1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Dezembro de 2014:
Queridos amigos,
O autor adverte-nos que não o move a intenção literária, quer que o leitor tome nota do que guardou nos seus apontamentos diários, em linguagem do tempo. Daí resulta uma leitura bem diferente das obras do estilo memorial, são pedaços de diário, é um jovem que se vê estar dotado de sólida formação moral, atento às prosápias de uma certa hierarquia militar, atento aos sofrimentos dos seus homens e que desabafa com os seus papéis depois de voltar de Beli e de Madina de Boé, aqueles pontos do mapa cujo abastecimento eram uma empreitada temível, com mortos e feridos em minas e emboscadas.
E ele pergunta à folha de papel: e para quê?
E depois desta itinerância pelo Leste, embarca para o Norte, vamos vê-lo a seguir como comandante em Guidage.
Um abraço do
Mário
A Guiné em 1966 aos olhos de Domingos Gonçalves
Beja Santos
Quando estive em Fafe, em 12 de Dezembro último, para participar no lançamento da obra coletiva
“Fafe e a guerra colonial”, conheci o nosso camarada Domingos Gonçalves [foto à direita], tomei a liberdade de lhe pedir os seus escritos sobre a Guiné. Já chegaram, quero-vos dar conta do que eles encerram. O camarada Domingos Gonçalves nasceu em Serafão, Fafe, em 1942. Frequentou os estudos preparatórios no colégio dos Padres Capuchinhos e licenciou-se em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa. Cumpriu o serviço militar de Maio de 1966 a Janeiro de 1968, em três volumes, baseando-se em apontamentos quase diários, descreve algumas das suas experiências. Avisa logo que não pretende colocar nas nossas mãos uma peça literária quer dar-nos um testemunho dos seus registos da época, tal qual.
O primeiro volume intitula-se
“Guiné 1966, reportagens da época”, é uma edição de autor sem data. Tudo começa por um reencontro da malta da CCAÇ n.º 1546, e ele abre assim as hostilidades:
“Compareceu o comandante do batalhão, alquebrado pelos anos, mas cheio ainda, de lucidez e vivacidade. Homem de ação, dinâmico e generoso, sabia merecer o respeito de todos os que dele dependiam. Compareceu o comandante da companhia, o homem que todos detestavam. Foi, enquanto comandante, uma pessoa em cuja alma a generosidade e o humanismo não tinham lugar. Porém, nada cura melhor que o tempo. Trinta anos foram suficientes para desfazer ressentimentos e apagar da memória a lembrança dos atos mais mesquinhos. Sem mágoa e sem desejos de vingança, na hora do reencontro, todos lhe estenderam a mão”.
Chegam à Guiné a 12 de Maio, do Uíge passaram para a Bor, rumo a Bambadinca, vão atormentados pela sede, chegaram ao destino já alta noite. Espojaram-se pelo chão, só na manhã seguinte é que haveria transporte para Nova Lamego. Feita a viagem, foram encaminhados para Piche, ali acantonam. A 21, escreve:
“Dois pelotões da minha companhia abandonaram Piche, rumo a Nova Lamego, ali irão permanecer alguns meses”. Ele também devia seguir para Nova Lamego. Mas vemo-lo logo em Buruntuma, onde ele escreve a 26:
“Piquei a estrada de Buruntuma a Caium, escoltei uma coluna de viaturas até Camajábá”. E habitua-se ao troar da artilharia entre Buruntuma e a Guiné Conacri. Chega uma DO 27, ao procurar aterrar foi alvejada com rajadas de armas automáticas, foi necessário chamar os Fiat. Comentará mais tarde:
“Os ataques que sofremos tinham sido obra das tropas regulares da Guiné Conacri, aquarteladas em Kadica. Mas o preço que pagaram foi bastante caro. Grande parte das suas instalações ficaram arrasadas pelo fogo dos nossos morteiros”.
No início de Junho abandonam Buruntuma, regressam a Nova Lamego, a CCAÇ 1546 irá escoltar uma coluna de reabastecimento a Beli, no regresso sofrerão duas emboscadas; mais tarde haverá uma coluna de reabastecimento a Madina de Boé. Dias depois, seguem rumo ao Che-Che, escoltando uma coluna que vai até Beli, atravessaram o rio Corubal, pernoitaram na outra margem. Estamos no dia 10:
“A poucos metros do cruzamento da estrada de Madina de Boé uma viatura fez explodir uma mina. O condutor quebrou uma perna e tivemos mais dois feridos ligeiros”. Só na manhã seguinte seguem para Beli:
“A meio do percurso, uma viatura acionou outra mina-anticarro e verificaram-se mais dois feridos. Em Sutumaca rebentou outra mina anticarro e tivemos mais alguns feridos. Desta fez a viatura danificada ficou abandonada no local”. Mais adiante haverá uma emboscada, com mortos e feridos. E assim chegaram a Beli, que ele descreve:
“Era uma pequena povoação perdida a Leste de Boé, isolada do resto do mundo durante a época das chuvas, guarnecida por um pelotão de atiradores de infantaria, homens que nunca entenderão a causa pela qual durante meses lá tiveram que permanecer esquecidos”. Voltam a atravessar o rio Corubal, uma viatura foi parar ao fundo do rio. A 20, estão já em preparativos para o reabastecimento Madina de Boé onde está a companhia n.º 1516 e ele comenta nas suas notas:
“Um nome que apenas faz lembrar, a quem o escuta, o sofrimento de um grupo de homens valerosos que, estoicamente, ali vão permanecendo”. Tudo correu bem durante a ida e a volta.
No início de Junho estão de novo a caminho do Che-Che, procedem a um patrulhamento, nada a assinalar. Nas suas notas vai comentando o comportamento da seleção portuguesa no campeonato do mundo de futebol, Portugal vence a Hungria, a Bulgária e depois a Coreia do Norte. A 25, estão novamente de rumo a Piche, vão à terra dos Bucurés. Vaza nos seus apontamentos as suas inquietações e as dos outros, o alcoolismo está a trepar, os soldados da 1546 começam a dar sinais visíveis de desgaste. E voltam ao Che-Che, e ele escreve:
“Entre Madina e o Che-Che detetámos três minas anticarro. Duas, convencionais, levantaram-se. Uma, de caixa em madeira, de modelo desconhecido, fez-se explodir no local. Ao atravessar novamente o Corubal, nova viatura caiu ao rio". Redobram as censuras ao comportamento do capitão, certa vez para castigar o cozinheiro levou-o no jipe e largou-o a cerca de vinte quilómetros de distância, na estrada de Sonaco. Toda a companhia protestou, houve zaragata brava, foram buscar o pobre do cozinheiro. No dia 21 de Setembro, vemo-lo em Farim, vem em serviço enquanto a companhia seguiu para o Enxalé onde vai efetuar a operação “Girandola”. A 11 de Outubro, deslocam-se para o Enxalé, é a operação “Granizo”, sem resultados, regressam a Nova Lamego, e depois são enviados para Fá, patrulham Mero, uma tabanca Balanta junto da margem esquerda do Geba, e no fim do mês seguem de novo para o Enxalé, novamente sem resultados. E seguem para o Xitoli, juntamente com tropas do Xime. Trata-se de uma operação até Galo Corubal, os guerrilheiros não ofereceram resistência, as nossas tropas incendiaram o acampamento e capturaram algum material, o regresso foi cansativo mas sem problemas. No fim de Novembro, saem de Fá e vão numa operação até Porto Gole. Seguem pela estrada entre Porto Gole e Mansoa, ficamos sem saber onde era o objetivo, entraram na base dos guerrilheiros à hora do almoço, foi um sucesso, capturaram algum armamento. Vai registando nos seus apontamentos alguns acidentes, coisas estúpidas e desgastantes. E em meados de Dezembro vão até ao Buruntoni, na região do Xime, voltaram a apanhá-los de surpresa, era a hora do almoço, entraram na maior surpresa na base da guerrilha, apanharam nove armas e incendiaram tudo. Com inocência, escreve:
“O Buruntoni, enquanto mito, deixava de existir”. E seguem para Bissau, têm outro destino para cumprir depois daquela itinerância estranhíssima na região de Nova Lamego. Vão ficar instalados na fortaleza, passam o Natal em Bissau e no dia 26 seguem na LDG Alfange até Farim.
Estamos no dia 31, e ele escreve:
“Estou convencido de que esta guerra em que andamos metidos dificilmente terá uma solução militar”. Assim chega ao termo o primeiro volume de apontamentos de Domingos Gonçalves da CCAÇ 1546 que, conjuntamente com as CCAÇs 1547 e 1548, pertencia ao BCAÇ 1887. Não há uma explicação sobre esta errância, sete meses na pura intervenção, desligados das outras companhias, não há uma só palavra sobre a sede do batalhão. O jovem Domingos Gonçalves é profundamente crítico da hierarquia e há uma virtude que ninguém lhe pode tirar: é praticamente um cronista anónimo, só lá para meio das suas notas é que sabemos que é alferes, isso tem a ver com os valores e princípios que defende, vemo-lo igualmente crítico perante o alcoolismo e a existência daqueles quartéis no Boé que eram meros destacamentos sem população, sacrificados à plena liberdade de ação dos guerrilheiros.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 26 de dezembro de 2014 >
Guiné 63/74 - P14082: Notas de leitura (660): “Crepúsculo de Sangue”, de Nelson Leal, Lugar da Palavra Editora, 2013 (Mário Beja Santos)