quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21250: Memórias cruzadas da Região do Cacheu: Plano (macabro) de assalto ao quartel de Varela, proposto por dois desertores das NT a Amílcar Cabral - Janeiro de 1963 (Jorge Araújo)


Foto 1> Guiné > Região de Cacheu > Varela > Praia de Varela, em Maio de 1968.  O quartel situava-se à direita.[Poste P18183 > Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-Alf Mil, CCS/BVAÇ 1933 (1967/69)], com a devida vénia. 

 


Foto 2  > Guiné > Região de Cacheu > Varela > Praia de Varela, Acesso à praia de Varela, em Maio de 1968 [P18183 > Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-Alf Mil, CCS/BVAÇ 1933 (1967/69)], com a devida vénia.

 

Foto 3 > Guiné > Região de Cacheu > Varela > Praia de Varela > Junho de 2011 > Vestígios do quartel de Varela (imagem retirada do Youtube [https://www.youtube.com/watch?v=ODFTcpeGwHQ] com o título: "Varela, Dégradation d'un site paradisiaque - Juin 2011 (Après la fête du 1º mai)" ["Varela, Degradação de um local paradisíaco - Junho de 2011 (após a festa do 1º de maio"), tradução do francês], com a devida vénia.





O nosso coeditor Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger,CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior; vive em, Almada, está atualmente nos Emiratos Árabes Unidos; tem mais  de 260 registos no nosso blogue.
 


MEMÓRIAS CRUZADAS

DA REGIÃO DO CACHEU ANTES DO INÍCIO DA GUERRA

O (CRUEL) PLANO DE ASSALTO AO QUARTEL DE VARELA, PROPOSTO POR DOIS DESERTORES DO EXÉRCITO PORTUGUÊS

A AMÍLCAR CABRAL, EM JANEIRO DE 1963,

E QUE FELIZMENTE NÃO PASSOU DE UMA INTENÇÃO

 

 

1.   - INTRODUÇÃO


Sabemos todos que não existem sociedades sem história, o mesmo acontecendo com todas as «Guerras», onde a ciência militar produz as suas… "Histórias". Porém, convém referir que nos casos da nossa (continuada) investigação historiográfica, nem sempre é possível misturar "relato" e "explicação", mas tão só investir no aprofundamento do primeiro conceito, como condição de saber histórico do passado, tornando-o, assim, objecto da história através da sua reconstrução, na agregação «História e Memória».


Quanto ao "puzzle da memória da guerra colonial da Guiné", acredito que a sua História global continuará a escrever-se no plural, pela importância do papel que a memória colectiva desempenha. NÓS ("EU" e "TU"), todos observadores e actores nos diferentes "palcos da missão", constituímo-nos como um valioso espólio da história de década e meia, no mínimo, unindo e reforçando as fontes de informação privilegiada, num processo dinâmico "entre contrários", porque, como diz o povo, "na guerra não se combate sozinho".   


Por outro lado, o que não sei (nem ninguém poderá saber!) é "SE" os propósitos da "História" que está na origem desta narrativa, que hoje partilho no Fórum, tivessem sido concretizados com sucesso, "SE" o início da guerra colonial no CTIG, simbolicamente aceite com o ataque ao Aquartelamento de Tite, em 23 de Janeiro de 1963, 4.ª feira, onde efectivos do Batalhão de Caçadores 237 [BCAÇ 237] – [25Jul61-19Out63, do TCor Inf Carlos Barroso Hipólito] – se encontravam estacionados, teria sido o/a mesmo/a? Provavelmente não teria sido!


O que também sei (sabemos) é que na ciência historiográfica ou histórica o "SE" não existe.

No presente caso, o que faz parte da História são os registos documentais encontrados, uma vez mais nos arquivos de Amílcar Cabral existentes na CasaComum, Fundação Mário Soares, onde estão plasmadas crenças, atitudes, comportamentos, valores, mudanças e modos de vida…, como se prova no documento abaixo reproduzido.


Sabemos que antes do ataque ao Aquartelamento de Tite [23Jan63] haviam já ocorrido diversas actividades subversivas, as primeiras dois anos antes, por iniciativa de grupos armados sediados no Senegal, de que são exemplos as acções em S. Domingos, Susana e Varela.

 


Foto 4 > Guiné > Região de Cacheu > Varela >  Um dos edifícios existentes em Varela, propriedade do Banco Nacional Ultramarino, complexo vandalizado em 1961, por grupos de indivíduos oriundos do Senegal, e onde ficaram alojadas as primeiras forças militares portuguesas (um Gr Comb da CART 240). Foto do acervo documental do BNU (P18534), com a devida vénia.

 

Sobre estas actividades subversivas de Julho de 1961, sugiro a leitura do P18534 «Historiografia da presença portuguesa em África: imagens e relatórios dos actos de vandalismo praticados pelo MLG, na Praia de Varela, encontrados no acervo documental do Banco Nacional Ultramarino», trabalho elaborado pelo camarada Mário Beja Santos.


Na mesma perspectiva histórica segue o artigo de José Matos - O início da Guerra na Guiné (1961-1964) - publicado na «Revista Militar» n.º 2566, de Novembro de 2015.

 

 

Capa da Revista Militar – 2566 – Novembro de 2015

 


Mapa da região norte da Guiné (fronteira com o Senegal), assinalando-se as linhas de infiltração da guerrilha nos anos de 1961/1963 (fonte: op. cit), com a devida vénia.

 

Como fonte oficial, que naquele período era considerada confidencial, recupera-se parte do documento publicado no P15962 - "O que dizem os Perintreps: Violações da fronteira e assaltos no chão felupe, em Julho de 1961: S. Domingos (a 18, 21 e 24), Ingoré (a 21), Susana (a 24) e Varela (a 25)", da autoria de Nuno Rubim (Cmdt da CCAÇ 726 (Out64-Jul66) e CCAÇ 1424 (Jan66-Dez66) e, em segunda comissão, no Quartel-General (QG).






2.   - PLANO DE ASSALTO AO QUARTEL DE VARELA, ELABORADO EM DAKAR POR DOIS DESERTORES DO EXÉRCITO PORTUGUÊS, E DIRIGIDO A AMÍLCAR CABRAL, EM 04 DE JANEIRO DE 1963


Os autores do "plano de assalto ao Quartel de Varela", elaborado em Dakar, em 04 de Janeiro de 1963, 6.ª feira, e dirigido a Amílcar Cabral (1924-1973) por intermédio de José Araújo (1933-1992), responsável do PAIGC do Bureau de Dakar, que felizmente não se concretizou, pertenciam às CART 240 e CART 250, respectivamente, António de Jesus Marques (1.º cabo enfermeiro) e António Augusto de Brito Lança (furriel mil de artilharia).


Uma vez que nos Arquivos do Exército nada consta, no que à "História" das duas Unidades diz respeito, pois essa prática não abrangeu o período inicial das "Campanhas", procedemos à elaboração de uma resenha histórica "a nível operacional" durante a sua presença no CTIG.


2.1 - A MOBILIZAÇÃO PARA O CTIG DA CART 240


Mobilizada pelo Grupo de Artilharia Contra Aeronaves 2 (GACA 2), de Torres Novas, para servir na província ultramarina da Guiné, embarcou em Lisboa, provavelmente por via aérea, em 30 de Julho de 1961, domingo, sob o comando do Capitão Art Manuel Fernando Ribeiro da Silva, tendo chegado a Bissau na mesma data.   


2.1.1 - SÍNTESE DA MOBILIDADE OPERACIONAL DA CART 240


A CART 240 foi colocada em Bissau, onde manteve a sua sede durante toda a comissão (30Jul61-19Out63), sendo integrada no dispositivo e manobra do BCAÇ 236 [21Jul61-19Out63, do TCor Inf José Alves Moreira], a fim de colaborar na segurança e defesa das instalações e das populações da área. 


Em princípios de Fev72, destacou um Gr Comb para guarnecer a povoação de Varela, em substituição da CCAÇ 74 [18Mar61-12Fev63, do Cap Inf Alcides José Sacramento Marques], o qual ficou integrado no dispositivo do BCAÇ 239 [06Jul61-24Jul63, do Maj Inf António Maria Filipe (1.º) e TCor Inf Hélio Augusto Esteves Felgas (2.º)]. Ao fim de um ano de permanência em Varela (finais de Fev63), este Gr Comb foi transferido para Susana, recolhendo a Bissau no mês seguinte.


A CART 240 destacou ainda Grs Comb para Quinhamel, de princípios de Ago62 a meados de Set62 e novamente a partir de Abr63, e para Nhacra, a partir de meados de Jul63. De 01 a 27Jun63, foi atribuída em reforço do BCAÇ 356 [23Jan62-17Jan64; do TCor Inf João Maria da Silva Delgado], com vista à realização da «Operação Seta», na região do Quinara-Fulacunda, nas áreas de Iusse, Bissássema, Nova Sintra e Jabadá.


Em 18Out63, foi rendida pela CART 564 [14Out63-27Out65; do Cap Mil Art Rodrigo Claro de Albuquerque Menezes de Vasconcelos (1.º) e Cap Art António Manuel Fevereiro Chambel (2.º)], a fim de efectuar o embarque de regresso (Ceca; p 433).


2.2 - A MOBILIZAÇÃO PARA O CTIG DA CART 250


Mobilizada pelo Regimento de Artilharia Pesada 2 (RAP 2), em Vila Nova de Gaia, para servir na província ultramarina da Guiné, embarcou em Lisboa, no Cais da Rocha, em 10 de Agosto de 1961, 5.ª feira, sob o comando do Capitão Art José Maria Eusébio Alves, tendo desembarcado em Bissau na 4.ª feira seguinte, dia 16 de Agosto.

  

2.2.1 - SÍNTESE DA MOBILIDADE OPERACIONAL DA CART 250



A CART 250 foi colocada em Bissau, onde manteve a sua sede durante toda a comissão (16Ago61-06Nov63), sendo integrada no dispositivo e manobra do BCAÇ 236 [o mesmo da CART 240], em substituição da CCAÇ 52 [18Ago59-17Ago61; do Cap Inf Frederico Alfredo de Carvalho Ressano Garcia], a fim de assegurar a segurança e defesa das instalações e das populações da área.


Por períodos variáveis, a CART 250 cedeu pelotões para reforço de outros batalhões e intervenção em acções de nomadização e batida nas regiões de Mansodé/Mansabá, em Jul63, sob dependência do BCAÇ 507 [20Jul63-29Abr65; do TCor Inf Hélio Augusto Esteves Felgas] e Xime, em Ago63, sob a dependência do BCAÇ 506 [20Jul63-29Abr65; do TCor Inf Luís do Nascimento Matos].


Em 04Nov63, já na dependência do BCAÇ 600 [18Out63-20Ago65; do TCor Inf Manuel Maria Castel Branco Vieira], foi substituída no sector de Bissau pela CCAÇ 555 [03Nov63-28Out65; do Cap Inf António José Brites Leitão Rito], a fim de efectuar o embarque de regresso (Ceca; p 434).


2.3 - O PLANO DE ATAQUE AO QUARTEL DE VARELA – JAN1963


A ideia perversa e macabra que levou à elaboração do projecto (plano) de "ataque ao quartel de Varela" é atribuída a dois desertores do Exército Português, conforme referido anteriormente: o António de Jesus Marques, da CART 240, e o António de Brito Lança, da CART 250.

Essa prova pode ser conferida no documento que abaixo se reproduz.


Chegados ao CTIG no início do 2.º semestre de 1961, um Gr Comb da CART 240, onde estaria incluído o António de Jesus Marques [?], seguiu para Varela, com o objectivo de guarnecer essa povoação situada na região do Cacheu (Norte), enquanto o António de Brito Lança, da CART 250, permaneceu em Bissau, provavelmente em instalações situadas nos arredores do Aeroporto, em Bissalanca.


Em função de outras informações de que dispomos, mas que não se enquadram na presente narrativa, é de acreditar que destes dois militares, o primeiro a desertar para o Senegal tenha sido o António Lança, durante o Outono de 1962, e o António Marques, algumas semanas depois, mas ainda no decurso do mesmo ano. Portanto, antes do início do conflito armado.


Considerando que o António Marques estivera destacado em Varela, é de admitir (!?) que tenha sido ele o autor do croqui do "quartel a atacar" (o seu, em Varela). 


   

Esboço da planta do quartel de Varela em 1962/1963, atribuível ao desertor António de Jesus Marques, da CART 240

 


 

Fotos 5 e 6 (Varela, Junho de 2011) – Vestígios do quartel de Varela (imagem retirada do Youtube [https://www.youtube.com/watch?v=ODFTcpeGwHQ] com o título: "Varela, Dégradation d'un site paradisiaque - Juin 2011 (Après la fête du 1º mai)" [Varela, Degradação de um local paradisíaco - Junho de 2011 (após a festa do 1.º de maio), tradução do francês], com a devida vénia.

 


Quanto à descrição apresentada na proposta, não nos é possível identificar o seu autor (moral), na medida em que a carta foi dactilografada (em máquina portátil), acto realizado em Dakar, com data de 4/1/963, 6.ª feira, mas assinada por ambos.


 

Citação: (1963), "Plano de assalto ao quartel de Varela", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível http: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40296 (com a devida vénia)

Aqui vai um excerto do plano (!) dos desertores que conheciam os hábitos dos seus camaradas da guarnição de Varela: 

(...) "Como eles costumam fazer o café de véspera e guardá-lo dentro de um armário na cozinha, nós íamos lá uma noite e envenenávamos o café e a água que se encontram onde a figura indica.

"Depois de o fazermos. deixávamos um sentinela onde ele pudesse ver as sentinelas do quartel. Logo que o nosso sentinela visse cair o sentinela da porta principal, procurava prestar-lhe socorro e ir comunicar lá dentro para ver o ambiente. Logo que ele visse que poderíamos entrar, dar-nos-ia um sinal. Traríamos um soldado connosco e enterravamo-lo para eles virem a pensar que o que faltava teria sido o autor do sucedido. 

"O material la existente é:  cerca de trinta armas automáticas de marca  G-3; oito  pistolas metralhadoras de marca UZI: três  bazucas ou lança granadas-foguete;  três metralhadoras de marca Drise. Têm ainda munições suficientes para fazerem fogo durante vinte e quatro horas seguidas" (...) .


► Em suma:

1.    - Não estando explícitos, na carta/plano, os objectivos do "ataque ao Quartel de Varela", creio que da sua leitura se pode inferir que o alvo principal seria o "roubo de armas": 30 G-3; 8 pistolas UZI: 3 bazucas; 3 metralhadoras Drise e uma determinada quantidade de munições que "dariam para vinte e quatro horas de fogo".

 

2.    - Na prática, para que os autores deste plano pudessem ser bem-sucedidos, alguns dos seus antigos camaradas com quem fizeram a viagem até à Guiné, em Agosto de 1961, e com quem viveram e conviveram durante alguns meses, seriam envenenados... e um deles seria enterrado.

 

3.    - Felizmente que tal não aconteceu.

 

4.    - Caso contrário teria sido uma "cena" Brutal… Cruel… e… e… e…

► Fontes consultadas:

Ø  Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 07061.032.004 Título: Plano de assalto ao quartel de Varela. Assunto: Plano de assalto ao quartel de Varela apresentado a Amílcar Cabral por dois elementos do Bureau de Dakar, António Brito Lança e António de Jesus Marques. Contém ainda uma apresentação destinada a acompanhar uma brochura com a declaração de Amílcar Cabral perante a IV Comissão da ONU. Data: Sexta, 4 de Janeiro de 1963. Observações: Doc incluído no dossier intitulado Manuscritos de Amílcar Cabral. Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Documentos.

 

Ø  Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 7.º Volume; Fichas das Unidades; Tomo II; Guiné; 1.ª edição, Lisboa (2002); pp 433-434.

 

Ø  Outras: as referidas em cada caso.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço

Jorge Araújo.

23JUL2020

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21249: In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - Parte XLII: Emílio José Alves Lourenço, ten pilav (Mafra, 1946 - Moçambique, 1973)





Cor art ref Morais da Silva
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1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um dos 47 Oficiais, oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar que morreram em combate no período 1961-1975, na guerra do ultramar ou guerra colonial (em África e na Ásia).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva [, foto atual à direita], membro da nossa Tabanca Grande [, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972 ]

Guiné 61/74 - P21248: Historiografia da presença portuguesa em África (226): Aleixo Justiniano Sócrates da Costa - Um outro olhar sobre a Guiné em 1885 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Dezembro de 2019:

Queridos amigos,
São artigos de leitura irrecusável, e por motivos sólidos. Aleixo Justiniano Sócrates da Costa foi um médico militar goês que prestou serviço em Cabo Verde e na Guiné, documentou-se, escrevia muitíssimo bem, e neste texto até se destaca os parágrafos que ele reserva à descrição das tempestades, é do melhor naturalismo literário que se pode imaginar. Veja-se como ele consagra fronteiras, exatamente um ano antes de Portugal ter chegado a um acordo com a França. Já vários investigadores observaram que se é verdade que perdemos toda a soberania na bacia do Casamansa e recebemos a península de Cacine, um presente inesperado, o tratado deu uma configuração à presença portuguesa onde até agora essa presença não passara de uma pura ilusão. Impossível fazer-se aqui mais do que uma pura resenha aos bastos conhecimentos deste facultativo do Ultramar, veremos no próximo texto o enquadramento que ele deu à agricultura e ao comércio e às propostas que apresentava para ultrapassar o estado de profundo subdesenvolvimento em que se encontrava a colónia.

Um abraço do
Mário


Um outro olhar sobre a Guiné em 1885 (1)

Beja Santos

O seu nome é Aleixo Justiniano Sócrates da Costa, era médico militar goês, prestou serviço em Cabo Verde e na Guiné, sócio ordinário da Sociedade de Geografia de Lisboa e nos boletins da instituição, 4.ª série, n.ºs 2, 3 e 4, de 1885, lançou-se ao trabalho para descrever aos seus confrades da Sociedade de Geografia, o que era a Guiné. Há pontos que são verdadeiramente importantes, veja-se o que era para este facultativo a superfície da colónia:
“O distrito, hoje província, da Guiné Portuguesa, que devia abranger todo o litoral da costa ocidental de África e ilhas adjacentes, desde Cabo Verde até à Serra Leoa, compunha-se há pouco tempo dos concelhos de Bissau, Bolama e Cacheu, com suas dependências. Ao Concelho de Bissau pertencem o presídio de Geba, a ilha de Orango, nos Bijagós, e alguns pontos do Xime e S. Belchior no rio Geba. Fá e Ganjarra, que se acham abandonados desde 1861, estão situados no mesmo rio.
O Concelho de Bolama, hoje sede do Governo, é constituído pela ilha do mesmo nome, com a das Galinhas e com os territórios do rio Grande e do rio Tombali. O Concelho de Cacheu abrange a povoação do mesmo nome, o presídio de Farim, no rio de S. Domingos, o presídio de Zinguinchor, no rio Casamansa, as aldeias de Bolor, Jefunco e Varela, na margem direita da barra de Cacheu, e a de Mata e Putama, na esquerda”.
Definição curiosa, para quem gosta de estudar a Guiné é agora possível comparar o que se admitia ser a Guiné em 1885 e qual o território que a Convenção Luso-Francesa, de 12 de maio de 1886, veio a reconhecer à soberania portuguesa.
É um médico que estudou e percorreu várias regiões. Procura ser rigoroso quando fala da população gentílica da ilha de Bissau, e dá pormenores sobre Antula, Bandim, Intim, Bigemetá, Buim, Cumeré, Prabis, Quixete, Safim e Torre.
O seu comentário sobre Geba tem igualmente muito interesse: “É principalmente neste desgraçado presídio, quase totalmente abandonado pelo Governo, que os selvagens executam as mais escandalosas pilhagens. É sobre eles que o gentio faz recair toda a sua fúria e sanha. As guerras entre Fulas e Mandingas, e a indiferença com que o Governo olhou essas guerras, promoveram a ruína desse importantíssimo ponto da Guiné.
A povoação de Geba é aprazível pela frescura dos bosques que a revestem. Tendo de comprimento 2 milhas e de largura 1. Apesar da pequenez da sua área é de magna importância, porque pode dizer-se que é o primeiro centro comercial da Senegâmbia”.

Comentando o bombardeamento da ilha de Orango às ordens do Governador Agostinho Coelho, o autor pede a maior firmeza e severidade: “Na Guiné não há que recuar, não há que parar. Ou tudo, ou nada. O gentio ali há-de ser sempre insolente e sempre para temer enquanto não levar a lição severa e geral que lhe sirva de escarmento”.

Não é peco a dissertar sobre o que quer que seja: a instrução, a incúria na educação da mulher, o estado do catolicismo no território, a idolatria, o islamismo, o estado em que se encontram os edifícios públicos, as deploráveis condições hígio-sanitárias da vila de Bissau. Recorda-se ao leitor que já aqui se fez menção quanto à existência nos Reservados da Sociedade de Geografia de um documento de Aleixo Justiniano Sócrates da Costa sobre a vila de Bissau, é documento obrigatório para qualquer investigador ou interessado em conhecer com profundidade a Guiné antes da sua autonomização em 1879.

Este médico goês é por vezes capaz de uma muito boa prosa poética, é possuidor de um invejável vigor naturalista. A propósito da meteorologia, vale a pena reproduzir na íntegra o que ele diz sobre os temporais da Guiné:
“São majestosos os temporais na Guiné. São medonhas aquelas convulsões da natureza que, ali, grande em tudo, até nos horrores da tempestade, patenteia o seu imenso vigor e se expande em toda a sua altiva e orgulhosa beleza.
Surdo rumor das vagas revoltas, que nas costas se torcem e se revolvem convulsivas, como se as fustigasse a asa procelosa do génio das solidões, ocultos estremecimentos, rugidos que se não sabe de onde partem, preludiam o conflito dos elementos irritados, que se vão dar tremendo recontro na amplidão do espaço e dos mares.
Nuvens de densa negrura, ou de cor acobreada, reverberando baços e fulvos clarões, vão-se acastelando entre Norte e Sudeste, correndo em direcção contínua ao vento, que sibila horríssono.
Súbito, medonho ribombo anuncia que o trovão rompe a batalha. É o clarim da tempestade. Para logo os relâmpagos sulcam ininterruptos a tenebrosa densidade do caos, e o eco medonho dos trovões, percutindo o espaço, um após outro, abala a natureza inteira em tremenda convulsão.
Se é noite, o denso negrume da atmosfera não deixa divisar uma única estrela. A lua, de instante em instante encoberta pelas tétricas nuvens que se debatem no espaço, apenas envia à terra lívidos clarões.
Acalma-se em seguida o vento. As nuvens, até ali condensadas ou encapeladas em rolos sobrepostos, estendem-se pelo horizonte, e, subindo finalmente, formam um arco semelhante ao Íris. No vão deste arco fuzilam amiudados relâmpagos, acompanhando o ribombo incessante dos trovões, e do meio desta traiçoeira calma levanta-se rijíssimo Nordeste, que em seguida refresca, e salta para Este e Sudeste. Então, como derradeira manifestação da pavorosa convulsão da natureza, as nuvens rasgam o bojo lívido e prenhe de electricidade, e torrentes de aguaceiro se despenham em catarata, inundando a terra. É o parto do cataclismo. Cessam as convulsões.
Vão-se rareando as descargas eléctricas. O trovão já não abala os polos. O vento, enfraquecido pela chuva ronda ao Sul, já muito bonançoso e soprando só as bafagens; e quando chega ao quadrante Sudeste decai em calmaria. Descansam os elementos e respira a natureza.
É de uma hora a hora e meia a duração ordinária deste imponente espectáculo.”

(continua)


Carnaval de Bolama, "Grupo Cultural Bolama Nobo"
Retirado do Pinterest, rede social, com a devida vénia

Bissau, depois da tempestade Fred, em 2015
Imagem retirada de Novas da Guiné-Bissau, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21227: Historiografia da presença portuguesa em África (225): Os Banhuns da Guiné: num romance e na etno-história (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21247: Da Suécia com saudade (80): Um país "neutral" há mais de 200 anos, desde os tempos de Napoleão (José Belo)


Buba, Aldeia Formosa, Mampaté e Empada,
1968/70); cap inf ref,  jurista, criador de renas,
autor da série "Da Suécia com Saudadr"; 
vive na Suécia há mais de 4 décadas; régulo da 
Tabanca da Lapónia; tem cerca de 170 referências 
no nosso blogue
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1, Mensagem de José Belo:

Date: sexta, 31/07/2020 à(s) 08:29
Subject: Respondendo a pergunta (em comentário) de Valdemar Queiroz (*)

Apesar dos saques efectuados pelas tropas suecas, um pouco por toda a parte no Norte e Centro europeus aquando da Guerra dos 30 Anos [1618-1648], as riquezas obtidas foram delapidadas tanto com o enorme aparelho militar como na aquisição de vastas propriedades e sumptuosos palácios por parte da aristocracia que participara, direta ou indiretamente,  na guerra.

A fome e pobreza, tanto rural como entre o proletariado das cidades, não foi diminuída por esta afluência de capitais.

Esta continuada falta de soluções sociais levou a que, nas décadas que se seguiram à guerra civil Norte Americana (1861-1865),  uns bons milhares de famílias suecas, principalmente rurais, tenham sido obrigadas a emigrar para os Estados Unidos, literalmente para sobreviver à fome!

O censo Americano de 1890 mostra uma população sueco-americana de cerca de 800.000 indivíduos, número muito considerável tendo em conta a população sueca de então.

Curiosamente a maioria das famílias suecas escolheu o Estado da Minnesota para se estabelecerem no novo país. Estado bem a Norte, fronteiro ao Canadá, onde a natureza nos seus inúmeros lagos e rios, assim como frio intenso e muita neve, certamente os fez sentir... em casa!

A influência escandinava continua muito forte neste Estado, tanto racial como cultural. Inúmeras pequenas cidades com nomes suecos, assim como lojas, restaurantes com pratos regionais suecos, dialeto e festas tradicionais, somando-se um actualmente muito forte intercâmbio cultural entre universidades locais e suecas.

A reviravolta económica e industrial sueca surge intimamente ligada à sua "neutralidade". Deve ser recordado não ter o país participado em qualquer guerra desde os tempos de Napoleão, sendo caso único a nível europeu estes 200 anos contínuos de paz.

Neutralidade sempre extremamente armada(!) por uma indústria nacional de guerra a níveis aéreos, navais e terrestres que lhe permite uma independência em relação aos fornecedores destes materiais e a todas as "condições" sempre por eles impostas.

As exportações da vasta indústria de material militar, hoje muito sofisticado a nível aéreo, naval e, não menos, espacial (!), faz entrar nos cofres do Estado receitas importantíssimas... "made in Sverige".

Com o fim da segunda guerra mundial, e enquanto as potências europeias se encontravam com as suas indústrias em condições mais do que precárias, todo o parque industrial, e exploração mineira, da neutral Suécia funcionava em pleno.

Os importantes meios de transportes, marítimos, aéreos, ferroviários, e autoestradas, estavam também intactos.

Muito do material industrial e de construção utilizado pelo plano Americano Marshal na sua reconstrução da Europa (e não menos da fundamental Alemanha) foi comprado na Suécia e por ela transportado para os locais necessários.

A proximidade geográfica da Suécia em relação aos países necessitados vinha diminuir muito consideravelmente os custosos transportes, caso contrário em longas viagens transatlânticas desde os Estados Unidos.

A partir deste importante período, de enormes entradas de capital que vieram permitir toda uma expansão económica e industrial, surge a "revolução" social democrata que acabou por construir a Suécia dos nossos dias.

Com todos os seus defeitos e limitações mas... também com as realidades sociais que a colocam a muitas dezenas de anos (para não escrever centenas!) de avanços em relação a outros países. Os Estados Unidos incluídos!

De resto... Nada de novo sob o Sol.

Um abraço do J. Belo
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Nota do editor:

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21246: A galeria dos meus heróis (34): Rosemarie e os seus dois maridos... - Parte I (Luís Graça)


Portugal > Museu Nacional de Etnologia > Exposição "Vergílio Pereira: Itinerários de um Etnógrafo" >  31 de maio de 2020 > Instrumentos musicais populares portugueses, dos anos 60: da esquerda para a direita, rabeca chuleira, viola amarantina, bombo e baqueta (em primeiro plano) e os ferrinhos (em segundo plano). Foto: Virgílio Pereira, s/l, s/d. Cortesia de Museu Nacional de Etnologia / Arquivo Virgílio Pereira (2020)


Portugal > Museu Nacional de Etnologia > Exposição "Vergílio Pereira: Itinerários de um Etnógrafo" >  31 de maio de 2020 > A rabeca chuleira: fabricante Guilherme Almeida & Sousa Sarmento (Baião, 1873); proveniência: Santo Tirso (1962). Nº Inventário: NME BB 405


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

Marco de Canaveses, Paredes de Viadores, Candoz, Quinta de Candoz  >  20 de outubro de 2012 >  Festa das bodas de ouro da Rosa (Carneiro) e do Quim (Barbosa) > Baile mandado > Tuna Rural de Candoz: Músicos: Júlio e João (violinos), Nelo, Luis Filipe, Miguel e Tiago (violas). Mandador: Joaquim Barbosa (Quim). O baile mandado é uma tradição que se está a perder... E que só os mais velhos sabem dançar. Neste caso, o mandador também participa na coreografia. Clicar aqui para ver o vídeo, alojado em  You Tube / Luís Graça


Vídeo (4' 08''): Luís Graça (2012).

Galeria dos meus heróis > A Rosemarie e os seus dois maridos... 

 Parte I

por Luís Graça


  Não, não foi o coração que me levou a fugir para França, a salto, escondida na mala do carro de um passador…

Foi assim que a Rosemarie começou o seu relato de vida: um passador que será depois seu amante, companheiro e, já no fim da vida, marido, de papel passado na mairie.

A salto !... Como se dizia então em francês ?!... Le saute, até há um filme que passou na televisão de cá…

Ah!, oui?!... Nunca vi.

− E no entanto a Rosemarie já não era nenhuma jeune fille

Une balzacienne, uma mulher de 30 anos já feitos!...Nasci em 1937, mon chérie.

− Ah!, sim, uma balzaquiana, como dizemos nós…

Morto o Antoine [lê-se: "antu-ane"], há uns largos anos atrás, no virar do milénio, a Rosemarie ter-se-á libertado de algumas grilhetas que a manietavam, a começar pela incerteza quanto ao seu futuro… Afinal, por decisão dos tribunais, acabou por ficar com o património do seu segundo marido, de quem fora uma cuidadora inexcedível no seu doloroso final de vida. Houve um processo litigioso com outros herdeiros. os filhos do primeiro casamento.

Libertou-se sobretudo de uma estranha relação de amor-ódio que manteve com o Antoine, e que só se apazigou ou atenuou depois da decisão transitada em julgado, favorável aos direitos e interesses da Rosemarie.

− Passei a ser uma viúva francesa rica em Portugal, ou remediada em França… Enfim, tenho o meu pé-de-meia. 

Só nessa altura é que passou a tratá-lo por “gajo”, com sentido jocoso e sarcástico ao mesmo tempo, sempre que se referia ao falecido segundo marido. Foi uma vida atribulada, a da Rosemarie, uma drôle de vie, como ela repetia amiudadas vezes, com humor, sem azedume, quase sem rancor. E, no entanto, foi uma típica vítima de violência doméstica, nos seus dois casamentos… Curiosamente, com dois homens mais velhos que ela.

Foi uma vida passada entre o Portugal dos sombrios anos 30, 40, 50, e a França gloriosa, da V República.

− Voltei à minha terra natal, para morrer… mas só aos 100 anos. E agora tratam-me por Madame. Dantes, quando era nova, não passava da Maria, nem sequer Rosa, muito menos Rosinha.

Conheci a Madame Ben Oliel, como ela gostava de ser tratada, numa festa do 14 Juillet, o Dia Nacional da França. Ben Oliel era o apelido  materno do seu segundo marido, de origem portuguesa e judia sefardita, que esteve na guerras da Indochina e da Argélio,  como légionnaire

Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor,  fazia-lhe oublier (esquecer) e até talvez cacher (esconder) a sua origem portuguesa e a sua condição de imigrante em França.  O que, na realidade, nunca conseguiu por causa do seu "accent": não carregava suficientemente os "erres"...

L’important c´est la rose!... Ah, o meu querido Gilbert Bécaud ! − desviava ela a conversa quando se tocava numa tecla mais sensível.

Eu havia-a conhecido, há já uns bons anos, quando ela  andava perto dos 75,  conservando alguns traços da sua beleza e jovialidade de juventude, com uns fatais olhos verdes.

− Quando tinha quinze anos, mon chéri,  eu já era uma moçoila vistosa, espigada, nutrida de carnes… Mas era filha de rendeiros pobres, com um bando de filhos para alimentar. E, nessa altura, criada de servir em Chaves.

Adorava bavarder, falava pelos cotovelos, e às vezes despudoradamente, tendo-me autorizado a publicar a sua história de vida que "até dava um filme” (sic), com uma única ressalva:

− Só depois de ser chamada ao Reino dos Céus!... (Como ela queria viver até aos 100, perdi a esperança de poder publicar a sua história em tempo útil!... Charmosa, tratava-me por mon chéri.)

Era “crente sem ser beata”… E agora que “Deus a chamou ao seu reino”, fica o caminho aberto para partilhar as suas confidências. De facto, acabou de morrer, estupidamente,  de Covid-19, logo no início da pandemia. Constou-me que foi por infeção hospitalar… Ia fazer 83 anos.

Sinto-me, de qualquer modo, à vontade para evocar (e de certo modo homenagear) a sua figura. Infelizmente, não foi cumprida a sua última vontade, a de ser enterrada na terra que a viu nascer. Foi cremada num cemitério dos arredores de Paris, “por razões de Estado” (ou seja, de saúde pública…). Desconheço se deixou herdeiros, mas deve ter pelo menos sobrinhos algures, em parte incerta.

Resta-me dizer onde a conheci. Foi na casa de praia de uns amigos comuns, parisienses, que vinham há muito a Portugal, nas férias de verão. Agora, professores reformados,  passavam cá mais tempo. A Rosemarie era  visita frequente da sua casa, perto da lagoa de Óbidos. 

Nunca soube exatamente quais eram as suas afinidades mas, pelo que me apercebi das nossas conversas, haviam-se tornado amigos  desde o tempo em que a Rosemarie cantava o fado no bistrot do Antoine.

Sem ter uma voz de eleição, a Rosemarie não imitava nada mal a Amália e até dava uma certa parecença de corpo, com dezassete anos de diferença em termos de idade… Não sem uma incontida vaidade, acrescentava:

− A Amália tinha a voz, aquela voz… E eu tinha os meus olhos, aqueles olhos  verdes… 'Olhos verdes são traição, são cruéis como punhais'... Quem cantava isto ?...Ah!, o Francisco José,. um rapaz do meu tempo...

Estes nossos amigos franceses adoravam Portugal, o sol, os fruits de mer, e muito em especial as huîtres, as ostras, a que chamavam les portugaises. E, claro, o fado, a Amália que tinham ainda conhecido,  em vida, e aclamado no Olympia de Paris.

Nesse fim de semana do 14 Juillet, um sábado,  em que conheci a Rosemarie, rapidamente ganhei a sua confiança e até afeição. Falávamos ora em francês, ora em português, mas longe da vista dos nossos anfitriões, entre duas ostras e um vinho branco das Gaeiras.  Sentia-se mais à vontade para fazer confidências, estando só comigo.

Disse-lhe que estava muito interessado em conhecer a  histoire de vie de mulheres portuguesas, como ela, que tiveram a coragem de dar o salto, o duplo salto, o da emigração clandestina e o da rutura com os usos e costumes do Portugal dos anos 50/60.

Acabámos por criar laços afetivos, de empatia e até de amizade. Ainda nos encontrámos três ou quatro vezes e falámos ao telefone. Com tristeza soube da sua morte, vítima da pandemia do século. Tratava-me, carinhosamente, por mon chéri. meu querido ou meu jovem. Era muito maternal. Nunca teve filhos, ao que eu saiba.

Era da região de Basto, ou Terras de Basto,  sendo os seus pais  oriundos de uma aldeia da serra do Alvão.

− Sou a filha mais velha das raparigas de uma família de rendeiros. Éramos um rancho, entre rapazes e raparigas,  uma dúzia, fora os dois que terão morrido ainda anjinhos do céu.

E acrescentava:

− Criada de servir, femme de ménage, era o destino que nos esperava, a nós, raparigas, jeunes filles.

Naquele tempo iam para Chaves para casa de algum militar, oficial de carreira. Ou  para Cabeceiras de Basto, terra de brasileiros ricos. O mais longe era para o Porto,  para casa de "algum senhor doutor", médico ou magistrado, ou de algum comerciante abastado da Baixa.

− Ganhava-se uma miséria de 200 ou 300 mil réis, com cama, mesa e roupa lavada.

E mesmo assim eram precisas referências, cartas de recomendação e sobretudo uma boa cunha do abade da freguesia. Como as enfermeiras. Nesse tempo, era preciso mostrar “boa robustez física” e comprovar a “conduta moral irrepreensível”…

As raparigas não iam à escola, quando muito faziam o exame da 3ª classe, com explicações e bofetões de uma mestra particular ou uma “regente escolar”.

No caso da Rosemarie,  já era uma moçoila quando abalou para Chaves, em 1952,  como “criadita de servir” de uns senhores da família do fidalgo para quem os pais trabalhavam…

Fidalgo ?! – indaguei eu, curioso.

− Só por se dizer que tinha uma casa apalaçada, com um brasão antigo do tempo do senhor Dom João V, se não me engano, que eu da História de Portugal não sei nada ou muito pouco.

Eu sabia que tinha casado, já depois de atingida a maioridade, que naquela época era aos 21 anos.

− Foi a minha desgraça, a minha sina, o meu fado! – comentou. com alguma amargura na voz.

Para fugir da miséria da casa paterna e da ditadura dos patrões de Chaves,  casou com "o primeiro fils de putain, o primeiro filho da puta", que conheceu num baile, já em Resende, em 1961.  E que a “desonrou” (sic).

Tratava-o sempre por “cabrão”, ao primeiro marido, para o distinguir do segundo, o companheiro com que viveu maritalmente muitos anos em França, o Antoine,  de quem voltaremos a falar, mais à frente.

A Rosemarie era muito "desbocada", não se coibindo de usar o palavrão nortenho, mesmo frente a pessoas estranhas. Adorava falar de algumas das suas aventuras e desventuras, não sem alguma falta de pudor. Para mim, era a entrevistada ideal, se bem que depois fosse preciso separar o trigo do joio. Perdia-se muitas vezes com histórias laterais, obrigando-me a reformular ou repetir a pergunta…

Nascida em 1937, a Rosemarie casou aos 24, "com vestido branco de noiva, raminho de laranjeira, água benta"… "e a sua bênção, senhor meu pai!"...

− Pela santa madre igreja, pois claro, de acordo com os usos e costumes da época.

E confidenciava, com graça:

− Já tinha provado o 'fruto proibido'. Eu, que tinha sido catequista, só nessa altura é  que percebi o sentido que os padres, no confessionário,  davam à expressão 'comer a maçã'.

O vestido de branco fora-lhe oferecido pelos seus antigos patrões de Chaves a quem tinha servido durante cerca de 7 anos e que fizeram questão de ser padrinhos da noiva.

Não se atreveria naquele tempo, a  casar pelo civil. Nem lhe passou sequer a ideia pela cabeça. Seria logo tratada de “curta e comprida”. Eram tempos cruéis para as mulheres. Ai das raparigas que rompessem o namoro, ou fossem rejeitadas! Ou, pior ainda,  que tivessem a desdita de  ser mães solteiras.

− Ninguém mais te pegava!... Passavas a ter lepra… Com sorte, casarias com um velho, com filhos ainda por criar, ou já com pouca força na 'verga' ! − comentou ela.

À medida que se entusiasmava com a conversa,  Rosemarie usava o calão do seu tempo de “mulher do Norte com pêlo na venta” (sic). O facto do interlocutor ser homem, não a  inibia de todo. A sua história, as suas confidências, mesmo as mais íntimas, não me deixavam todavia de surpreender, talvez por sermos de gerações diferentes, eu já filho do pós-guerra e criado em ambiente urbano, ela bem mais velha do que eu.

Afinal, isto passava-se no meu país, ainda nos anos 50 e 60. E eu não podia deixar de sentir um certo amargo de boca, ao ouvi-la contar estas histórias de vida, bem  duras.

− No meu tempo, as moças repudiadas,  ou fugiam  para o Porto ou Lisboa, ou resignavam-se à sua sorte, ficando solteironas, o que era o caso da maioria.

− A liberdade paga-se sempre  cara!... Não nos é dada, conquista-se  − avancei eu, usando  um chavão que é, de há muito, um lugar comum.

− Ah!, sim, veja o meu caso. O meu primeiro homem foi obrigado a casar comigo, a tiro… depois de os meus irmãos mais novos terem sabido que ele me tinha desonrado.

− A sério?!... A tiro ?!... Agora percebo por que é que o seu primeiro casamento tinha tudo para não dar certo…

− Não durou mais de um ano de paixão efémera… Depois aguentei mais uns tempos,  para salvar as aparências… E se eu tive uma paixão por aquele cabrão. Oh!, se tive!... Hoje acho que foi feitiço, bruxaria, mau olhado, qualquer coisa que ele me pôs no pirolito ou gasosa, uma daquelas garrafas de refrigerante que se usavam na época, e que os rapazes ofereciam às raparigas no intervalo dos bailes… Eram bailes mandados com mandadores que gritavam: “Damas, ao bufete!”…

Os “bailes mandados” ? Explicou-me ela depois: os homens e os rapazes, de um lado, as mulheres e as raparigas, e um senhor, o 'mandador',  no meio,  a impor o respeito, a dirigir a coreografia e a dar a vez a cada um dos machos para ir buscar o seu par e dançar. Só "as comprometidas e as casadas" é que se podiam recusar a dançar com outro que não fosse o marido ou o namorado… Não poucas vezes, acabava tudo à paulada, com o álcool e as ciumeiras…

Mas os feitios de ambos,  e  sobretudo “a miséria daqueles tempos” (sic), não ajudaram em nada o casamento. Cedo a Rosemarie descobriu que o seu “príncipe encantado” era, afinal, um 'chulo', um malandro e, pior ainda, um homem que de bebedor social se tornara alcoólico e… violento.

Não trabalhava, ou melhor, a oficina de carpintaria já não dava para um, quanto mais para dois. Fazia um biscate ou outro, um conserto aqui ou acolá, a caixa de ferramenta numa mão, a bicicleta na outra, a  maior parte dos clientes eram gente pobre, das redondezas, o rol dos fiados ia até ao São Miguel, altura do ano em que se podia fazer algum dinheiro e pagar as dívidas.

− Mas como é que vocês se conheceram ? – quis eu saber, intrigado.

− Num baile, tinha que ser a minha sina, o meu fado. Num desses tais bailes mandados…

− Em Chaves ?...

− Não, já em Resende, na casa de um brasileiro rico, desses de torna-viagem… Tinha voltado à terra com um bom pé de  meia e quis celebrar… Já não me lembro o nome, foi há tanto tempo… Todos o conheciam por 'O Brasileiro'… Resumindo: conheci o cabrão do meu primeiro homem nesse baile… Fazia parte da tuna…

− A tuna ?

− Um grupo de músicos que animava bailes, um que tocava viola amarantina, outro violão, outro ferrinhos… E ele que tocava rabeca. Juntavam-se a outras tunas, ali da região do  Marão e Montemuro,  de Baião a Cinfães, do Marco a Resende… Chegavam a ir tocar a Viseu e Vila Real. Tinham mais fama que proveito, mas sempre ganhavam uns tostões. O cabrão não tinha profissão certa,  dizia que era carpinteiro, mas eu nunca lhe vi obra feita, uma mesa ou armário de jeito.

− E tocava bem, o seu homem ?

− Isso, sim, se tocava!... Punha-nos 'atolambadas', o cabrão… Olhe, fez-me lembrar aqueles encantadores de serpentes, indianos, que a gente vê nos filmes. Tocava as modas da época, que já passavam na rádio, e sobretudo as modas tradicionais, a valsa, a mazurca, a dança do fado, a contradança… Já havia rádio,  mas pouca gente tinha rádio e telefone…  E a televisão, então, era ainda um luxo. Não havia sequer eletricidade … Ah!, mas quando ele começava a tocar aquela valsa do Danúbio Azul… Houve até uma rapariga do Porto, que estava nas termas, que desmaiou, de comoção... Só muito mais tarde, já em França, é que ouvi falar da Sissi e de toda aquele luxo da corte imperial de Viena… Naquele tempo éramos umas atrasadas… 

− Era muito atrasado o interior do país, é verdade… mas pode falar-se de miséria, miséria mesmo ?

− Oh! Mon Dieu de France!... Escreve aí no teu cahier – começou-me a tutoyer, a tratar por tu, a que eu não respondi do mesmo modo, continuando a ser deferente e cerimonioso, para com ela,  até como estratégia defensiva enquanto entrevistador…

Miséria para ela era o frio de rachar no inverno, as tamancas, a casa de granito, tosca,  o interior com paredes de tabique, um quarto para os  pais, outro para as raparigas, com os rapazes a dormir no palheiro do milho, e por debaixo ficava a corte dos animais. E não melhorou muito quando a família se mudou de Cabeceiras para Resende.

Dois irmãos, entretanto, tinham ido para a tropa, e sido mobilizados para Angola, o mais velho, e outro a seguir para Cabo Verde e Guiné. Em Resende, nas termas das Caldas de Aregos, a Rosemarie arranjara um emprego sazonal como auxiliar, graças a uma cunha do patrão do seu pai que era oficial do exército, e pessoa infuente. A família, que vivia no Porto, gostava de fazer termas nas Caldas de Aregos. E tinha lá uma roda de amigos. Enfim, estava ligado à pequena nobreza rural, decadente, cujas origens remontavam ao tempo do liberalismo. 

− E porquê Resende, Rosemarie ? – perguntei-lhe eu.

Os pais tinham-se mudado para lá, onde os antigos patrões tinham uma quinta e estavam a precisar de um caseiro de confiança, iam-se fazer vinhas novas, etc. Com o plano de construções de barragens no Rio Douro, havia boas perspetivas de valorização dos terrenos cultivados que viessem a ser alagados com a subida das águas. As condições eram melhores do que em Cabeceiras de Basto e os rapazes mais novos até tinham arranjado emprego, ou promessa de emprego,   numa empresa encarregue, já em 1964,  dos trabalhos preparatórios da construção da barragem do Carrapatelo (que só será inaugurada em 1971).

Mal sabia o pai que, passado uns anos, iria  ficar sem casa nem terras, obrigando-o a voltar a Cabeceiras, "com uma mão à frente e outra atrás"… E,  também com a barragem, as Caldas de Aregos começaram a entrar em decadência.  

Depois da separação (de facto mas não de jure), a Rosemarie ainda irá trabalhar para a Linha do Estoril, para casa de uns senhores importantes ligados à banca. Foi ganhar o dobro que ganhava em Chaves e em Resende, 600 mil réis, e aí, sim, aprendeu muito, como ajudante de cozinha. E, sobretudo, aprendeu a cantar o fado...

− Separação ?!... Como foi isso, Rosemarie ?

Ela contou-me tudo tim-tim por tim-tim. Mas, abreviando, aqui vai o essencial dos factos.

A Rosemarie sempre foi, desde miúda, um grande dançarina. Não perdia bailes, desde que os pais, e depois os patrões, a autorizassem a ir. A princípio, até aos 15 anos,  ia acompanhada por um dos irmãos, “jogador de varapau”.

− Varapau ?...

− Um pau de lódão, rijo e comprido, com que os rapazes aprendiam a ser homens…Mas, coitado do meu mano, já morreu, um dia racharam-lhe a cabeça por minha causa.

− O seu irmão ?!...

− Sim, um do meio. Era muito meu amigo, o meu guarda-costas. Por causa do meu primeiro marido, acabou por ter problemas com a justiça. ´

− Mas vamos lá fazer o ponto da situação, que eu já estou perdido... Estávamos a falar do baile…

− Ah!, sim, o baile… os bailes!... Ficas a saber que pus a cabeça à roda de muitos rapazes e até de homens casados. Hoje estou velha, e já sem muito tempo à minha frente, mas naquela época  eu era uma raparigaça que metia muitas da cidade a um canto. Não é para me gabar…E, depois, como também tinha jeito para a costura, que aprendi em Chaves, em casa, aos serões, andava sempre bem produzida com os meus vestidos de chita… E já tinha algum jeito para as cantigas.

−…Até ao dia em que...?

− Até ao dia em que conheci... aquele cabrão!... A cigana que me lera as mãos em Chaves, no meio da ponte romana, tinha razão!... Aquele cabrão, estava escrito que deveria ser a minha perdição!...

− Um amor de perdição!... Mas como assim ?!...

− Andávamos os dois apaixonados. Apaixonados ? Qual quê, doidos!...Eu nunca tinha sentido nada parecido!...Fazíamos amor… qual amor!, fazíamos sexo  em qualquer sítio, em qualquer hora… Tornei-me muito, como direi ?,  'desavergonhada'!...Desculpa a expressão, mas eu era uma cadela com cio…

− Oh!, Rosemarie, todos nos apaixonámos na juventude!...  Não me parece que o termo desavergonhada seja apropriado no seu caso...

D’accord!, é uma maneira de dizer, às vezes faltam-me as palavras em português… E mesmo em francês. Ninphomaniaque,  era o que eu era nessa altura…

− Oh! Rosemarie, nessa idade, com as hormonas à flor da pele!…

Oh!, oui, éramos os dois animais de sangue quente, na força da idade, se bem que ele  fosse mais  velho do que eu… E deixa-me dizer-te  que ele na cama ainda era melhor do que com a maldita da rabeca… Era abonado, um garanhão, o cabrão.

− E a tuna, os bailes, as tainadas?... – perguntei-lhe eu.

− Pois, é, vinha o verão, as romarias, as festas… e aí trocava-me pela rabeca!... Comecei a ter ciúmes, primeiro dela, da rabeca, depois dele. Até um dia em que quis parti-la, na cabeça dele. Ameacei-o até de lhe pôr os cornos.,,, Uma ameaça, tola, a primeira coisa que me veio à cabeça: mesmo que o desejasse, não tinha com quem, naquela terra desgraçada...

− Ficou, portanto,  o caldo entornado – comentei eu.

− Ele dava em sair com o grupo dele, tudo gente de vida airada. Chegavam a ir tocar a Vila Real, Amarante e até ao Porto. Só pelas tainadas.

− Mas também ao pé de si, nas Caldas de Aregos, na época balnear, não ?!…

− Sim, e à volta de Resende: Baião, Cinfães, Marco de Canaveses…

− Começaram os problemas no casal, é isso ?!…

− Passaram-se os seis meses da lua de mel, um ano… E nada!... Ele achava que eu não lhe dava filhos, o que para um homem, na época, era uma vergonha, uma humilhação… Um cabrão que não emprenhasse logo a mulher, não era macho, era um frouxo, ou até um mariconço…

− Portanto, a culpa só podia ser "dela"!…

Ah!, oui!... Começou a bater-me. Começou a ficar ciumento, possesso, estúpido… Um animal!… E eu recusava-me a abrir-lhe as pernas, para o cabrão 'despejar os colhões', desculpa-me o termo.

E aqui começa outra estação do calvário da Rosemarie.

− Fechava-me no quarto para não levar porrada… Ele fazia cenas, eu berrava para alvoroçar  a vizinhança... Eu desculpava-me,  que estava com a 'rabeca', a menstruação, quando ele queria 'servir-se' de mim... Enfim,  uma vergonha para a minha família...  Até um dia em que bati com a porta e voltei para casa dos meus pais. Tive a proteção dos meus irmãos, que lhe foram pedir satisfações. Houve porrada. Veio a GNR, mas ficou tudo em águas de bacalhau, que o cabrão tinha, na época, bons conhecimentos entre os senhores de Resende… 

− E depois ?...

− Lá conseguiu arranjar um passaporte, meteu-se um barco e fugiu para o Brasil… Nunca mais na vida lhe pus a vista em cima… Houve quem o visse a sambar, a tocar rabeca, no carnaval do Rio. Depois perderam-lhe o rasto. Deve ter tido um fim desgraçado, que Deus o perdoe. Mas, quando me quis divorciar, foi o cabo dos trabalhos. Estava em parte incerta, ninguém sabia se estava vivo ou morto. Divorciei-me já em França, com mais de 50 anos…

− Mas a fuga para França é outra aventura da Rosemarie…

− Se foi!... Dava para outro filme… Mas hoje já não to conto, fica para outro dia, estou trop fatiguée

 (Continua)

© Luís Graça (202o). Revisáo; 5/8/2023

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Nota do editor:

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21245: Notas de leitura (1297): A política económica e social na Guiné-Bissau, por Carlos Sangreman, Doutor em Estudos Africanos (1974-2016) (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Maio de 2017:

Queridos amigo,
Socorro-me desta síntese de Carlos Sangreman para se fazer uma viagem à vida da Guiné-Bissau até quase aos nossos dias. São postas questões determinantes, vários autores, caso de Julião Soares Sousa, tem procurado dar resposta, mas todos nós sentimos que há um pano de fundo na trajetória democrática, na pedagogia das elites, na obrigação dos partidos políticos se sentirem minguados há uma ideologia de coesão, solidariedade e prática dos valores nacionais sobrepondo-se à raiz étnica, enfim, nos grandes valores e princípios, há algo que falta para que a nação vibre e o Estado passe de frágil a um entidade viva, por todos respeitada.

Um abraço do
Mário


A política económica e social na Guiné-Bissau (1974-2016) (1)

Beja Santos

O autor deste documento é Carlos Sangreman, doutor em Estudos Africanos, consultor internacional com missões em todos os PALOP. Logo no resumo, dá-nos conta do propósito essencial: “Que políticas económicas e sociais a Guiné-Bissau concebeu e executou ao longo de 42 anos? Que base colonial existia em 1974 que tenha sido um ponto de partida para a governação do PAIGC? Com governos e presidentes fortes e fracos, com uma imagem de instabilidade permanente, acusados de favorecer o tráfico de drogas para a Europa, mas com uma paz social relevante para uma região assolada por guerras civis, como se expressou a governação na escola de modelos económicos e sociais a partir de um ideário construído por Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Pedro Pires, Nino Vieira e outros?”.

No trabalho periodizam-se as políticas económicas e sociais em cinco períodos: as políticas coloniais até 1974; as políticas de desenvolvimento de iniciativa nacional, de 1974 a 1986; as políticas de ajustamento de iniciativa FMI/BM, de 1986 a 1998; as tendências caóticas na governação, em diferentes períodos (1998-2003, 2005-2007 e 2012-2014); e as políticas de recuperação (2004-2005, 2008-2012 e 2014-2015).

No primeiro período, recorda-se a legislação dos anos 1920 e 1930 com vista a estruturar a administração, criando ou reforçando serviços desde as alfândegas e registo civil à justiça e saúde. Os mandatos dos Governadores Velez Caroço, Vaz Monteiro e Sarmento Rodrigues revelaram-se particularmente dinâmicos. Adotaram-se medidas de apoio à agricultura, incitou-se a população a cultivar produtos que fossem comercializáveis externamente por Portugal. A política económica incidiu sobre a conceção de monopólios de comércio e produção a firmas como a Casa Gouveia (ligada à CUF – Secção África), a Sociedade Comercial Ultramarina (ligada ao BNU), Mário Lima, Ed. Guedes Lda., Aly Soulemaine, Barbosa & Comandita e aos franceses da CFAO, SCOA e Nouvelle Societé Commercialle Africaine, bem como facilidades de comércio e produção a famílias como os Nozolini, Pereira Barreto, Carvalho de Alvarenga e outros. Até ao fim da glória houve mais propostas, como as de Picado Horta, que preconizava a necessidade de integração progressiva dos setores tradicional/rural e moderno/urbano, apoiando-se em polos de desenvolvimento agroindustriais, agrícolas e industriais.

No segundo período, já na independência, o PAIGC em 1977 definiu orientações de política económica em que a reconstrução nacional assentava na agricultura, infraestruturas e pequena indústria, educação e saúde. Tal não aconteceu, a industrialização, as infraestruturas de transporte e comunicações e administração pública do país ganharam prioridade, o país parecia circunscrito em Bissau. Vasco Cabral dizia abertamente que a economia refletia o centralismo democrático, daí a centralização da governação no aparelho central do Estado, a estatização era o objetivo último. Esta política não foi interrompida com o golpe de Estado de Novembro de 1980. Mas nos anos subsequentes os desastres revelaram-se clamorosos, as empresas que compunham o setor empresarial do Estado estagnaram ou faliram, a capacidade instalada nestas empresas foi utilizada em média em 20 a 25%. Chegou-se a uma situação em que as receitas internas cobriam apenas 50% das despesas correntes do governo e uma percentagem nula das despesas de investimento. A inflação trepou astronomicamente, a dívida externa aumentou em permanência. Tentou-se uma política de alfabetização de adultos e das forças armadas.

Pretendia-se continuar a prática das escolas nas zonas libertadas. Mas tudo foi esmorecendo, quer pela falta de materiais e instalações quer porque as famílias viam no ensino uma atividade elitista, cujo calendário estava em conflito com a necessidade dos jovens participarem no trabalho agrícola. Em 1976, foi elaborado um Plano Nacional de Saúde, com farmácias de tabanca, unidades de saúde de base, hospitais de setor, assim se pretendia a cobertura do país, recorrendo à descentralização. Contou-se com a assistência técnica externa (francesa, italiana, holandesa, cubana, chinesa continental, chinesa Taiwan e soviética, com a execução de muitas ONG estrangeiras e nacionais depois de 1991). O sistema acabou por ruir, a despeito da criação de infraestruturas modelares, como a de Canchungo.

Grassou o descontentamento, e numa primeira fase atribuíram-se plenas responsabilidades a Luís Cabral. No congresso extraordinário do PAIGC de 1981 falou-se na retificação de erros e desvios da linha anteriormente aprovada. Como se disse atrás, o discurso teórico não coincidiu com a prática, a proliferação de projetos de desenvolvimento por todo o território, processou-se de forma descontrolada, desacreditou-se por si próprio.

Com Nino Vieira nada mudou com o papel dirigente do Estado seja na atividade económica seja nas áreas sociais, o que se abandono foi o objetivo de um Estado binacional. Acordou-se num programa de estabilização económica, contou-se com o apoio do FMI e do Banco Mundial. Os eixos básicos desta política económica tinham os seguintes elementos: eliminação dos desequilíbrios entre a produção e consumo, através de medidas de saneamento da situação económica e financeira; a reorganização do setor público e o impulso ao setor privado com a liberalização dos circuitos comerciais e económicos; a definição de critérios para uma melhor utilização de ajuda externa; e manutenção do controlo da economia por parte do Estado. Como o objetivo do equilíbrio orçamental mexeu-se na política fiscal procurando-se aumentar as receitas com os impostos sobre tabaco, álcool e combustíveis.

Mas tudo se agravou em 1983 para 1984, não houve qualquer progresso na via da estabilização, nada melhorou nos preços nem no abastecimento e a política cambial de desvalorização deslizante pouco melhorou o mercado paralelo de divisas. As razões de tal insucesso terão tido a ver com o atraso da conceção de fundos de ajuda externa à balança de pagamentos, com a incapacidade em recursos humanos e técnicos de levar à prática as decisões políticas do governo ou do partido. Em síntese, quatro anos depois do golpe de Estado de 14 de Novembro, a governabilidade, a incapacidade de execução das instituições públicas era referida como uma das causas centrais do insucesso no desenvolvimento do país.

(Continua)


O caju e o seu sumo, realizações viáveis
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21219: Notas de leitura (1296): “Guiné-Bissau: Um caso de democratização difícil (1998-2008)”, por Álvaro Nóbrega; Coleção Estudos Políticos e Sociais, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2015 (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21244: Tabanca Grande (500): Carlos Moreno, 2º tenente da Marinha, oficial imediato da Esquadrilha de Lanchas do CTIG (1968/70): senta-se no lugar nº 814, à sombra do nosso poilão



Carlos Bonina Moreno



1. Mensagem do nosso leitor e camarada, Carlos Moreno, novo membro da Tabanca Grande, nº 814:

Data - 3 agosto 2020, 11h10

Assunto . Inscrição no blogue

Bom dia

Solicito a minha inscrição no Blog "Luís Graça e Camaradas da Guiné", que muito aprecio.

Nome - Carlos Bonina Moreno
Guiné 1968-1970
2º tenente Marinha
Oficial Imediato da Esquadrilha de Lanchas da Guiné

Com os meus melhores cumprimentos,
Carlos Bonina Moreno

P.S. - Seguem duas fotos, de antes e depois.

2. Comentário do editor LG:

Meu caro Carlos Moreno:

Sê bem vindo à Tabanca Grande. Passas a sentar-te à sombra do nosso poilão, no lugar nº 814. 

Conheces. por certo, a nossa política editorial, em dez pontos, que de vez em quando é preciso recordar:

O nosso blogue é também uma Tabanca Grande. Originalmente, chamámos-lhe Tertúlia. Tabanca é um termo mais apropriado: nela cabem todos os amigos e camaradas da Guiné.

Neste espaço, de informação e de conhecimento, mas também de partilha e de convívio, decidimos pautar o nosso comportamento (bloguístico) de acordo com algumas regras ou valores, sobretudo de natureza ética:

(i) respeito uns pelos outros, pelas vivências, valores, sentimentos, memórias e opiniões uns dos outros (hoje e ontem);

(ii) manifestação serena mas franca dos nossos pontos de vista, mesmo quando discordamos, saudavelmente, uns dos outros (o mesmo é dizer: que evitaremos as picardias, as polémicas acaloradas, os insultos, a insinuação, a maledicência, a violência verbal, a difamação, os juízos de intenção, etc.);

(iii) socialização/partilha da informação e do conhecimento sobre a história da guerra do Ultramar, guerra colonial ou luta de libertação (como cada um preferir);

(iv) carinho e amizade pelo nossos dois povos, o povo guineense e o povo português (sem esquecer o povo cabo-verdiano!);

(v) respeito pelo inimigo de ontem, o PAIGC, por um lado, e as Forças Armadas Portuguesas, por outro;

(vi) recusa da responsabilidade colectiva (dos portugueses, dos guineenses, dos fulas, dos balantas, etc.), mas também recusa da tentação de julgar (e muito menos de criminalizar) os comportamentos dos combatentes, de um lado e de outro;

(vii) não-intromissão, por parte dos portugueses, na vida política interna da actual República da Guiné-Bissau (um jovem país em construção), salvaguardando sempre o direito de opinião de cada um de nós, como seres livres e cidadãos (portugueses, europeus e do mundo);

(viii) respeito acima de tudo pela verdade dos factos;

(ix) liberdade de expressão (entre nós não há dogmas nem tabus); mas também direito ao bom nome;

(x) respeito pela propriedade intelectual, pelos direitos de autor... mas também pela língua (portuguesa) que nos serve de traço de união, a todos nós, lusófonos.

PS - Defendemos e garantimos a propriedade intelectual dos conteúdos inseridos (texto, imagem, vídeo, áudio...).

Em contrapartida, uma vez editados, não poderão ser eliminados, tanto por decisão do autor como do editor do blogue, mesmo que o autor decida deixar de fazer parte da Tabanca Grande.


Caro Carlos, não temos muitos camaradas da Marinha. De resto, os marinheiros  e fuzileiros eram em menor  número quando comparados com o pessoal das outras armas, e em especial do Exército (, infantes, artilheiros, cavaleiros...), A tua presença honra-nos. E vais querer, por certo, partilhar algumas fotos e outras memórias do tempo da tua comissão de serviço (1968/70).

Se me permites divulgar  mais alguma informação a teu respeito, direi que, de acordo com a tua página no Facebook, és natural da Covilhã, fazes anos a 18 de setembro e entraste em 1973 para a Escola Superior de Belas Artes, Faculdade de Arquiteura, Universidade Técnica de Lisboa, Temoa alguns, mas ainda poucos, amigos comuns no Facebook.A nossa página no Facebook é a seguintre: Tabanca Grande Luís Graça. 

Também sei que profissionalmente és arquiteto, com nome na praça. E pertenceste ao Curso de 1963, da Escola Naval, cujo patrono foi o navegador protugûês Miguel Corte Real (c, 1450 - 1502)

Com tempo e vagar, vais por certo dar-nos a conhecer algumas das tuas funções e missões como oficial imediato da Esquadrilha de Lanchas do CTIG, e reavivar as  emoções  das nossas viagens ou incursões pelos rios da Guiné, do rio Cacheu ao rio Geba, do rio Grande de Buba ao rio Corubal, do rio  Cumbijã ao rio Cacine.

Muita saúde e longa vida é o meu voto para o novo grã-tabanqueiro nº 814, Carlos Moreno, nome que passa a figurar, a partir de hoje,  na lista alfabética dos membros da Tabanca Grande, na coluna (estática) do lado esquerdo do nosso blogue. 
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Nota do editor

Último poste da série > 13 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21166: Tabanca Grande (499): Raul Castanha, ex-alf mil PM, CPM 3335 (Bissau, jan 1971 / jan 1973): senta-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 813

Guiné 61/74 - P21243: Parabéns a você (1847): Alberto Nascimento, ex-Soldado CAR da CCAÇ 84 (Guiné, 1961/63); Américo Russa, ex-Fur Mil Alimentação do BART 3873 (Guiné, 197274) e Tomás Carneiro, ex-1.º Cabo CAR da CCAÇ 4745 (Guiné, 1973/74)



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Nota do editor

Último poste da série de 9 de Agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21237: Parabéns a você (1846): Anselmo Reis Garvoa, ex-Fur Mil Op Especiais da CCAÇ 2315 (Guiné, 1968)