sábado, 13 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19097: Os nossos seres, saberes e lazeres (288): Primeiro, Toulouse, a cidade do tijolo, depois Albi (7): De Lourdes a Gavarnie, um grande ecrã dos Pirenéus (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Julho de 2018:

Queridos amigos,
Conhecia os Pirenéus de os atravessar de noite, em viagens de autocarro, recordações de estudante. Com os anos, fui ouvindo e lendo notícias sobre um local a que se atribuía magia e ultrarromantismo, o circo de Gavarnie.
Chegara a hora, comboio de Toulouse para Lourdes, autocarro para Pierrefitte-Nelandas, primeiro ponte de Espanha, grandessíssima beleza e depois o sonho realizado, mesmo com imensa neblina Gavarnie encheu as medidas do viandante.
Tudo se fará para regressar, seja qual for a estação do ano.

Um abraço do
Mário


Primeiro, Toulouse, a cidade do tijolo, depois Albi (7): 
De Lourdes a Gavarnie, um grande ecrã dos Pirenéus

Beja Santos

Viagem de comboio até Lourdes, dentro de momentos chegará o autocarro que nos conduzirá a Pierrefitte-Nestalas, local de hospedagem. O grande prato de substância nesta viagem é o Circo de Gavarnie, património da humanidade. O viandante olha à volta em Lourdes, contempla um castelo que tem mil anos de história, lá em cima está o Pic du Jer, que domina a cidade, lá em baixo é o local de peregrinação, quem é crente na mensagem de Bernadette vem até à cova onde teria havido o encontro entre a pastorinha e a virgem. Existe um imenso santuário, realizam-se procissões. E depois de olhar à volta, o viandante sobe o autocarro e só sai no local temporário de morada, Pierrefitte-Nestalas. Convém desde já esclarecer que se dissipou bom tempo, o que parecia uma inofensiva morrinha transformou-se em chuva intermitente, daquela que se entranha nos ossos, o importante é a beleza destas nuvens, Pierrefitte não é nada do outro mundo mas tem um hotel singular, bem antigo e não mal cuidado. Ora vejam.



O que oferecem estes Pirenéus franceses? Vales como Argéles, o País Toy, ou Cauterets; o Parque Nacional dos Pirenéus e reservas naturais, o circo de Gavarnie (entende-se por circo um recinto natural de paredes abruptas, de forma circular ou semicircular formada por uma depressão, neste caso de origem glaciar), estações de esqui e teleféricos, estações termais, passeios pedestres, lagos e torrentes, e muito mais. O viandante, atendendo às condicionantes atmosféricas, pauta-se pela elementar sobriedade, começa-se pelo passeio até Cauterets, tem-se em mira visitar as cascatas ao pé da ponte de Espanha, daqui tomar-se um teleférico até ao lago de Gaube, daqui avista-se Vignemale, a mais de 3 mil metros de altitude. Logo a surpresa da gare, hoje inativa, mas é um belo edifício alpino, muito bem tratado, acompanhem o viandante.





Qual o móbil da visita? Esta ponte de Espanha, visitável através de um pequeno autocarro que sai aqui de Cauterets, permite conhecer um antigo itinerário de pastores, naquela ponte fazia-se o comércio com Espanha, é um vale riquíssimo em cascatas, lagos e paisagens, os caminhantes adoram passear por aqui, há chalés e refúgios para os mais entusiastas, a grande sensação é aquele local grandioso chamado o Pic du Midi de Bigorre, uma experiência de cortar a respiração.


Chove ininterruptamente, mas a envolvente de escarpas e floresta deixa o viandante aturdido, nunca vivera uma tal experiência de montanha, aqui fica a ponte de Espanha e as cascatas que rumorejam em cachão turbilhonante. À cautela, vai-se ao restaurante comer uma sopa bem quente e uma boa tosta mista, segue-se um café a escaldar e de novo a natureza.




Cauterets não é só a ponte de Espanha, pode ser dimensionada como cidade-montanha, tem uma estação termal, bosques, torrentes e cascatas borbulhantes e lagos resplandecentes. E é verdade o que diz o guia turístico, as ruas estão impregnadas do olor das guloseimas, as fábricas de caramelos parecem estar sempre em funcionamento, são guloseimas que têm fama desde o século XVI.


E no dia seguinte, o viandante encaminha-se para o Circo de Gavarnie, já leu que tem paisagens românticas, por ali andou Victor Hugo dois meses com Juliette Drouet, fica para saber se em idílio amoroso ou à procura de inspiração. Esmagado pela emoção, Victor Hugo comentou: “É ao mesmo tempo uma montanha e uma muralha, é o edifício mais misterioso dos arquitectos, é o coliseu da natureza, é Gavarnie”. E os roteiros turísticos fazem rufar os tambores: “Se Chamonix é o top do alpinismo, Gavarnie é o top dos Pirenéus”. O viandante vai percorrer caminhos emblemáticos, encontrando outros que por ali andam em estado de êxtase a olhar para estes vales que durante o verão se cobrem de rebanhos, o cenário de Gavarnie não é incompatível com a pastorícia. E mesmo com a continuação de mau tempo, Gavarnie desvela as suas altas muralhas geladas, um assombro.




Foi suficiente para querer voltar, em qualquer das estações do ano, impossível que esta imensidade pirenaica não tenha muito mais para oferecer, com os seus vales de águas em cachão, neves eternas, lagos glaciares. É assim o fadário da viagem: saber que há muito mais no regresso. Por ora, vai-se pernoitar a Pierrefitte-Nestalas, amanhã segue-se para Pau, desde estudante que se pretende conhecer onde viveu aquele rei de Navarra que foi rei de França e marido de Margot, que deu filme com os horrores da noite do massacre de São Bartolomeu. Mal sabe o viandante que vai a Pau debaixo de chuva torrencial. Vicissitudes!

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19075: Os nossos seres, saberes e lazeres (287): Primeiro, Toulouse, a cidade do tijolo, depois Albi (6): A cidade medieval fortificada de Carcassonne e o seu turismo (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19096: Parabéns a você (1512): Mário Ferreira de Oliveira, 1.º Cabo Condutor de Máquinas da Marinha Ref (Guiné, 1961/63)

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Nota do editor

Último poste da série de 12 de Outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19092: Parabéns a você (1511): Cátia Félix, Amiga Grã-Tabanqueira

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19095: O nosso livro de visitas (196): Comentário de Fernando Sousa Ribeiro, antigo combatente em Angola, deixado no nosso Blogue

Mapa de Angola
Com a devida vénia a uniaonet.com

O nosso camarada Fernando de Sousa Ribeiro, antigo combatente em Angola, deixou este comentário no Poste Guiné 61/74 - P19087: Bibliografia de uma guerra (93): “Tu não viste nada em Angola”, por Francisco Marcelo Curto; Centelha, 1983 (1) (Mário Beja Santos):

Muito gostaria eu de ler este livro, quanto mais não fosse para comparar a experiência vivida por Francisco Marcelo Curto, no início da guerra em Angola, com a minha, quase no fim da mesma guerra e quase nas mesmas paragens. As diferenças deveriam ser muitas.

Para se ter uma ideia do respeito que nos devem merecer aqueles que em 1961 partiram para a guerra no norte de Angola, pode-se chamar a atenção para o facto de que eles fizeram uma guerra para a qual não estavam minimamente preparados. Eles tinham sido preparados para uma guerra convencional, com grandes batalhas envolvendo exércitos de milhares de homens de um lado e do outro, e não para a situação caótica que foram encontrar em Angola. Tiveram que improvisar, tiveram que se desenrascar o melhor de que foram capazes. Muitos erros devem ter cometido e muitas baixas devem ter sofrido por causa desses erros. Vidas que se foram e não voltam mais. Famílias e famílias enlutadas.

O Mário Beja Santos chama a atenção para o facto de eles usarem capacetes. Capacetes debaixo do sol tropical?! Só se fosse para assar os miolos!, dir-se-á. Pois eles usaram mesmo capacetes! É verdade! A minha companhia em Angola também tinha capacetes de ferro para serem usados nas operações, mas eles ficaram sempre dependurados na parede do fundo do depósito de material de guerra, pois nós fazíamos as operações de quico na cabeça.

Eles também não empunhavam espingardas automáticas G3, mas sim espingardas de repetição Mauser, que eram muito mais pesadas e só disparavam tiro a tiro, ainda que fossem mais precisas e tivessem maior alcance do que as G3.

É preciso lembrar também que a máquina logística das Forças Armadas na guerra de Angola não existia ainda, o que implicava falhas graves no abastecimento das unidades que avançavam a caminho do desconhecido.

Não existia igualmente o dispositivo militar que acabou por ser implantado, baseado em batalhões e companhias espalhados pelo território, em sistema dito de quadrícula, o qual foi depois reproduzido em Moçambique e na Guiné. O dispositivo de quadrícula foram eles que inauguraram.

Um pormenor que nunca vi referido em lado nenhum e que eu acho importante é a má qualidade de muitas das armas e munições que foram usadas nesse tempo. Muitos mortos e feridos foram provocados, nos primeiros anos da guerra, por granadas de morteiro que explodiam logo no interior do tubo, por pistolas-metralhadoras FBP que desatavam a disparar sozinhas ao mais pequeno abanão, por granadas de mão que rebentavam logo no momento em que saltava a alavanca, etc. Os relatórios de algumas operações dos primeiros anos da guerra que eu li em Angola estavam cheios de incidentes deste tipo, com um longo e arrepiante cortejo de baixas.

Enfim, estas são as minhas primeiras impressões a respeito do livro de Francisco Marcelo Curto.
Fico a aguardar a continuação.

Fernando de Sousa Ribeiro

P.S. - Estive no norte de Angola, mas não conheci pessoalmente os locais referidos no livro.
Embora me encontrasse perto, eu estive um pouco mais a sul. Mesmo assim, posso dizer que no decurso de uma operação estive pertíssimo (cerca de 10 km) de Quipedro, onde se encontrava uma companhia de angolanos (a CCaç 104/72, se não me engano) que (dizia-se) foram transferidos para lá de castigo por terem feito um levantamento de rancho.
Se assim foi, custou muitas vidas o levantamento de rancho. Por exemplo, eles sofreram 6 mortos e um número de feridos de que não me recordo, só no "rescaldo" da operação referida.
Numa outra operação, muito mais calma, também não andei longe de Nova Caipemba, em cujas proximidades a FNLA tinha uma das suas bases mais importantes em Angola, a chamada "central do Dange".
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17868: O nosso livro de visitas (195): José Claudino da Silva, ex-1º cabo condutor auto, 3ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74, autor do livro de ficção "Desertor 6520" (Lisboa, Chiado Editora, 2016, 418 pp.)

Guiné 61/74 - P19094: Notas de leitura (1108): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (55) (Mário Beja Santos)

Guarda de honra no cais de Bolama durante a visita do Subsecretário do Ultramar, Raul Ventura
Imagem retirada do livro “Uma Apoteose – duas visitas – uma despedida”, 1953.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Março de 2018:

Queridos amigos,
Nunca me passou pela cabeça que o gerente Virgolino José Pimenta se transformasse num dos atores principais de todas estas peripécias que aqui se descrevem, relativas ao desempenho do BNU na Guiné.
No texto que ora vos deixo em mãos, o gerente pede ao Sr. Governador do BNU uma compensação pecuniária por dar comida e guarida aos ilustres hóspedes e visitantes que acorrem a Bissau para as comemorações do V Centenário do Descobrimento da Guiné, acrescendo intelectuais e jornalistas que vêm para outros certames, muitos deles convidados de Sarmento Rodrigues, hospedagem irrecusável. Mas o ponto alto é o documento que ele deixa ao seu substituto, é percetível que muita coisa mudou na colónia com Sarmento Rodrigues, disseca a natureza dos negócios e como funciona a área produtiva e exportadora. Dá-nos, em consequência, um quadro elucidativo do que era a economia no pós-guerra.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (55)

Beja Santos

Nesta documentação avulsa que se está a convulsar, damos por terminado a análise da documentação do período da II Guerra Mundial.

Não há qualquer documentação relevante quanto a 1946, mas em 28 de janeiro de 1947, o gerente Virgolino Pimenta dirige-se nos seguintes termos ao governador do BNU:

“O desenvolvimento que Bissau tem tido não foi acompanhado pela indústria hoteleira.
Assim, por motivo das festas do V Centenário, já aqui têm vindo algumas individualidades e outras virão, que não encontram alojamento. O Governo da Colónia pede esse alojamento aos particulares e o Banco não é esquecido.

Não se tem podido negar atenção a tais pedidos que, passada esta quadra de festas, devem cessar.
Há pouco, o Banco teve de hospedar o Chefe de Estado-Maior Naval de Dakar e o gerente dar alimentação a este e aos oficiais do hidroavião francês que aqui os trouxe para estudo de uma carreira aérea. Dentro de dias, terá que se dar hospedagem a dois ou três cientistas que vêm ao congresso dos cientistas das colónias ocidentais de África.

As atenções do Sr. Governador pelo Banco e pelo seu gerente são tantas que seria incorrecção enorme desatender estes pedidos.

No entanto, como é fácil de calcular, a satisfação dele arrasa a fraca economia do gerente.
Tratando-se de um caso especial, próprio desta época das festividades do V Centenário, parece-nos que V. Ex.ª poderia fazer o favor grande de ponderar a situação do gerente de Bissau, concedendo-lhe a título especial uma remuneração que o compensasse das despesas já feitas e a fazer, as quais não devem ir além de 4 a 5 contos.

Supomos que não é caso virgem uma concessão desta natureza e em casos especiais como aquele em que estamos”.

Virgolino Pimenta está no seu posto há bastante tempo e não surpreende o documento que seguidamente se fará referência, trata-se do relatório referente à entrega da gerência da filial de Bissau ao gerente José Henrique Gomes, sai do punho de Virgolino Pimenta, a data é 28 de julho de 1947, começa em tom muito prazenteiro:

“Sendo esta a sua primeira gerência, pode considerar-se que é em feliz momento que a vai assumir. Os serviços da filial estão em ordem. Praticamente, não há problemas a resolver que sejam de molde a causar apreensões. As relações com a clientela são positivamente boas. As relações com as autoridades são as melhores, por toda a colónia. As relações com Sua Ex.ª o Governador são óptimas. É uma pessoa estruturalmente honesta e bem-intencionada que merece toda a nossa consideração.”

E chegou o momento de Virgolino Pimenta desembainhar a espada, se até agora se conteve, vem fazer recomendações ao seu sucessor:

“A Guiné é colónia com as características de ‘exploração’ se bem que melhorada sob o aspecto de condições necessárias à permanência de europeus, não deixa entrever uma transição próxima para o tipo de ‘fixação’. Os que vivem aqui e despendem as suas actividades não podem fugir à característica fundamental que norteia os seus interesses. É resultante imediata e natural destes a luta intensa em que vivem e as dissensões que por vezes surgem, agravados pela má preparação inicial de alguns, sob o aspecto de cultura, educação e preparação moral.

Viver o gerente do Banco em campo neutro é a posição que temos conseguido e a única que convém ao interesse do Banco e ao sossego do próprio gerente.

Temos vivido bem com todos. É claro, impossível evitar-se, de longe em longe, sobretudo quando o meio é envenenado por algumas dessas tremendas rajadas de imoralidade um ou outro aborrecimento. E, caso curioso, tais aborrecimentos nascem exactamente porque o gerente da filial não acamarada com certas coisas que são desonestas.

Não ficam mal aqui estas considerações feitas por quem tem onze anos de vida da Guiné, entrou limpo e limpo sai. Até neste capítulo é feliz o colega que nos substitui porque o ambiente moral do meio é, presentemente, tão bom que até parece milagre o registar-se”.

E postas estas considerações, Virgolino Pimenta traça um quadro do mundo dos negócios que o seu sucessor tem pela frente:

“A vida da colónia intensifica-se quando começa a campanha da mancarra. Por meados de Dezembro já se não fala em mais nada senão na abertura da campanha. Em princípios de Janeiro e durante todo mês e o de Fevereiro, a luta é tremenda. Todos querem comprar o mais possível. Não se olha a meios. Compra-se mancarra má com mancarra boa. Compra-se terra. Compram-se cascas, com tanto que se compre mais que o vizinho do lado. E a loucura sobe tanto que se faz cair em desuso uma lei que manda limpar a mancarra, em tararas, antes de se pesar e se paga por preços que de antemão se sabe não serem cobertos pelos preços que será paga no exterior da colónia.

Joga-se com a mancarra como se joga com uma lotaria. Decresce a campanha a partir de Março e pode-se considerar extinta por fins de Maio. Na região do Quinara e Cubisseco, a campanha da mancarra começa mais tarde, principiando em Fevereiro, intensifica-se em Março e já está terminada em Abril ou Maio, o mais tardar. Têm ganho dinheiro os que assim jogam porque há miséria no mundo. Os lá de fora que compram o produto também não se mostram exigentes quanto à qualidade. Regateiam preços, a princípio. Mas, depois, precisados dele, alteiam preços e acabam por pagar bem. O produto chega-lhes às mãos melhor do que entrou em casa dos compradores locais. Muita casca, muita terra; muito bago chocho ficou pelos armazéns, pelos camiões, pelos batelões e pelos navios por onde a mancarra passou. E as quebras são cobertas!

Mas, vindo a normalidade, a Guiné não pode mais trabalhar assim porque o risco será tremendo. E o Banco, fornecedor de capitais, chegada essa altura, terá que agir com prudência enorme, se não quiser suportar todas as consequências das loucuras dos outros. Não deve repetir-se o caso Victor Pereira, de Bolama e, para tal se não dar, todo o cuidado do gerente de Bissau é pouco.

Mal começada a campanha da mancarra, já desponta a do arroz. E começada em fins de Dezembro ativa em Janeiro, Fevereiro e Março. Começa a esbater-se em fins de Junho mas prolonga-se em transacções fracas até Agosto.

Praticamente as duas campanhas coincidem, e isto, se por um lado é bom porque nos origina um período de captação de operações e, consequentemente, de lucros, traz ao gerente da filial um período de desassossego e enervamento.

Apesar dos sucessivos aumentos do limite da circulação fiduciária, esta não chega para as necessidades das duas campanhas juntas.

Chovem as ordens de pagamento vindas da sede, expressas em milhares de contos. Esgotam-se os milhares de contos dos saldos das contas de ‘Depósitos’ e Devedores e Credores e, por vezes, estas duas últimas contas, esgotadas, bastam para provocar o excesso do limite fixado. Para a liquidação das ordens recebidas, geralmente provenientes de depósitos feitos em Lisboa, para cobrir cambiais da exportação, depósitos estes cuja aceitação não pode ser negada, ainda temos a defesa de retardar pagamentos convertendo os escudos metropolitanos em escudos da Guiné só depois das exportações feitas.

Mas se este proceder nos traz a consequência de retardar elevações no excesso do limite da circulação, traz-nos reclamações formidáveis por parte da clientela.

As casas-mãe, na Metrópole, depositam estes dinheiros na nossa sede contando que seja imediatamente pago às suas filiais, na Guiné, pois é com eles que contam para a compra dos produtos. Se lhe negamos o dinheiro paramos-lhe o negócio e é escusado contar o que, por essa razão, tem que ouvir, de pedidos e protestos o gerente de Bissau.

Quanto aos depósitos, que fazer? Nada. Só uma suspensão de pagamento de cheques sobre as respectivas contas, o que se não pode fazer.

 É inevitável, portanto, todos os anos, enquanto os preços dos géneros coloniais não baixarem muitíssimo, em relação aos preços actuais, evitar-se o aumento do limite da circulação. Pior que tudo é o verificar-se que exactamente na quadra em que a filial é mais assediada com pedidos de crédito ser forçada a restringir operações, para evitar saídas de dinheiro e o consequente excesso da circulação.
Tem o gerente desta filial tido um trabalho duro para realizar, em tal quadra, um programa que, servindo o Banco, sirva os clientes. Tem a certeza de que o Banco ficou bem servido pois os lucros realizados são bem interessantes e, quanto aos clientes, com mais explicação, menos explicação, demorando uns mais pacientes, resolvendo os casos dos mais apressados, lá tem levado tudo a bom fim e sente o agrado geral”.

Até agora Virgolino Pimenta, depois de ter caraterizado o ambiente em que se labora e os dois principais negócios, e como são tratáveis, expõe os negócios restantes:

“A campanha do coconote, intimamente ligada à do óleo de palma, começa a esboçar-se no fim de Abril e vai durando até Agosto e mesmo Setembro. Campanha lenta, sem as características violentas das da mancarra e do arroz, já não produz as consequências daquelas e, por assim dizer, quase se não sente, se bem que, ainda por momentos, pese na circulação de notas durante os períodos em que se acumula com elas.

Mais tarde, vêm as colheitas do milho e do funde, produtos que são consumidos totalmente pelo indígena, que se não exportam e pelos quais o comércio não se interessa.

De Maio a Agosto corre a campanha da seda, lentamente e sem pesar também grandemente na circulação. O negócio dos couros corre durante todo o ano. Como a maior quantidade deles vem do ‘chão francês’, é paga, em parte, com francos senegaleses nas regiões fronteiriças onde este franco corre como se fosse moeda da colónia, não nos parecendo fácil acabar-se com tal sistema nas regiões fronteiriças. O negócio da borracha está morto pois desde que o comerciante a não pague aos indígenas por preços altos, estes não a têm”.

O gerente debruça-se agora sobre operações financeiras, aborda os negócios dos pequenos comerciantes, as casas nacionais e estrangeiras, as letras e o regime de conta-correntes, é, como sempre, de grande clareza:

“A parte importante do comércio da Guiné é formada por casas cujas sedes estão no exterior da colónia, sendo estas que as abastece de dinheiro.

Assim, as operações de desconto da praça são raras, porque as transacções entre os pequenos e os grandes comerciantes são liquidadas a dinheiro ou por permuta de géneros coloniais por fazendas. É raro, portanto, o papel com a característica pura de comercial. Letras de favor que podem merecer a aceitação pelo Banco conforme a confiança que merecerem os intervenientes. De uma maneira geral, todo o pequeno comerciante vende os géneros que compra ao grande comerciante e este remete-o às suas sedes que ajustam as colocações no exterior e recebem as liquidações.

Assim, raro é também o aparecimento de letras sacadas sobre o exterior da colónia.
Antigamente, as casas nacionais e estrangeiras vendiam a mancarra para o estrangeiro e daí resultava o aparecimento de letras sobre diversos países, sobretudo do norte da Europa. Hoje, como ainda não foi permitida a exportação para o estrangeiro, não aparecem tais letras.

Tem a filial trabalhado em regime de conta-correntes caucionadas com alguns clientes com bons resultados, sendo uma operação que agrada à clientela, apesar de ser um tanto pesada quanto aos seus encargos.

Mais se poderia desenvolver se o Banco tivesse armazéns capazes para guardar as cauções que, sempre que possível, deviam entrar nos armazéns do Banco”. 

Segue-se a análise de casos especiais, neste contexto pouco relevantes. Estava-se nesta fase de leitura quando os papéis trazem nova surpresa: é o relatório da entrega da gerência da filial de Bissau feita novamente por Virgolino José Pimenta desta feita a um novo gerente, de nome Clarence Abílio do Quental Mendes, tem a data de 15 de agosto de 1949. Fica-se ainda por saber se o gerente Virgolino voltou à gerência por sua iniciativa, se correu mal a vida ao gerente José Henrique Gomes, o que interessa é que ele voltou à Guiné, é indubitavelmente o gerente que tem o palmarés da mais prolongada estadia, é um dos cronistas desconhecidos mais importantes no canal do Geba.

(Continua)

Chegada dos Capas-Negras a Bissau, receção na “Real República dos Cágados”
Imagem retirada do livro “Uma Apoteose – duas visitas – uma despedida”, 1953.

Imprensa Nacional em Bolama
Fotografia de Francisco Nogueira, inserida no livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.

Vista do interior do Palácio do Governador
Fotografia de Francisco Nogueira, inserida no livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições tinta-da-china, 2016, com a devida vénia.
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Notas do editor

Poste anterior de 5 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19073: Notas de leitura (1106): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (54) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 8 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19082: Notas de leitura (1107): “Livro Negro da Descolonização”, por Luiz Aguiar; Editorial Intervenção, 1977 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19093: Efemérides (291): Faz hoje 51 anos: 12 de outubro de 1967, o dia em que eu morri....Por outro lado, sou o "único culpado" do suicídio do ex-alf mil, madeirense, Gouveia (Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)



Fotocópia da folha da caderneta militar, página 5,  do Mário Gaspar... onde foi averbada a sua morte, supostamente ocorrida em 12 de outubro de 1967.


Fotocópia da folha da caderneta militar, do Mário Gaspar, correspondente à página das "ocorrências extraordinárias", onde é de novo referida a sua  morte...

Fotos (e legendas) : © Mário Gaspar (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Mensagem, de hoje, às 5h35, do Mário Gaspar, ex-fur mil at art, minas e armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68; e, como ele gosta de lembrar, Lapidador Principal de Primeira de Diamantes, reformado; e ainda cofundador e dirigente da associação APOIAR; tem mais de. uma centena de referências no nosso blogue]

Caros Camaradas,


Que interesse têm os portugueses de saberem que existiu uma Guerra Colonial? Já basta o “Aquecimento Global”, que nem sequer sabemos ao certo o que é, ainda para cúmulo essa guerra onde os nossos pais ou avôs combateram. Pois vou narrar-lhes aquilo que me sucedeu, talvez em Agosto, no período das férias de 1969.

– Foi precisamente no dia 12 de Outubro de 1967 que morri (*). Não sei como! Se por doença: paludismo; matacanha; outra.
– Mas o que é isso do paludismo ou matacanha? Compreendia antes se fosse da saudade!
– Esquece!

Morri, curiosamente só tive conhecimento de tal, no dia do meu casamento. Inicialmente fiquei preocupado, quando o Padre na Igreja de São João de Brito disse:
 – Estou a casar o morto vivo!
– Se morreste, não compreendi essa, estás aqui, e vivo… Como a sardinha da Costa!Sorri e tudo se sumiu como espuma!

Pois no dia que me desloco à Sacristia para levantar a Certidão de Casamento, recordei aquele episódio rocambolesco na Igreja. Parei no topo da escadaria e abri a sinistra Caderneta Militar que deixara para que fossem feitas as alterações necessárias:  data do casamento e mudança de residência.

Primeira surpresa. Leio, esfregando os olhos:  "Baixa de Serviço: – por falecimento a 12 de Outubro de 1967!" ... Algumas páginas a seguir: "Morto a 12 de Outubro".

Tudo sem explicações: quem o fez tinha plena consciência daquelas asneiras, podia no mínimo ressalvar esta «morte», uma mentira cruel,  e um Padre que tinha a obrigação de fazer menos comentários.

Verdade é que ia caindo na escadaria e rebolado até ao “passeio português”. Tinha consciência que da tropa podia esperar um pouco de tudo, agora matarem um combatente com tinta parker azul permanente…

Tive de saber o que estava por detrás daquela historieta.

Nas férias em Agosto dirigi-me ao Quartel mobilizador,  o Regimento de Artilharia de Costa (RAC), em Oeiras. Encontrava-se na Secretaria o Major (julgo ser ainda Major), o oficial que me colocara de Serviço no último domingo que tinha a oportunidade de estar com a Família antes de embarcar para a Guiné.

Quando lhe dei para as mãos a Caderneta logo me arrependi. Leu e disse:
– Que mal faz estar aqui dado como morto?
 Ao senhor pouco ou nada importa!

Interrompi-o ao escrever na Caderneta com uma bic azul e outra vermelha.
– Mas você não pode, nem deve fazer emendas ou ressalvas. Nesse caso as rasuras faço eu. Não tem o direito.

Tirei-lhe a Caderneta das mãos. Tinha sublinhado de um lado e fez uma ressalva.

Tratei-o mal, chamando a atenção àquilo que me fizera colocando-me no domingo anterior à partida de Serviço:
– Sargento de Dia ao Regimento!

Ninguém aceitou fazer esse Serviço por mim por ameaça a todos que de algum modo fizessem esse Serviço, inclusive eu pagava bem.

Passado algum tempo desloquei-me ao Departamento do Arquivo Geral do Exército que funcionava no antigo Quartel na Avenida de Berna e nos dias de hoje emprestado à Universidade NOVA de Lisboa. Segundo consta,  o imóvel foi vendido, esse quantitativo serve para o Fundo dos Combatentes.

Interessa neste caso a explicação sobre a minha morte. Logo que disse a razão da minha ida , s três indivíduos riram. Entreguei a Caderneta e logo vi segurar uma pasta, diferente das outras, estava toda agrafada. Disse:
– Vi que tenho toda a razão: morri a 12 de Outubro de 1967!

O Sargento tirou os agrafos – eram os três Sargentos – e referiu logo:
– Olhem,  este camarada era nosso vizinho na Guiné!

Disse-me junto ao balcão:
– Aquele estupor esteve comigo em Guileje e o outro do canto era de Mejo.

Curioso, estivemos todos juntos. Respondi:
– Agora estou a reconhecê-los, estivemos mais de uma vez a comer juntos.

Referiram estar tudo na ordem, com o inconveniente de estar registado na Caderneta. Não compreendiam a razão do Major em Oeiras ter feito esta gatafunhada. Ninguém o autorizou.

Ainda fui a Programas de Rádio; dei entrevistas para jornais e fui a dois Programas de televisão. Um deles, da Fátima Lopes.


 

Lisboa > Belém > Forte do Bom Sucesso > Memorial aos Mortos do Ultramar >  c. 2018 > O Mário Gaspar aponta os nomes dos seus camaradas  António Lopes Costa, soldado, e Victor Correia Pestana, furriel, mortos em acidente com arma de fogo, em 12 de outubro de 1967, perto de Ganturé, junto à fronteira com a República da Guiné-Conacri.  (**)


Fotos (e legendas) : © Mário Gaspar (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Talvez tivesse algo a ver com esta asneira, terem morrido o meu Amigo, vítima do rebentamento de uma granada armadilhada, o Furriel Miliciano Vítor José Correia Pestana, de Abitureiras, Santarém e o Soldado António Lopes da Costa, de Cerva, Vila Real. Ambos mortos por acidente, um acidente, e grande, era estarmos na guerra.

Quando gozei férias fui entregar à Família do Vítor pequenos utensílios que lhe pertenciam. Como o Vítor falasse muito no Mário, trataram-me como sendo o filho, primo, etc.. Custou-me imenso. Como tivessem morrido num período em que não estava, fui verificando não me terem narrado tudo sobre ambas as mortes, por saberem sermos muito amigos. A razão de tal é termos cumprido grande parte do Serviço Militar juntos.

Um dia insisti com um camarada que a chorar pelo telemóvel contou. A CART 1659 iniciou uma patrulha até à fronteira com o fim de montarem armadilhas, o que foi feito. Esta patrulha era sempre no mesmo sentido, nunca no contrário nem regresso pelo mesmo lado.

O Alferes Gouveia que comandava, já na fronteira deu ordens para regressarem pelo mesmo trajecto da ida e o Vítor Pestana referiu ter feito o croqui mas no sentido da ida, não possuía pontos de referência no sentido contrário. Insistiu o Alferes, eram ordens. O Costa disse ao Furriel que o acompanhava, os dois avançaram. Pára o Pestana, olhando para os pés. Não podia escapar e lançou-se sobre a granada armadilhada que rebenta. O Costa fica encostado a uma árvore, parecia descansar, nem sequer sinais de ter atingido, estava morto. O Pestana tinha braços e pernas seguros do restante corpo por linhas. No peito um buraco. Estava vivo. Ainda chegou vivo a Gadamael Porto e foi visto pelo Médico do Batalhão que se encontrava perto.

O Pestana pedia, e por favor, aos Furriéis Milicianos, que lhe dessem um tiro na cabeça. Morreu. Tive só conhecimento da sua morte ao regressar de licença. A história que me contam é sobre o local das mortes e das ordens que recebeu.

Todas as vezes que via o Alferes Luís Alberto Alves de Gouveia, olhava-o bem nos olhos e dizia:
– Você matou o Pestana e o Costa!

Ele nunca me respondeu. Anos depois, encontrei-me com o Capitão Miliciano de Infantaria Manuel Francisco Fernandes de Mansilha, [,nosso antigo comandante,]  que me informou:
– O Gouveia suicidou-se na Ilha da Madeira. Lançou-se ao mar de um penhasco!

Respondi-lhe:
– Sou o único culpado.

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 28 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18875: Efemérides (290): 4 de Julho – dia da Rainha Santa Isabel – o Dia do Serviço de Administração Militar (António Tavares, ex-Fur Mil SAM)

(**) Vd. postes de:


4 de outubro de  2015 > Guiné 63/74 - P15197: História de vida (41): Regressei a 6/11/1968 e casei-me a 29/6/1969, com uma das minhas madrinhas de guerra...Soube pelo padre que a tropa me tinha dado como morto... (Mário Gaspar,ex-Fur Mil At Art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

Guiné 61/74 - P19092: Parabéns a você (1511): Cátia Félix, Amiga Grã-Tabanqueira

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Nota do editor

Último poste da série de 11 de Outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19088: Parabéns a você (1510): Benito Neves, ex-Fur Mil Cav da CCAV 1484 (Guiné, 1965/67); Eduardo Campos, ex-1.º Cabo TRMS da CCAÇ 4540 (Guiné, 1972/74) e Patrício Ribeiro, ex-Fuzileiro Naval (Angola, 1969/72), residente na Guiné Bissau

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19091: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 68 e 69: "O meu negócio: Só no mês passado vendi 30 garrafas de uísque, 35 volumes de tabaco e 12 isqueiros Ronson". (...) "Veio cá o general Bettencourt Rodrigues. Formamos todos na parada mas senti-me mal e fui autorizado a ir para a cama. Não vi o Governador da Guiné”.



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) >  O Dino, de sentinela. "O meu amigo fotógrafo andou comigo a tirar slides. Ainda não sei bem o que é isso mas parece que são fotos de ver projectadas num lençol."


Foto: © José Claudino da Silva (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome daPátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à direita] (*):

(i) nasceu em Penafiel, em 1950, "de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje: que o digam mais de 150 mil portugueses!), tendo sido criado pela avó materna;

(ii) trabalhou e viveu em Amarante, residindo hoje na Lixa, Felgueiras, onde é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;

(iii) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado; completou o 12.º ano de escolaridade no âmbito do programa Novas Oportunidades; foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);

(iv) tem página no Facebook; é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.

2. Sinopse dos postes anteriores:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, dos percursos de "turismo sexual"... da Via Norte à Rua Escura;

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré; o dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau, e fica lá mais uns tempos para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(v) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas da companhia; partida em duas LDM para Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos' (ou vê-cê-cês), os 'Capicuas", da CART 2772;

(vi) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(vii) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe"; a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(viii) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(ix) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda; e ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogramas por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(x) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xi) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1.º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xii) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xiii) começa a colaborar no jornal da unidade, os "Serrotes" (dirigido pelo alf mil Jorge Pinto, nosso grã-tabanqueiro), e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras dúvidas sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, as pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo;

(xiv) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. cap.º 34.º, já publicado noutro poste); como responsável pelos reabastecimentos, a sua preocupação é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco;

(xv) dá a notícia à namorada da morte de Amílcar Cabral (que foi em 20 de janeiro de 1973 na Guiné-Conacri e não... no Senegal); passa a haver cinema em Fulacunda; manda uma encomenda postal de 6,5 kg à namorada; em 24 de fevereiro de 1973, dois dias antes do Festival da Canção da RTP, a companhia faz uma operação de 16 horas, capturando três homens e duas Kalashnikov, na tabanca de Farnan.

(xvi) é-lhe diagnosticada uma úlcera no estômago que, só muito mais tarde, será devidamente tratada; e escreve sobre a população local, tendo dificuldade em distinguir os balantas dos biafadas; em 20/3/1973, escreve à namorada sobre o Fanado feminino, mas mistura este ritual de passagem com a religião muçulmana, o que é incorreto; de resto, a festa do fanado era um mistério, para a grande maioria dos "tugas" e na época as autoridades portuguesas não se metiam neste domínio da esfera privada; só hoje a Mutilação Genital Feminina passou a a ser uma "prática cultural" criminalizada.

(xvi) depois das primeiras aeronaves abatidas pelos Strela, o autor começa a constatar que as avionetas com o correio começam a ser mais espaçadas; o primeiro ferido em combate, um furriel que levou um tiro nas costas, e que foi helievacuado, em 13 de abril de 1973, o que prova que a nossa aviação continuou a voar depois de 25 de março de 1973, em que foi abatido o primeiro Fiat G-91 por um Strela;

(xvii) vai haver uma estrada alcatroada de Fulacunda a Gampará; e Fulacunda passa a ter artilharia
(obus 14); e o autor faz 23 anos em 19 de maio de 1973; a 21, sai para Bissau, para ir de férias à Metrópole; um grupo de 10 camaradas alugam uma avioneta, civil, que fica por um conto e oitocentos escudos [equivalente hoje a 375,20 €];

(xviii) considerações sobre o clima, as chuvas; em 19/5/1973, faz 23 anos... e vem de férias à Metrópole, com regresso marcado para o início de julho de 1973: regista com agrado o facto de o pai, biológico, ter trazido a sua tia e a sua avó ao aeroporto de Pedras Rubras para se despedirem dele;

(xix) vê, pela primeira vez, enfermeiras, brancas, paraquedistas; apercebe-se igualmente da guerra psicológica; queixa-se de a namorada não receber o correio; manda um texto para o jornal "O Século" que decide fazer circular pelo quartel e onde apela a uma maior união do pessoal da companhia, com críticas implícitas ao capitão Serrote por quem não morre de amores: na sequência disso, sente-se "perseguido" pelo seu comandante...

(xx) vai de baixa médica para Bissau, mas não tem lugar no HM 241; passa o Natal de 73 e o Ano Novo de 1974 nos Adidos; conhece a "boite" Chez Toi onde vê atuar alguns elementos do grupo musical Pop Five Music Incoporated, a cumprir o serviço militar na Guiné;

(xxi) grande ataque, em 7/1/1974, ao quartel e tabanca de Fulacunda com canhões s/r, resultandodanos materiais, feridos entre os militares e a população e a morte de uma criança.

(xxii) faltam 5 meses para acabar a comissão... e há mais uma "crise" nas relações com a namorada;

(xxiii) em fevereiro de 1974, comunci à namorada que tem, já algum tempo, um pequeno negóco: vendo uísque,  tapetes, tabacos de marcas que não há na cantina, isqueiros Ronson, ettc.


3. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 68 e 69

[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ] 


68º Capítulo  > É DO SECTOR DE BIANGA

A foto que está na página [, acima,] tem uma história interessante. Foi extraída do primeiro slide que me tiraram. Na carta eu faço o apontamento, está a minha última referência a um ato bélico.

“Meu amor. hoje tenho uma novidade para te dar. O meu amigo fotógrafo andou comigo a tirar slides. Ainda não sei bem o que é isso mas parece que são fotos de ver projectadas num lençol.

Quando estava em cima da torre ouvi o barulho das saídas das bombas de ataque ao quartel e gritei para fugirem. deitei-me lá em cima atrás da beirada, mas as bombas caíram fora do quartel. O capitão berrou par eu espreitar e ver de onde vinha o fogo e eu mais à sorte do que ver mesmo, disse que era de Bianga. Ele disse ao capitão dos obuses, mandaram para lá meia dúzia de bombas e calaram-se logo. Foi à sorte mas decerto acertei.

Tem uma metralhadora anti-aérea lá na torre mas eu nem sei disparar com ela por isso escondi-me”.


Os slides ficaram bem e, por incrível que esta história lhes possa parecer, continuamos a seguir ao ataque a tirar o resto dos slides. Ninguém se preocupava muito com o que pudesse acontecer.

69º Capítulo  > O NEGÓCIO

Só me referi ao meu negócio precisamente em Fevereiro de 74.
“Quero informar-te que montei aqui já há algum tempo, um pequeno negócio. Vendo whisky, tapetes, tabacos de marcas que não há na cantina, isqueiros Ronson etc. Só hoje vieram treze contos e quinhentos de coisas para mim. Devo ter um lucro aproximado de dois contos e quinhentos. Quando for quero comprar-te um anel de noivado em ouro branco com uma pérola que seja bonito para te oferecer.

Quem me fornece é o 1º sargento que conheci em Bissau pelo Natal é a primeira pessoa que confia em mim mesmo sem eu pagar adiantado. Só no mês passado vendi, 30 garrafas de whisky, 35 volumes de tabaco e 12 isqueiros iguais a esse que enviei para o teu pai. Também vendo serviços de café chineses que se vê uma chinesa no fundo da chávena mandei-te um. Vais ter um marido que embora gaste, também sabe ganhar. Com este negócio, vou adquirindo experiencia noutras áreas. Já fumei dois ou três cigarros mas começo logo a tossir”

Fumei depois mais 42 anos. Deixei o vício graças à minha neta.

"Acho que vem cá o governador temos de ter isto tudo impecável”.

Foi talvez a visita mais caricata que algum governador fez a Fulacunda, a visita do General António Spínola.

Dois governadores visitaram-nos, durante o comando do capitão miliciano mais exigente na disciplina que provavelmente existiu na Guiné, e digo miliciano porque normalmente os militares de carreira ou “Os Xicos”, como nós lhe chamávamos, é que eram exigentes na disciplina. O meu capitão meteu completamente o pé na poça.

Decidi juntar num só texto as visitas de dois governadores porque não tenho grande coisa escrita. Apenas isto sobre Spínola, que nos visitou no início de Dezembro.

“Afinal não valeu muito o capitão avisar que talvez viesse aqui o governador e comandante da Guiné o general António Spínola e para nós andarmos sempre apresentáveis. Ele apareceu aqui sem ninguém contar e um condutor ao ver que de repente chegou um Helicóptero à pista foi para lá o mais rápido possível num Unimog sem bancos e em tronco nu. O Spínola entrou pelo quartel dentro em pé em cima do Unimog. Que bronca.

Já viste bem que nem segurança se fez? E se o matavam aqui?

Fiquei desiludido com ele”.


Quanto ao General Bettencourt Rodrigues:

“Formamos todos na parada mas senti-me mal e fui autorizado a ir para a cama. Não vi o Governador da Guiné”

Honestamente, não sei porque me referi a ter ficado desiludido com Spínola, nem se, com Bettencourt Rodrigues foi algum truque para sair da formatura, pois não a escrevi.

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P19090: Ser solidário (219): "Nô pintcha tabanka Tabatô"!... Vamos dar um empurrão à construção da escola de música de Tabatô!... Hoje, no B.Leza Clube, Lisboa, Cais da Ribeira Nova, a partir das 22h30, com os nossos grã-tabanqueiros Mamadu Baio, Braima Galissá e outros músicos guineenses


Lisboa, 11 de outubro de 2018, a partir das 22.30 até às 2h00,. no B.Leza Clube,
Cais da Ribeira Nova, Armazém B, 1200-109 Lisboa.

Abertura de porta 21h30

Entrada 10€

1. Sinopse:

Tabatô é uma aldeia (tabanca) única de linhagem griot/djidiu perto de Bafatá, Guiné-Bissau, onde há séculos se passa, de geração em geração, a tradição da música mandinga que triunfou por completo a partir dos anos 90 com a explosão da «World Music' a partir de Paris. 

Hoje, o balafon e a korá são instrumentos universais que chamaram a si o interesse de todo o ocidente, resultado directo de gravações primorosas de centenas de mestres mandinga na costa ocidental africana, e vendas de discos pelo mundo inteiro.

Hoje também, um dos locais mais emblemáticos de origem de toda esta cultura, a Escola de Música de Tabatô, está de tal forma degradada que se perderam as condições para lá se aprender música. Esta noite de música e imagem no B.leza pretende angariar fundos para que a reactivação da escola seja uma realidade.

Fonte: B.Leza Clube

2. Apelo do nosso grã-tabanqueiro, médico e músico João Graça:

Apareçam na quinta no B.Leza! Por uma boa causa - a construção de uma escola de música na aldeia griot de Tabatô, na Guiné Bissau. 

Participarei no evento como músico ao lado do inspirador Mamadu Baio.

Foto à esquerda: Mamadu Baio, natural de Tabatô. Alfragide, 21 de janeiro de 2014.
Festa de anos do João.
Foto: © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados]

[Tabatô tem 25 referências no nosso blogue ]
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Guiné 61/74 - P19089: In Memoriam (330): Diamantino Gertrudes da Silva (1943-2018), ex-comandante da CCAÇ 2781 / BCAÇ 2927 (Bissum, 1970/72), "capitão de Abril", escritor (Carlos Matos Gomes)

O capitão de Abril Gertrudes da Silva;~
comandou a CCAÇ 2781
(Bissum, 1970/72)
1. Poste do Carlos Matos Gomes na sua página do Facebook, partilhada pela nossa, a Tabanca Grande Luís Graça, com data de ontem, às 20h00:

 ·
Os portugueses não conhecem o Diamantino

por Carlos Matos Gomes


As portuguesas e os portugueses não conhecem o Diamantino. Antes do Diamantino também não conheceram o Corvacho, nem o Tomaz Ferreira, nem o Vila Lobos, nem o Ramiro, nem o Ernesto, o Melo Antunes, nem o Varela, o Gomes, nem o Victor, o Crespo, os portugueses não conhecem os portugueses que estiveram no dia 25 de Abril de 1974 no comando das operações na Pontinha, nem nas unidades que tomaram o poder

Nem dos que estiveram em Bissau, em Luanda, ou em Nampula a assumir a responsabilidade histórica de resolver um problema colonial que se arrastava desde a Conferência de Berlim (1884), que fora causa da queda da monarquia, da implantação da República, da entrada de Portugal na I Grande Guerra, da instauração da ditadura em 1926 e de uma guerra colonial de 13 anos.
O desconhecimento desses nomes e o conhecimento de outros, de futebolistas e comentadores de TV, de cantores e de apresentadores de TV, de cabeleireiros e cozinheiros, de alfaiates e famosos das relações públicas representa a glória dos anónimos militares como o Diamantino.

O Diamantino morreu hoje (**). O Diamantino teve um papel decisivo no 25 de Abril, comandando a coluna militar que controlou o centro do país. Os portugueses não conhecem o Diamantino, nem os camaradas que o acompanharam nesse dia e nessa acção. O desconhecimento do Diamantino é a sua maior condecoração. O Diamantino e os seus camaradas fizeram o que fizeram para que os comentadores comentassem, os cantores cantassem, os famosos se exibissem. O Diamantino e os seus camaradas são anónimos para que os portugueses tenham nome e possam tê-lo. O Diamantino e os seus camaradas fizeram o que fizeram para que os portugueses tivessem um serviço nacional de saúde e também um multibanco. 

O Diamantino morreu ontem. Nasceu em 1943, na Beira Alta, em Moimenta da Beira. Filho de gente humilde – não se trata de neo-realismo – frequentou o seminário e depois a Academia Militar, onde entrou em 1963. Conheci-o ainda de missal, expressão séria, a sair da caserna para ir à missa. Eu, três anos mais novo, já agnóstico. Nunca falámos de religião, de deuses, de salvação. Respeito. Ele infundia respeito, mesmo quando acreditava no que me merecia radicais oposições: eu dispensava a ideia de Deus, ele ainda a respeitava, não como amparo pessoal, mas como instância de justiça, julgo.

Ao longo da minha vida conheci pessoas extraordinárias. Sorte a minha. O mais extraordinário de
todos, se me perguntarem, Samora Machel. Mas, falando apenas dos que já morreram, conheci também Aquino de Bragança (informem-se sobre a personagem), e Spínola (escrevi sobre ele no Expresso na data da sua morte), e Costa Gomes, e Varela Gomes, e Fernando Salgueiro Maia, e o comissário político da brigada Lister na guerra civil de Espanha, e Santos e Castro, fundador dos comandos e comandante de mercenários, fui amigo do Jaime Neves… e apoiante da Maria de Lurdes Pintassilgo. Fui amigo do Diamantino…

Quando, como é da história, nas revoluções se separam águas entre os que a fizeram, eu e o Diamantino ficámos na mesma margem. Foi depois do 25 de Novembro de 1975. Numa tarde, ou noite clandestina, encontrámo-nos em Viseu, a sua base, a conversar sobre o que era possível salvar, não da esperança, mas da parte do poder que devia caber aos que, sujeitos a séculos de dependências, iniciavam a descoberta da liberdade de decidirem o seu presente e o seu futuro. Poder popular, se não for descoberta outra designação aos sans culottes que, aqui em Portugal, viviam a sua revolução francesa no Portugal rural e eclesiástico após o 25 de abril. O “Comunismo” nos sermões dos padres lúbricos e guardadores de rebanhos.

O Diamantino formou-se em História, em Coimbra. Ele, e um outro destes capitães, também já desaparecido, o Monteiro Valente. Conheci-os, relacionei-me com eles como mais um privilégio que a vida me concedeu. O Monteiro Valente foi o único (julgo) capitão que teve de disparar a sua arma para impor o 25 de Abril numa unidade militar!

A História concedeu a Portugal, aos portugueses que não sabem quem eles foram, o privilégio de ter os capitães dos seus exércitos de terra, mar e ar no local certo, no tempo certo, para realizarem a 25 de Abril de 1974 aquilo que era necessário fazer e foi feito da forma exemplar que a História reconhece como a “revolução dos cravos”. 

O Diamantino pertenceu a essa gesta de anónimos capitães que Portugal e os portugueses tiveram a sorte histórica de encontrar generosamente disponíveis e culturalmente preparados para assumirem os riscos de lhes traduzirem os anseios de liberdade e de paz. Ele escreveria ensaios e fições sobre a sua geração.(**)

A morte do Diamantino, capitão de Abril, ocorre no tempo em que emerge do lado de lá do Atlântico, no Brasil a quem tanto nos une, um capitão de negrume, de nome Bolsanaro…um fantasma da História. Figura recorrente de abutre militar…

O capitão Diamantino, que morreu em Viseu, era a face luminosa dos militares de qualquer parte do mundo que estão do lado da História e dos seus povos…

Será enterrado singelamente. Como um militar digno. Com as “sem honras” que a sua vida merece.
Que a semente do seu exemplo frutifique…

[O ex-comandante da CCAÇ 2781, Bissum, 1970/72, capitão de Abril e escritor, Gertrudes da Silva, tem 8 referências no nosso blogue. Infelizmente não temos nenhum representante desta companhia no nosso blogue; a minha sugestão é que este nosso camarada, que foi comandante operacional no TO  da Guiné, entre para a Tabanca Grande, a título póstumo.]
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Notas do editor:


(**) 13 de março de 2008 > Guiné 63/74 - P2632: Coronel Gertrudes da Silva: A Guiné, a guerra colonial e o 25 de Abril (Virgínio Briote)

(...) Nota de Virgínio Briote:

O Coronel Diamantino Gertrudes da Silva foi admitido na Academia Militar em Outubro de 1962. Nº 1 do Curso de Infantaria, com o posto de Alferes foi mobilizado para Angola (região de Bessa Monteiro), integrado na CCaç 1642.

Em 1970, comandou a CÇAÇ 2781 na Guiné, que esteve destacada em Bissum, permanecendo no território até 1972, data em que a Companhia regressou à Metrópole. Colocado nesse ano em Viseu, no RI 14, aí permaneceu até à véspera do 25 de Abril de 1974. À frente das tropas que conseguiu reunir, deslocou-se para Lisboa e Peniche onde teve acção preponderante no desenrolar dos acontecimentos que se seguiram ao movimento militar.


É autor de várias obras (...)

Guiné 61/74 - P19088: Parabéns a você (1510): Benito Neves, ex-Fur Mil Cav da CCAV 1484 (Guiné, 1965/67); Eduardo Campos, ex-1.º Cabo TRMS da CCAÇ 4540 (Guiné, 1972/74) e Patrício Ribeiro, ex-Fuzileiro Naval (Angola, 1969/72), residente na Guiné Bissau



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Nota do editor

Último poste da série de 10 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19086: Parabéns a você (1509): Manuel Resende, ex-Alf Mil Art da CCAÇ 2585 (Guiné, 1969/71)

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19087: Bibliografia de uma guerra (93): “Tu não viste nada em Angola”, por Francisco Marcelo Curto; Centelha, 1983 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Agosto de 2016:

Queridos amigos,
Nunca me passou pela cabeça que o socialista autogestionário Marcelo Curto tivesse apanhado a guerra de Angola logo em meados de 1961, lançado no Norte, em locais quentes.
Não privilegio outras literaturas de guerra que a da Guiné mas de tempos a tempos gosto de ser surpreendido pelos termos de comparação. Neste caso, um território com alturas e funduras, uma guerra de capacete, com contingentes militares acompanhados de voluntários, com tiradas racistas impensáveis em território guineense, aqui o problema da cor era outro, bem como os problemas coloniais tinham outra feição.
É um documento raro, um alferes que leva sebentas para a comissão militar, devia imaginar que viria em breve fazer exames...
Uma surpresa da literatura de guerra que partilho com enorme satisfação convosco.

Um abraço do
Mário


Quando a guerra, toda ela, dava pelo nome de Angola (1)

Beja Santos

Francisco Marcelo Curto (1937-2001) foi fundador do Partido Socialista, membro do governo, conceituado especialista em Direito do Trabalho, e no meio político e sindical conheceu grande notoriedade devido às suas simpatias com o processo autogestionário e por ter criado a Esquerda Laboral.

Escreveu um só livro na sua vida abreviada: “Tu não viste nada em Angola”, Centelha, 1983. O seu livro é uma surpresa e uma revelação, é um registo de notas entrosado com memórias plasmadas sob a forma de água-fortes. Surpreende pela sinceridade, nada do que consta dessa obra pode ter sido decantado em laboratório, denota, toda a obra, o cunho da mesma personalidade e tem uma margem plausível da história temporal do combatente, há para ali a experiência de uma comissão em marcha.

Estamos em Julho de 1961, quando ele começa a registar páginas do seu diário: a descrição sumária da cidade de Luanda, as conversas sobre os batalhões a caminho de Nambuangongo, a adaptação à comida (muamba, um molho grosso de óleo de palma e muito gostoso, com galinha e arroz ou funge), anota que o funge se pega à boca e o jindungo, visitas aos cabarés, ficamos a conhecer os seus soldados, o Sorna, o Azinheira. O grande choque é dado quando visita os primos, as conversas não escondem os sentimentos racistas destes colonos, a queixa a que os pretos eram criminosos, os brancos tinham-se viso obrigados a unirem-se em milícias armadas. Em Agosto, já estava em Toto, demoraram dois dias de viagem, encontraram abatizes, fazendas abandonadas: “Toto vive de um tipo que tem palmeiras e negoceia em óleo de palma e café. As sanzalas à volta de Toto estão destruídas. Há um restaurante onde o bife é pago a preço de ouro. A mulher dele usa chicote e berra”. Não esconde a veneração pela mãe, a sua relação com Matilde, a mãe do filho, está profundamente abalada ou exausta. Aqui e ali, vai pontuando o texto de poesia, esta não passará à história.

E temos uma coluna para o Catete: “Rua ao centro, um grande casarão ao fundo, e à volta sanzalas e mais sanzalas. Na prisão da administração um preto leva porrada com uma moca. Foi caçado ontem – informa o cipaio – e não quer cantar. Mais vai cantar – assegura. Também está de amarelo como os soldados, com um bivaque pequeno, ridículo, e bate pouco de cada vez, uma, duas, três porradas, depois espeta a moca na barriga do preto”. Há profunda contestação entre a tropa àquela cena de porrada. Marcelo Curto maneja a dureza da cena: “Dava só uns urros torcidos como o raio. A cara não mexia. Ao cipaio é que parecia estar-lhe a doer qualquer coisa”.

As colunas convocam a inevitabilidade da guerra, há o permanente ambiente de perigo, o coração em ânsias, as hastes do capim roçam o rosto e as fardas, sente-se o bater seco das espingardas na armação de aço da viatura e a prosa torna-se lírica, pesarosa, naquela madrugada fosca, já se abandonaram as viaturas, a coluna é uma fila de lagarta à procura de um pequeno rio, passou-se uma sanzala destruída, há aquela tensão de silêncios retesados, e depois rebentam as rajadas na encosta, é fogo de pouca dura. E tudo termina bem: “Voltamos para trás e seguimos pela encosta por onde viemos, duas armas fazem fogo para os montes do Pete, baixos em direcção à maldita metralhadora que ergue poeira amarela no capim, depois a encosta, descansamos até à caminhada para a posição em frente, exaustos, salvos”.

Os nomes que ele invoca são os da Angola de 1961: Caipemba, Quipedro, Quindaca, Nova Caipemba. São longos os estirões pela mata, e a tensão parece aliviar quando aparecem sinais de vida: “Passávamos sanzalas de capim crescido mas ralo, é capim novo, as árvores vão rareando, encontramos leiras de feijões, feijões mesmo, uma pequena horta, um alto e um vale do outro lado, subindo o olhar das bananeiras para o negro no fundão do vale via-se terra desmatada há pouco, pontos-pessoas-negras-calmas a fazerem pequenas fogueiras, alheados dos guerreiros que aos poucos surgiam e já puxavam da espingarda. Onde estava eu? Deslumbrado”.

Acompanham o dispositivo militar voluntários, muitos deles irão morrer. Há conversas com fazendeiros, há bailundos que estão na debulha do café. Nosso alferes é transferido para Nova Caipemba, assim descrita:
“Doze ou catorze casas de um lado e outro de uma rua larga de terra batida. Em cada um dos extremos o posto e a igreja. Dois comerciantes brancos, dos cinco que havia antes das makas.
Muitas fazendas à volta. No vale do Loge três estão ocupadas pelos gerentes, empregados dos donos que estão em Luanda. Aqui mais perto, duas ocupadas pelos voluntários e outra por um representante do proprietário (…) Distribuímo-nos pelas casas abandonadas. Ir buscar água para o lado da fazenda dos voluntários, aqui é arriscado. Os postos de vigia (oito) em cima das torres feitas de troncos e as rondas à noite são a maior distração destas paragens, depois da cerveja, dos churrascos e do jogo das cartas. Vai-se ao Uíge buscar correio, escoltam-se viaturas civis, são descidas íngremes, com as viaturas a patinar na lama”.

Os patrulhamentos são sempre apresentados de uma forma tensional, é nos pormenores que o leitor descansa, nos comentários brejeiros. Escreve sobre a condição em que se encontram: “As faces lavradas pela expectativa, o suor por baixo do capacete, as armas apertadas, as folhas de verde negro, os passos enlameados, entram na sanzala. Depois, o carreiro sobe, o capitão enfia meio do terreiro da sanzala, há para ali cabras assustadas”. Seguir-se-ão tiros e a descrição de tudo quando aconteceu: “Espio-me, as balas zunem, estou exausto e o sangue corre, ensopa o lenço do Martinho, o analfabeto, aflito, a chorar, apertando a perna do Leal, tapando a fonte de sangue, ninguém deu por nada, os tiros lá partem sem mim, ouço-os nas costas, na cabeça, viro-me e os ramos das árvores parecem quietos, o combate – agora é um emaranhado de tiros e o sangue do Leal, morto logo que regressámos, era inevitável”. E Martinho soluçava. O furriel de minas e armadilhas não foi precavido, ficou num escombro, a mina que montara inutiliza-o: “O homem sem mãos parece-me que as tripas à mostra. Agita-se o corpo negro feito de farrapos queimados a balançar. Seguram-no pelos sovacos, pelas pernas que arrastaram por cima das tábuas (…) A voz gordurosa do nosso furriel sem mãos, negro e vermelho, com pedaços de metal cravados no corpo, pequenos rios pelo negro, pelos farrapos, pela paz”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18695: Bibliografia de uma guerra (92): Um Barco Fardado, por Eduardo Brito Aranha; Roma Editora, 2005 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19086: Parabéns a você (1509): Manuel Resende, ex-Alf Mil Art da CCAÇ 2585 (Guiné, 1969/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 9 de Outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19083: Parabéns a você (1508): José Carmino Azevedo, ex-Soldado Condutor do BCAV 2868 (Guiné, 1969/71)