terça-feira, 20 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22120: Recordações do meu avô Fernando Brito (1932-2014) (Cláudio Brito) - Parte II: Primeiras Fotos do Serviço Militar no Ultramar: Goa, Índia Portuguesa,1955/58


Foto nº 1 > "Foto de Casamento (1955). Da esquerda para a direita: Fernando Pinto Júnior (bisavô), Fernando Brito (avô), Natacha Silva (avó), Cláudia Pinto Fernandes (bisavó). A razão pela qual o meu avô é Brito e os pais Pinto deve-se a uma zanga familiar. Quem registou o meu avô foi um tio, chamado Brito, e ao registá-lo, registou-o com o nome de Brito e não Pinto."



Foto nº 2  >  NRP Afonso de Albuquerque > A caminho da Índia Portuguesa > Egito > Porto-Saíde > 1955 >  Legenda no verso: "À minha querida Natacha, recordação do seu Fernando, tirada em Porto-Saíde, Egito"



Foto nº 3 > Índia Portuguesa > Goa > c. 1955/58 > O Fernando Brito, à esquerda, conversando com um soldado.



Foto nº 4 >  Índia Portuguesa > Goa > 15 de agosto de 1956 > Legenda no verso: "Uma brincadeira fotográfica, mas que lembrará meus pais".

 

Foto nº 5 > Índia Portuguesa > Goa > c. 1955/58 >  Legenda, no verso: "No calor ardente da Ínndia, sabe bem a água do coco"

Fotos (e legendas): © Cláudio Brito (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do nosso amigo e membro da Tabanca Grande, nº 697, Cláudio Brito, neto do falecido major SGE, Fernando Brito (1932-2014), que fez duas comissões na Guiné, como 1º srgt,  CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) e 1ª C / BART 6523 (Madina Mandinga, 1972/74), tendo passado também pela Índia e por Angola  (*):


[Foto à esquerda: O Fernando Brito, com o neto, pouco antes de morrer]

Data - 30 mar 2021, 11:47

Assunto - Fotos do meu avô Fernando Brito.  Primeiras Fotos do Serviço Militar no Ultramar (Goa/Índia Portuguesa - 1955-1956)


Bom dia,  Luís,

Não me esqueço da nossa série. Aqui vai o fascículo número dois:

Em 1955, cinco  dias depois de casar (anexo fotografia do casamento: Foto nº 1) e 3 anos depois do serviço militar em Portugal (Polícia Militar em Coimbra onde conheceu a minha avó Natacha, cujo verdadeiro nome era Natália), entrou num barco, o NRP Afonso de Albuquerque, e rumou à Índia Portuguesa, pelo Mediterrâneo fora. 

Pela viagem parou em Porto Saíde (Egito), que aparece na foto nº 1 e, mal chegou, refrescou-se nas praias devido ao calor ardente da Índia [Foto nº 5].. Irónico é uma coisa que ele referia: o meu bisavô, seu pai, que era cego, costumava dizer "Nem que vivas 100 anos nunca viajarás tanto como eu".... Com 24 anos, o meu avô foi para a Índia e numa viagem fez mais quilómetros que o pai dele numa vida.

Na Índia Portuguesa (Goa), nos 3 anos que lá passou (1955-1958)  [, Fotos nºs 3 e 4], teve duas funções: organização e manutenção do material bélico e monitorização e cálculo dos ordenados dos soldados, que tinham que ser convertidos em Rupias, o que era uma dor de cabeça. Vinte  dias antes do final do mês,  já começava a calcular os ordenados, os quais eram gastos em duas coisas: pinga e indianas...

Outro problema era a organização e manutenção do capital humano. O material era muito pouco sofisticado (muito dele ainda comprado pelo Rei D. Carlos ao armamento remanescente da Guerra Franco-Prussiana de 1871), mesmo para a altura, e os soldados, profundamente fundidos ou afastados daquele território, sentiam que aquele era um recôndito territorial muito afastado e no dia em que caísse, caía num dia (foi o que aconteceu, a Guerra de Goa é chamada a Guerra de um Dia). 

Todavia, não ficaram amarguras (prova disso é a fusão dos nossos povos - nunca conheceram um Apu Tavares? ou um Majara Silva?). Uma das frases mais emblemáticas que o meu avô me deixou sobre a Índia Portuguesa é a seguinte: "Se os indianos começassem a mijar no topo da montanha dos gatos, os portugueses morriam afogados lá em baixo". Esta frase denota os números avassaladores entre indianos autóctones e portugueses.

Pelo meio desta primeira comissão, conheceu, entre outras pessoas, um tipo chamado Casimiro Monteiro, nascido em Goa [, em 1920, e falecido m África do Sul, em 1993], um tipo 11 anos mais velho e um sanguinário cruel. Ao interrogar individuos responsáveis pelo ativismo libertário goês, muitas vezes esses individuos saiam de maca com o lençol a cobrir a cara (interpretem como quiserem). 

Como é do conhecimento público, Casimiro Monteiro será contratado pela PIDE e planeará o assassinato de Humberto Delgado, assim como o executerá, mas não só!,  Eduardo Mondlane, líder da FRELIMO, foi também uma das suas vítimas mais notórias. 

Foram tipos como estes que fizeram certos soldados perder a fé em Deus e na bondade dos Homens e faziam a Pátria mais pútrida e com sabor a fel, mau grado a doçura calmante dos trópicos. Enfim, são individuos que fazem parte da nossa História, para o bem e para o mal.

Em 1958 volta para Portugal. Passa dois anos em Coimbra, faz dois filhos e tenta a todo o custo salvar a sua Natacha da tuberculose. Em 1961 está na altura de ir para Angola (próximos fascículos).

Um abraço,
Cláudio
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Legenda das fotografias:

Foto nº 1 > Foto de Casamento (1955). Da esquerda para a direita: Fernando Pinto Júnior (bisavô), Fernando Brito (avô), Natacha Silva (avó), Cláudia Pinto Fernandes (bisavó). A razão pela qual o meu avô é Brito e os pais Pinto,  deve-se a uma zanga familiar. Quem registou o meu avô foi um tio, chamado Brito, e ao registá-lo, registou-o com o nome de Brito e não Pinto.

Foto nº 2 > Legenda, no verso: "À minha querida Natacha, recordação do seu Fernando, tirada em Porte-Saíde, Egito"

Foto nº 3 >   Índia (15-8-1956), Conversando com um soldado.

Foto nº 4 >  Legenda no verso: "Uma brincadeira fotográfica, mas que lembrará meus pais" (Índia, Goa, 15 de agosto, 1956).

Foto nº 5 > Legenda no verso: "No calor ardente da Índia, sabe bem a água do coco".

2. Em 22 de março último, o Cláudio Brito, filho de um filho muito amado do Fernando Brito, o Fernando José Brito (1960-2001) que morreu precocemente num acidente viário, mandou-nos mais a seguinte nota sobre o avô que o criou como filho e que tem uma história de vida que poucos de nós, que com ele privámos na Guiné, conhecemos.

Bom dia Luís Graça,

Agora paro em terras algarvias. Vivo em São Brás de Alportel e trabalho em Faro. Vida de professor. Espero que desta seja de vez .

Sim. Sempre que tiver um momento para escrever um texto, anexar umas fotografias, legendá-las e datá-las convenientemente, fá-lo-ei, com toda a certeza.

O meu avô teve uma vida longa em todos os sentidos. Começou a trabalhar aos 12 anos para o Alfredo da Silva, o fundador da CUF, aos 24 anos para fugir à PIDE (no Barreiro), enveredou pela carreira militar, foi para Coimbra onde se tornou polícia militar, depois casou, 5 dias depois (em 1955) foi para Goa, onde esteve até 1958 e na qual Goa conheceu, por exemplo, o assassino do Humberto Delgado, Casimiro Monteiro, um tipo de uma crueldade inimaginável (segundo as palavras dele).

Voltou para Portugal. Teve dois filhos no entretanto, ambos nascidos em sanatórios, pois a minha avó era tuberculosa. Depois em 1961 vai para Angola até 1968. Em 1969 volta para Portugal, onde participa na inauguração do edifício das matemáticas (há uma filmagem dele no RTP Arquivo), volta para a Guiné em 1969/1970 e só regressa em 1976 [?] [deve ser 1974].

Em Angola aproveita e tira o curso de treinador de futebol. Em 1976 volta para Coimbra. Em 1980 vai para os Açores, onde, além da continuação da carreira militar, treina uma vintena de clubes (entre os quais o Santa Clara, o Atlético, o Águias do Arrife, o Rabo de Peixe, o Mira Mar, etc.), volta para Coimbra em 1989, começa as suas tarefas como olheiro e assistente da direção desportiva da Académica e treinador dos júniores da Académica e do União de Coimbra (onde encontra tipos como o Lucas, o Febras, o Pedro Roma, o Lixa, entre outros), até 2001, altura em que abandona os relvados, já está reformado da vida militar e dedica os últimos anos da sua vida apenas a dar explicações de Matemática e Português, gratuitamente, aos miúdos do meu bairro (o Norton de Matos) no edifício das Forças Armadas, até à sua morte a 18 de fevereiro de 2014.

São 82 anos (1931-2014) com muitas coisas, histórias, álbuns e álbuns de fotografias, slides e slides com histórias e estórias, artefactos e memórias que demoram a organizar, mas com certeza que o farei com muito gosto.

Um forte abraço e até breve,
Cláudio.
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P22119: Parabéns a você (1953): António Joaquim Oliveira, ex-1.º Cabo Quarteleiro da CART 1742 (Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69)

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Nota do editor

Último poste da série de 18 de Abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22112: Parabéns a você (1952): Raul Brás, ex-Soldado CAR da CCAÇ 2381 (Buba, Aldeia Formosa e Empada, 1968/70)

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22118: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (24): "O papagaio embriagado"...



O Periquito-massarongo [, nome científico Poicephalus senegalus], não confundir com o Papagaio-Cinzento-de-Timeneh, em vias de extinção, nativo dos Bijagós.. Fonte: Guia das aves comuns da Guiné Bissau / Miguel Lecoq... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Monte - Desenvolvimento Alentejo Central, ACE ; Guiné-Bissau : Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas da Guiné-Bissau, 2017, p. 43- Ilustração: PF - Pedro Fernandes. (com a devida vénia...)



1. O Carlos Barros, ex-fur mil, 2ª C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74), "Os Mais de Nova Sintra", mandou-nos, em 14 do corrente, "mais uma estória para a História"...


O papagaio embriagado...


O destacamento de Nova Sintra, no sector do Quínara, estava ocupado pela 2ª CART do BART 6520, companhia “baptizada” pelos “Os Mais de Nova Sintra”, tendo no seu crachá , a imponente figura do Obélix ,em destaque.

O destacamento de Nova Sintra, desde 1972 a 1974, foi alvo de flagelações, minas, emboscadas, patrulhamentos constantes, armadilhas mas os seus militares estiveram sempre à altura e responderam com afinco e eficácia, às investidas do inimigo. Eram soldados, como muitos outros disseminados pelos recantos da Guiné, com elevado índice de coragem, com grande espírito de sacrifício e muito empreendedores tanto na mata como dentro do arame farpado, nos diversos trabalhos que lhe eram incumbidos.

Fugindo um pouco à situação belicista em que vivíamos, com a minha memória, ainda um pouco refrescada, talvez pelo orvalho desta manhã, surge mais uma “estória” real que surgiu dos empreendimentos aventurosos dos nossos companheiros de Nova Sintra.

O 1º cabo Carlos Cripto (, o António Carlos de Jesus Ribeiro,) certo dia conseguiu apanhar um papagaio, que parecia mais um emplumado periquito. Andava com esta simpática e colorida, ave ao ombro pelo destacamento, o que despertava muita curiosidade e, provavelmente, uma certa inveja, aos seus companheiros de Nova Sintra.

Os furriéis Elias (.José Pereira da Silva Elias, mecânico auto) e Mendonça (,Jorge Manuel Santos C. Mendonça, transmissões) nos seus patrulhamentos dentro do destacamento, municiados com a sempre presente cerveja ou bebida similar, foram ter com o seu amigo Carlos Cripto para fazerem umas festinhas ao papagaio.

Esta dupla de furriéis, sempre empreendedores em aventuras, pegaram na avezinha ternurenta, abriram-lhe o bico e enfiaram-lhe “whisky” pela goela abaixo, apesar do “esbracejar” do periquito…A intenção dos furriéis era ver um periquito bêbado e observar o seu comportamento!

Naturalmente, passado algum tempo, a infeliz ave nunca mais se levantou, apesar dos esforços de reanimação que tentaram fazer e o óbito foi confirmado no local e, penso que a "certidão de óbito” foi passada pelo furriel enfermeiro Tavares (, José Manuel Dias Tavares), uma certidão de óbito, digamos, virtual!

O Carlos Cripto ficou desesperado e revoltado com a perda do seu amigo papagaio , encostou-se a um canto do edifício das transmissões, serenou e anestesiou o seu nervosismo e com o seu dedo indicador ameaçou mesmo os seus companheiros, com uma queixa ao capitão Cirne (, Armando Fonseca Cirne), que, mais tarde, soube deste incidente, achou-o engraçado e com muita piada !

Como, em Nova Sintra, não havia cemitério para os animais ou aves, fez-se um enterro “voador” já que o papagaio foi lançado pelos ares para o meio do ressequido capim que abundava nas circunscrições territoriais do destacamento.


Carlos Barros
(Ex- furriel Miliciano)
BART 6520 - 2ª CART
“Os Mais de Nova Sintra”
Esposende 10 de abril de 2021


C/ a colaboração de: António Carlos de Jesus Ribeiro-Operador Cripto | José Pereira Silva Elias-Furriel mecânico |  Jorge Manuel Santos C. Mendonça-Furriel das Transmissões |  José Manuel Dias Tavares - Furriel enfermeiro.

2. Comentário do editor LG:

Carlos, papagaio ou periquito ? 

Pel tua descrição, inclino-me, com toda a segurança, para a segunda hipótese... O periquito é que era vistoso, colorido... Deveria ser um Periquito-massarongo [, nome científico Poicephalus senegalus]. 

Originalmente, os militares que chegavam à Guiné eram chamados "maçaricos" (tal como em Angola, e "checas" em Moçambique). Mas o termo foi depois substituído, e com muito melhor propriedade", por "periquito" ou "pira" (e lê-se "p[i]riquito" (O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa ainda não grafou esta aceção do vocábulo, embora ela se use há mais de meio século por nós, antigos combatentes!)...

Segundo o guia das aves da Guiné-Bissau, este periquito é uma ave que tem 23 cm de comprimento, portanto mais pequeno que o papagaio-cinzento (que tem 33 cm)... 

"O seu chamamento agudo ouve-se com frequência em zonas de savana arbórea e de floresta. Encontra-se também em zonas de cultivo com árvores e em cidades. Apesar de ser muito capturado para cativeiro, é ainda comum na maior parte do país. Observa-se aos casais ou em pequenos grupos em ramos expostos. Alimenta-se de frutos e de sementes." (Fonte: Guia das aves comuns da Guiné Bissau / Miguel Lecoq... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Monte - Desenvolvimento Alentejo Central, ACE ; Guiné-Bissau : Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas da Guiné-Bissau, 2017, p. 43. Com a devida vénia).

Sobre o papagaio-cinzento-de-Timneh, ver aqui, na mesma fonte e na mesma página (Ilustração também de Paulo Fernandes. Reproduzido com a devida vénia.)



Guiné 61/74 - P22117: Notas de leitura (1352): Uma importante carta enviada ao General Schulz em agosto de 1966 (Mário Beja Santos / José Matos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
O nosso confrade José Matos tem vindo a espiolhar no Arquivo da Defesa Nacional, teve a amabilidade de me passar esta carta de um colaborador de Schulz que escreve para Lisboa, onde o comandante-chefe estava em convalescença de uma operação, dando-lhe conta da evolução dos acontecimentos. De modo muito lacónico e discreto, e atendendo à escassez de meios, não deixa de insinuar que se pode caminhar para um desastre militar e aflora a questão do caos económico em que se encontrava a república da Guiné Conacri e a possibilidade de interferir no país através de conversações com os opositores. 

Quem lê o livro soube que o José Matos e o Mário Matos e Lemos escreveram sobre a Operação Mar Verde cedo se apercebe que as autoridades portuguesas nunca levaram a sério o grupo opositor de Conacri, era notória a falta de coesão e difuso o seu programa. Esta indiferença prolongar-se-á por muito tempo, só tomará alento a partir de 1969, mas sempre com fortes resistências por parte de um conjunto de ministros de Marcello Caetano. O curioso da carta dirigida ao General Schulz é de modo cuidado, um leal colaborador dar a entender que se não houver mais meios há muito poucas cartas ainda por jogar e que a iniciativa era praticamente nula, mal por mal o melhor era tentar agravar a ruína e o caos da Guiné Conacri, talvez assim pudesse abrandar ou estiolar o apoio ao PAIGC. Sonho em vão, como a História se encarregou de demonstrar.

Um abraço do
Mário



Uma importante carta enviada ao General Schulz em agosto de 1966

Mário Beja Santos

Conversando há dias com o investigador José Matos, nosso prezado confrade, ele teve a amabilidade de me enviar um documento que recolheu junto do Arquivo de Defesa Nacional, uma carta assinada por um colaborador de Schulz em que se fazem apreciações do maior relevo e que permitem dar-nos uma perceção da evolução da guerra a meio da comissão do Governador e Comandante-Chefe Schulz. Depois de o saudar e manifestar satisfação pelas melhoras de uma operação a que este fora submetido, dá-lhe conta da situação que se vive na Guiné:

“A estrada está aqui cada dia mais difícil de percorrer. O inimigo tem continuado a desenvolver-se de maneira segura. O Churo, o Jol e Có representam agora, para as nossas tropas, um esforço operacional tão importante como aquele existia no Oio há pouco mais de um ano, quando tivemos a vitória militar quase nas mãos e ela nos escapou por falta de reservas para lançar na ação. 

Nhacra e o Jugudul, são hoje zonas operacionais situadas a 20 quilómetros de Bissau, que continuam a constituir o principal objetivo do inimigo. No sul, não temos tido progressos sensíveis e todos estamos convictos de que o inimigo continua a reforçar-se de modo a tornar tanto quanto possível inexpugnável a sua posição; quando for possível reunir os meios para recuperar esta parcela do território teremos de encarar uma verdadeira guerra clássica, com tropas bem apoiadas pelo fogo, dispondo de transmissões impecáveis e capazes de manobrar num terreno onde isso lhes é vedado com os meios normais. 

No Leste, à parte o alívio resultante da deslocação do esforço inimigo para a região semi-despovoada do Boé, as preocupações continuam a ser muito grandes e não permitem que daí se distraiam forças para emprego noutras operações. 

Resumindo, o inimigo colocou-nos a mão no pescoço, como bom lutador de judo, e nós temos dificuldade em sair desta posição.

As razões são bem conhecidas de todos: a nossa massa operacional, se descontarmos as zonas passivas em que apesar de tudo temos de conservar tropas em quantidade suficiente para ocorrer a qualquer ação inesperada (quando se perde uma população ela fica perdida para sempre), se descontarmos os meios empenhados em zonas que presentemente são mais ou menos passivas e fizermos a mesma coisa ao apoio logístico que existe em todos os escalões, pelo menos até ao nível de companhia, encontramos aproximadamente na proporção de 1/1 ou, se formos otimistas, de 1,5/1 relativamente ao inimigo. 

Uma guerra subversiva não pode ser ganha com esta proporção de forças, sobretudo se o inimigo, como é o caso, dispõe de santuários onde pode recompor e reorganizar as suas forças em plena tranquilidade. Já um dia ouvi alguém que disse que, se é verdade que a guerra pelo Ultramar não pode ganhar-se na Guiné, ela pode, pelo contrário, perder-se ali completamente. 

Eu creio, meu General, que se não dermos uma reviravolta completa em tudo isto, estamos bem perto da segunda hipótese.

Podem descobrir-se montanhas de defeitos nos nossos quadros e uma multidão de erros nos procedimentos seguidos pelas nossas forças; pode afirmar-se, em cima de uma carta, que no caso A ou no caso B o êxito teria sido completo se os nossos homens tivessem trabalhado de maneira um pouco diferente. Mas nada disto altera duas verdades fundamentais: a primeira é que num território com a densidade de perto de 20 habitantes por quilómetro quadrado, nós não dispomos dos meios suficientes para garantir às populações a proteção de que necessitam nem dos quadros civis que lhes criem perspetivas de progresso que justifiquem uma adesão total à nossa política, nem meios financeiros; a segunda é que, dados os progressos do inimigo em matéria de técnica, de armamento e de tática, só uma alteração muito profunda nas nossas possibilidades de manobra (deslocamentos de forças e apoio de fogos para ação) é suscetível de desequilibrar a balança a nosso favor.

Quando se diz que a quadrícula é excessiva, desconhece-se que a população é de tal densidade que a torna evidentemente necessária. Temos perdido dezenas de milhares de habitantes por não nos ter sido possível prestar-lhes o apoio de que necessitam. É certo que os efectivos de cada unidade em quadrícula podem, em alguns casos, ser diminuídos se recorrermos a trabalhos de fortificação apropriados – mas onde está a engenharia para isso? E quais seriam as economias de meios que daí resultariam? Iriam influenciar decisivamente o curso desta guerra? Creio bem que não.

Por outro lado, tem-se verificado, com frequência cada vez maior, que as nossas tropas só muito raramente se levantam ao assalto de posições inimigas. A minha conclusão actual é a de que o homem normal não se levanta ao assalto de resistências inimigas defendidas por armas automáticas se não estiver apoiado por fogos com densidade suficiente para criar nesse inimigo neutralização. Cadique, Cafine e a recente operação do Churo, constituem alguns exemplos entre muitos que mais não o fazem que somar-se à multidão de casos que encontramos em todas as guerras desde que foi inventada a metralhadora.

O terceiro ponto que me parece de muita importância para que nos seja possível dar uma volta na situação sem aumento substancial imediato dos nossos meios é o que diz respeito às nossas possibilidades de manobra: esta faz-se a pé, é certo, mas tem também de fazer-se em viatura, em avião, em helicóptero e em meios fluviais. 

As possibilidades apenas são razoáveis em matéria de meios fluviais; quanto à manobra auto, ela apenas é possível em meia dúzia de estradas, por falta de viaturas, mas sobretudo por falta de infraestruturas – e estas não podem ser conseguidas com uma única Companhia de Engenharia numa província que não dispõe de meios civis que possam suprir as falhas dos meios militares”.

Mais adiante, o Tenente-Coronel Castelo Branco, depois de reconhecer ao General Schulz que tem feito exposições rigorosas da situação ao Ministro da Defesa Nacional, recorda que o Governador tem afirmado que a situação da Guiné depende sobretudo da evolução da situação internacional, e esta é altamente desfavorável para nós. Poderá haver uma possibilidade que nos seja favorável, ele refere que a situação da República da Guiné está num caos, e insinua que devia haver conversações com os opositores do ditador de Conacri.

Dada esta síntese do documento que o José de Matos obteve no Arquivo da Defesa Nacional, muito provavelmente para apurar o histórico das ligações entre os opositores de Sékou Touré e as autoridades portuguesas, e que cumularam na Operação Mar Verde, creio que o leitor ficará com uma ideia de que havia entre os colaboradores de Arnaldo Schulz uma imagem clara das tremendas dificuldades que já se viviam em 1966 e que eram conhecidas pelo governo de Lisboa, mormente a partir do Ministro da Defesa Nacional, mantido sempre informado das instruções do Comandante-Chefe, das suas diretivas, da notória falta de meios, etc. e tal.

É lendo documentos como estes que se pode perceber como é completamente leviano querer fazer historiografia da guerra da Guiné passando como gato pelas brasas pelos mandatos de Louro de Souza e Arnaldo Schulz e assestar as baterias no herói salvador Spínola que viu goradas todas as suas iniciativas e se retirou da liça em agosto de 1973.

Primeira página da carta que o Tenente-Coronel Castelo Branco enviou em 11 de agosto de 1966 ao General Schulz, n.º da cota PT/ADN/SGDN/2REP/106/0411/008, Arquivo da Defesa Nacional
Schulz nos Comandos em Brá, 1965
Visita de Arnaldo Schulz a Cutia em 1966, imagem já publicada no blogue
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Nota do editor:

Último poste da série de 12 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22099: Notas de leitura (1351): "Ataque a Conakry, História de um Golpe Falhado", por José Matos e Mário Matos e Lemos; Fronteira do Caos, 2020 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22116: Recortes de imprensa (115): Relembrando o nosso saudoso amigo e camarada de armas José Eduardo Reis Oliveira (JERO) (Jornal Público de 18 de Abril de 2021)

1. Com a devida vénia à Tabanca do Centro e ao Jornal Público, transcrevemos o artigo da jornalista Susana Moreira Marques que homenageia, na sua secção Obituário de 18 de Abril, o nosso já saudoso amigo e camarada de armas José Eduardo Oliveira (JERO).

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2. Do blogue da Tabanca do Centro

Uma justa homenagem ao nosso saudoso camarada José Eduardo Reis Oliveira, que todos conhecíamos como JERO, através de um texto publicado hoje no Jornal Público, que transcrevemos com a devida vénia àquele jornal e à jornalista Susana Moreira Marques, autora do texto.




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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE MARÇO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22011: Recortes de imprensa (114): O Capitão cubano Pedro Rodriguez Peralta, "preso político antes do 25 de Abril", "prisioneiro de guerra" depois... libertado em 15 de setembro de 1974 (Diário de Lisboa, 16 de setembro de 1974)

Guiné 61/74 - P22115: Manuscrito(s)(Luís Graça) (200): Soneto do paciente do IPO - Lisboa, dedicado à equipa da unidade 3 do serviço de radioterapia que cuida de ti com gentileza, humanidade, competência e empatia...


Lisboa > Palhavã > Instituto Português de Oncologia Francisco Gentil... Em 2023 vai fazer cem anos... Foi em 1923, na I República,  sendo ministro da Instrução António Sérgio (1883-1969), que nasceu o futuro Instituto Português de Oncologia (IPO), designação dada em 1930. Graças à visão estratégica do seu fundador, o médico Francisco Gentil (Alcácer do Sal, 1878 - Lisboa, 1964) , o IPO ficou desde logo ligado à Faculdade de Medicina, mas com total autonomia financeira e administrativa. O primeiro pavilhão começou a receber doentes em 1927. Em 1948, foi inaugurado o bloco hospitalar central (foto acima), com projeto do arquiteto alemão Hermann Distel (1875-1945), o mesmo que projectou, em 1938, os Hospitais de Santa Maria (Lisboa) e São João (Porto).  Faz parte hoje do SNS - Serviço Nacional de Saúde. (LG)

Fonte: IPO de Lisboa > História (com a devida vénia)

Soneto do paciente do IPO

por Luís Graça

[Com a minha gratidão para com as técncas de radioterapia Dina, Maria João, Rosa e a estagiária Inês,  da jovem e fantástica equipa da unidade 3 do serviço de radioterapia do IPO de Lisboa... Há várias semanas que passo por lá, de manhã, em tratamento... E enquanto a máquina [, um "acelerador linear",] me "bombardeia" com radiações ionisantes, em estou deitado a olhar para uma "nesga de céu azul" donde se destaca um ramo de macieira, árvore sagrada na antiguidade clássica: conto e reconto mentalmente, todas as manhãs, de segunda a sexta, os 17 flores da macieira (três ainda em botão), cada flor com 5 pétalas e 20 estames... Ao todo são, 70 pétalas e 280 estames... E na semana passada, para me ajudar a passar o tempo e esquecer a dor provocada pelo controlo dos esfíncteres, fiz este soneto, que só posso dedicar a quem tão bem cuida de mim, com grande gentileza, humanidade, competência e empatia... Sempre que temos 1 minuto, enquanto elas imobilizam o meu corpo com precisão milimétrica, vamos comunicando verbalmente, o que é fundamental na relação terapêutica.] 


Hoje não quero ver as flores da macieira

Na nesga de céu desta sala de tortura,

É p'ra teu bem, mas é dia de amargura,

Diz o teu anjo da guarda, à cabeceira.


Aqui tens de aprender a ser paciente,

Vir de reto limpo e cheia a bexiga,

E confiar na radioterapia amiga,

Que te bombardeia algures no baixo ventre.


É a próstata, meu Deus, que te deu sinal,

Coisa que no céu nunca te aconteceria,

Belisca-te, estás vivo, mas não imortal.


Ao mal o mal, diz o hipocrático aforismo,

Faz da tua dor princípío de alegria,

E a quem cuida, sim, dá medalhas... de heroísmo!


Lisboa, IPO, Serviço de radioterapia, unidade 3

16 de abril de 2021

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Nota do editor:

Útimo poste da série > 6 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22074: Manuscrito(s) (Luís Graça) (203): Para a Joana, que hoje faz anos: "E os adultos, esses, já morreram todos. Só ficaram as crianças, sozinhas, a envelhecer” (Louise Glück | Frederico Pedreira, "Uma Vida de Aldeia", Lisboa, Relógio de Água, 2021, p. 133)

Vd. também poste de 28 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22047: Manuscrito(s) (Luís Graça) (201): O pôr-do-sol no Atlântico, no tempo do não-tempo do confinamento (Luís Graça)

(...) Na unidade 3 da radioterapia do IPO, o teu "céu" (iluminado) é a foto de um ramo de macieira ["Malus domestica"], com 17 flores (3 ainda em botão)... Cada uma das 14 flores tem cinco pétalas. brancas, e 20 estames... "Be patient"!.... Afinal é apenas meia hora por dia em que tens de estar de barriga para o ar, absolutamente imóvel, as mãos pousadas no peito... O único escape a que te podes dar ao luxo é (re)contar mentalmente as flores, as pétalas e os estames das flores da macieira... projetadas no tecto.

É uma boa terapia para a ansiedade inicial e a claustrofobia: ajuda-te a passar o tempo deste não-tempo enquanto o robô anda à volta do teu corpo, "bombardeando-te" com radições ionisantes... Protésico e agora radioactivo... Não, emenda a radioterapeuta Dina. É um tratamento não invasivo, avançado, seguro... Confia nos teus anjos da guarda!.

A flor, branca, da macieira tem sobre os frágeis seres humanos (mesmo os mais durões que andaram na guerra) um efeito mágico, tranquilizante, securizante e promissor. A esperança é uma crença poderosa. Talvez o "truque" não passe de um placebo, mas tem uma eficácia terapêutica simbólica, não menos poderosa que as radiações. A flor da macieira não está lá por acaso, no meio daquele "bunker" das tecnologias da saúde de ponta... E ficaste frustrado quando, por lapso, um dia não acenderam a luz do teto... (Dizem-te que nas outras unidades os motivos que enfeitam o "céu do paciente", são diferentes: nuvens, ondas do mar, palmeiras, outras árvores de fruto...)


Hércules roubando as maças do Jardim das
Herpérides. Detalhe do mosaico romano dos 
Doze Trabalhos  de Hércules (Llíria, Valência , 
Espanha ) (séc. III d.C.). Museu 
Arqueológico Nacaional de Espanha. 
Foto de Luis García ( Zaqarbal )
(2006). 
Fonte: Cortesia de Wikimedia Commons.

A macieira simboliza a vida, a saúde, o amor, a sabedoria, a felicidade no futuro mais que perfeito,.. Quiça a inortalidade. 
Está presente em muitas das mitologias da nossa antiguidade. Na mitologia grega, a Mãe-Terra, Gaia, deu uma macieira a Hera, como prenda de casamento com Zeus, o deus dos deuses... Na nossa cultura judaico-cristã, a macieira é a árvore do conhecimento e a maçã um fruto proibido... 

Afinal, os deuses têm alguns dos defeitos dos humanos: tãmbém são possessivos, ciumentos, vingativos e... cruéis: a macieira sagrada estava no Jardim das Hespérides, e era bem guardada por um dragão, Ladão. Ao herói Hércules (, o nosso Adão...) foi incumbida a tarefa ("hercúlea") de roubar uma maçã daquela árvore. Um dos doze trabalhos de Hércules era justamente "ir roubar" ao pomar de Hera, onde crescia a macieira que dava as maçãs douradas (ou "pomos de ouro" da imortalidade... Hera odiava Hércules, 
filho bastardo de Zeus... 
 Pobres de nós, que precisamos de deuses e de heróis!... 
Mas isso ajuda-nos a suportar a nossa condição mortal, 
pensando que somos heróis, mais do que homens, menos que deuses!)
 
Contas e recontas as 14 flores de macieira na tua nesga de céu, artificial, mais as 70 pétalas, brancas, e os 280 estames. Um pequeno suplício de Sísifo, aceitável, de segunda a sexta-feira. Só tens que aprender a controlar os esfíncteres. Vais de bexiga cheia (e o reto limpo...) com 0,666 litros de água da EPAL (que sempre é mais barata). "Dia de purga, dia de amargura", diz o aforismo hipocrático... Mas já lá vai o tempo do nosso senhor dom João V em que se escrevia nos muros do Hospital Real de Todos os Santos: "Em Lisboa nem sangria má, nem purga boa"... Espantoso, não há grafitos nos muros do IPO de Lisboa... Os grafiteiros têm medo do cancro que se pelam!... O IPO é, de certo modo, um campo sagrado...

Um dia destes talvez saia um poema... à flor da macieira, e às meninas, delicadas e dedicadas, da equipa multidisciplinar da unidade 3 da radioterapia do IPO. Mal se comunica, cuidadores e pacientes, porque está tudo cronometrado ao minuto. Há 7 unidades destas, é um verdadeira linha de montagem. Segunda-feira, quando voltares ao tratamento, no fim podes riscar mais um "pauzinho" no teu "vademecum": das 28 sessões prescritas faltar-te-ão só 22... E na terça, 21, e na quarta, 20, na quinta, 19...

(...) Como no tempo do não-tempo da Guiné, em que não havia calendário, e o tempo do não-tempo da guerra era contado por riscos nas paredes sujas dos "bunkers"... ou das casernas. Não havia céu nem imagens de flores de macieira, apenas rachas de cibes, chapas de bidão e terra batida. Nem muito menos te estava prometida a imortalidade e o estatuto de semideus (ou herói) de Hércules...

Há quem se queixe de tudo e de nada. Podias queixar-te da Pátria que te roubou 36 meses de vida... Mas para quê ? Afinal, entraste no segundo ano da "comissão de serviço" imposta por esta maldita pandemia de Covid-19. E ainda ninguém  te viu apresentar queixa na competente repartição do Olimpo. Disseram-te que não valia a pena: afinal, há casos muito mais graves que ocupam o tempo do não-tempo do teu Criador...

Espera, ao menos, que Zeus e Hera continuem a estimar, e a cultivar, nos jardins do Olimpo, as macieiras... E que Higia, a deusa da saúde, te proteja...E lembrando-te sempre que a palavra terapeuta, que vem do grego "therapeuthes", é apenas um "medium, aquele que faz a ligação com o deus que cura... Cuidar e curar não é a mesma coisa. Cuida-te. Ámen.(...)

domingo, 18 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22114: História da 3ª Companhia de Comandos (1966/68) (João Borges, 1943-2005) - Parte XIV: atividade operacional, abril de 1968, destaque para a penúltima operação, a Op Rolls Royce, em Salancaur, corredor de Guileje


"A Guerra Acabou" (Cortesia de João Borges, 2005)


1. Começámos a publicar, há seis meses, em 17/11/2020, uma versão da História da 3ª Companhia de Comandos (Lamego e Guiné, 1966/68), a primeira, de origem metropolitana, a operar no CTIG. (Hão de seguir-se lhe, até 1974, mais as seguintes: 5ª, 15ª, 16ª, 26ª, 27ª, 35ª, 38ª e 4041ª CCmds.)

O documento mimeografado, de 42 pp., que nos chegou às mãos, é da autoria de João Borges, ex-fur mil comando, infelizmente já falecido (em 2005), e que vivia em Ovar. Trata-se de um exemplar oferecido ao seu amigo José Lino Oliveira, com a seguinte dedicatória: "Quanto mais falamos na guerra, mais desejamos a paz. Do amigo João Borges".

Uma cópia foi entregue pelo José Lino, ao nosso blogue, para publicação. (*)


História da 3ª Companhia de Comandos
(1966/68)

3ª CCmds
(Guiné, 1966/68) / João Borges

Abril de 1968

Parte XV (pp. 35 - 36 )





 



(Continua)

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Nota do editor:

ùltimo poste da série > 3 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22064: História da 3ª Companhia de Comandos (1966/68) (João Borges, 1943-2005) - Parte XIV: atividade operacional, fevereiro / março de 1968, destaque para a Op Boa Bisca, em Iador, Bigene

Guiné 61/74 - P22113: Blogpoesia (729): "Arroz doce"; O brilho dos brasões"; "Gradeadas as portas e janelas" e "Bom rasto", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Publicação semanal de poesia da autoria do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, CachilCatió e Bissau, 1964/66):


Arroz doce

A vida é um rio que flui para o mar carregado de tristezas e alegrias.
Dias alegres. Outros menos.
Adicionar-lhes uns grãos de doçura,
Mitiga as dores. Alisa arestas.
Sara feridas.
Nosso parto é dor. Por lei divina.
Trazer à mesa, de vez em quando ao menos,
Um prato de arroz doce adoça a vida.
Desperta sonhos. Esquece agruras.
Basta juntar arroz, ovos e açucar.
O resto virá...


Berlim, 11 de Abril de 2021
9h21m
Jlmg


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O brilho dos brasões

Nem com brasões o brilho senhorial se aguentou com o rolar dos tempos.
Gente ilustre. Com fidalguia.
Ganha nas expedições das guerras.
Condecorações nas folhas de serviço.
Deram azo ao direito de engalanar as suas casas.
Fazer ver às gentes a história de seus feitos.
Foi o regalo e orgulho dos primeiros donos.
Com o rolar das gerações,
Foi esmaecendo a vaidade.
Novas emigrações da descendência vieram no rolar da vida.
Foram abandonadas as casas
Só restaram os brasões na frontaria,
Mas inùtilmente. Ninguém lhes liga.
Cobrem-se de lendas e histórias de bruxarias.
Dizem que mora lá o diabo.
Por isso ninguém é capaz de a deitar abaixo
Mas é só por medo.
Assim passam as glórias deste mundo!...


Berlim, 12 de Abril de 2021
11h17m
Jlmg


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Gradeadas as portas e janelas

Estão gradeadas as portas e janelas das casas das ruelas.
É perigoso andar pelas madrugadas.
Uma arma. Um punhal podem ser a ameaça inesperada,
Numa esquina das vielas.
É melhor nunca arriscar.
Os meliantes, dos aventureiros é o que eles esperam.
Tantas histórias do passado contam rixas cheias de sangue.
Era escusado...

Ouvindo o fado, "sei dum rio" de Camané

Berlim, 16 de Abril de 2021
15h11m
Jlmg


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Bom rasto

Deixar bom rasto.
Sejam certos nossos passos.
Que a vida siga o caminho da virtude e dos valores.
A honra e a justiça a iluminem.
O respeito pelo nosso semelhante.
Atenção às suas necessidades.
Sem outro interesse que o de ajudar.
Brilhe nossa vida como no céu uma estrela.
Só assim a vida terá valido a pena.


Berlim, 17 de Abril de 2021
21h30m
Jlmg

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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22095: Blogpoesia (728): "Santa Páscoa"; O bico do lápis"; "A vida volta a nascer com os gatos atrás" e "A eternidade", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P22112: Parabéns a você (1952): Raul Brás, ex-Soldado CAR da CCAÇ 2381 (Buba, Aldeia Formosa e Empada, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 15 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22104: Parabéns a você (1951): António Pimentel, ex-Alf Mil Rec Inf da CCS/BCAÇ 2851 (Mansabá e Galomaro, 1968/70)

sábado, 17 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22111: Da Suécia com saudade (90): o fim da picada... ou um certo fim desta picada!... Morreu a Tabanca da Lapónia, viva a Tabanca de Key West, Flórida, EUA (José Belo)



Una especialidade do Norte da Escandinávia: caviar de ovas de salmäo "löjrom", servido com cebola crua e natas ácidas... Vai bem com um vinho branco Bucelas Velho, diz o José Belo, o nosso "exigrado", como ele próprio se intitula: misto de exilado e de emigrado...

Fotos (e legenda): J. Belo (2021)


I. Mensagem de José Belo, o nosso luso-sueco, cidadão-do-mundo, membro da Tabanca Grande, que reparte a sua vida entre a Lapónia (sueca), Estocolmo e Key-West (Flórida, EUA). Foi nomeado por nós régulo (vitalício) da Tabanca da Lapónia (. Na outra vida, foi alf mil inf, CCAÇ 2391, "Os Maiorais", Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70).

 
 Date: sexta, 16/04/2021 à(s) 21:13
Subject: Um certo...fim d'esta picada!
 

Meu Caro Luís

(1) Também se come sável por aqui (*), apesar de actualmente muito difícil de pescar por estar quase extinto.

O preco de um prato de sável grelhado nos restaurantes do norte da Suécia (quando há) varia entre o equivalente a 50 até 60 euros. Paga-se pela qualidade que realmente tem mas também pela dificuldade em o encontrar.

Uma maneira típica local é fritá-lo em gordura de bacon fumado, posteriormente misturado com cerefolho, endro e cantarelo (uma espécie de cogumelo amarelo).

De qualquer modo aqui segue uma especialidade muito típica do Norte Escandinavo: Caviar de ovas de salmäo "löjrom", servido com cebola crua e natas ácidas.

Acompanha-se com vodka e cerveja, mas... um José Maria da Fonseca BSE, ou um Bucelas Velho,  seria verdadeiramente "pôr oponto nos ii". (Se é que ainda  existem, estas marcas de vinhos,  depois de mais de 40 anos de,,,"exigrado" !)

(2) Aproveito este texto para informar os Camaradas que a já muito longa série "Da Suécia com Saudade" chegou ao fim da picada. (**) Mudo-me com "armas e bagagens" para a minha casa de Key West [, Flórida, EUA], apesar de manter casa também em Estocolmo para viagens nostálgicas às...raìzes.

Espero ter de algum modo contribuído para um maior conhecimento entre Lusitanos desta realidade exótica situada no extremo de extremo norte europeu que é a Lapónia.

Um abraço, J. Belo

 II. Comentário do editor LG:

Meu querido amigo e camarada:

Percebo que queiras estar mais próximo dos teus filhos e netos...E só posso desejar-te muita saúde e longa vida em Key West onde resto tens casa há muito...

Vamos mesmo pôr um ponto final na série "Da Suécia com saudade" ? Se sim, temos que pensar numa nova série...Porque tu vais continuar a escrever no nosso blogue... E quanto à Tabanca da Lapónia ? Para nós, continuarás a ser o 
régulo da Tabanca Lapónia, não de pedra e cal, mas de madeira e gelo. Por outras palavras, és insubstituível, inamovível, vitalício... Claro que vamos ter saudades das tuas saudades.

Obrigado por mais estas tuas sugestões gastronómicas... E um dia destes posso mandar-te uma listagem com todos os teus postes... incluindo os da série "Da Suécia com saudade" (que são noventa).

Mas deixa-me acrescentar: 

Morreu a Tabanca da Lapónia,  viva a Tabanca de Key West!

Fica bem e que lá sejas feliz, pararaseando um poema do noss Ruy Belo. Que a felicidade é onde a gente a põe, mas a maior parte de nós nunca a põe onde está... Venho de almoçar da Tabanca do Atira-te ao Mar e de deleitar-me com as nossas musiquinhas (com cavaquinho, bandolim, viola, voz...), celebrando a vida, a saúde, o desconfinamento, a amizade, a camaradagem...

Se um dia voltares à Pátria / Mátria / Fátria que te foi Madrasta, seja em viagem de  negócios ou simplesmente para rever as tuas raízes lusitanas, tens já uma convite para vir aqui comer uns marisquinhos do Mar do Cerro e beber uns vinhinhos brancos com aromes atlânticos da regão  da tua avó...

Um abraço fraterno, LG

PS - Lê e ouve aqui o poema "O Portugal Futuro", de Ruy Belo, dito por cantora Lula Pena



O Portugal Futuro

0 portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro

Ruy Belo (1933-1978)

Guiné 61/74 - P22110: Os nossos seres, saberes e lazeres (448): Quando vi nascer a Avenida de Roma (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2021:

Queridos amigos,
Não vos vou inquietar com os conteúdos da instrução primária, é certo e sabido que tivemos todos a obrigação de conhecer a história gloriosa, os povos que passaram por esta península, Ceuta, o Infante D. Henrique, o Cabo Bojador, Diogo Cão, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, e tudo o mais que retivemos de memória. Circunscrevo-me à topografia do mundo circundante: Rua de Entrecampos, a vivência do bairro, o nascimento da Avenida dos Estados Unidos da América, o maravilhamento da miudagem com a chegada de novas gentes, os passeios pelo Bairro de São Miguel, as tardes na Biblioteca das Galveias, mais cedo as idas até Telheiras para jogar num pelado de futebol com os nossos companheiros que aqui viviam, passávamos ao lado do Estádio do Sporting, que tinha igualmente um campo pelado, e depois de uma azinhaga esburacada, onde despontavam figueiras e casas em ruínas tínhamos um espaço para o jogo, ala morena que se faz tarde, impunha-se regressar a casa, fazer a higiene, mudar de roupa e estudar até à hora do jantar. Eu fazia o possível, sobretudo no outono e inverno, para acompanhar a minha mãe às aulas na Campanha Nacional de Educação de Adultos, não vivi outra experiência emocionante como aquela, ver um analfabeto feliz por saber soletrar, folhear um dicionário, escrever palavra atrás de palavra, no ditado da Sr.ª Professora, a minha adorada mãe.

Um abraço do
Mário


Quando vi nascer a Avenida de Roma (4)

Mário Beja Santos

Há as obrigações de trazer as vitualhas para a cozinha. A minha mãe, de segunda a sexta-feira, faz compras no Mercado do Saldanha, eu espero-a na paragem do autocarro, seja a carreira 44, seja a carreira 45, um pouco mais adiante da Esquadra do Campo Grande, na Avenida, atravessamos a linha do elétrico e entramos na Rua Aboim Ascensão e rumamos para casa, durante o percurso dá-se o interrogatório sobre as aulas da manhã, à hora do almoço define-se o que poderei fazer da parte da tarde depois das aulas, com o passar dos anos fico autorizado a estar cerca de duas horas à tarde na Biblioteca das Galveias, no Campo Pequeno. Tenho responsabilidades no abastecimento. Há uma padaria dois edifícios à frente da esquadra, a seguir à esquadra segue-se uma vivenda que mais tarde será alugada pela UNITA, a seguir à independência, depois há umas fabriquetas, segue-se a padaria entalada entre um café e uma drogaria. Atravesso o estradão do que virá a ser a Avenida dos Estados Unidos da América e na esquina da Rua de Entrecampos, num prédio que foi demolido e deu depois lugar ao Centro Nacional de Pensões, fica uma mercearia. Comprava-se quase tudo a granel, as leguminosas secas estavam entulhas, havia medidas em madeira e rasoiras, faziam-se cartuchos com meio litro de grão ou meio litro de feijão-manteiga, na lista podia constar uma quarta de banha, meio quilo de açúcar, enchia-se numa maquineta uma garrafa de azeite, por detrás do balcão empedrado havia mobília imponente, armários até ao teto, alguns envidraçados, o plástico ainda não entrara no mundo dos negócios. Mas convém falar da Rua de Entrecampos como sede dos nossos abastecimentos, só com o aparecimento dos prédios verdes na Avenida dos Estados Unidos é que esta artéria comercial perdeu o seu fulgor.
Campo Grande, 22. Começou por ser escola primária, mais tarde aqui funcionou a Esquadra do Campo Grande até à demolição do edifício, a esquadra ficou bem perto, na Rua Afonso Lopes Vieira, frontal à Clínica S. João de Deus
Quando nasceu a Avenida dos Estados Unidos da América. Vê-se perfeitamente a Quinta do Visconde de Alvalade, não se distingue o muro da quinta do lado esquerdo, aí fica a Rua António Patrício, para onde fui viver em 1952. Não há comércio no Bairro, é preciso descer ao Campo Grande e fazer o abastecimento na Rua de Entrecampos
A Avenida da República do meu tempo, distingue-se claramente a linha do elétrico e do lado esquerdo vê-se o contorno da Rua de Entrecampos que acabava exatamente na ligação com a Avenida dos Estados Unidos da América, à esquerda, pode ver-se que a Avenida não passava de um estradão, nem macadamizada estava.

Era uma rua imponente, acolhia o comércio e serviços de primeira linha, como a zona habitacional estava em franca evolução, e mesmo sob o impacto da Avenida dos Estados Unidos da América, com aqueles prédios altos rapidamente arrendados, encontrava-se aqui quase tudo: livraria e tabacaria, retrosaria, barbeiro e cabeleireira, sapateiro remendão, ferrador com as carroças à porta, aqui chegou uma loja de eletrodomésticos e mais tarde uma peixaria de peixe congelado; havia taberna junto da linha, é hoje o restaurante Entre Copos, restavam ainda vivendas, algumas delas com uma certa imponência, falava-se num roceiro de São Tomé que aqui mandara construir casa apalaçada com entrada marmoreada, não faltava um talho de carne de cavalo e até uma carvoaria. O comércio no Campo Grande, no seguimento deste, e até à Igreja dos Santos Reis Magos também era variado, um pouco mais popular na medida em que ainda havia muita habitação operária e pátios ocupados por famílias altamente modestas, daí as oficinas de reparação de automóveis e de bicicletas, tascas com carvoarias (não faltavam belos azulejos com cachos de uvas), lojas de adubos e rações. Do lado oposto, o comércio era praticamente inexistente.
Pormenor da Rua de Entrecampos em 1946
Desenho publicado no jornal Público reconstituindo os negócios saloios que atravessavam a Rua de Entrecampos, os muares bebericando água no fontanário, não esquecer que era praticamente uma linha vertical que passava pelo Campo Pequeno, Arco do Cego, Estefânia, Campo dos Mártires da Pátria, descendo para o centro da cidade seja pelo Desterro e o Martim Moniz, seja pela Calçada de Santana. Havia outro itinerário para os negócios saloios que tinha a ver com o Rossio, Rua das Portas de Santo Antão, Rua de São José, São Sebastião e Estrada de Benfica.
Antiga Ponte de Entrecampos, com a linha ferroviária

Frequento quatro anos, a instrução primária, na Escola N.º 151, e a minha mãe conseguiu uma bolsa de estudo no Colégio Moderno, irei frequentá-lo durante quatro anos. Já referi que saio de casa pelas 8:10, na companhia do Luís Filipe Salgado de Matos, recentemente falecido. Irei fazer amizades e estimas inquebrantáveis. Não resisto a contar uma história. Durante dois anos, creio que no terceiro e quarto anos, fui companheiro de carteira do Pedro Chorão, um artista plástico que muito aprecio. Aí pelos anos 1990 adquiri um quadro dele a prestações na Galeria Colares. Andava a pensar em oferecê-lo à minha filha, mandei um mail ao Pedro, se ele queria confirmar a assinatura, a tela por detrás tem a referência ao seu nome. Respondeu-me encantado com o reencontro, há bem 60 anos que não púnhamos os olhos em cima, que não, que eu não me desfaria do meu quadro, tu vens ao meu ateliê, e vais ver que tenho uma surpresa para a tua filha. Passámos uma tarde de feliz convívio, trocámos livros, inevitavelmente falámos do colégio, as memórias dele traçam-se com alguma amargura, mas rimos a bom rir de várias peripécias, uma delas do nosso professor de físico-química, capitão Figueiredo, combatente na Flandres, houvesse, como aconteceu connosco, aula no dia 9 de abril, e no início o chefe de turma pediu ao Sr. Professor se tinha a amabilidade de nos narrar o que acontecera em La Lys, e nesse dia nem nada de física nem de química, ouvíamos os canhões alemães, a tentativa de reorganização do Corpo Expedicionário Português, os feitos do soldado Milhões, o herói que nos ficou. Anos mais tarde, tudo isto confirmei quando li as Memórias da Grande Guerra, de Jaime Cortesão.
Era assim a entrada e o edifício principal do Colégio Moderno do meu tempo, na Estrada de Malpique (hoje Rua Dr. João Soares, diretor do colégio). A imagem é um tanto anterior à minha frequência no Colégio.
Entrada no pátio principal para o edifício onde funcionavam as aulas. À esquerda, com as portadas entreabertas, estava o Dr. João Soares, ereto, empunhando a sua bengala, e recriminando os atrasados, era de toda a conveniência entrarmos às 8:25 para não haver advertências…
Fábrica Nally no Campo Grande

Tínhamos pausas de dez minutos, como em toda a parte, havia chuto na bola, correrias, jogos de curta duração. Se faltava um professor, vinha um perfeito, olhos nos livros, era proibido conversar, a não ser ir até ao pé do Sr. Perfeito e procurar esclarecer uma dúvida. Depois das aulas da tarde, formavam-se para dar passeios à volta do colégio. Há vivendas e casas apalaçadas no Campo Grande, aos fins de semana alugam-se bicicletas, há descampados, mas também vielas. Foi assim que descobrimos com a entrada por uma azinhaga a fábrica dos produtos Nally, linha cosmética, falei deles à minha mãe, mas ela disse-me que preferia o creme da Madame Campos. Lembro-me perfeitamente, bem adolescente, de ir à Rua Alexandre Herculano fazer-lhe compras na filial ali existente. O Campo Grande oferece boas oportunidades para passear, o lago e os seus barcos são a forte atração, o jardim é formoso, tem uma grande equipa de jardinagem que o trata primorosamente. Irá mais tarde articular-se com a Avenida da Universidade e os novos edifícios das Faculdades de Direito e de Letras e a Reitoria, não esquecendo igualmente a Biblioteca Nacional e as livrarias que funcionavam entre a Estrada de Malpique e o Campo Grande, no tempo de vida universitária eram de visita obrigatória. Resta desse mundo um ícone, a Galeria 111, fica a memória de grandes exposições que tive a dita de ali visitar. Ah, não podemos esquecer que para além do lago há uns campos de ténis, ali ficávamos especados a ver os tenistas em ação. O que é hoje o Museu de Lisboa, no Palácio Pimenta, estava fechado, mas era possível visitar o Museu Rafael Bordalo Pinheiro, guardo saudade das visitas com a minha mãe que o tratou sempre como o grande génio artístico do século XIX. Fiz esta deriva para o Campo Grande por ser o complemento da minha vida de bairro e de se ter articulado perfeitamente com aquela Avenida de Roma, também tão importante na minha vida.
Produtos da Fábrica Nally que continuam a ser comercializados
Dr.ª Nelly Campos, mais conhecida por Madame Campos, proprietária da Academia Científica de Beleza Madame Campos
Lago do Campo Grande, o Restaurante Casa do Lago continua a funcionar e a bela obra de cerâmica azulejar de Júlio Pomar continua lá
Obra de Júlio Pomar no Restaurante Casa do Lago

(continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 10 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22090: Os nossos seres, saberes e lazeres (446): Quando vi nascer a Avenida de Roma (3) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 11 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22096: Os nossos seres, saberes e lazeres (447): A minha terra, Pica, onde nasci, cresci e de onde, em 1961, parti para Mafra frequentar o CSM (Manuel Barros Castro, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCAÇ 414)

Guiné 61/74 - P22109: Fotos à procura de... uma legenda (147): Mais elementos para a compreensão de uma falsificação da História: a proclamação da independência da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973, em Madina do Boé...

 



Figura 13. Extracto da base topográfica elaborada para a Carta Geológica da Guiné-Bissau,
correspondente à região do Boé. As curvas de nível incluídas nesta base são: 0, 10, 50, 100 e 200 m, sendo ainda visíveis pontos cotados. A rede viária apresentada inclui trajectos nem sempre com garantia de trânsito, nomeadamente durante a época das chuvas, em locais de atravessamento da rede hidrográfica, ou ainda face a alterações do coberto vegetal.

Imgens e legendas: Fonte:  Paulo H. Alves, Vera Figueiredo - Carta Geológica da Guiné-Bissau: de 1982 a 2011.  LNEG - Laboratório Nacional de Energia e Geologia. Estrada da Portela, Bairro do Zambujal – Alfragide, Ap.7586, 2610-999 Amadora. Disponível aqui:

http://repositorio.lneg.pt/bitstream/10400.9/2924/1/36790.pdf


Resumo: Apresenta-se o que foi o Centro de Geologia do IICT e em particular o Projecto da Carta Geológica da Guiné-Bissau, que incluiu 40 meses de cartografia e foi marcado por limitações várias, como dispor de uma única equipa no terreno, pelo que recorreu a metodologias inovadoras. Concluído no LNEG em 2012, numa edição em formato frente e verso, inclui uma nova base topográfica do país e apresenta a geologia de superfície e do substracto, bem como informação hidrogeológica, com logs de 335 sondagens e poços, bibliografia, carta hipsométrica e divisão administrativa. 

Palavras-chave: geologia de África, cartografia digital, Bissau, Bacia do Senegal  



1. O vasto setor do Boé (que faz parte da região do Gabu) é intransitável no tempo das chuvas (que vai de meados de maio  a  meados de novembro). Dois grandes rios atravessam o Boé: o Corubal [, que corre de sul para nordeste] e o Féfiné [, que corre a norte e a leste de Béli, e a sudeste de Cabuca, sendo um afluente do rio  Corubal].

Como se pode ver na foto acima, já no início da época da chuvas o rio Féfiné tem um caudal elevado, tornando na prática difícil ou mesmo impossível a sua travessia em viatura automóvel. A alternativa para se alcançar, na época das chuvas, o complexo Dulombi-Boé-Tchetche (um conjunto de 3 parques nacionais cobrindo cerca de 319 mil hectares),  é entrar, a nordeste, por Foula Mori, na Guiné-Conacri...

Estas duas imagens podem ser usadas como complemento da informação constante do poste P22106 (*). Faz-se um convite aos nossos leitores (**) para as relacionar com a narrativa do PAIGC segundo a qual a I Assembleia Nacional Popular (, onde se terá proclamado,  a 24 de setembro de 1973,  em plena época das chuvas, a independência da Guiné-Bissau,) ter-se-ia realizado na "região libertada" de Madina do Boé... 

Há muito que sabemos que  esta narrativa é, em parte,  uma "falsificação da História". (Repare-se que na Carta Geológica da Guiné-Bissau, encomendada pelo Governo guineense, ao LNEG portugês, os geólogos continuam a considerar Madina do Boé como a mítica capital fundadora do país: vd. figura nº 13 acima).