Caros Amigos
Junto um pequeno texto dedicado aos que, em 1973, passaram por Gadamael.
Podia ter-lhe chamado “Um Natal na Guerra”, ou “A Guerra em tempos de Paz”. Optei por… “Três Pings e um Pong”.
Abraços
AMM
Naquele dia, 25 de Dezembro de 1973, a actividade aérea na Base da Bissalanca estava reduzida ao mínimo dos mínimos, apenas as missões de Alerta, as habituais evacuações de DO-27 e AL-III e, para alguma eventual saída de apoio-fogo, a parelha dos Fiat G-91.
A meio dessa manhã meti-me na minha Yamaha-200 e lá fui, estrada fora, do Largo do Liceu Honório Barreto até à Base Aérea. A minha tarefa para essa tarde estava bem definida, ia entrar de Alerta ao Fiat G-91, a partir das 13:00 e até ao Pôr do Sol.
Um almoço muito ligeiro no Bar dos pilotos, ainda vinha cheio de fatias douradas, arroz-doce, bolo-rei e muitas outras iguarias, o resultado de uma noite de consoada passada em casa das minhas vizinhas do andar de baixo, as enfermeiras paraquedistas. Até tinham sido amigas, sabendo da minha paixão por automóveis e em especial por Porsches, no meio de muitos sorrisos malandrecos tinham-me oferecido um 911 da Dinky Toys, à escala 1/43.
Era Dia de Natal, Feriado, a "Paz entre os homens de boa vontade", mais uma série de frases feitas, talvez nesse dia a guerra tivesse uma pausa.
A primeira missão aconteceu por volta das 14:00. No sistema sonoro do Grupo Operacional, a mensagem a chegar:
- "Alerta aos Fiats".
Corrida às Operações para tentar saber mais alguns detalhes. A solicitação era para Gadamael, lá no Sul, junto à fronteira com a Guiné-Conacri. Recolha do capacete e das fitas para as pernas da Martin-Baker, tudo o resto ficou esquecido no armário, o anti-g, o mae-west, a pistola e o respectivo equipamento de sobrevivência. No bolso do fato de voo, o que sempre me acompanhava, uma bússola e um pequeno espelho. Se por um qualquer motivo tivesse que me ejectar e cair lá no meio da floresta, podia tentar indicar a minha posição.
Uma rápida deslocação até à Linha da Frente dos Fiat G-91, o condutor do Jeep a buzinar, os mecânicos a correrem, a tirarem as tampas que protegiam as aeronaves de alerta, o meu avião foi o 5437, o meu Asa era um Capitão Pira, a parelha a fazer uma descolagem imediata, de corrida.
Um parêntesis para os menos familiarizados com assuntos aeronáuticos; na aviação e independentemente de hierarquias, o mais experiente vai à frente, é o Chefe da Missão.
Continuando, os aviões estavam equipados com tanques de combustível auxiliares, uma autonomia de 1:20. Quinze minutos depois já estávamos a sobrevoar a zona e em contacto com o Aquartelamento.
Era redundante, os do Exército não sabiam falar com os pilotos, perdiam-se em explicações variadas. O que nós, lá do alto, queríamos saber eram apenas dois factores, a direcção do ataque e o tipo de arma. Depois de muita conversa do tipo parte gaga, lá confirmaram, tinham sido atacados dos lados da fronteira, com morteiro 120mm.
De acordo com a descrição dos militares, as granadas tinham caído longe do arame mas sempre em aproximação, como se alguém estivesse a tentar regular o tiro. À nossa chegada tinham-se calado.
Largámos os foguetes na zona, mais algumas rajadas das metralhadoras, poucas, as munições não eram explosivas e o seu calibre era inócuo para quem, na floresta, se pudesse abrigar atrás de uma qualquer palmeira. Para além disso, as placas para-fogo junto à saída dos canos estavam completamente rachadas, com umas feias e atabalhoadas soldaduras, quais cicatrizes. Por causa dessas anomalias, um piloto já se tinha ejectado. No momento de disparar as armas, o painel das metralhadoras saltara fora.
Tudo calmo, o pessoal do Aquartelamento satisfeito. Regressámos a Bissalanca, no total 50 minutos de voo, a sensação da ajuda ter ficado um tudo ou nada incompleta.
Depois de aterrado fui à Secção Fotográfica da Base, quase paredes meias com a Esquadra. Toda aquela zona Sul da Guiné estava devidamente cartografada e fotografada. Com base no que me haviam dito (morteiro de 120mm e ataque do lado da fronteira) analisei as fotos, tentando descobrir todos os locais possíveis para bases de morteiros de 120mm. No meio de toda aquela floresta encontrei quatro clareiras que se ajustavam ao requisito. Informação em reserva, a ser utilizada numa futura missão na área.
O Pôr do Sol a chegar, o período de alerta quase a terminar, já me estava a ver de regresso à Yamaha e ao Largo do Liceu, o altifalante do Grupo a transmitir um novo aviso:
- "Alerta aos Fiat".
Outra vez Gadamael. Nova corrida, os mecânicos a apontarem-me uma outra vez o 5437, o avião de alerta, já reabastecido, com os tip-tanks, metralhadoras e foguetes.
Fiz-lhes sinal para uns outros aviões, uma parelha que estava estacionada ali mesmo ao lado, a ser preparada para o dia seguinte, sem qualquer armamento nas asas, umas bombas de 750 libras a um canto, ainda nos respectivos cavaletes.
Aqueles mecânicos eram super eficientes. Em quinze minutos o armamento foi devidamente instalado nos aviões e a parelha ficou pronta, a autonomia de voo a reduzir drasticamente, de 1:20 para uns míseros 50 minutos.
Saída no 5427, trinta minutos após o pedido já estávamos de novo na zona. Desta vez já não havia tempo para grandes conversas, o Aquartelamento a confirmarem-me que era outra vez o morteiro de 120mm. Não havia tropa fora do aquartelamento, um voo em picada, de modo a visar duas das clareiras que tinha identificado nas fotos e, num passe meio esticado, larguei uma bomba em cada uma delas. Depois disse ao meu asa para fazer o mesmo às duas outras clareiras, o que ele, o Capitão periquito, executou na perfeição.
As bombas de 750 libras eram bem potentes. Ainda a recuperar do passe e sentíamo-las a explodir, o avião até estremecia. Uma outra característica, eram bem fuseladas e, ao rebentarem, faziam um enorme cogumelo de pó e detritos, talvez uns vinte metros de altura.
Bombardeamento executado. Ao verificarmos a área para ver se havia alguma reacção de Strelas, descobrimos algo de estranho. No meio de todo aquele verde da floresta havia três rebentamentos castanhos de uns quinze a vinte metros de envergadura e um outro, enorme, uma densa fumarada escura que, no mínimo, deveria ter mais de cinquenta metros de altura.
Uma grande explosão lá em baixo, o Capitão periquito acabara de acertar em algo.
Regressámos, o voo tinha durado apenas 35 minutos.
Como Tenente e Chefe da Parelha lá tive de ir fazer o respectivo Relatório. Poderia ter escrito “Três Pings e um Pong”, ou, talvez um pouco mais de acordo com a sequência da ocorrência, Ping Ping PONG Ping. Não me iam perceber. Optei pelas palavras habituais:
- "ATAP (Ataque em Alerta) em Gadamael, junto à fronteira, quatro bombas de 750 lbs, resultados desconhecidos".
A noite a chegar, o período do Alerta terminado, montei-me na moto e fui à minha vida, que no dia seguinte a guerra ia continuar.
Só algumas semanas mais tarde viemos a saber o resultado daquele grande rebentamento. Uma das bombas fizera explodir as munições que o PAIGC tinha escondido na floresta, para, à noite, irem despejar sobre o Aquartelamento.
Pelo menos nessa noite os de Gadamael devem ter dormido descansados.
Uns outros pensamentos positivos, nunca mais chamei "Pira" ao Capitão Pira.
AMM
© Foto do Cor Art Ref António Carlos Morais da Silva.
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Nota do editor:
Último poste da série > 2 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22775: O nosso sapatinho de Natal (2): E eu ainda não era eu: conto de José Teixeira