Queridos amigos,
É um momento de viragem, está em cima da mesa uma proposta de trabalho, pelo menos para os próximos cinco anos. Paulo já falou com antigos responsáveis por aquele departamento, são reuniões, conferências, inúmeros relatórios, representações e algo mais, essencialmente tudo se passará em Bruxelas mas haverá participações obrigatórias em reuniões sindicais nacionais. Ele pode estar descansado, haverá sempre revisores para tudo quanto escrever em francês ou inglês, os alemães exigem os documentos na sua própria língua, um tradutor fica com essa responsabilidade. Mas acontece algo de insólito, quando ele sai daquele imenso edifício no Boulevard Albert II, tendo a tarde por sua conta, corre em paralelo na sua mente a viagem que faz através do Geba até Bissau, a melancolia e o desprendimento físico, a convicção de que se estava num virar de página, como neste exato instante. Outra surpresa grande, como ele irá contar ao seu amigo Gilles Jacquemain, em jeito de desabafo, é que Annette não quer dar por findo o seu trabalho, o romance ainda não acabou, não se pode amar a Guiné com aquela intensidade e pô-la numa prateleira. O romance continua, disse-lhe ela, mesmo quando tu vieres viver para Bruxelas, talvez mesmo quando eu for viver para Lisboa, logo se verá.
Um abraço do
Mário
Rua do Eclipse (81): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Mon cher Gilles Jacquemain, fiz uma viagem-relâmpago a Bruxelas, fui recebido na Confederação Europeia dos Sindicatos por um dos patrões, Gottfried Scholtak, um alemão singularíssimo, de estatura pouco mais que meã, uma cabeleira farta entre o louro e o grisalho, olhar agitado, nariz proeminente, beiça larga, uns braços em permanente agitação acabando em mãos pequenas, cabeludas, enclavinhadas quando postas no tampo da secretária. Não foi a primeira vez que vim à Confederação, no Boulevard Albert II, enquanto fiz o percurso a pé a partir do metro na Place de Brouckère, recordei as muitas reuniões que tive na então sede na Rue Montagne aux Herbes Potagères, aqui recebi muitas ajudas para elaborar documentos, pareceres, comunicações, quem diria que agora voltava como colaborador, encontrei aqui um final feliz para todo este desatino em que tenho vivido entre Lisboa e Bruxelas, nunca suspeitei que pudesse vir trabalhar em Bruxelas até à hora da reforma, vivendo ao lado de quem tanto amo.
Reunião longa, foi-me apresentada uma proposta de contrato até cinco anos, com sede em Bruxelas, deslocações obrigatórias quando os sindicatos requeressem a minha presença em conferências ou reuniões nos seus países, o meu antecessor já me tinha falado desta situação, nada que me possa apoquentar, são curtas digressões, exigem obviamente preparação nos três pelouros constantes do documento de trabalho, a que fico adstrito: Consumidores, Saúde e Segurança Alimentar. Expus, questionado, o meu itinerário curricular, o meu vínculo ao funcionalismo em Portugal, e as responsabilidades em curso, designadamente no ensino e na direção da Associação Europeia de Consumidores, precisava de alguns meses para resolver problemas domésticos, finalizar exames, contribuir para encontrar uma solução na Direção da Associação de Consumidores; e, obviamente, obter uma licença sem vencimento invocando serviço europeu, ficando a meu cargo as contribuições para a pensão de reforma. Juntaram-se funcionários superiores que acompanham em segunda linha estes diferentes dossiês, trouxe para Lisboa uns bons quilos de papel.
Entrarei em funções em pleno verão. A versão definitiva do meu contrato vai-me ser enviada para eu assinar. Com expressão risonha, Gottfried Scholtak convidou-me a almoçar com ele na cantina da Confederação, no último andar, com uma vista panorâmica sobre esta parte da cidade, comemos minestrone, spaghetti alla crema di basilico e noci e depois tiramisu, era dia da cozinha italiana. Despedimo-nos calorosamente, como tenho no próximo mês reunião associativa, ficou acordado que contatarei estes funcionários que compareceram à reunião e que de certo modo acompanham os três pelouros que marcarão a minha vida profissional, para prosseguirmos o diálogo de integração do meu trabalho na estratégia da Confederação.
Tinha a tarde livre, temperatura amena, imagina tu, meu tão querido amigo, que comecei a deambular em direção ao centro da cidade, Annette estava em pleno Edifício Berlaymont até às 17h30, tínhamos combinado encontrarmo-nos à porta de um restaurante junto da Igreja de S. Nicolau, Á la Bécasse, seguiríamos depois para a Rua do Eclipse, tinha regresso a Portugal no dia seguinte. Passeava-me num estado quase de êxtase, recordei o peso da melancolia, a noção física do despreendimento quando apanhei um barco num local chamado Xime em direção a Bissau, tinha então acabado a guerra, aquela guerra que me levou a conhecer Annette, e andava por ali com a sensação de uma irrefragável perda e um sentimento de expetativa sobre o que me reservava o futuro, lembrava então todos aqueles a quem queria comunicar a notícia, queria mesmo escrever a um ror de gente, amigos a combater noutros teatros de guerra, à minha gente que eu acabava de deixar. Telefonei em Bissau a meio mundo, dizendo que me tinha sido reservada uma viagem de regresso no mesmo barco em que, em outubro de 1967, partira para Ponta Delgada, mas era uma sensação de desalinho, a mesma sensação que agora me tomava, ia fechar livros, ia abrir outros, dentro de poucas horas sabia que teria pela frente uma mulher que tanto amo a soluçar de alegria. Sentei-me num banco em frente da fachada do Teatro de la Monnaie, dançam-me estas imagens do passado com as do presente, farei uma viagem de cerca de 12 dias, virei com tropa cabo-verdiana a regressar à ilha do Sal, mais adiante pararemos no Mindelo, terá sido uma cidade muito importante, a arquitetura é genuinamente portuguesa, até no coreto, a vista sobre a ilha de Santo Antão assombra, eu e mais três camaradas fretámos um táxi para ir às praias, há muita secura, vegetação mirrada, mas o mar é impressionante e no Mindelo comprarei livros de autores do arquipélago de que nunca me desfiz, tal a impressão que me deixaram.
Gilles, e agora? Vou conversar com os meus filhos, antes vou ouvir a opinião da Annette, com a Rita não tenho que me preocupar, é autónoma, sempre que a ajudo ela não deixa de mencionar que a prioridade está no Ricardo e depois no Henrique. Tenho de conversar com estes meus filhos se querem ficar lá em casa, está fora de questão que eu a venda, Annette adora Lisboa, está sempre a falar-me dos passeios que temos dado um pouco pelo país e anseia continuar, é mulher para fazer novas amizades, mas reconheço que ela vive sempre inquieta com os problemas de Jules, inadaptado, Noémie também causa sobressaltos. Bailam-me diante dos olhos a minha despedida da guerra, a alegria de antigos soldados que tinham passado à disponibilidade a abraçar-me, ali no cais, tinham-me acompanhado a fazer compras de artigos tradicionais, ajudaram-me a transportar as malas para bordo, não sustive as lágrimas, parece que estou a ver o espanto e a confusão no rosto dos meus amigos, ouviu-se uma sirene a chamar-nos para bordo onde num salão um oficial general fez preleção e agradeceu a todos os serviços prestados à Pátria.
Não me sinto em ansiedade, para ser sincero contigo, Gilles. Sei que vou ter tempo e estado de espírito para fechar os tais livros de uma vida devotada a diferentes atividades que sempre assumi como causas públicas, as alegrias que tive no ensino e na vida associativa, eram as mesmas convicções que fui firmando naquela viagem do Sal para Mindelo, daqui para Ponta Delgada até à chegada a Lisboa. Não haverá seguramente qualquer complicação com a minha licença da Função Pública, tenho problemas sérios, como tu conheces melhor do que ninguém, na Associação Europeia de Consumidores, preciso de falar urgentemente com Bengt Ingerstam, é um homem avisado, talvez a pessoa mais indicada para me substituir seja a Benedetta Olivieri. E naquela tarde amena começou a soprar um vento frio, subi ao Monte das Artes, dei comigo a caminhar sem destino, a rever itinerários que para mim são sempre aprazíveis, vejo ao fundo o faraónico, o desmesurado Palácio da Justiça, fui rezar à Igreja de Notre Dame du Sablon, pedir coragem e lucidez para encontrar as melhores soluções, depois de amanhã vão encetar-se rituais de despedida, processos de afastamento, naturalmente são coisas que vão mexer comigo e não posso esquecer os interesses dos meus filhos, felizmente que não se prevê qualquer rombo nos meus rendimentos, mas é evidente que vou entrar na vida em comum com a Annette com despesas em partes iguais.
Enviara a Annette antes de aqui chegar mais peças sobre estes últimos tempos da minha guerra na Guiné, sempre meticulosa, ela vai pondo ordem em tudo, pergunta quando precisa de esclarecimentos, para minha surpresa pediu-me mais informações sobre aquele período de sobreposição, o que fiz, com quem fiz, de quem me despedi, quis pormenores detalhados sobre a última viagem de Bambadinca para o Xime.
Deixo-te a última surpresa para o fim. Annette não quis ir para aquele restaurante, pediu-me para tomarmos o carro, fomos até Tervuren. No parque, as suas emoções desabaram, abraçava-me muito. Fomos jantar num restaurante sérvio e regressámos para casa. Acariciamo-nos muito e nisto Annette dá-me a notícia: o livro está longe de ter terminado, quem viveu o que tu viveste tem que deixar escrito que amor tão intenso está sujeito às leis do movimento perpétuo, vamos continuar a escrever o que se passou depois e em que lugar do coração tu guardas a Guiné.
Era o que sumariamente queria desabafar contigo, afinal a Guiné continua, e seguramente continuará, a dominar muitas das nossas emoções quando eu me mudar para Bruxelas. Nunca pensei que aquele projeto da Rua do Eclipse fosse levado tão a sério por aquela mulher que, algures, ainda em 1999, me olhou arrelampada quando lhe pedi ajuda para escrever um certo livro onde cruzámos o nosso destino. Podes imaginar a alegria que sinto em saber que dentro de alguns meses a nossa amizade se estreitará muito mais, aprecio-te muito e à tua extremosa família. Bien à toi, amitié énorme, toujours, Paulo.
(continua)
Nota do editor
Último poste da série de 26 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22753: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (80): A funda que arremessa para o fundo da memória