Instrutor, o Capitão Barbosa Henriques era duro, severo, espartano, quase um centurião. Teve porém sensibilidade para me compreender, apreciando e mesmo alinhando, nalgumas loucuras, daquele estranho alferes. Sei que, estando em Bolama, ainda falava do Cabral, e da declaração de Amor à D. Rosa, que eu diante dele recitei no Café das Libanesas, em Bafatá (1).
Nos anos de 72 e 73, em Lisboa, convivemos, frequentando o Parque Mayer, suas Revistas e Coristas. Calculem que até me quis convencer a meter o chico, para ser seu adjunto no Forte das Raposeiras, pois ambos pertencíamos à Arma de Artilharia. Creio que a última vez que o vi, foi em meados dos anos 80, quando almoçámos no Quartel onde estava colocado. Tinha boa memória, e recordou aquela vez que me havia pedido para fazer tiro de metralhadora a roçar a cabeça dos instruendos, e eu disparei tão alto que matei oito vacas na Tabanca de Biana.
- Bons tempos Cabral, consigo ia ficando maluco - disse-me então.
- E eu ia ficando Comando - retorqui ao meu único amigo Capitão.
Fora de Lisboa, não pude comparecer no funeral, mas a sua morte entristeceu-me, e é com saudade que lembro o Capitão Barbosa Henriques, meu Amigo.
Jorge Cabral
Amigos & camaradas:
Lembram-se do capitão 'comando' Barbosa Henriques ? Já aqui foi evocado por alguns de nós... Conheci-o (mal), no Xime e em Fá Mandinga, como instrutor da 1ª Companhia de Comandos Africanos... Fui buscá-los, a ele e aos seus rapazes, ao Xime, quando desembarcaram de uma LDG... O Jorge Cabral privou de mais perto com ele... O Virgínio Briote também o conhecia, do tempo da Academia Militar... E julgo que os demais camaradas dos comandos... Esteve também na PSP, ao que parece...
Morreu no sábado passado, foi a enterrar no domingo, no cemitério do Alto de São João. Foi o Virgínio Briote que me deu a notícia. São sempre tristes estas notícias do desaparecimento de ex-combatentes da Guiné... Acho que o blogue pode e deve falar dele...
Evoquei-o, num dos primeiros posts do nosso blogue, em 11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri (Luís Graça). É possível que o retrato psicológico que fiz dele, fosse inexacto, parcial, redutor, injusto. Era seguramente superficial... Confesso que o conheci mal. Mas não seria justo, de qualquer modo, esqueço-lo. Aqui fica um extracto desse post:
Foi então que tive a oportunidade de conhecer o instrutor da 1ª CCA, o capitão-comando B. Henriques. É a ele, muito provavelmente, que se refere o Carlos França, ao evocar a figura do capitão pretoriano, arrancado às páginas de clássicos romances de guerra como os de Jean Lartéguy. Julgo que ele já tinha feito uma comissão na Guiné, à frente de umas das companhia de comandos então existentes [, a 27ª CCmds].
(...) O capitão-comando Barbosa era, para mim, a personificação do profissionalismo militar, cada vez mais raro naquelas paragens: um tipo espartano, frio, calculista, distante, seco de palavras mas formalmente correcto… Imaginava-o programado até ao mais ínfimo dos gestos, saído da linha de montagem de fábricas de militares como as de West Point! A ele se atribuía, justa ou injustamente, a afirmação tão sintomática quanto estereotipada de que uma 'instrução de comandos sem uma boa meia-dúzia de mortos não era instrução de comandos nem era nada'.
E, no entanto, por detrás daquela máscara impassível de duro e daquele comportamento quase robotizado que me causava simultaneamente atracção e repulsa, havia um homem de carne e osso, tímido e sentimental, tão só como nós, capaz de deixar trair as suas emoções, e de falar de outras coisas bem mais comezinhas e menos metafísicas do que a arte da guerra. Ou não fora ele de origem cabo-verdiana, se não me engano...
Chegámos a conversar, em grupo, com alguma descontracção e civilidade, entre dois copos de uísque e o 'All you need is love' dos Beatles, como música de fundo, no bar do quartel de Fá Mandinga, enquanto lá fora os seus rapazes, sedentos de aventura e de emoções fortes, preparavam um festival de fogo de artifício como recepção ao periquito do alferes miliciano médico que acabava de chegar à companhia (Um luxo, diga-se, de passagem já que no TO da Guiné o que era normal era haver um médico por batalhão, ou seja, um médico, para no mínimo quatro companhias, ou sejam, 600 homens; diga-se de passagem que nunca convivi com o médico dos comandos, nem me lembro do seu nome). (...)
2. Também o Jorge Cabral (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 63) relembra a sua figura, com muito mais vivacidade e propriedade do que eu, já que foi foi seu amigo e cúmplice das noites de Lisboa, no regresso da Guiné. Aqui fica o texto que me acaba de enviar:
O Meu Amigo, Barbosa Henriques
por Jorge Cabral
Confesso que, quando em Janeiro de 1970 me informaram que os Comandos Africanos vinham completar a instrução em Fá [, destacamento à guarda do Pel Caç Nat 63], não fiquei nada satisfeito. Ali me encontrava desde Julho de 1969, com os meus soldados e famílias, vivendo uma pacífica rotina, só de quando em quando interrompida, com a chamada para alguma operação para os lados de Xime ou de Mansambo.
Em Fevereiro, e após a Engenharia ter preparado as instalações, chegaram os Comandos Africanos, e conheci o Capitão Barbosa Henriques. Talvez porque os contrários se atraem, logo entre nós se estabeleceu uma relação cordial que veio dar lugar a uma verdadeira amizade.
Confesso que, quando em Janeiro de 1970 me informaram que os Comandos Africanos vinham completar a instrução em Fá [, destacamento à guarda do Pel Caç Nat 63], não fiquei nada satisfeito. Ali me encontrava desde Julho de 1969, com os meus soldados e famílias, vivendo uma pacífica rotina, só de quando em quando interrompida, com a chamada para alguma operação para os lados de Xime ou de Mansambo.
Em Fevereiro, e após a Engenharia ter preparado as instalações, chegaram os Comandos Africanos, e conheci o Capitão Barbosa Henriques. Talvez porque os contrários se atraem, logo entre nós se estabeleceu uma relação cordial que veio dar lugar a uma verdadeira amizade.
Comandante do Destacamento, dependendo apenas de Bambadinca, não alterei em nada a minha forma de estar, continuando a andar semi-vestido, e a passar longo tempo na Tabanca, mas não hesitei em oferecer toda a colaboração, tendo até ajudado na instrução e servido de cripto.
Como Comando-Instrutor, o Capitão Barbosa Henriques era duro, severo, espartano, quase um centurião. Teve porém sensibilidade para me compreender, apreciando e mesmo alinhando, nalgumas loucuras, daquele estranho alferes. Sei que, estando em Bolama, ainda falava do Cabral, e da declaração de Amor à D. Rosa, que eu diante dele recitei no Café das Libanesas, em Bafatá (1).
Nos anos de 72 e 73, em Lisboa, convivemos, frequentando o Parque Mayer, suas Revistas e Coristas. Calculem que até me quis convencer a meter o chico, para ser seu adjunto no Forte das Raposeiras, pois ambos pertencíamos à Arma de Artilharia. Creio que a última vez que o vi, foi em meados dos anos 80, quando almoçámos no Quartel onde estava colocado. Tinha boa memória, e recordou aquela vez que me havia pedido para fazer tiro de metralhadora a roçar a cabeça dos instruendos, e eu disparei tão alto que matei oito vacas na Tabanca de Biana.
- Bons tempos Cabral, consigo ia ficando maluco - disse-me então.
- E eu ia ficando Comando - retorqui ao meu único amigo Capitão.
Fora de Lisboa, não pude comparecer no funeral, mas a sua morte entristeceu-me, e é com saudade que lembro o Capitão Barbosa Henriques, meu Amigo.
Jorge Cabral
3. Ver também nota biogafica mais completa no portal UTW - Ultramar Terra Web - Dos Veteranos da Guerra do Ultramar.
___________
Nota de L. G.:
(1) Vd. post de 1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1013: Também eu, apanhado, me confesso (Jorge Cabral)
Nota de L. G.:
(1) Vd. post de 1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1013: Também eu, apanhado, me confesso (Jorge Cabral)
Guiné 63/74 - P1535: Subsídios para a história da CART 1689, a que pertencia o Belmiro dos Santos João (Victor Condeço)
Guiné > Bissau > CTIG > Guartel Gêneral > 1ª Rep > Nota nº 13830, de 31 de Agosto de 1968. Nota (invulgar ?) de apreço e reconhecimento da Marinha pelo comportamento, a bordo de uma LDM, do pessoal da CART 1689.
Foto: © Víctor Condeço (2006). Direitos reservados.
Texto de Víctor Condeço (ex- Fur Mil Mecânico de Armamento, CCS do BART 1913, Catió 1967/69).
Caro Luís e camaradas de Tertúlia:
Eu não pertencia à CART 1689, mas pertencia ao mesmo batalhão, o BART 1913, com sede em Catió, e privei com os elementos desta companhia durante a sua permanência ali. Embora tenha algumas fotografias da época, onde possam estar o Belmiro (1), já não consigo recordar-me quem era e por isso também não posso falar especificamente dele.
Posso no entanto e como complemento ao que o Fernando Chapouto, o A. Marques Lopes e o Idálio Reis já escreveram (1), acrescentar alguns poucos pormenores, que constam da história da Companhia e que relatam o seu percurso na Guiné entre 1967 e 1969.
A CART 1689, quando em 1 de Maio de 1967 chegámos a Bissau, embarcou na BOR para subir o Geba até Bambadinca, instalando-se ainda nessa noite em Fá Mandinga, onde adquiriu treino e desenvolveu actividade operacional, aí permanecendo até 18 de Julho de 1967.
Em 19 de Julho de 1967 chega a Catió onde rende a CCAV 1484, ficando em intervenção na sede do BART 1913, Comando do Sector.
Em 22 de Março de 1968 é deslocada para Buba a bordo de uma LDG, onde permanecerá até 7 de Abril em concentração de meios, patrulhamentos e treinos.
Neste mesmo dia 7 de Abril de 1968 inicia-se a Operação Bola de Fogo, que teve por missão implantar o Aquartelamento de Gandembel/Ponte Balana, na qual participa e onde chega a 8 de Abril de 1968 (2).
Ao longo desta Operação que decorreu durante vários dias, participaram inúmeros efectivos de pelo menos 14 unidades.
A CART 1689 retirou de Gandembel em 15 de Maio de 1968 via Aldeia Formosa e daqui para Buba nos dias 16 e 17 do mesmo mês.
Pelas 8h30 do dia 23 de Maio a Companhia embarcou em LDG com destino a Catió, tendo passado a noite ao largo do Tombali
No dia 24 de Maio quando a LDG navegava no Rio Cobade foi atacada de ambas as margens, com armamento ligeiro, bazucas e morteiros que lhe provocaram dois rombos, um do lado esquerdo e outro à ré. A Companhia não teve feridos e desembarcou em Catió ao fim da manhã deste mesmo dia.
A CART 1689 permaneceu em Catió em actividade de intervenção até ao dia 10 de Junho de 1968, data em que é transferida para Cabedu, onde permanece até 30 de Julho.
Nesta data inicia a sua deslocação para Canquelifá, Sector de Nova Lamego, que prossegue em 31 e onde chega às 22h30 do dia 1 de Agosto de 1968.
Nesta viagem a Companhia tem um comportamento que merece da parte do Comandante da LDG uma nota de apreço (vd. cópia da Nota nº 13830, de 31 de Agosto de 1968, da 1ª Rep / QG / CTIG. que acima se insere).
A partir de 1 de Agosto a Companhia desenvolve a actividade operacional em toda a zona de Canquelifá, aí permanecendo até ao dia 3 de Dezembro, data em que inicia a transferência para Bissau – Santa Luzia, tendo chegado a Bambadinca nesse mesmo dia.
No dia 5 de Dezembro cerca de 50% da Companhia embarca para Bissau onde chega ao princípio da noite. Só no dia 9 de Dezembro chegam a Bissau os restantes elementos da Companhia.
Durante o mês de Dezembro e até ao final da comissão em 2 de Março de 1969, a Companhia colabora no serviço respeitante ao Batalhão aquartelado em Santa Luzia e ao qual está adida, tomando parte em operações de cerco e rusga.
Faz o seu regresso à metrópole no dia 3 de Março de 1969, em conjunto com as restantes unidades do BART 1913 no N/M Uíge.
Com um abraço para todos
Victor Condeço
___________
Nota de L.G.:
1) Vd. posts anteriores sobre o Belmiro dos Santos João:
17 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1532: O furriel Belmiro dos Santos João, a primeira vítima mortal do inferno de Gandembel (Idálio Reis)
15 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1529: Belmiro dos Santos João, de Miranda do Douro, vítima de mina antipessoal em Catió (Fernando Chapouto / A. Marques Lopes)
Eu não pertencia à CART 1689, mas pertencia ao mesmo batalhão, o BART 1913, com sede em Catió, e privei com os elementos desta companhia durante a sua permanência ali. Embora tenha algumas fotografias da época, onde possam estar o Belmiro (1), já não consigo recordar-me quem era e por isso também não posso falar especificamente dele.
Posso no entanto e como complemento ao que o Fernando Chapouto, o A. Marques Lopes e o Idálio Reis já escreveram (1), acrescentar alguns poucos pormenores, que constam da história da Companhia e que relatam o seu percurso na Guiné entre 1967 e 1969.
A CART 1689, quando em 1 de Maio de 1967 chegámos a Bissau, embarcou na BOR para subir o Geba até Bambadinca, instalando-se ainda nessa noite em Fá Mandinga, onde adquiriu treino e desenvolveu actividade operacional, aí permanecendo até 18 de Julho de 1967.
Em 19 de Julho de 1967 chega a Catió onde rende a CCAV 1484, ficando em intervenção na sede do BART 1913, Comando do Sector.
Em 22 de Março de 1968 é deslocada para Buba a bordo de uma LDG, onde permanecerá até 7 de Abril em concentração de meios, patrulhamentos e treinos.
Neste mesmo dia 7 de Abril de 1968 inicia-se a Operação Bola de Fogo, que teve por missão implantar o Aquartelamento de Gandembel/Ponte Balana, na qual participa e onde chega a 8 de Abril de 1968 (2).
Ao longo desta Operação que decorreu durante vários dias, participaram inúmeros efectivos de pelo menos 14 unidades.
A CART 1689 retirou de Gandembel em 15 de Maio de 1968 via Aldeia Formosa e daqui para Buba nos dias 16 e 17 do mesmo mês.
Pelas 8h30 do dia 23 de Maio a Companhia embarcou em LDG com destino a Catió, tendo passado a noite ao largo do Tombali
No dia 24 de Maio quando a LDG navegava no Rio Cobade foi atacada de ambas as margens, com armamento ligeiro, bazucas e morteiros que lhe provocaram dois rombos, um do lado esquerdo e outro à ré. A Companhia não teve feridos e desembarcou em Catió ao fim da manhã deste mesmo dia.
A CART 1689 permaneceu em Catió em actividade de intervenção até ao dia 10 de Junho de 1968, data em que é transferida para Cabedu, onde permanece até 30 de Julho.
Nesta data inicia a sua deslocação para Canquelifá, Sector de Nova Lamego, que prossegue em 31 e onde chega às 22h30 do dia 1 de Agosto de 1968.
Nesta viagem a Companhia tem um comportamento que merece da parte do Comandante da LDG uma nota de apreço (vd. cópia da Nota nº 13830, de 31 de Agosto de 1968, da 1ª Rep / QG / CTIG. que acima se insere).
A partir de 1 de Agosto a Companhia desenvolve a actividade operacional em toda a zona de Canquelifá, aí permanecendo até ao dia 3 de Dezembro, data em que inicia a transferência para Bissau – Santa Luzia, tendo chegado a Bambadinca nesse mesmo dia.
No dia 5 de Dezembro cerca de 50% da Companhia embarca para Bissau onde chega ao princípio da noite. Só no dia 9 de Dezembro chegam a Bissau os restantes elementos da Companhia.
Durante o mês de Dezembro e até ao final da comissão em 2 de Março de 1969, a Companhia colabora no serviço respeitante ao Batalhão aquartelado em Santa Luzia e ao qual está adida, tomando parte em operações de cerco e rusga.
Faz o seu regresso à metrópole no dia 3 de Março de 1969, em conjunto com as restantes unidades do BART 1913 no N/M Uíge.
Com um abraço para todos
Victor Condeço
___________
Nota de L.G.:
1) Vd. posts anteriores sobre o Belmiro dos Santos João:
17 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1532: O furriel Belmiro dos Santos João, a primeira vítima mortal do inferno de Gandembel (Idálio Reis)
15 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1529: Belmiro dos Santos João, de Miranda do Douro, vítima de mina antipessoal em Catió (Fernando Chapouto / A. Marques Lopes)
(2) Vd. posts de Iddálçio Reis:
16 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1530: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (1): Aclimatização: Bissau, Olossato e Mansabá
19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXIV: Um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317)
18 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXX: Um pesadelo chamado Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317, 1968/69)
19 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1382: Feliz Natal, Próspero Ano Novo, Adeus e Até ao Meu Regresso (7): No longínquo ano de 1968 em Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis)
16 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1530: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (1): Aclimatização: Bissau, Olossato e Mansabá
19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXIV: Um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317)
18 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXX: Um pesadelo chamado Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317, 1968/69)
19 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1382: Feliz Natal, Próspero Ano Novo, Adeus e Até ao Meu Regresso (7): No longínquo ano de 1968 em Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis)
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