sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21796: Os nossos enfermeiros (13): em louvor do ex-fur mil enf Urbano Silva e do ex-1º cabo aux enf Silva (Jorge Fontinha, ex-fur mil inf, CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72)


Guiné > Região de Cacheu > Teixeira Pinto > CCAÇ 2791 (1970/72) > O fur mil Jorge Fontinha a ser assistido pelo 1º cabo aux enf Silva, no decurso de uma operação na zona de 


Foto (e legenda): © Jorge Fontinha (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Esta história do Jorge Fontinha, publicada pelo nosso coeditor Carlos Vinhal, há quase 10 anos atrás (*), merece ser "desenterrada" e reproduzida na série "Os nossos enfermeiros"... 

Estamos justamente "com a mão na massa", a falar dos serviços de saúde militares durante a guerra, e da crónica  escassez de recursos humanos e técnicos que foram superados, em grande parte, pela grande abnegação, coragem e altruismo dos nossos médicos e enfermeiros (**). 

Nesta altura, no CTIG, em 1970/72, parece que a regra geral era 1 médico por batalhão, e não 1 médico por companhia, como previa originalmente o dispositivo sanitário.


Os nossos enfermeiros

por Jorge Fontinha


[Foto ao lado: Jorge Fontinha, foi fur mil inf,  da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72; é membro da nossa Tabanca Grande desde 2008 (***); tem  mais de três dezenas de referências no nosso blogue]


A CCAÇ 2791, "Força",  foi uma Companhia, cujos Especialistas e não só os Operacionais, foram de verdadeira excelência.

Hoje vou falar da equipa de enfermagem cuja competência e dedicação não tiveram limites. Superiormente liderada pelo Furriel Miliciano Urbano Silva, os Cabos e maqueiros divididos pelos 4 Grupos de Combate, foram uma equipa de respeito.

O Urbano era incomparável, tanto na sua Especialidade como ser humano, voluntarioso, competente e rigoroso. Ninguém escapava às suas seringas nem aos seus comprimidos. Protagonizámos, os dois, muitos episódios, alguns deles já nem sequer os consigo lembrar. Há todavia um que jamais vou esquecer.

Quando a Companhia se reúne em Teixeira Pinto com o nosso 4.º Grupo, alguns dias passados, há uma operação programada para o Balangarez. Na véspera tive uma entorse no pé direito e,  como nunca me havia baldado em circunstância alguma, fui ter com o Urbano para que ele me desse a sua opinião. 

Depois de revisto, aconselhou-me a consultar o médico do Batalhão [,  
BCaç 2928], que me aconselhou a descansar 3 a 4 dias, passando-me uma baixa para 3 dias. 

Como era da minha obrigação, dei conhecimento ao Alferes Gaspar e dirigi-me ao gabinete do Capitão Mamede, informando-o da situação. Aconteceu o impensável!

O Capitão Mamede acusou-me de caras de ser oportunista e de estar a forjar a  situação. Nunca havia sido tratado, por um superior hierárquico, da forma que estava a ser e com a indignação, disse que não ia à operação, bati com a porta e fui para o bar meter uns gins com água tónica pelas goelas abaixo.

Foi quando apareceu o Urbano. Não o enfermeiro, mas o ser humano que todos nós na Companhia lhe reconhecíamos. Agarrou-me por um braço e convidou-me a ir até à enfermaria pois queria falar comigo. Aí, mandou-me descalçar a bota, fez o seu próprio exame, mexeu, remexeu, massajou durante alguns minutos, com milagrosas pomadas, ligou-me o pé com todo o vigor e obrigou-me a engolir um comprimido, dando-me outro, para ser tomado ao levantar.

Fur mil enf Urbano Silva
Perguntei-lhe para que era aquilo tudo, se já tinha decidido não ir à operação. Aí,
sem que nada o fizesse esperar, faz uma pirueta no ar, dá dois ou três passos de dança e diz três ou quatro palhaçadas, provocando um ambiente hilariante e de boa disposição. Foi a táctica dele. 

- Vais à operação ou não? 

- Vou, mas levo a dispensa no bolso. Se tiver de ser evacuado, alguém a vai ver!

Hoje digo: obrigado,  Urbano!

No decorrer da operação senti alguma dor que estoicamente fui ignorando. A dada altura e já no período de emboscada, para passar a noite, comecei a ter tremuras e febre, tendo passado um mau bocado. 

Valeu-me na altura a minha companheira de emboscada, a inseparável garrafa de whisky, duas goladas e a colaboração do 1º Cabo Auxiliar Enfermeiro Silva, que com o restante me massajou, pondo-me a transpirar abundantemente. Ao raiar do dia, preparamo-nos para regressar à estrada e sermos recolhidos para voltarmos para Teixeira Pinto.

A febre e as tremuras passaram, o pé ainda bastante dorido, mas felizmente com evidentes melhorias ajudaram o resto.

Assisti mais assiduamente às intervenções do Cabo Enf Silva. Foi ele que quase em simultâneo assistiu ao acidente que mutilou a perna do Nunes, nosso primeiro ferido de toda a Companhia. Foi também ele que assistiu em primeira mão ao acidente que provocou o primeiro morto do Grupo de Combate e da Companhia, tendo tido a sorte, ele e todos nós, de seguir na viatura que ia à nossa frente e era comandada pelo Furriel Chaves.

Curiosamente, o Chaves esteve também ele ligado ao episódio seguinte, quando em Mato Dingal, o Cabo Enf Silva, foi chamado de urgência á Tabanca para ajudar a um parto difícil. Coincidiu com a hora de almoço mas o Silva interrompeu, veio avisar-nos a nós e preparou-se para ir. O Chaves que era homem para grandes rasgos, também interrompeu o almoço e igualmente,”meteu as mãos nas luvas” e também foi.

Entretanto eu e o Alferes Gaspar continuamos a almoçar, comer a sobremesa e continuamos à mesa, com os respectivos digestivos, aguardando a chegada de ambos. Assim, o Chaves mal se livra das luvas e se lava, vem para a mesa, acabar de almoçar. 

Quem estava de frente para a porta de entrada era o Gaspar, que de imediato começa a vomitar, provocando-me a mim próprio, igual reacção. O Chaves ao lavar-se, esqueceu-se de mudar a camisa, que vinha ensanguentada e com vestígios da placenta. Resta dizer que o desempenho do Silva, foi exemplar.

O Cabo Enfermeiro Silva era adorado pelo pessoal daquela Tabanca pois tinha sempre uma seringa mágica que curava toda a gente!…

Aos meus bons amigos,  ex-Furriel Urbano e ao ex-1º Cabo Silva, o meu abraço eterno.

Foi apenas mais uma Estória verdadeira, vivida na Guiné.

Aquele abraço para toda a Tertúlia.
Jorge Fontinha

2. Ficha de unidade > Companhia de Caçadores nº 2791

Identificação: CCaç 2791
Unidade Mob: RI 16 - Évora
Cmdt: Cap Mil Art Mamede José de Sousa | Cap Inf Joaquim Humberto Rodrigues Teixeira Branco | Cap Inf Manuel Estêvão Martinho da Silva Rolão | Cap Inf Joaquim Humberto Rodrigues Teixeira Branco
Divisa: "Força"
Partida: Embarque em 19Set70; desembarque em 020ut70 | Regresso: Embarque em 28Set72

Síntese da Actividade Operacional


Após realização da IAO, de 50ut70 a 290ut70, no CMl, em Cumeré, seguiu, em 300ut70, para Bula, a fim de efectuar o treino operacional e sobreposição com a CCav 2487, sob orientação do BCav 2868. 

A partir de  1Dez70, foi integrada no dispositivo e manobra do BCaç 2928, como subunidade de intervenção e reserva do sector, com vista à realização de acções nas regiões de Choquemone, Ponta Matar, Bofe e outras e ainda de reconhecimentos,
patrulhamentos, emboscadas e escoltas na zona de acção do batalhão.

Após ter destacado, temporariamente, um pelotão para Teixeira Pinto, em
reforço do BCaç 2905, outro para Bissum, em 2Mar71, em reforço da CCaç 2781,
e ainda outro para Pache, em 19Mar71, foi deslocada para o subsector de Binar,
em 13Mar7l.

Em 25Mai71, mantendo um pelotão em Bissum, foi transferida para
Teixeira Pinto, reagrupando então o pelotão ali destacado do antecedente, a fim
de colaborar na segurança e protecção dos trabalhos da estrada Teixeira Pinto-
-Cacheu, ficando na dependência do CAOP 1 e depois do BCaç 2905. 

De 30Jul7l a 19Ag071, entretanto, esteve atribuída temporariamente ao COMBIS,
deslocando-se no período para Bissau e regressando em seguida a Teixeira
Pinto, com excepção de um pelotão que só recolheu em 30Ag071.

Em 250ut71, mantendo o pelotão destacado em Bissum, foi deslocada para
a base temporária de Capó, para protecção dos trabalhos da estrada Teixeira
Pinto-Cacheu até 06Dez71.

Após a recolha do pelotão destacado em Bissum em 2Nov71, para Bula e seu deslocamento para Ponta Augusto Barros em 16Nov71, a subunidade foi deslocada para Ponta Augusto Barros, com pelotões destacados em João Landim e Mato Dingal, substituindo nos respectivos reordenamentos a CCaç 2790 e assumindo a responsabilidade do subsector em 8Dez71, na dependência do BCaç 2928.

Em 30Jun72, foi rendida no subsector de Ponta Augusto Barros pela CCaç 3328, por troca, sendo colocada em Bula como subunidade de intervenção e reserva do BCaç 2928 e depois do BCav 8320/72, destacando um pelotão para Nhamate, em 30Jul72 e sendo utilizado em acções de emboscadas e patrulhamentos de contrapenetração.

Em 19Set72, foi rendida no subsector de Bula pela 3ª Comp/BCav 8320/ 72 e recolheu seguidamente a Bissau para o embarque de regresso.

Observações
Tem História da Unidade (Caixa n." 89 - 2ª Div/4ª Sec, do AHM).

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas de unidade: Tomo II - Guiné - (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002), pp. 395/396.

Guiné 61/74 - P21795: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (36): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Chegou-se a um momento em que se cruzam os acontecimentos do tempo da guerra com o dos regressos à Guiné, estes, por sinal, festivos e simultaneamente dolorosos. Annette registou conversas, espicaçou o diálogo sobre os retornos, sabia que tinha havido reencontros, tudo com pretextos profissionais, selaram-se novas cumplicidades. Um Soncó volta sempre. É um dever, é uma razão de ser. Paulo aprendeu ao longo dos anos que houve quem regressasse da Guiné profundamente malquisto, magoado, disposto a tratar aquele passado como livro fechado. Ele e a sua circunstância ditaram outro caminho, por isso acedeu facilmente a satisfazer a curiosidade de Annette quando ela lhe perguntou nas curtas férias de Lier, não muito longe de Antuérpia: o que representou na tua vida regressar aos locais de tantos afetos e de tantas violências? E Paulo contou-lhe o significado que ele atribuía aos seus retornos, afinal demonstrativos de que há memórias que nunca se apagam. E repetiu-lhe: um Soncó volta sempre.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (36): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Mon amoureux, trabalhei todo o dia em Gand, era uma reunião promovida pela Comissão com médicos de várias categorias, retive comentários de professores universitários, eminentes cirurgiões, médicos de família também, mas havia na assistência representantes da indústria farmacêutica, farmacêuticos e especialistas em Saúde Pública, não sei se não estou a dizer algum disparate, mas passou-se o dia inteiro a ouvir intervenções sobre automedicação, tudo começou com a intervenção do Comissário da Saúde que tratou a automedicação como um fenómeno inevitável e em expansão, não só para garantir a eficiência dos serviços de Saúde e medicamentos essenciais a preços abordáveis, transferindo os medicamentos não prescritos pelo médico para um novo quadro de responsabilidade entre farmacêuticos e utentes e doentes. Houve para ali uma certa polvorosa, os médicos entendem que os doentes, de um modo geral, ainda não estão preparados para uma automedicação criteriosa. O representante da indústria farmacêutica, por seu lado, mostrou-se entusiasta para que a lista destes medicamentos cresça e revelou que os laboratórios gostariam de fazer uma comunicação direta com os doentes. Não podes imaginar o pandemónio que houve na sala. E recordei-te o dia todo porque no ano em que nos conhecemos tu tinhas vindo a Bruxelas colaborar na primeira conferência europeia sobre a automedicação.

Obrigado pela organização que estás a dar a todos os teus apontamentos até agosto. Tenho uma surpresa para ti. Coligi as nossas conversas em Lier, estava mortinha de curiosidade para saber o que representava a Guiné nos anos subsequentes ao teu regresso. Vê se compreendi bem, e o que estiver impreciso acrescenta ou corta. Pelo desenvolvimento que estás a dar ao romance, parece-me que faz todo o sentido que haja um posfácio, voltaste à Guiné em 1990, uma curta viagem, trabalhaste sensivelmente cinco meses em 1991 como cooperante, ficou-me a impressão de que houve alegrias e deceções profundas.

Retive o seguinte. Regressas a Lisboa em 1970, tens vários militares feridos, uns a pôr próteses, outros em tratamento. Aquele teu furriel cujo sistema nervoso colapsou ainda estava muito débil, quase apático. Recebes visitas frequentes do Paulo Ribeiro Semedo e do Fodé Dahaba. Virão mais tarde outros sinistrados, caso daquele teu grande amigo, Mamadu Camará, era soldado Comando, foi gravemente ferido num calcanhar, tudo se tentou para a sua recuperação, mas a perna gangrenou, houve que a amputar, ainda hoje vocês se encontram. Outra gente da Guiné ia aparecendo, é o caso do Abudu Soncó, o filho mais novo do régulo, que apareceu em 1996, ele era professor primário, passava longos meses sem receber salário, aproveitou um curso em Setúbal e foi trabalhar para a construção civil. Ri-me imenso quando me falaste de que tinhas preenchido uma declaração dizendo que o Abudu fora admitido em tua casa como criado, ele para ficar em Portugal tinha que ter uma fonte de rendimento, foi esse o expediente encontrado.

A Guiné entrara no limbo no teu quotidiano, mais tarde foste solicitado para escrever em algumas publicações, registei que fora trabalho penoso ir aos escaninhos da memória e encontrar episódios aliciantes, ilustrativos da guerra em que te movimentaste, foi trabalho de pouca dura, sentiste alívio que tudo permanecesse no limbo. Até que um dia, no final de 1989, foste chamado ao teu diretor-geral que te informou que as autoridades portuguesas, no âmbito das reuniões ministeriais que estavam a ter com os novos países independentes de língua portuguesa, para articularem posições quanto à Cimeira da Terra, que se iria realizar no Rio de Janeiro em 1992, o Ministro da Guiné-Bissau, para completa surpresa do ministro português, pedira-lhe cooperação para aprofundar uma política de consumidores no país, coisa considerada urgente. Estava aprazada uma reunião para janeiro, em Bissau, iria a subdiretora-geral e fazia todo o sentido que tu participasses nessa missão, não mais de uma semana, era só para avaliar da viabilidade de tal cooperação e em que termos ela podia ser feita. Foste, foi um grande choque encontrar Bissau a caminho do descalabro, as ruas esburacadas, os prédios em ruínas, a Guiné a viver da ajuda internacional, a classe dirigente enriquecida e o povo muito pobre. Ficaste assombrado com o funcionamento da administração, uma diretora-geral do Comércio Externo recebeu-vos logo declarando que tinha pouco tempo disponível, precisava de ir para a sua empresa pois tinha um contrato de exportação vantajoso para tratar… E à porta do hospital Simão Mendes viste chegarem os familiares dos doentes com colchões, havia camas nas enfermarias, mas os colchões estavam literalmente podres. Tu sentias uma infinita tristeza com um espetáculo tão deplorável. O ponto alto dessa estadia foi a visita a Missirá, graças a um outro cooperante, o carro avariou mas ele arranjou uma camioneta de caixa aberta, desde que te aproximaste de Mato de Cão até tomarem a estrada que leva Canturé a Missirá, passando por Cancumba, tu entraste em transe, a procurar reconhecer os locais que percorrias com tanta assiduidade, ficaste impressionado por ter voltado vida a Cancumba, durante a guerra não havia vivalma, e a alegria do reencontro com amigos, registei o abalo que sentiste quando abraçaste Bacari Soncó, que será mais tarde régulo do Cuor, a conversa havida com a população, tu, a tua subdiretora e o cooperante português (registei o nome, Dr. Francisco Médicis), vocês rodeados dos anciãos, mais atrás os homens mais novos e os jovens adultos, ao fundo as mulheres e as crianças. Antes, tu percorreras Missirá sempre a soluçar, à procura de vestígios do passado, olhando para os tetos das casas e recordando o trabalhão que dera a chegada de tanta chapa zincada, entregavam-te papéis à socapa, o professor pedia cadernos e lápis e todos os livros disponíveis, alguém te entregou uma folha a pedir equipamentos de futebol, faltavam sacos de cimento para acabar a reparação da mesquita, noutra folha alguém invocava generosidades pretéritas, precisava de dinheiro para comprar arroz, óleo e sabão, se podia dar uma ajuda de uns escassos milhares de pesos… E tu ainda ficavas mais magoado, não vieras preparado para tanto desembolso. A reunião prolongara-se até meio da tarde, a despedida foi um sofrimento ainda mais penoso, até porque foi nesse momento que chegou Cherno Suane, o teu guarda-costas, alguém fora de bicicleta chamá-lo a Gambiel, e quando o viste foi outro choro irreprimível, porque ele logo disse que sabia por Deus que um dia o virias buscar, um irmão ajuda sempre o seu irmão, era para ele impensável que eu não o trouxesse para Portugal, fora castigado porque pertencera aos Comandos, era um banido, tinha emprego na empresa Socotran, cortava madeira, mas hoje mesmo viria comigo para Bissau, estava pronto a partir para Portugal. E tu transido, o que responder a este homem que te tinha dado uma amizade desvelada, que naquela amaldiçoada noite de 16 de outubro de 1969 ia no guincho do Unimog 404 e que com o sopro da explosão da mina anticarro voara uns bons metros até aterrar em cima de um morro de bagabaga, trazido para Finete, tu abraçado a quem davas como moribundo, o rosto todo retalhado, em Bissau diagnosticado duplo traumatismo craniano, e que superara o sinistro, como era possível agora dizer-lhe que não? E regressaram a Bissau, o Cherno empertigado na caixa da camioneta onde iam as prendas da população, várias galinhas e sacos com mangas. Mais tarde, o Cherno veio para Portugal, tornou-se uma das mais queridas amizades, encontrou emprego num estabelecimento de eletrodomésticos na região de São Paulo, entre o Cais do Sodré e o Conde Barão, foi o que tu me ditaste, espero que tenha escrito bem.

Estou agora a alinhavar o essencial do que me disseste da tua experiência em 1991, que peripécias, cher Paulo! Eu vou tomando nota de tudo o que te vem à memória, não te quero mentir, há momentos em que me convenço que o que se escreve na literatura é menos empolgante do que se passa na realidade… E pergunto-me a mim própria como é que aquela experiência da Guiné te fez mais forte, te trouxe uma maior alegria de viver. Disseste-me um dia que teres perdido tudo o que trouxeras de Lisboa numa flagelação em que se incendiou a tua casa, não te trouxera grande inquietação, havia que refazer o quartel e tratar dos vivos, os teus trastes foram considerados coisa morta, e havia mais vontade de viver, seria ela capaz de fazer renascer roupas, livros, discos e recordações feitas cinza, e que a grande lição aprendida é que se a vida não renasce é porque se perdeu o respeito por nós e o amor pelos outros. Quando voltas a Bruxelas? Onde passaremos a Páscoa? Que saudades tenho de ti, a despeito de tanta companhia que me dás. Obrigado pela tua joie de vivre, mon adorable, bien à toi, Annette.

(continua)

Local em Mato de Cão onde se fazia a vigilância das embarcações militares e civis no Geba
Edifício dos CTT, Bissau, imagem de Didinho, com a devida vénia
A beleza acrobática da subida da palmeira, um fruto que pode custar a vida, imagem de Didinho, com a devida vénia
Pescador no Rio Grande de Buba
Ainda hoje estremeço nesta panorâmica da velha tabanca de Bambadinca, ao fundo à direita estão os estancos onde se comprava desde a graxa a biscoitos, ali tudo se encontrava, do lado esquerdo, situava-se a loja do Rendeiro, outro fornecedor, detinha uma caverna de Ali Babá para primeiras necessidades, e ao fundo, feita a cambança do Geba, a bolanha de Finete, ao fundo à esquerda vêm-se os armazéns do porto, tudo mudou, a decadência tomou conta de tudo.
Uma imagem que vale por mil palavras
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21769: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (35): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P21794: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (34): Uma pequena homenagem a um grande piloto da FAP, o Honório (António Baltazar Dias, ex-Alf Mil Art MA, CART 1745, Ingoré e Bigene, 1967/69)



António Baltazar Dias, membro da Tabanca Grande,
desde  24 de setembro de 2020 (*)
 
 

1. Mensagem do  António Baltazar Valente Ramos Dias, ex-Alf Mil Art MA da CART 1745 (Ingoré e Bigene, 1967/69):


 Date: quinta, 21/01/2021 à(s) 16:48
Subject: Uma pequena homenagem a um grande piloto da FAP

Caro Luís Graça,

Segue um pequeno texto que pretende ser uma singela homenagem a um grande piloto da FAP de que, quem passou pela Guiné, por certo se recordará.

Se entenderes poderás publicá-lo no blogue.

Um abraço

António Baltasar Dias


Ao Honório: O mais louco piloto da FAP
por António Baltazar Dias



Honório Augusto Brito da Costa (1941-1993): 
caricatura do livro de fim de curso, 1961/62, 
da Escola de Regentes Agrícolas de Santarém, 
 




Quem não se lembra do Honório !? (**)

Era o mais louco e melhor piloto que tive o privilégio de conhecer.

Quando um avião se fazia à pista,  sabíamos já de antemão se se tratava ou não do Honório. As piruetas que antecediam a aterragem, eram a sua habitual assinatura.

Enquanto estive em Bigene, entre 1967/69, procurava ser sempre eu a recebê-lo na pista, quando ali se deslocava com o avião de sector ou por quaisquer outros motivos. Tínhamos, assim, uma relação mais próxima que, penso eu, ele deveria manter também com muitos mais camaradas que visitava nas suas inúmeras deambulações pelo território da Guiné.

Naquela época era conhecido em todo o território e as suas façanhas eram relatadas já de forma fantasiosa. As peripécias que lhe atribuíam,  ultrapassavam já, em muitos casos, a realidade.

Tal, porém, nunca foi suficiente para pôr em causa as verdadeiras capacidades e destemor do Honório, que todos reconheciam serem muito para além do que era considerado normal.

E, para que fique registado, relato em seguida duas situações de que fui testemunha presencial.

A primeira, durante uma operação da minha companhia ao corredor de Sambuiá, em que fomos fortemente embocados pelos guerrilheiros do PAIGC. Solicitado apoio aéreo, foram destacados para o local dois T6 que sobrevoaram o local da emboscada. Qual não foi o nosso espanto quando nos apercebemos que, de carlinga aberta, um dos pilotos fazia fogo de pistola sobre os combatentes do IN que debandavam só com a aproximação dos aviões. 

Soubemos depois que se tratava do 1º Sargento Honório. De quem mais se poderia tratar…? !

Outra das situações deixou-me marcas muito mais indeléveis. Mas para que se perceba bem o contexto há que relatar os seus antecedentes. Como atrás referi, procurava ser sempre eu a acolher o Honório quando das suas deslocações a Bigene e, por norma, eu comentava as “maluquices” que antecediam a aterragem.

Ele dizia-me sempre que estava pronto a levar-me para Bissau, quando eu pretendesse mas que teria que “pagar imposto”, leia-se “obrigar-me a vomitar”! Eu replicava que, com ele, nem pensar. melhor seria ir de barco ou mesmo a pé !

E assim se passaram muitos meses de comissão e muitas idas do Honório a Bigene.

Um dia, porém, tive que me deslocar a Bissau para tratar de assuntos da Companhia e, não obstante diversas iniciativas, não conseguia transporte para regressar para junto dos meus camaradas.

Após várias tentativas apenas foi possível transporte para o Norte numa DO-27, pilotada pelo Honório, que teria que ir a mais dois ou três aldeamentos e também a Farim, recolher um médico que era suposto ir para junto da minha Companhia.

Quando me viu, e se apercebeu que iria voar com ele, só me disse: “É hoje!"... E eu fiquei “ligeiramente” apreensivo, sem antecipar o que se seguiria.

E o que se seguiu … foi indescritível! Tentarei fazer um pálido relato do que ocorreu (pálido já, no início, porque no final da viagem eu deveria ter uma cor cadavérica…).

Após ter levantado voo de Bissau e na travessia do rio Mansoa, o Honório apercebeu-se de que uma canoa com supostos guerrilheiros estaria a atravessar o rio, pelo que a melhor solução seria derrubá-los com a asa do avião. Imaginem as acrobacias que efetuou! E só retomou a rota quando os ocupantes da canoa se atiraram ao rio,  para escaparem à hipotética colisão com a aeronave.

Depois foi o habitual espetáculo antes de cada aterragem, “para que todos soubessem que era o Honório o piloto”!

Em Farim embarcámos o médico. Eu já deveria ter uma cor ou branca ou amarelo - esverdeada e respondi à saudação do médico com um grunhido impercetível. O médico ainda não havia ouvido falar do Honório. Era, portanto, o seu batismo de voo naqueles propósitos…

Ao reentrarmos na DO-27 o Honório disse-me: “Vais para a tua terra, Bigene, portanto vamos fazer uma aproximação especial"…

De nada me valeria replicar, por isso preparei-me para o pior. E que é que me reservou o Honório? Uma aproximação rasante pela bolanha junto ao rio Cacheu e, depois aparecer de surpresa sobre a povoação sem que ninguém esperasse! 

Só que, a seguir ao voo rasante e sobrevoo da vegetação do tarrafe,  surgiram de repente duas palmeiras mesmo em frente do nariz da aeronave. Pensei: “É hoje!" …(Não o “pagar imposto”, como o Honório pretendia, mas o último dia da minha existência...).

Mas o Honório era o Honório. Numa rápida manobra inclinou a aeronave e passou com uma das asas entre as palmeiras, evitando assim a colisão. Depois foi o habitual, mas um pouco mais requintado espetáculo. Foi a “folha morta”, foi o voo rasante na pista, foi um mais não sei quê de manobras acrobáticas até aterrar com segurança.

Quando saí do avião,  lembro-me que o médico estava mais branco que a cal da parede e sem poder pronunciar palavra. Eu nem sei que cor teria e nem me atrevi a abrir a boca durante um largo período de tempo.

Muitos minutos depois, já meio refeito, quando o Honório se preparava para regressar a Bissau ainda tive coragem de dizer à despedida: “Não me fizeste pagar imposto !!!”

De facto não cheirava a vomitado no avião, mas ficaram a pairar uns odores igualmente bem desagradáveis no habitáculo…

Grande Honório ! É a minha singela homenagem a um grande piloto que naquele tempo equiparávamos a Jaime Eduardo de Cook e Alvega, o famoso Major Alvega,  herói da nossa adolescência.

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 24 de setembro de 2020 Guiné 61/74 - P21387: Tabanca Grande (503): António Baltazar Valente Ramos Dias, ex-Alf Mil Art MA da CART 1745 (Ingoré e Bigene, 1967/69): senta-se no lugar n.º 819 do nosso poilão

Guiné 61/74 - P21793: Parabéns a você (1924): Virgínio Briote, ex-Alf Mil Cav da CCAV 489 e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo de CMDS "Os Diabólicos" (Cuntima e Brá, 1965/67)

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Nota do editor

Último poste da série de 21 de Janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21788: Parabéns a você (1923): Dr. João Graça, Médico, Amigo Grã-Tabanqueiro que trabalhou na Guiné-Bissau em 2009

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21792: Blogues da nossa blogosfera (147): PANHARD - Esquadrão de Bula (Guiné, 1963/1974) (3): Nos dias da guerra: As Panhard em Guidage (José Ramos, ex-1.º Cabo Condutor de Panhard AML do EREC 3432)



Do blogue PANHARD - Esquadrão de Bula (Guiné, 1963-1974), que estamos a seguir e que é editado pelo nosso camarada José Ramos, ex-1.º Cabo Condutor de Panhard AML, do EREC 3432, que esteve em Bula, de 1972 a 1974.


NOS DIAS DA GUERRA: AS PANHARD EM GUIDAGE

O ano de 1973 trouxe ao conflito que nos opunha ao PAIGC, novos desenvolvimentos no terreno com a introdução por parte destes de novo armamento, nomeadamente dos misseis terra-ar Strela-2M e que viriam a condicionar a ação dos meios aéreos. Mas igualmente dos seus objetivos de luta criando uma maior pressão sobre as unidades de quadrícula, ao qual o PAIGC somava vitórias no campo diplomático, e que procuravam igualmente criar condições para uma transição da guerra de guerrilha que até ai desenvolviam para uma guerra de carácter mais convencional. Intenção expressa no então desenrolar do designado INFERNO DOS 3 Gês: GUIDAGE, GUILEJE E GADAMAEL.

Durante o mês de Maio, desse ano o PAIGC desencadeou no Norte da Guiné a “Operação Nô Pintcha” mantendo o aquartelamento de Guidage sobre flagelação com a finalidade de o isolar, levando ao seu abandono e à sua posterior ocupação, através de um cerco realizado por um grande número de forças equipadas com meios de infantaria artilharia, foguetões, morteiros e mísseis.

Para concretizar esse objetivo foram também deslocados um elevado número de elementos e de meios para neutralizar a circulação entre Binta e Guidage através de ações que impedissem qualquer tentativa de abastecimento da unidade.

Ao fim de mais de um mês de cerco e de seis colunas de reabastecimento a Guidage, apenas em Junho o PAIGC voltou a flagelar o aquartelamento, o que indiciava que desistira desse objetivo, agora centrado a Sul em Guileje.


MISSÕES DO ESQUADRÃO

“Ao Esquadrão foram atribuídas diversas missões, em especial, escoltas e proteção a colunas, ações de presença, vigilância móvel dos itinerários e segurança a pessoal em trabalho num campo de minas.”

“Um pelotão foi destacado para reforço do BCaç 3832 até 16Jul72, instalando-se em Jugudul e Mansoa. Por períodos variáveis, cedeu ainda pelotões para reforço de diversos batalhões os quais foram destacados para Bissorã, de 05Out72 a 20Abr73, na dependência do BCaç 4610/72:”

“Para Catió, de 20Abr73 a meados de Set73, na dependência do BCaç 4510/72 e para Mansoa, a partir de 14Set73, na dependência do BCaç 4612/72, com vista a colaborar na segurança e proteção dos trabalhos das estradas em construção e das colunas de reabastecimento e de transporte de materiais.”


Fonte: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) (2002). 7.º Volume – Fichas das Unidades - Tomo II – Guiné. Lisboa: Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). 1.ª Edição.

Como missão específica atribuída, a este ERec, destaca-se a proteção do pessoal da Tecnil na construção das seguintes estradas:

Catió – Cufar
Bissorã – Mamedão
Jugudul - Bambadinca

Na sequência destes destacamentos um PelRec do ERec 3432, destacado em Mansoa, terá integrado uma coluna de reabastecimento a Guidage.

Nota: as fotos publicadas foram retiradas de a "Guerra" Episódio 32, de Joaquim Furtado - RTP1.

Em 15Jun saiu uma coluna auto de Guidage com destino a Binta, abrindo novo itinerário. A força era constituída por 1 GComb/1.ª/BCaç4512/72, Pel Sap do BCaç 4512/72, GMil 342, 1 Sec AM “Panhard” do ERec 3432, Pel Caç Nativos 56 e 65.

Fonte: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) (2015). 6.º Volume – Aspectos da Actividade Operacional - Tomo II – Guiné. Livro III, Lisboa: Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). 1.ª Edição.

Esta referência confirma a ida deste Pel Rec, embora se refira apenas à sua saída.

Esta é também descrita pelo ex. Fur Mil Cav Armando Lopes, ao Correio da Manhã num texto intitulado “A Minha Guerra”.

“Numa operação, tocou-nos dar proteção a uma coluna de reabastecimento para Guidage – um aquartelamento da nossa tropa, praticamente em cima da fronteira com o Senegal, país onde o PAIGC tinha instaladas as bases de apoio. A zona de Guidage escondia as principais rotas dos guerrilheiros para o interior da nossa província. Dias antes da operação, estalara um violento combate entre a nossa tropa e a guerrilha. Quando seguimos para Guidage, colados à coluna de reabastecimento, encontrámos pelo caminho as marcas dessa batalha: vimos as enormes crateras na picada e os destroços calcinados e retorcidos de camiões Berliet de transporte de pessoal. Soubemos, depois, que a tropa portuguesa tinha conseguido aguentar o ataque mas deixou para trás algumas viaturas. A Força Aérea bombardeou as Berliet abandonadas para impedir que caíssem nas mãos dos guerrilheiros. Chegámos sem problemas a Guidage, onde passámos a noite, e no dia seguinte segui com o meu esquadrão a caminho de Mansabá.”

Fonte: https://esquadraodebula.blogspot.com/search/label/Armando%20Lopes

Em conversa posterior, lembra-se que teriam ficado apenas uma noite, dormindo nas Panhard e saído no dia seguinte.
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Notas do editor:

Poste anterior de 3 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21220: Blogues da nossa blogosfera (135): PANHARD - Esquadrão de Bula (Guiné, 1963/1974) (2): Modelo à escala da Panhard AML 60, MX-03-19, do EREC 3432 (1972/74). Autor: João Tavares, da Associação de Modelismo do Montijo (José Ramos)

Último poste da série de 20 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21666: Blogues da nossa blogosfera (146): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (57): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P21791: Usados & Achados: pensamentos para aumentar a nossa resiliência em mais um "annus horribilis": (4) A 'descoberta' da Índia


Fernando Pessoa, 1914. Fonte: Wikipedia
(Imagem do domínio público)


Opiário

É antes do ópio que a minh’alma é doente.

Sentir a vida convalesce e estiola

E eu vou buscar ao ópio que consola

Um Oriente ao oriente do Oriente. (...)


Eu acho que não vale a pena ter

Ido ao Oriente e visto a Índia e a China.

A terra é semelhante e pequenina

E há só uma maneira de viver. (...)


Pertenço a um género de portugueses

Que depois de estar a Índia descoberta

Ficaram sem trabalho. A morte é certa.

Tenho pensado nisto muitas vezes. (...)


E afinal o que quero é fé, é calma,

E não ter estas sensações confusas.

Deus que acabe com isto! Abra as eclusas —

E basta de comédias na minh’alma!

 

                        No Canal de Suez, a bordo. [1914] 


[Publicado originalmente na revista "Orfeu", 1915]



Fonte: Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993), p. 135. Disponível aqui: http://arquivopessoa.net/textos/2456 

(Usado & Achado > A 'descoberta' da Índia > Selecção: LG)



1. Em tempo de confinamento geral (o segundo desta pandemia de Covid-19), algum "humor de caserna", com alguma brejeirice e saudável malícia, será bem vindo, de tempos a tempos, para  amenizar a leitura diária do Blogue e reforçar a nossa resiliência, desde que não infrinja as nossas regras de bom senso e bom gosto, base da nossa política editorial...

Lembrámo-nos por isso de dar início a uma série a que chamamos "Usados & Achados": pequenos textos, pensamentos do dia ou da noite, ideias ou frases, de preferência ilustrados, que nos façam sorrir, rir, sentir, emocionar, sonhar, ou até chorar, gritar, pensar, reflectir, imaginar, meditar, etc.

Não têm, necessariamente, a ver com a tropa, a guerra, a Guiné (o "core business" deste blogue, o seu enfoque principal), mas também podem ter... 

O leque de temas é vasto, podendo ir da saúde ao amor, do trabalho ao lazer, da vida à morte, da paz à guerra, incluindo os comes & bebes, os prazeres da mesa, a história, a etnografia, a geografia, a fotografia, as viagens, etc. Ou seja, tudo o que pode ter a ver com "os nossos seres, saberes e lazeres" (nome de outra série, já consolidada).

Podem ser também anedotas "inteligentes", pequenas séries de provérbios sobre um tema, pequenos poemas ou curtas histórias, de dois ou três parágrafos, originais ou não, mas com alguma "verve" e "irreverência", e também "raridade" e "novidade"... 

Ou seja, não vale a pena mandarem-nos  coisas, "muito giras",  que circulam pelas redes sociais e e que são conhecidas de todo o mundo...

Podem ser, por exemplo, uma sugestão de leitura (de um livro que andam a ler ou de gostaram muito), ou até pequenos excertos de livros ou autores, atuais ou antigos, como os dois que publicámos logo no primeiro número da série, um sobre a "cura" e outro sobre as qualidades (terapêuticas) do "leite" (*).

Hoje selecionámos alguns versos do belíssimo poema do Álvaro de Campos (um dos heterónimos de Fernando Pessoa, o maior poeta, com Camões, da nossa literatura).

Enfim, cada "Usado &  Achado" deve ser algo que se leia mum minuto e que desperte também a curiosidade do leitor e o leve a procurar saber mais, na Internet... (Convém haver sempre um "link"...).

Em contrapartida, devemos evitar o terreno minado a que chamamos RPF (Religião, Política & Futebol)...

Aguardamos a colaboração dos nossos leitores, "confinados" ou não (, os da diáspora lusófona, por exemplo). 

PS - Não sendo os textos originais, convirá sempre citar a fonte e acautelar eventuais direitos de autor e/ou créditos fotográficos.

Guiné 61/74 - P21790: In Memoriam (381): Capitão Quaresma Rosa, ex-Comandante dos Bombeiros Sapadores de Setúbal, ex-1º srgt da CCAÇ 3, Guidaje, 1968/69 (Hélder Sousa, ex-Fur Mil TRMS TSF)

IN MEMORIAM

Capitão João Augusto Quaresma Rosa,
ex-Comandante dos Bombeiros Sapadores de Setúbal


1. Mensagem do nosso camarada Hélder Valério de Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 21 de Janeiro de 2021:

Caros amigos
Junto uma notícia do jornal "O Setubalense" e duas fotos.

Trata-se da comunicação do falecimento de João Augusto Quaresma Rosa, Capitão do Exército, de Artilharia que, durante salvo erro duas comissões, comandou a Companhia de Sapadores Bombeiros de Setúbal e onde desenvolveu incessante trabalho e granjeou bastantes simpatias.

Foi ele que conseguiu transformar um Corpo de Bombeiros Municipais em Bombeiros Sapadores e foi ele que teve possibilidade de inaugurar o seu Quartel, fruto de intensas negociações.

E que tem isso a ver connosco, com a Guiné?

Bem, ele foi nosso "camarada da Guiné".

Integrou, enquanto 1.º Sargento, a Unidade a que, salvo erro, pertenceu Marques Lopes [, CCAÇ 3, Guidaje, 1968/69].

Esteve em Guidaje e ajudou a "dilatar o Império", conforme uma vez me confidenciou, quando durante uma acção de nomadização junto da fronteira com o Senegal, ao reposicionarem alguns marcos que se encontravam derrubados, fizeram-no uns metros mais a norte.

Para o Curso de Capitão contou-me em tempos que o seu competidor, com quem mantinha um despique saudável e que servia para se superarem, era o seu amigo, também já falecido, Capitão José (Zé) Neto.

Estreitámos relações quando ele comandava os Municipais (antes de serem Sapadores) e eu estava na Secção da Natação do Clube Naval Setubalense e era necessária uma viatura para transporte dos nadadores a Lisboa, Algés, Cova da Piedade, etc. e a Câmara Municipal, a quem se solicitava a diligência, endossava para os Bombeiros. Só ao fim de algum tempo é que soubemos que a Guiné tinha sido um destino comum.

A partir daí passamos a interagir mais, a fazer coisas juntas, até que a idade foi-lhe arranjando complicações de saúde e tornou-se mais difícil a disponibilidade para o relacionamento.

Sempre bem disposto, com sentido de humor "corrosivo", recordo uma vez que, tendo-se deslocado ao Quartel das Transmissões em Sapadores onde estava um seu sobrinho, por sinal à época Capitão (hoje é Coronel) e naturalmente de apelido Quaresma Rosa, chegou-se ao sentinela da porta de armas a dizer que pretendia "falar com o Capitão Quaresma Rosa" ao que foi interpelado quem queria falar com o Sr. Capitão, ao que ele muito serenamente disse "Capitão Quaresma Rosa"! O militar de serviço pensou que estava a gozar com ele e mandou chamar o oficial de dia e só depois se fez o esclarecimento devido.

Numa das nossas trocas de comunicação escreveu-me o seguinte:

Olá amigo
Antes de mais uma explicação: - nem todos os dias tenho pachorra para abrir o computa, até por que, está duma lentidão desesperante Tenho que o levar à fisioterapia; melhor dizendo (dizer implica voz, por isso escrevendo), esperando que filho ou neto adquira um novo e faça como com os telemóveis, vão passando para os “ultrapassados” nas novas tecnologias.

Vamos ao assunto:

Daqui um avô com cinco netos e dois bisnetos – a família tem contribuído para que a Europa não fique despovoada ou “islamizada…”-. Parabéns pelo Gustavo, pouco falta para o levar a passear nos jardins da nossa presidente Maria (que, diga-se, estão lindos).

Continua com os seus trabalhos e as “chatices” inerentes aos cargos, ainda bem, por que esta vida do fazer nada é desesperante, leva-nos a ficar presos aos achaques (agora nem Clube Militar funciona às quartas feiras – uns doentes outros foram-se),o que leva, a por falta de uma boa “discussão” agora que tanta matéria existe para tal, a perder vocabulário.

Passando adiante: eu cá ando com as minhas maleitas, já suas conhecidas.

Vou com minhas oito “grandes” cirurgias e mais umas de somenos importância, que levam a fisioterapia permanente.

Não estou retido em casa, vou fazendo umas (muitas) visitas ao Hospital da Luz e fisioterapia 2.ª, 4.ª e 6.ª feira. De quando em vez, conforme o tempo permitir, vou até ao bar existente um pouco antes do PUA não beber um café, mas degustar outra qualquer coisa.

É muito trabalho para a minha motorista (a quem pago pouco).

Pelo que lê, vê que se arranja um tempinho para um café.

Cumprimentos à família e um abraço para si do:
QR


Acabou por falecer no Hospital da Luz-Setúbal e fiquei a dever-lhe mais um café!

Em anexo seguem duas fotos que tirei hoje. Uma quando o carro funerário pára junto ao Quartel dos Bombeiros Sapadores, que foi erigido sob o seu comando, onde lhe foram prestadas honras militares. A outra é no exterior do Cemitério com a "encomendação" proferida por um Tenente-Coronel Capelão dos Pupilos, por indicação do Exército.

Hélder Sousa

Com a devida vénia a "O Setubalense"

Fotos: Hélder Sousa (2021)


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Nota do editor

Último poste da série de 2 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21727: In Memoriam (380): Domingos Fernandes (1946-2020), ex-fur mil at art, CART 2520 (Xime e Quinhamel, 1969/70): membro, nº 825, da Tabanca Grande, a título póstumo

Guiné 61/74 - P21789: Os nossos enfermeiros (12): Os serviços de saúde militar no meu tempo (José Teixeira, ex-1.º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70)


Guiné > Região de Quínara > Empada > CCAÇ 2381 (1968/70) > O José Teixeira, escrevendo, junto ao memorial da companhia.

Foto (e legenda): © José Teixeira (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Mensagem de José Teixeira, ex-1.º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70; teve como comandante de pelotão o alf mil José Belo, hoje régulo da Tabanca da Lapónia; o José Teixeira é, por sua vez, régulo da Tabanca de Matosinhos e "senador" da Tabanca Grande, com  mais de 350 referências no nosso blogue:

Data - 19 jan 2021 22:37

Assunto - Os serviços de saúde militar e a guerra colonial [comentário aos postes P21781 e 21782 (*)]

O Dr. Carlos Vieira Reis faz uma leitura muito interessante dos Serviços de Saúde Militar nas guerras de África,  creio que muito centrada em Angola e nos primeiros tempos da guerra.

A realidade nos anos 1968/69/70 era bem diferente. A começar pela estrutura médico sanitária da Companhia, onde não havia médico. Este, existia apenas a nível batalhão ou era colocado no Comando do Sector. 

Cada Companhia tinha nos seus quadros um furriel enfermeiro e três cabos auxiliares de enfermeiro. Note-se que havia a categoria de cabo enfermeiro. A sua preparação era exatamente igual à do auxiliar de enfermeiro, mas o que era classificado como cabo enfermeiro era destinado ao Hospital e o que era classificado como auxiliar de enfermeiro era colocado nas Companhias operacionais.

Deste modo, cada Companhia tinha um enfermeiro por Grupo de Combate (um furriel e três cabos auxiliares de enfermeiro), mas, salvo raras exceções, o furriel refugiava-se no comando e os desgraçados dos cabos auxiliares de enfermeiro marchavam no terreno.

Quanto a médicos, em cerca de três meses que estive em Ingoré, quem pontificava na assistência à saúde era o furriel da companhia ali estacionada, o qual era chamado “dotor” pela população e, na realidade,  atendia a população , receitava medicamentos, assistia a partos, etc.

Era um “apanhado pelo clima” autenticamente maluco, mas que era bom na arte, era! Aprendi muito com ele no pouco tempo em que convivemos, quer em conhecimentos de doenças tropicais e seu tratamento, bem como na minha relação com a população. 

Posteriormente foi castigado e reduzido a soldado raso, como tive oportunidade de saber, quando o encontrei na prisão dos Adidos em Bissau. (Uma estória para contar mais tarde).

Eu, que tive três meses de formação em enfermagem no Serviços de Saúde em Coimbra, onde um Cabo RD [, readmitido,] dava formação do corpo humano, um médico que aparecia uma vez por semana para uma palestra e um 1 º sargento “cheio de África” que nos dava palestras numa linguagem pobre, sobre saúde.

De notar que, num pelotão de cerca de cinquenta homens,  a grande maioria vinha da escola de sargentos onde tinha chumbado, logo, gente revoltada, com conhecimentos científicos (7º ano, professores primários, etc) e vistas largas, que faziam do cabo RD e do Sargento gato sapato. 

Para mim foram umas férias, pois tinha dado o corpo humano no liceu de uma forma muito mais científica e mais profunda. Seguiu-se um estágio de cerca de dois meses no hospital do Porto, numa enfermaria dedicada a medicina interna, onde tomei conhecimento com algumas doenças, treinei a dar injeções e pouco mais.

Entrei pela guerra dentro, com um furriel enfermeiro que tinha o atual 6º ano, um cabo auxiliar de enfermeiro com o curso comercial (corresponde ao atual nono ano), eu com o 9º ano incompleto e um outro com a 4ª classe. 

Uma bela equipa, onde o furriel nunca se encaixou, bem pelo contrário.

Valeram-me a vaga experiência anterior como escuteiro, a minha força de vontade em dar o meu melhor e os conhecimentos adquiridos com o furriel “maluco” em Ingoré e a unidade da equipa dos três estarolas auxiliares de enfermeiro, pois o furriel enfermeiro da minha companhia, creio que sabia muito menos que nós. 

Felizmente nunca precisou de demonstrar os seus conhecimentos na área. Nunca saiu para o terreno e na única vez que caiu debaixo de fogo, numa mudança da companhia, nem se dignou aparecer juntos dos feridos, quando estavam a ser tratados, um dos quais faleceu por hemorragia interna. 

A enfermaria era terreno nosso. Como não nos suportávamos mutuamente, ele aparecia lá pontualmente e deixava-nos à vontade, desde que não implicássemos com ele sobre as idas para o T.O.
 
No sub-sector de Aldeia Formosa, já colocado em Mampatá, como não havia médico, com a ajuda do Alferes José Belo, meu comandante, conseguimos que uma avioneta fosse de propósito a Aldeia Formosa buscar um africano já idoso com graves problemas intestinais. 

Isto nos primeiros tempos da spinolândia. Depois foi lá colocado um médico, todavia quando eu – o “dotor” de Mampatá- , lhe enviei um camarada para ser consultado, vi o rapaz regressar sem ser visto pelo médico, dado que este tinha dado baixa a si próprio e não saía do quarto, queria ir para Bissau exercer a sua especialidade.

Está claro que no dia seguinte fui eu visitar o médico e tivemos uma discussão azeda, até que ele acabou por me aconselhar um medicamento para eu administrar ao doente e tudo passou.

Só voltei a encontrar um médico em fevereiro do ano seguinte em Buba, apesar de Aldeia Formosa, ser uma zona de elevado risco, mesmo nas “barbas” da Mata do Cantanhez e com o corredor de Uane a separar-nos de Buba, até onde íamos para transportar os mantimentos que posteriormente levávamos com muito sangue, suor e lágrimas até Gandembel.

Em Buba, o dr. Azevedo Franco, natural de Matosinhos onde felizmente ainda mora, foi um homem extraordinário para os rapazes das três companhias operacionais, um Grupo do BENG 447, Comandos e Fuzas, um mundo militar para apoio na construção da estrada para Aldeia Formosa. Sempre atento às necessidades, ouvia cada um com toda a atenção, era pródigo em dar baixas.

Falo com orgulho deste médico de quem estimo a amizade que criamos na guerra e que se mantém. O desgaste físico a que eramos submetidos quebrou a resistência física e o dr. Azevedo Franco assumiu o risco de nos ajudar, ao ponto de as três companhias ficarem reduzidas a cerca de um terço. 

As consequências não tardaram: primeiro, uma Junta médica para analisar as baixas que apareceu repentinamente com dois médicos vindos de Bissau para ver no terreno o que se passava; e tiveram azar, porque a malta estava a comer spaguetti com chispe ao almoço e ossos de chispe com spaguetti ao jantar, (ainda hoje não posso ver spaguetti) a alinhar todos os dias para a segurança na estrada em construção (tinha havido atraso na remessa de alimentos com cerca de quinze dias).  Depois a vinda do Spínola em pessoa para fazer um discurso apelativo ao nosso patriotismo.

E perante as nossas queixas virava-se para o major que o acompanhava, “aponta Bruno” Eu, estava ao lado do médico quando o general se aproximou dele e lhe recomendou que desse umas “picas” aos rapazes, “aponta Bruno”, ao que o médico respondeu: "Peixe e carne em quantidade e qualidade!"

Uns dias depois, juntamente com os mantimentos, vierem dois volumes de medicamentos, na sua base, vitaminas. O médico mandou-me devolver tudo a Bissau com a informação que não tinham sido solicitados e não eram necessários.

Em Empada, o médico de Buba aparecia de vez em quando e passava lá uma ou duas semanas e voltava para Buba. Suponho que fazia o mesmo em relação a Aldeia Formosa, mas não posso confirmar.

Está claro que não estávamos em Angola e os tempos eram outros. Uma guerrilha muito mais localizada e próxima, muito agressiva e sobretudo poucos médicos e uma população muito próxima que via em nós o “dotor”.

 Grande parte do tempo que tínhamos quando libertos da ação militar era gasto a receber a população e a dar “mezinho”. Quase não havia descanso para os enfermeiros. (**)

Zé Teixeira  (***)
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Notas do editor

(*) Vd. postes de:

19 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21781: Nota de leitura (1335): Os serviços de saúde militar e a guerra colonial - Parte I (Luís Graça)



(***) O José Teixeira tem uma notável série, a que chamou "O meu diário" (terá sido o primeiro a publicar-se no nosso blogue):

1 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDX: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (1): Buba, Julho de 1968

(...) Buba, 21 de Julho de 1968: Agora me lembro, hoje é Domingo... Saí às cinco da manhã em patrulha de reconhecimento à estrada de Aldeia Formosa. Voltei a Buba onde assento desde ontem pelas treze e trinta, depois de uma marcha de cerca de vinte quilómetros debaixo de sol abrasador. O resto da tarde foi para dormir, estava completamente esgotado (...).

2 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXI: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (2): Buba/Aldeia Formosa, Julho de 1968

(...) Buba/Aldeia Formosa, 24-26 de Julho de 1968: (...) A noite começou mais cedo neste negro dia de vinte e quatro de Julho! Esta vida salvava-se, mas um mal nunca vem só. A viatura atingida era o carro do rádio e consequentemente desde aquela hora (16 h) ficamos completamente isolados do resto do mundo. O ferido mais grave e que veio a falecer era o radiotelegrafista. Isto é guerra... Quando nos dispúnhamos a montar acampamento o radiotelegrafista morreu. Com o impacte do rebentamento tinha ido ao ar e caíu de peito, rebentando por dentro. Eu e o Catarino nada pudemos fazer (...).

(...) Aldeia Formosa, 9 de Agosto de 1968: (...) Um pelotão de milícia de Aldeia Formosa foi bater a zona de Mampatá, para confundir o IN e sofreu dois mortos e três feridos. Trouxe orelhas de vários IN, mortos durante o combate. É horrível, Senhor... dois mortos e três feridos e... orelhas de vários IN mortos. Alguns, foi a sangue frio, segundo dizem, depois de serem descobertos com ferimentos que os impediam de fugir. Tudo isto é guerra, enquanto uns estavam na rectaguarda feridos, outros, autênticas feras, procuravam IN, irmãos de raça, para os assassinarem (...).

2 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXIV: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (4): Aldeia Formosa, Agosto de 1968 

(...) Aldeia Formosa, 28 de Julho de 1968: (...) Encontrei em Gandembel o Mário Pinto, meu colega de escola, contou-me coisas terríveis que se têm passado neste aquartelamento fortificado, junto à fronteira com a Guiné-Conacri que tem como objectivo cortar os carreiros de ligação à estrada da morte, impedindo o IN de fazer os abastecimentos (...).

6 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXVII: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (5): Mampatá, Agosto-Setembro de 1968

(...) Mampatá, 7 de Setembro de 1968: Tenho que reagir. Estou-me portando pior que os outros. Onde está a minha força de vontade de viver segundo o meu projecto de vida ? Sinto-me só... recomeço a luta tanta vez... como fugir ?...Eu não quero matar. Eu não quero morrer. Quero viver, mas esta vida, não (...).

11 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXL: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (6): Mampatá, Setembro-Outubro de 1968 

(...) Mampatá, 17 de Setembro de 1968: Dia de correio. Ainda cedo sentiu-se a avioneta de Sector em direcção a Aldeia Formosa. Aguardamos com ansiedade a viatura que partiu para lá....O Vitor escreveu-me. Por Bissorã nem tudo corre bem. Segundo ele, num pequeno incidente ficaram dois soldados inutilizados para toda a vida, ambos com uma perna amputada e um outro com a cara cheia de estilhaços. Além destes, uma nativa morta e outra sem uma perna. Tudo por rebentamento de minas A/P, montadas pelo IN. Numa saída em patrulha a malta vingou-se fazendo sete mortos e dois prisioneiros. O último a morrer foi o tipo que montou as minas e, pelo que ele conta, teve morte honrosa. Todos os africanos verificaram a eficiência das suas facas no seu corpo (...)

(...) Mampatá, 25 de Setembro de 1968: Como é belo sentir nas próprias mãos o pulsar de um coração novo que acaba de vir ao mundo. Um corpo pequenino, branco como a neve, puro como os anjos e no entanto, este corpo vai crescer, a pouco e pouco a natureza encarregar-se-á de o tornar negro como os seus progenitores, negro como os seus irmãos que hoje não cabiam em si de contentes. É puro como os anjos, a sua alma está imaculada, mas virá o tempo em que conhecerá o pecado, terá de escolher entre o bem e o mal (...).


Guiné 63/74 - CDLIV: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (7): Mampatá, Outubro-Dezembro de 1968

(...) Mampatá, 29 de Outubro de 1968: (...) A família do sargenti di milícia Hamadu (1) estava toda reunida. No meio, um alguidar cheio de vianda (arroz) com um pequeno bocado frango frito:- Teixeira Fermero, vem na cume (Enfermeiro Teixeira vem comer). - Sentei-me meti a mão no alguidar, fiz uma bola com arroz bem temperado com óleo de palma e meti à boca (Em Roma sê romano). Estava apetitoso e eu estava cheio de comer massa com chispe que o cozinheiro confeccionava na cozinha improvisada ao ar livre, porque não havia mais nada. Estamos no tempo das chuvas, a Bolanha dos Passarinhos está intransponível pelo que não há colunas a Buba para trazer mantimentos (...).

19 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXI: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (8): Chamarra, Janeiro de 1969 

(...) Mampatá, 5 de Janeiro de 1969: (...) Admiro esta população de Mampatá. Quando souberam que eu ia de serviço na coluna em substituição do Lemos vieram despedir-se de mim. Fui abraçado, as bajudas beijavam-me e cantavam uma melodia triste. Até dá gosto viver com esta gente. A mãe da Binta veio trazer-ma para lhe dar um beijinho e fazer um festinha como era meu hábito (Pegava nela e atirava-a ao ar dando a miúda e a mãe uma gargalhada). A Maimuna tinha oito luas quando cheguei a Mampatá (...).

(...) Chamarra, 23 de Janeiro de 1969: (...) Ontem ao anoitecer, em Aldeia Formosa, alguém, lançou uma granada de mão para a Messe dos sargentos. Não se sabe quem foi. Branco ou negro. Por vingança, por descuido. Os resultados foram tremendos. Dois soldados, meus camaradas, tiveram morte imediata e houve ainda dez Furriéis feridos, alguns com gravidade. As medidas tomadas pelo Comandante para descobrir o assassino ainda não resultaram. Aqueles dois colegas que casualmente se encontravam à porta encontraram a morte, pela mão de um companheiro cego pela loucura ou pelo ódio, tudo leva a crer (...).

14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi 

(...) Leça do Balio, 17 de Fevereiro de 2006

Ao reler o Meu Dário (que não era diário) onde apontei algumas das situações mais marcantes da minha guerra, apetecia-me queimar tudo e recomeçar de novo. Tudo o que escrevi, não foram historinhas para depois (agora) de velho, contar aos netinhos. São factos verdadeiros escritos a quente, para não perderem o “sal” da realidade que o tempo teima em dissolver

Hoje, com as feridas saradas, talvez romanceasse um pouco. Talvez lhe juntasse outros pormenores, que com o calor dos acontecimentos foram posto em secundário. Talvez lhe juntasse outras situações que vivi e não escrevi, umas por desleixo, falta de motivação de momento, ou até por não encontra razões de história. Outras por medos “pidescos” de poder ser apanhado. (...)

Guiné 61/74 - P21788: Parabéns a você (1923): Dr. João Graça, Médico, Amigo Grã-Tabanqueiro que trabalhou na Guiné-Bissau em 2009

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Nota do editor

Último poste da série 13 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21763: Parabéns a você (1922): Major Enfermeira Paraquedista Reformada Maria Ivone Reis (FAP, 1961/74)

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21787: História da 3ª Companhia de Comandos (1966/68) (João Borges, 1943-2005) - Parte X: atividade operacional, junho de 1967, destaque para a Op Ypanema, em Rua, região do Oio



Foto nº 1 >  Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1974 > Guerrilheiros do PAIGC...


Foto nº 2 >  Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1974 > O  "ninho", espaldão do obus 14

Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1974 > BCAÇ 4612 (1972/74) > 1974 >  Fotos do álbum do nosso camarada Jorge Canhão  (ex-fur mil at inf , 3ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, Mansoa e Gadamael, 1972/74)

Fotos (e legendas): © Jorge Canhão (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Brasão da 3ª CCmds (1966/68)




1. Começámos a publicar, em 17/11/2020, uma versão da História da 3ª Companhia de Comandos (Lamego e Guiné, 1966/68), a primeira, de origem metropolitana, a operar no CTIG. (Hão de seguir-se lhe, até 1974, mais as seguintes: 5ª, 16ª, 26ª, 27ª, 35ª, 38ª e 4041ª CCmds.)

O documento mimeografado, de 42 pp., que nos chegou às mãos, é da autoria de João Borges, ex-fur mil comando, já falecido (em 2005). Trata-se de um exemplar oferecido ao seu amigo José Lino Oliveira, com a seguinte dedicatória:

"Quanto mais falamos na guerra, mais desejamos a paz. Do amigo João Borges".

Uma cópia foi entregue ao nosso blogue para publicação. (*)



História da 3ª Companhia de Comandos 
(1966/68) (*)


3ª CCmds
(Guiné, 1966/68) / João Borges
Parte X (pp. 24-26)





 


PS - Não não conseguimos localizar a posição relativa do acampamento do PAIGC, sito em Rua, região do Oio. Não sabemos se o topónimo existia ou existe. Pode ser um erro de dactilografia.
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Nota do editor:

(*) O José Lino [Padrão de] Oliveira foi fur mil amanuense, CCS/BCAÇ 4612/74, MansoaCumeré e Brá, 12-7-1974 / 15-10-1974, a mesma unidade a que pertenceu o nosso coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro; é membro da nossa Tabanca Grande desde 31/12/2012; tem dezena e meia de referências no nosso blogue; vive em Paramos, Espinho.