Pemiche > Museu Nacional da Resistência e Liberdade , o 15º Museu Nacional > 27 de abril de 2019
Fotos: © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
A galeria dos meus heróis > 'Disculpen las moléstias"... Ou uma história que mete vítimas e carrascos
por Luís Graça
1. Peniche, ou melhor, o forte de Peniche, era talvez o sítio mais improvável para reencontrar um dos poucos camaradas, do tempo do Curso de Sargentos Milicianos, em Tavira, de quem eu guardava uma nítida (falando da sua fisionomia) e sobretudo grata recordação (no que dizia respeito ao convívio): o Sarmento.
Tínhamos em comum o gosto pela escrita, pelo jornalismo. Ele era do Fundão, de uma terra chamada Alpedrinha, sabê-lo-ei mais tarde. E chegara a colaborar, enquanto jovem, no prestigiado "Jornal do Fundão", criado em 1946, por António Paulouro, e um dos raros jornais independentes que existia no Portugal desse tempo... Eu também vinha do jornalismo regionalista, onde aprendi a fintar a censura…
Em Tavira, no quartel da Atalaia, no CISMI, o Centro de Instrução de Sargentos Milicianos, colaborávamos no jornal de parede. Recordo-me que tínhamos uma equipa editorial, composta por vários soldados-instruendos que tinham dado como profissão o jornalismo…
E, claro, tínhamos, um "diretor". O comandante da unidade, um tenente-coronel ou coronel, já não me recordo qual era o posto, zelava pela "orientação editorial do jornal" e, claro, pelo moral da tropa (e a moral da Nação). Miúdas de peitos fartos, generosos, de bicos espetados, e "bundas" largas e redondas, loiraças, provocantes, anglo-saxónicas ou escandinavas, era bem vindas e aclamadas: afinal de contas, os instruendos estavam na flor da idade, precisavam de ter sonhos cor de rosa à noite... Sim, porque os sonhos verde-rubros das grandezas do império não davam tanta "pica"...
Também
o rádio CISMI, se bem me lembro, que nos acordava em altos berros logo pela madrugada… Mas eu era do jornal de parede.. Tínhamos
alguma liberdade, todavia havia limites para a "desbunda": recordo-me de, um belo dia, ele, comandante, director, censor-mor, lídimo representante do Exército e da Nação, ter-nos obrigado a mandar para o lixo uma vasta e luxuosa edição especial, uma verdadeira enciclopédia, ilustrada, com dezenas e dezenas de fotos, mapas e recortes, dedicada à II Guerra Mundial e ao "nazifascismo" (que palavrão!). Foram horas e horas de trabalho, roubadas ao sono, que acabaram ingloriamente no caixote do lixo!
O argumento do censor-mor era de peso, e até de bom senso, definitivamente pedagógico e sobretudo retumbante: "Meus senhores, para guerra, já basta a nossa, a do Ultramar!"... Como, de resto, iríamos comprovar dentro de escassos meses...
2. Quis o destino que tirássemos, os dois, eu e o Sarmento, a especialidade de armas pesadas de infantaria, e que depois fôssemos mobilizados para a Guiné, não sem antes termos ido ainda dar uma rápida recruta, como 1ºs cabos milicianos, em Castelo Branco, no BC 6, se não erro... Estávamos lá os dois quando foi o terramoto de 28 de fevereiro de 1969...O "nosso" já acontecera umas horas antes, com a ordem de mobilização para a Guiné...
Embarcámos no mesmo dia e no mesmo navio, o "Niassa", três meses depois. Convivemos bastante nesses cinco dias de viagem, especulando sobre o incerto mundo que nos esperava. Mas, chegados a Bissau, cada um seguiu o seu inexorável destino, depois de dois ou três dias nos Adidos.
5. Diga-se, em abono da verdade, que o Sarmento já em tempos tinha sabido do meu paradeiro através do blogue, e estava para me contactar, até porque queria trazer os netos à Lourinhã, para uma visita ao DinoParque, o parque dos dinossauros que é o maior da Europa, e está justamente localizado na terra onde eu hoje moro e onde nasci. (Enfim, perdoem-me a publicidade, mas é por uma boa causa!)... Não foi preciso, afinal: reconhecemo-nos em Peniche, por um feliz acaso...
Enquanto os ex-presos políticos ficaram a partilhar as suas doridas memórias da cadeia de Peniche, eu e o Sarmento pusemos a "escrita" em dia, falando dos tempos de Tavira, de Castelo Branco, da nossa memorável viagem no "Niassa" e das nossas desventuras por terras da Guiné, eu no leste, ele no sul...
- Também estive na Guiné, afinal fomos camaradas de armas, se bem que desempenhando papéis diferentes, eu na guerra da inteligência, em Bissau, e você de G3 em punho no mato. Ambos lutámos pela Pátria. Eu, ainda no tempo do general Schulz (ele dizia Schultz...), você do nosso general Spínola. Dois grandes chefes militares.
E prosseguiu, cínico, provocador, ameaçador e enigmático:
- A boa notícia é que vou soltá-lo. Não tenho mais razões por o manter aqui detido. E depois está a ocupar uma vaga no nosso hotel de cinco estrelas (referia-se aq Caxias...) que nos está a fazer muita falta. Não faltam clientes... Não temos, em boa verdade, nenhum facto, substancial, que comprove, de maneira clara e inequívoca, a sua ligação ao "Grito do Povo".
______________
Nota do editor:
Último poste da série > 21 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19705: A galeria dos meus heróis (28): Alfa Baldé, apontador de dilagrama, morto por "fogo amigo"... (Luís Graça)
O argumento do censor-mor era de peso, e até de bom senso, definitivamente pedagógico e sobretudo retumbante: "Meus senhores, para guerra, já basta a nossa, a do Ultramar!"... Como, de resto, iríamos comprovar dentro de escassos meses...
2. Quis o destino que tirássemos, os dois, eu e o Sarmento, a especialidade de armas pesadas de infantaria, e que depois fôssemos mobilizados para a Guiné, não sem antes termos ido ainda dar uma rápida recruta, como 1ºs cabos milicianos, em Castelo Branco, no BC 6, se não erro... Estávamos lá os dois quando foi o terramoto de 28 de fevereiro de 1969...O "nosso" já acontecera umas horas antes, com a ordem de mobilização para a Guiné...
Embarcámos no mesmo dia e no mesmo navio, o "Niassa", três meses depois. Convivemos bastante nesses cinco dias de viagem, especulando sobre o incerto mundo que nos esperava. Mas, chegados a Bissau, cada um seguiu o seu inexorável destino, depois de dois ou três dias nos Adidos.
Apesar das promessas de irmos dando notícias por carta ou aerograma, acabámos por perder o rasto um do outro. Como aconteceu com outros efémeros amigos que íamos fazendo pelas estações do calvário da tropa: Caldas da Rainha, Tavira, Castelo Branco... Em todo o caso, não tenho qualquer memória da passagem do Sarmento pelo RI 5...
3. Foi preciso esperar meio século para, num bambúrrio de sorte, nos encontrarmo-nos e nos reconhecermo-nos, aos 72 anos !... O pretexto foi a celebração dos 45 anos da saída dos presos políticos da cadeia de Peniche, dois dias depois do 25 de Abril de 1974.
Fui lá com a minha mulher que queria recordar os momentos, de grande ansiedade e euforia, em que fora dar um abraço a um dos seus amigos, colega de trabalho, que estava preso. Ela não tinha a certeza que ele viria à cerimónia de sábado passado, eventualmente com a filha e a neta. Mas a verdade é que veio, e a minha mulher voltou a fazer uma festa, abraçando-o e beijando-o efusivamente. A seu lado estava, nem mais nem menos, o Sarmento e um seu amigo.
Segundo ela me contou, há 45 anos foram longas horas de espera e mesmo assim não sairam todos os presos. Os fuzileiros tinham instruções, da Junta de Salvação Nacional, para não deixar sair os presos condenados por "crimes de sangue" (sic)... Enfim, acabaram por sair todos, graças à força. mobilização e resiliência da multidão que se juntou na fortaleza de Peniche, e que foi gritando, até ao fim do dia do dia 26 e princípios do dia 27, "ou saem todos ou não sai nenhum"...E a verdade é que saíram todos na madrugada do dia 27...
Eu não estive lá nessa altura, trabalhava e vivia em Mafra, e nem sequer namorava ainda com a minha futura mulher. Mas, ao que parece, um dos tipos que foi solto era também um amigo, conterrâneo ou familiar do Sarmento, alegadamente preso por pertencer à LUAR.
Quarenta e cinco anos depois, na comemoração dessa efeméride, e de entre os mais de dois mil e quinhentos presos políticos, que passaram por Peniche, entre 1933 e 1974, estavam alguns, talvez algumas dezenas, dos sobreviventes, agora todos eles de cabelos grisalhos... Lá estavam, aparentemente felizes e orgulhosos, de cravo ao peito, no passado sábado, dia 27 de abril de 2019. A fortaleza agora é monumento nacional e sede do Museu Nacional da Resistência e Liberdade, o 15º museu nacional.
4. Curiosamente, entre os VIP presentes, sentados, frente ao palco, estava o Jerónimo de Sousa, deputado e secretário-geral do PCP (e, que eu saiba, nunca foi preso pela PIDE/DGS). Há uns anos atrás é que eu vim a saber, que ele foi mobilizado para o TO da Guiné, tendo embarcado no "Niassa", em 24 de maio de 1969, comigo e com o Sarmento e mais uns mil setecentos e tal militares, sem sabermos naturalmente nada dele nem ele de nós. Éramos uma série de companhias independentes, além de vários pelotões, incluindo uma companhia de polícia militar a que pertencia o camarada, ex-soldado condutor auto, da companhia de polícia militar, a CPM 2537, Jerónimo de Sousa.
O Sarmento não sabia, nem sequer suspeitava, dessa coincidência, de resto já aqui relatada no nosso blogue. Fui eu quem lhe revelei esse segredo de Polichinelo, talvez uma hora depois de sermos apresentados um ao outro pelo ex-preso político, amigo e colega de trabalho da minha mulher.
Palavra puxa palavra, falou-se do blogue do Luís Graça & Camaradas da Guiné. Mas o Sarmento só me conhecia por Henriques... Afinal o Graça e o Henriques era a mesma e única pessoa... Na realidade, o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande, conclui eu, embevecido. Caímos, naturalmente, nos braços um do outro!
3. Foi preciso esperar meio século para, num bambúrrio de sorte, nos encontrarmo-nos e nos reconhecermo-nos, aos 72 anos !... O pretexto foi a celebração dos 45 anos da saída dos presos políticos da cadeia de Peniche, dois dias depois do 25 de Abril de 1974.
Fui lá com a minha mulher que queria recordar os momentos, de grande ansiedade e euforia, em que fora dar um abraço a um dos seus amigos, colega de trabalho, que estava preso. Ela não tinha a certeza que ele viria à cerimónia de sábado passado, eventualmente com a filha e a neta. Mas a verdade é que veio, e a minha mulher voltou a fazer uma festa, abraçando-o e beijando-o efusivamente. A seu lado estava, nem mais nem menos, o Sarmento e um seu amigo.
Segundo ela me contou, há 45 anos foram longas horas de espera e mesmo assim não sairam todos os presos. Os fuzileiros tinham instruções, da Junta de Salvação Nacional, para não deixar sair os presos condenados por "crimes de sangue" (sic)... Enfim, acabaram por sair todos, graças à força. mobilização e resiliência da multidão que se juntou na fortaleza de Peniche, e que foi gritando, até ao fim do dia do dia 26 e princípios do dia 27, "ou saem todos ou não sai nenhum"...E a verdade é que saíram todos na madrugada do dia 27...
Eu não estive lá nessa altura, trabalhava e vivia em Mafra, e nem sequer namorava ainda com a minha futura mulher. Mas, ao que parece, um dos tipos que foi solto era também um amigo, conterrâneo ou familiar do Sarmento, alegadamente preso por pertencer à LUAR.
Quarenta e cinco anos depois, na comemoração dessa efeméride, e de entre os mais de dois mil e quinhentos presos políticos, que passaram por Peniche, entre 1933 e 1974, estavam alguns, talvez algumas dezenas, dos sobreviventes, agora todos eles de cabelos grisalhos... Lá estavam, aparentemente felizes e orgulhosos, de cravo ao peito, no passado sábado, dia 27 de abril de 2019. A fortaleza agora é monumento nacional e sede do Museu Nacional da Resistência e Liberdade, o 15º museu nacional.
4. Curiosamente, entre os VIP presentes, sentados, frente ao palco, estava o Jerónimo de Sousa, deputado e secretário-geral do PCP (e, que eu saiba, nunca foi preso pela PIDE/DGS). Há uns anos atrás é que eu vim a saber, que ele foi mobilizado para o TO da Guiné, tendo embarcado no "Niassa", em 24 de maio de 1969, comigo e com o Sarmento e mais uns mil setecentos e tal militares, sem sabermos naturalmente nada dele nem ele de nós. Éramos uma série de companhias independentes, além de vários pelotões, incluindo uma companhia de polícia militar a que pertencia o camarada, ex-soldado condutor auto, da companhia de polícia militar, a CPM 2537, Jerónimo de Sousa.
O Sarmento não sabia, nem sequer suspeitava, dessa coincidência, de resto já aqui relatada no nosso blogue. Fui eu quem lhe revelei esse segredo de Polichinelo, talvez uma hora depois de sermos apresentados um ao outro pelo ex-preso político, amigo e colega de trabalho da minha mulher.
Palavra puxa palavra, falou-se do blogue do Luís Graça & Camaradas da Guiné. Mas o Sarmento só me conhecia por Henriques... Afinal o Graça e o Henriques era a mesma e única pessoa... Na realidade, o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande, conclui eu, embevecido. Caímos, naturalmente, nos braços um do outro!
5. Diga-se, em abono da verdade, que o Sarmento já em tempos tinha sabido do meu paradeiro através do blogue, e estava para me contactar, até porque queria trazer os netos à Lourinhã, para uma visita ao DinoParque, o parque dos dinossauros que é o maior da Europa, e está justamente localizado na terra onde eu hoje moro e onde nasci. (Enfim, perdoem-me a publicidade, mas é por uma boa causa!)... Não foi preciso, afinal: reconhecemo-nos em Peniche, por um feliz acaso...
Enquanto os ex-presos políticos ficaram a partilhar as suas doridas memórias da cadeia de Peniche, eu e o Sarmento pusemos a "escrita" em dia, falando dos tempos de Tavira, de Castelo Branco, da nossa memorável viagem no "Niassa" e das nossas desventuras por terras da Guiné, eu no leste, ele no sul...
Não sei qual de nós teve mais sorte, no TO da Guiné: mais emboscada menos emboscada, mais mina menos mina, andámos os dois na porrada, eu numa companhia africana, ele numa companhia independente. Nada do que aprendemos em Tavira nos serviu. E a arma que nos distribuiram foi a G3. Nunca tivemos nem manejámos armas pesadas, canhões sem recuso, morteiros, bredas, brownings...
Antes de despedirmo-nos, trocámos emails e números de telemóvel e prometemos encontrarmo-nos na Lourinhã, no próximo verão, nas férias grandes escolares dos netinhos... Eu prontifiquei-me a fazer-lhe uma visita guiada pelo DinoParque, para cuja criação, de resto, também dera a minha pequena, modesta, contribuição enquanto sócio e membro, há uns largos anos atrás, dos corpos sociais do Grupo de Etnologia e Arqueologia da Lourinhã (GEAL) que está na génese do "museu da Lourinhã" e, mais recentemente, do DinoParque.
O Sarmento, que vive hoje nos arredores do Fundão, numa quintinha cheia de belas cerejeiras, depois de ter feito uma carreira como professor de filosofia, no ensino secundário, prometeu-me mandar um pequeno texto para o blogue, para esta minha série, "A galeria dos meus heróis"... Prometeu e cumpriu. Com a seguinte mensagem:
"Henriques, ou melhor Graça, velho amigo e camarada de armas (pesadas): Não me peças mais para escrever sobre a tropa e a guerra. Já fechei há muito esse departamento. Por amizade e apreço pelo teu trabalho de mineiro das nossas memórias, mando-te este texto que me saiu de rajada. Vê se era isso que tu querias. Até ao próximo verão, no Dino Parque da Lourinhã. Sarmento"
___________
Os portugueses, soturnos e fatalistas, escrevem nas portas interiores das casas de banho: "Isto é uma merda". Os espanhóis, cínicos mas encantadores, escrevem um bilhetinho e põem-no na porta do elevador: "Disculpen las moléstias".
O pequeno almoço é uma merda, casqueiro com marmelada, e a Internet não funciona, o quarto do hotel é horroso,já passaram por aqui milhares de motoristas de camiões TIR. As paredes estão pintadas a cor de vómito e de esperma requentado. Mas o gerente não tem que ser simpático, apenas tem que saber gerir o bordel espanhol que a agência de turismo me arranjou à beira da estrada, na periferia de Cáceres.
Com a violência de género a aumentar exponencialmente em Espanha, são as espanholas que agora gritam, em manifestações de protesto na rua: "Disculpen las moléstias..., pero nos están matando".
Que pena, eu nunca ter estado em Espanha antes do 25 de Abril, nem conhecer nenhum espanhol e muito menos nenhuma espanhola. Minto, conhecia alguns galegos, que tinham tascos e carvoarias em Lisboa ou eram amola-tesouras. Ia-se a Espanha, nesse tempo, só com passaporte. Há séculos que havia uma fronteira, com gajos façanhudos, armados, de um lado e do outro, como em todas as fronteira.
Mas a maior parte dos portugueses deu-se ao luxo de dispensar o passaporte e o controlo fronteiriço e foi "a salto", com a mala de cartão às costas. Só lhe interessava chegar aos Pirinéus franceses. A partir daí, era outra vida, outro mundo, o eldorado...Isto é, o "bidonville" e os "chantiers", o bairro de lata e os estaleiros de construção. Nunca ninguém ofereceu, em nenhuma parte do mundo, que eu saiba, o paraíso aos imigrantes...
Dava-me jeito ter aumentado o meu léxico com essa deliciosa expressão idiomática: "Disculpen las moléstias"... Dava-me jeito quando fiz a tropa e fui mobilizado para a Guiné para defender uma parte da Pátria que não era minha. Estava disposto (ou pelo menos fui educado para isso, na escola de Alpedrinha) a dar a minha vida pela parte da Pátria que era minha, a minha terra, a terra dos meus pais, avós e demais antepassados...
Faço a minha declaração de interesses: não fui faltoso, nem refratário, muito menos desertor. Também não fui herói. Nunca me bati à cruz de guerra. O tenente Esteves, no CISMI, Tavira, ainda bem tentou cantar-me a cantiga do bandido: "Eu sou devedor à Pátria, / E a Pátria me está devendo, / A Pátria paga-me em vida, / Eu pago à Pátria em morrendo"...
Quem disse que "é doce morrer pela Pátria", que dê primeiro o exemplo... Eu nunca consegui perceber os seus discursos patrióticos, dizendo-me que eu, o Henriques e mais uma chusma de instruendos do CSM, o Curso de Sargentos Milicianos, vindos dos quatro cantos de Portugal, éramos "a fina flor da Nação"... Gajos que tinham o 5º ano dos liceus ou equivalente. Outros o 7º ou o 7º incompleto. Sempre tinham mais letras do que a grande maioria da população, é verdade. Mas quem é que frequentava o liceu naquele tempo ? Só nas capitais de distrito havia liceus, nas vilórias como as nossas havia alguns colégios particulares, incluindo seminários (como o do Fundão onde estudou o grande escritor Virgílio Ferreira, e foi essa experiência que o inspirou, e o levou a escrever a "Manhã Submersa").
Para mim, desde os quinze anos, em 1965, quando comecei a escrever e a interessar-me pela vida política, tinha a estranha perceção de que era "a fina flor, sim, mas... do entulho". Na terreola onde nasci, lá nas berças... E era isso, que escrevíamos, por outras palavras, nos jornais de caserna em Tavira... Eu, o Henriques e outros soldados-instruendos de quem já não recordo nem nomes nem caras.
Fiz questão, há uns largos anos atrás, de visitar o antigo quartel da Atalaia, em Tavira, depois de lutar durante mais de quarenta anos contra a minha fobia em relação às coisas da tropa e da guerra, que me deixaram um amargo de boca e um sentimento antimilitarista. Os preconceitos têm raízes fundas, daí não ser fácil extirpá-los. No fundo, baseiam-se em experiências mais ou menos desagradáveis de cada um de nós (e, muitas vezes, na ausência efetiva de contacto com o objeto do preconceito).
Achei o quartel ainda muito mais pequeno do que no meu tempo. Aquilo parecia o Portugal dos Pequenitos. Não sei como é que, naquele espaço diminuto, cabiam tantas cabeças e pernas e braços, fardados, éramos algumas centenas de jovens na flor da idade, já com carimbo na caderneta e destino marcado: "Mobilizado para servir a Pátria na províncias portuguesa ultramarinas de... Angola, ou Guiné, ou Moçambique".
Por muito que eu me esforçasse, não consegui reviver os dois meses e meio que aqui passara, no último trimestre de 1968... Não consegui chamar até mim os fantasmas de alguns instrutores e comandantes de companhia, como o Robles, o Trotil e o Esteves a quem batíamos a pala com temor e reverência... Não me recordo do Robles, mas o seu fantasma pairava no ar... Eram heróis, cacimbados, da guerra de Angola, dizia-se...
Do Esteves, que foi meu comandante de companhia, meu e do Henriques, e tinha o posto de tenente, recordo-me da sua única frase de antologia: "Vocês são a fina flor da Nação"... E a malta repetia, baixinho: ... "fina flor do entulho"... Fina flor da merda da feira do gado da cidade, onde rebolávamos às quintas-feiras, fina flor da merda das salinas de Tavira, fina flor da merda das bolanhas da Guiné...
Nunca me passou pela cabeça, a não ser agora, que estou reformado, mas eu devia ter apresentadp, no regresso a casa, um "pedido de desculpas"... Devia ter devolvido a massa que o exército me pagou. O que era complicado: o "patacão da guerra" que ficou amealhado no banco, foi para a vida de estroina dos primeiros meses, na peluda, em Coimbra e depois Lisboa, e para pagar dívidas da família: as propinas do colégio da mana mais nova, num colégio de padres, na capital de distrito; um adiantamento para as despesas da boda da mais velha; um adiantamento ao velhote para o compensar dos calotes dos clientes...
Deviam-me ter pedido desculpas e aceitar de volta o "patacão sujo da guerra" (a expressão, acho que era do Henriques), que me pagaram a troco da intrujice de me considerarem parte integrante da "fina flor da Nação"...
Antes de despedirmo-nos, trocámos emails e números de telemóvel e prometemos encontrarmo-nos na Lourinhã, no próximo verão, nas férias grandes escolares dos netinhos... Eu prontifiquei-me a fazer-lhe uma visita guiada pelo DinoParque, para cuja criação, de resto, também dera a minha pequena, modesta, contribuição enquanto sócio e membro, há uns largos anos atrás, dos corpos sociais do Grupo de Etnologia e Arqueologia da Lourinhã (GEAL) que está na génese do "museu da Lourinhã" e, mais recentemente, do DinoParque.
O Sarmento, que vive hoje nos arredores do Fundão, numa quintinha cheia de belas cerejeiras, depois de ter feito uma carreira como professor de filosofia, no ensino secundário, prometeu-me mandar um pequeno texto para o blogue, para esta minha série, "A galeria dos meus heróis"... Prometeu e cumpriu. Com a seguinte mensagem:
"Henriques, ou melhor Graça, velho amigo e camarada de armas (pesadas): Não me peças mais para escrever sobre a tropa e a guerra. Já fechei há muito esse departamento. Por amizade e apreço pelo teu trabalho de mineiro das nossas memórias, mando-te este texto que me saiu de rajada. Vê se era isso que tu querias. Até ao próximo verão, no Dino Parque da Lourinhã. Sarmento"
___________
A melhor ditadura é sempre pior
que a pior democracia
por J. Sarmento
Os portugueses, soturnos e fatalistas, escrevem nas portas interiores das casas de banho: "Isto é uma merda". Os espanhóis, cínicos mas encantadores, escrevem um bilhetinho e põem-no na porta do elevador: "Disculpen las moléstias".
O pequeno almoço é uma merda, casqueiro com marmelada, e a Internet não funciona, o quarto do hotel é horroso,já passaram por aqui milhares de motoristas de camiões TIR. As paredes estão pintadas a cor de vómito e de esperma requentado. Mas o gerente não tem que ser simpático, apenas tem que saber gerir o bordel espanhol que a agência de turismo me arranjou à beira da estrada, na periferia de Cáceres.
Com a violência de género a aumentar exponencialmente em Espanha, são as espanholas que agora gritam, em manifestações de protesto na rua: "Disculpen las moléstias..., pero nos están matando".
Que pena, eu nunca ter estado em Espanha antes do 25 de Abril, nem conhecer nenhum espanhol e muito menos nenhuma espanhola. Minto, conhecia alguns galegos, que tinham tascos e carvoarias em Lisboa ou eram amola-tesouras. Ia-se a Espanha, nesse tempo, só com passaporte. Há séculos que havia uma fronteira, com gajos façanhudos, armados, de um lado e do outro, como em todas as fronteira.
Mas a maior parte dos portugueses deu-se ao luxo de dispensar o passaporte e o controlo fronteiriço e foi "a salto", com a mala de cartão às costas. Só lhe interessava chegar aos Pirinéus franceses. A partir daí, era outra vida, outro mundo, o eldorado...Isto é, o "bidonville" e os "chantiers", o bairro de lata e os estaleiros de construção. Nunca ninguém ofereceu, em nenhuma parte do mundo, que eu saiba, o paraíso aos imigrantes...
Dava-me jeito ter aumentado o meu léxico com essa deliciosa expressão idiomática: "Disculpen las moléstias"... Dava-me jeito quando fiz a tropa e fui mobilizado para a Guiné para defender uma parte da Pátria que não era minha. Estava disposto (ou pelo menos fui educado para isso, na escola de Alpedrinha) a dar a minha vida pela parte da Pátria que era minha, a minha terra, a terra dos meus pais, avós e demais antepassados...
Faço a minha declaração de interesses: não fui faltoso, nem refratário, muito menos desertor. Também não fui herói. Nunca me bati à cruz de guerra. O tenente Esteves, no CISMI, Tavira, ainda bem tentou cantar-me a cantiga do bandido: "Eu sou devedor à Pátria, / E a Pátria me está devendo, / A Pátria paga-me em vida, / Eu pago à Pátria em morrendo"...
Quem disse que "é doce morrer pela Pátria", que dê primeiro o exemplo... Eu nunca consegui perceber os seus discursos patrióticos, dizendo-me que eu, o Henriques e mais uma chusma de instruendos do CSM, o Curso de Sargentos Milicianos, vindos dos quatro cantos de Portugal, éramos "a fina flor da Nação"... Gajos que tinham o 5º ano dos liceus ou equivalente. Outros o 7º ou o 7º incompleto. Sempre tinham mais letras do que a grande maioria da população, é verdade. Mas quem é que frequentava o liceu naquele tempo ? Só nas capitais de distrito havia liceus, nas vilórias como as nossas havia alguns colégios particulares, incluindo seminários (como o do Fundão onde estudou o grande escritor Virgílio Ferreira, e foi essa experiência que o inspirou, e o levou a escrever a "Manhã Submersa").
Para mim, desde os quinze anos, em 1965, quando comecei a escrever e a interessar-me pela vida política, tinha a estranha perceção de que era "a fina flor, sim, mas... do entulho". Na terreola onde nasci, lá nas berças... E era isso, que escrevíamos, por outras palavras, nos jornais de caserna em Tavira... Eu, o Henriques e outros soldados-instruendos de quem já não recordo nem nomes nem caras.
Fiz questão, há uns largos anos atrás, de visitar o antigo quartel da Atalaia, em Tavira, depois de lutar durante mais de quarenta anos contra a minha fobia em relação às coisas da tropa e da guerra, que me deixaram um amargo de boca e um sentimento antimilitarista. Os preconceitos têm raízes fundas, daí não ser fácil extirpá-los. No fundo, baseiam-se em experiências mais ou menos desagradáveis de cada um de nós (e, muitas vezes, na ausência efetiva de contacto com o objeto do preconceito).
Achei o quartel ainda muito mais pequeno do que no meu tempo. Aquilo parecia o Portugal dos Pequenitos. Não sei como é que, naquele espaço diminuto, cabiam tantas cabeças e pernas e braços, fardados, éramos algumas centenas de jovens na flor da idade, já com carimbo na caderneta e destino marcado: "Mobilizado para servir a Pátria na províncias portuguesa ultramarinas de... Angola, ou Guiné, ou Moçambique".
Por muito que eu me esforçasse, não consegui reviver os dois meses e meio que aqui passara, no último trimestre de 1968... Não consegui chamar até mim os fantasmas de alguns instrutores e comandantes de companhia, como o Robles, o Trotil e o Esteves a quem batíamos a pala com temor e reverência... Não me recordo do Robles, mas o seu fantasma pairava no ar... Eram heróis, cacimbados, da guerra de Angola, dizia-se...
Do Esteves, que foi meu comandante de companhia, meu e do Henriques, e tinha o posto de tenente, recordo-me da sua única frase de antologia: "Vocês são a fina flor da Nação"... E a malta repetia, baixinho: ... "fina flor do entulho"... Fina flor da merda da feira do gado da cidade, onde rebolávamos às quintas-feiras, fina flor da merda das salinas de Tavira, fina flor da merda das bolanhas da Guiné...
Nunca me passou pela cabeça, a não ser agora, que estou reformado, mas eu devia ter apresentadp, no regresso a casa, um "pedido de desculpas"... Devia ter devolvido a massa que o exército me pagou. O que era complicado: o "patacão da guerra" que ficou amealhado no banco, foi para a vida de estroina dos primeiros meses, na peluda, em Coimbra e depois Lisboa, e para pagar dívidas da família: as propinas do colégio da mana mais nova, num colégio de padres, na capital de distrito; um adiantamento para as despesas da boda da mais velha; um adiantamento ao velhote para o compensar dos calotes dos clientes...
Deviam-me ter pedido desculpas e aceitar de volta o "patacão sujo da guerra" (a expressão, acho que era do Henriques), que me pagaram a troco da intrujice de me considerarem parte integrante da "fina flor da Nação"...
Acho até que fui vítima de um erro de "casting", devem ter-se enganado no nome e morada... Eu devo ter ido em lugar de um gajo qualquer da elite, da fina flor da Nação, que, esse, sim, é que devia ter combatido (e até morrido, em caso de necessidade...) pela Pátria ou pelo menos pela parte da Pátria que lhe pertencia. Para mim a Pátria está dividida em duas partes: a que não era minha e a que era minha...Confesso, no entanto, que a linha divisória não era facilmente percetível...
"Fina flor do entulho" voltei a sentir-me eu, quando fui preso pela PIDE/DGS, depois dos acontecimentos da Capela do Rato, logo nos primeiros dias de janeiro de 1973. Ainda hoje estou para saber qual foi o meu crime e o móbil do meu crime...
Tinha vindo da Guiné há um ano e tal, em março de 1971. Completei o sétimo ano e matriculei-me na Faculdade de Letras, em filosofia, no ano letivo de 1972/73. Nunca me filiei em nenhuma "organização subversiva" (como então se dizia), contrariamente ao meu amigo da LUAR, que estava preso em Peniche no dia 25 de Abril de 1974. Muito menos andei a pôr bombas e sabotar os navios de transporte de tropas, ou as Berliet do Tramagal, ou os helis de Tancos. Estava demasiado cansado da guerra para voltar a "pegar em armas"... mesmo que a causa fosse justa.
Como é que eu fui parar à António Maria Cardoso e depois a Caxias, ainda hoje não sei, essa informação está omissa na ficha da PIDE/DGS que eu consultei na Torre do Tombo. Iu oura e simplesmente desapareceu. Estive detido três meses e tal, sem culpa formada, e fui submetido à tortura do sono, como era uso e costume na António Maria Cardoso... Queriam nomes e moradas!... Por muito boa vontade que eu tivesse, não tinha nomes para dar, aos pides, sobre a "rede" a que eu alegadamente pertencia: chamavam-lhe "O Grito do Povo", uma organização que se destacava, na altura, pela denúncia da guerra colonial e pelo apoio aos desertores e exilados políticos...
Devo acrescentar aqui um pormenor caricato: quando já estava há vários dias e noites, na tortura do sono, à beira da exaustão, na véspera de ser interrogado por mais um inspetor da PIDE/DGS, há um novato que vem fazer o "turno" da noite... e que, de repente, me reconhece do tempo de Guiné:
- Meu furriel!... Sarmento?!...
O homem era da minha companhia e parecia mais incomodado do que eu pelo insólito da situação: eu, vítima, e ele, carrasco. Senti um frémito de horror só de pensar que ele estava quase tentado a abraçar-me:
- O que é faz... aqui ?
- Eu é que te pergunto!...Afinal, sou teu hóspede... Inverteram-se os papéis.
Intencionalmente, tratei-o por tu, tive esse rasgo extremo de lucidez. Enfim, conhecia-o bem, era o "escritas", o 1º cabo escriturário da companhia... Um tio, padre, aconselhara-o, a entrar para a PIDE, agora rebaptizada como DGS - Direção Geral de Segurança... "Tinha cama, mesa e roupa lavada. E vencimento de funcionário público ao fim do mês". Nada mais seguro, nos incertos tempos que corriam. E a "situação estava para durar"... Disse-me que ainda era "estagiário"...e estava a "aprender os truques" (sic) para poder integrar uma brigada de investigação.
"Fina flor do entulho" voltei a sentir-me eu, quando fui preso pela PIDE/DGS, depois dos acontecimentos da Capela do Rato, logo nos primeiros dias de janeiro de 1973. Ainda hoje estou para saber qual foi o meu crime e o móbil do meu crime...
Tinha vindo da Guiné há um ano e tal, em março de 1971. Completei o sétimo ano e matriculei-me na Faculdade de Letras, em filosofia, no ano letivo de 1972/73. Nunca me filiei em nenhuma "organização subversiva" (como então se dizia), contrariamente ao meu amigo da LUAR, que estava preso em Peniche no dia 25 de Abril de 1974. Muito menos andei a pôr bombas e sabotar os navios de transporte de tropas, ou as Berliet do Tramagal, ou os helis de Tancos. Estava demasiado cansado da guerra para voltar a "pegar em armas"... mesmo que a causa fosse justa.
Como é que eu fui parar à António Maria Cardoso e depois a Caxias, ainda hoje não sei, essa informação está omissa na ficha da PIDE/DGS que eu consultei na Torre do Tombo. Iu oura e simplesmente desapareceu. Estive detido três meses e tal, sem culpa formada, e fui submetido à tortura do sono, como era uso e costume na António Maria Cardoso... Queriam nomes e moradas!... Por muito boa vontade que eu tivesse, não tinha nomes para dar, aos pides, sobre a "rede" a que eu alegadamente pertencia: chamavam-lhe "O Grito do Povo", uma organização que se destacava, na altura, pela denúncia da guerra colonial e pelo apoio aos desertores e exilados políticos...
Devo acrescentar aqui um pormenor caricato: quando já estava há vários dias e noites, na tortura do sono, à beira da exaustão, na véspera de ser interrogado por mais um inspetor da PIDE/DGS, há um novato que vem fazer o "turno" da noite... e que, de repente, me reconhece do tempo de Guiné:
- Meu furriel!... Sarmento?!...
O homem era da minha companhia e parecia mais incomodado do que eu pelo insólito da situação: eu, vítima, e ele, carrasco. Senti um frémito de horror só de pensar que ele estava quase tentado a abraçar-me:
- O que é faz... aqui ?
- Eu é que te pergunto!...Afinal, sou teu hóspede... Inverteram-se os papéis.
Intencionalmente, tratei-o por tu, tive esse rasgo extremo de lucidez. Enfim, conhecia-o bem, era o "escritas", o 1º cabo escriturário da companhia... Um tio, padre, aconselhara-o, a entrar para a PIDE, agora rebaptizada como DGS - Direção Geral de Segurança... "Tinha cama, mesa e roupa lavada. E vencimento de funcionário público ao fim do mês". Nada mais seguro, nos incertos tempos que corriam. E a "situação estava para durar"... Disse-me que ainda era "estagiário"...e estava a "aprender os truques" (sic) para poder integrar uma brigada de investigação.
O meu guarda dessa noite era, afinal, um antigo camarada de armas!... Eu não podia crer!...
Afinal, tínhamos ido e vindo no meu navio. E, naturalmente, sempre que eu ia à secretaria da companhia, lá estava ele a bater à máquina de escrever, no teclado HCESAR. E a tirar cópias a "stencil"... Confesso que nunca fomos amigos. De resto, éramos mais de 160 na companhia, e vovíamos em abrigos diferentes. Mas eu não tinha nada a apontar-lhe por eventuais palavras, ações ou omissões. Era um gajo igual a tantos outros, contando os dias do calendário que faltavam para acabar a comissão. Nem sequer sabia o que é que ele pensava da guerra ou da situação política, ou deixava de pensar. Se calhar nem pensava nada, como muitos outros, a grande maioria.
Pois é, a vida dá muitas voltas e é preciso "fazer pela vidinha"... Para alguns, a PIDE/DGS era um emprego, "seguro", tal como era a GNR, a Polícia de Trânsito, a Guarda Fiscal, a PSP, as finanças, os tribunais...
Enfim, o "escritas" tentou ser "gentil" comigo, ao tentar justificar a sua opção de emprego no pós-guerra...Bêbedo de sono, ofendido e humilhado, acabrunhado, não conseguia manter qualquer diálogo com o meu novo carrasco, de quem no entanto, devo acrescentar, sentia um misto de asco e curiosidade mórbida... Como é que um gajo que me parecia "minimamente decente", como era o "escritas" da companhia, um antigo camarada de armas, da Guiné, de 1969/71, se tinha tornado um pide ?
O cabrão do "escritas", que ainda tinha o sotaque nortenho, teve um tímido e atabalhoado gesto de compaixão, ao ver-me no mísero estado em que eu estava, um autêntico farrapo humano... Continuou sempre a tratar-me por furriel:
- Meu furriel, não fique de pé, sente-se aqui nesta cadeira. Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas... E assim retempera forças. O inspetor tem horário de funcionário público. Só volta às nove horas, nove e tal, de amanhã, par não dizer dez. Até lá, o senhor tem a minha autorização para dormitar. Eu velo pelo seu sono. Estamos aqui os dois, sem ninguém nos ver, eu empresto-lhe a minha cadeira. Por mor dos tempos passados na Guiné... Por mor da nossa camaradagem... Se eu ouvir passos, dou-lhe um empurrão e acordo-o. Mas está tudo a bater sorna a esta hora da noite. Fique descansado...
Não foi, confesso, o melhor sono da minha vida. Não consegui dormir em cima da cadeira do pide, meu ex-camarada de armas. Mas descansei as pernas, que estavam um trambolho, depois de tantos dias sujeito à tortura do sono. O meu medo era aparecer, de rompante, o filho da puta do inspetor e perceber a marosca... Espantoso, sem o querer, era eu que estava a vigiar o pide, e não o pide que me estava a guardar...Por volta das oito e tal, ele sacudiu-me e eu abri os olhos, esbugalhados... Só me disse:
- São horas de se preparar... Boa sorte. E desculpe lá qualquer coisinha.
Nunca mais, na vida, lhe pus a vista em cima ... Entretanto, às dez horas em ponto, como mau funcionário público, o senhor inspetor, bem barbeado, bem dormido, ainda a cheirar a café, a cigarro e a água de colónia barata, veio-me fazer a sua visita matinal e trazer-me notícias, "uma boa e outra má, ou menos má":
Afinal, tínhamos ido e vindo no meu navio. E, naturalmente, sempre que eu ia à secretaria da companhia, lá estava ele a bater à máquina de escrever, no teclado HCESAR. E a tirar cópias a "stencil"... Confesso que nunca fomos amigos. De resto, éramos mais de 160 na companhia, e vovíamos em abrigos diferentes. Mas eu não tinha nada a apontar-lhe por eventuais palavras, ações ou omissões. Era um gajo igual a tantos outros, contando os dias do calendário que faltavam para acabar a comissão. Nem sequer sabia o que é que ele pensava da guerra ou da situação política, ou deixava de pensar. Se calhar nem pensava nada, como muitos outros, a grande maioria.
Pois é, a vida dá muitas voltas e é preciso "fazer pela vidinha"... Para alguns, a PIDE/DGS era um emprego, "seguro", tal como era a GNR, a Polícia de Trânsito, a Guarda Fiscal, a PSP, as finanças, os tribunais...
Enfim, o "escritas" tentou ser "gentil" comigo, ao tentar justificar a sua opção de emprego no pós-guerra...Bêbedo de sono, ofendido e humilhado, acabrunhado, não conseguia manter qualquer diálogo com o meu novo carrasco, de quem no entanto, devo acrescentar, sentia um misto de asco e curiosidade mórbida... Como é que um gajo que me parecia "minimamente decente", como era o "escritas" da companhia, um antigo camarada de armas, da Guiné, de 1969/71, se tinha tornado um pide ?
O cabrão do "escritas", que ainda tinha o sotaque nortenho, teve um tímido e atabalhoado gesto de compaixão, ao ver-me no mísero estado em que eu estava, um autêntico farrapo humano... Continuou sempre a tratar-me por furriel:
- Meu furriel, não fique de pé, sente-se aqui nesta cadeira. Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas... E assim retempera forças. O inspetor tem horário de funcionário público. Só volta às nove horas, nove e tal, de amanhã, par não dizer dez. Até lá, o senhor tem a minha autorização para dormitar. Eu velo pelo seu sono. Estamos aqui os dois, sem ninguém nos ver, eu empresto-lhe a minha cadeira. Por mor dos tempos passados na Guiné... Por mor da nossa camaradagem... Se eu ouvir passos, dou-lhe um empurrão e acordo-o. Mas está tudo a bater sorna a esta hora da noite. Fique descansado...
Não foi, confesso, o melhor sono da minha vida. Não consegui dormir em cima da cadeira do pide, meu ex-camarada de armas. Mas descansei as pernas, que estavam um trambolho, depois de tantos dias sujeito à tortura do sono. O meu medo era aparecer, de rompante, o filho da puta do inspetor e perceber a marosca... Espantoso, sem o querer, era eu que estava a vigiar o pide, e não o pide que me estava a guardar...Por volta das oito e tal, ele sacudiu-me e eu abri os olhos, esbugalhados... Só me disse:
- São horas de se preparar... Boa sorte. E desculpe lá qualquer coisinha.
Nunca mais, na vida, lhe pus a vista em cima ... Entretanto, às dez horas em ponto, como mau funcionário público, o senhor inspetor, bem barbeado, bem dormido, ainda a cheirar a café, a cigarro e a água de colónia barata, veio-me fazer a sua visita matinal e trazer-me notícias, "uma boa e outra má, ou menos má":
- Também estive na Guiné, afinal fomos camaradas de armas, se bem que desempenhando papéis diferentes, eu na guerra da inteligência, em Bissau, e você de G3 em punho no mato. Ambos lutámos pela Pátria. Eu, ainda no tempo do general Schulz (ele dizia Schultz...), você do nosso general Spínola. Dois grandes chefes militares.
E prosseguiu, cínico, provocador, ameaçador e enigmático:
- A boa notícia é que vou soltá-lo. Não tenho mais razões por o manter aqui detido. E depois está a ocupar uma vaga no nosso hotel de cinco estrelas (referia-se aq Caxias...) que nos está a fazer muita falta. Não faltam clientes... Não temos, em boa verdade, nenhum facto, substancial, que comprove, de maneira clara e inequívoca, a sua ligação ao "Grito do Povo".
Fez um silêncio de alguns segundos, respirou fundo e voltou, solene, a ser o dono do jogo:
- A má notícia... é que você vai continuar a ficar debaixo de olho. Do nosso, claro. Se lhe posso dar um conselho, como ex-camarada da Guiné, não se meta com essa canalha, acabe o seu curso, e trate da sua vidinha. E, já que anda em filosofia, fique com esta máxima que eu lhe dou de borla: "Mais vale uma boa ditadura do que uma má democracia"... Estamos em guerra, lá fora, em África. Somos o bastião da defesa da liberdade do mundo ocidental. O apoio, direto ou indireto, à deserção e aos desertores é um crime de lesa-Pátria. Vista-se, recomponha-se... E desculpe lá qualquer coisinha.
Não sem antes de me ter posto ao ridículo, pela enésima vez, lembrando-me o "crime" de eu ter dado, ingenuamente, a minha morada para a entrega do correio, a um gajo meu conhecido da faculdade, que tinha passado à clandestinidade (sem eu o saber)... A correspondência passou a ser intercetada pela PIDE/DGS e eu caí que nem um patinho nos braços dos gajos...
... Ainda voltei a Caxias, para fazer o "check out"... Pequei na minha trouxa, com um nó seco na garganta, apanhei o comboio até ao Cais do Sodré e voltei ao meu quarto, numas águas furtadas da rua da Misericórdia, que estavam inteiramente por minha conta (tal como a caixa do correio). Tomei um banho, demorado, e fui ao Trindade comer o melhor bife da minha vida... No dia seguinte, voltei à Faculdade para dar uma explicação sobre as minhas "férias" de 3 meses tal por conta da PIDE/DGS... Não tiveram com contemplações. Chumbei por faltas nesse ano. Felizmente que um ano depois aconteceu o 25 de Abril.
E hoje, ao fim de uma vida, só posso discordar do pide que me torturou, ao mesmo tempo que me dava lições de ciência política... Afinal, a melhor ditadura é sempre pior que a pior democracia. Os democratas é que são parvos, tratam os seus inimigos com tolerância e clemência...
Tanto quanto soube, mais tarde, tanto o "escritas" como o "senhor inspetor", estiveram na prisão de Alcoentre e foram uns dos tais 89 pides que fugiram pela porta do cavalo, em 29 de junho de 1975... Para Espanha, seguramente. E de lá estou a vê-los a mandarem, cinicamente, um bilhetinho para as suas antigas vítimas:
- Disculpen las moléstias!...
J. Sarmento, Fundão, Quinta das Cerejeiras, 29/4/2019
Não sem antes de me ter posto ao ridículo, pela enésima vez, lembrando-me o "crime" de eu ter dado, ingenuamente, a minha morada para a entrega do correio, a um gajo meu conhecido da faculdade, que tinha passado à clandestinidade (sem eu o saber)... A correspondência passou a ser intercetada pela PIDE/DGS e eu caí que nem um patinho nos braços dos gajos...
... Ainda voltei a Caxias, para fazer o "check out"... Pequei na minha trouxa, com um nó seco na garganta, apanhei o comboio até ao Cais do Sodré e voltei ao meu quarto, numas águas furtadas da rua da Misericórdia, que estavam inteiramente por minha conta (tal como a caixa do correio). Tomei um banho, demorado, e fui ao Trindade comer o melhor bife da minha vida... No dia seguinte, voltei à Faculdade para dar uma explicação sobre as minhas "férias" de 3 meses tal por conta da PIDE/DGS... Não tiveram com contemplações. Chumbei por faltas nesse ano. Felizmente que um ano depois aconteceu o 25 de Abril.
E hoje, ao fim de uma vida, só posso discordar do pide que me torturou, ao mesmo tempo que me dava lições de ciência política... Afinal, a melhor ditadura é sempre pior que a pior democracia. Os democratas é que são parvos, tratam os seus inimigos com tolerância e clemência...
Tanto quanto soube, mais tarde, tanto o "escritas" como o "senhor inspetor", estiveram na prisão de Alcoentre e foram uns dos tais 89 pides que fugiram pela porta do cavalo, em 29 de junho de 1975... Para Espanha, seguramente. E de lá estou a vê-los a mandarem, cinicamente, um bilhetinho para as suas antigas vítimas:
- Disculpen las moléstias!...
J. Sarmento, Fundão, Quinta das Cerejeiras, 29/4/2019
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Nota do editor:
Último poste da série > 21 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19705: A galeria dos meus heróis (28): Alfa Baldé, apontador de dilagrama, morto por "fogo amigo"... (Luís Graça)