quinta-feira, 30 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23398: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (6): um "annus horribilis" para ambos os contendores: O resumo da CECA - Parte V: o ataque a Guileje


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3477 (Novembro de 1971/ Dezembro de 1972) > Foto aérea de 1972 do aquartelamento e tabanca de Guileje, tirada no sentido oeste-leste. Fo do álbumdo do ex-1º cabo aux enf Amaro Samúdio.

Foto (elegenda): © Amaro Samúdio (2006). Todos os direitos reservados.  [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Guidaje, Guileje e Gadamael, os famosos 3 G, "a batalha (ou as batalhas) dos 3 G", têm vindo a ser aqui recordados, na véspera da efeméride dos seus 50 anos. (A Op Amílcar Cabral dizem que começou a 18 de maio de 1973, em Guileje, na região de Tombali, no sul... Mas já antes, Guidaje, no norte, na região do Cacheu, esteve a ferro e fogo (*).

Daí esta nova série "Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra?"...

Felizmente que ainda temos muitos camaradas vivos, que podem falar "de cátedra" sobre os 3 G, Guidaje, Guileje e Gadamael... Outros, entretanto, já não estão cá, que "da lei da morte já se foram libertando"... Do lado do PAIGC, por seu turno, é cada vez mais difícil poder-se contar com testemunhos, orais ou escritos, sobre os acontecimentos de então.

Damos continuação à publicação de um excerto da CECA (2015) sobre estes acontecimentos (*).


CAPÍTULO III > ANO DE 1973 > 2. Nossas Tropas

2. 1. Ataque lN no Sul a Guileje e a Gadamael Porto

2.1.1. Ataque lN a Guileje

Poucos dias depois do ataque lN no Norte da Guiné,  ao quartel de Guidaje, iniciou-se no Sul o ataque a Guileje sob o comando militar do sul do PAIGC, "Nino" Vieira, integrado na operação "Amílcar Cabral" para mostrar resultados à OUA - Organização de Unidade Africana.

  • Para o início da operação, o PAIGC concentrou em redor de Guileje:
  • a bataria de artilharia de Kandiafara, com morteiros de 82 e 120 mm, canhões sem recuo, canhões de 85 mm e de 130 mm;
  • um grupo de reconhecimento e observação;
  •  cinco bigrupos de infantaria do sector de fronteira.

Deslocou ainda o 3.° Corpo de Exército do Unal para a mata do Mejo e transferiu três bigrupos da região do Boé e dois bigrupos do 2.° Corpo de Exército, no Tombali, para reforço do sector de fronteira.

"No total, o PAIGC concentrou na zona de Guileje um Corpo de Exército (3.° CE), no Mejo, dez bigrupos em reforço ao sector de fronteira e uma bataria de artilharia, com um grupo de reconhecimento. Ao todo, considerando a base numérica de cada unidade do PAIGC utilizada pelos serviços militares portugueses, seriam cerca de 650 homens, efectivo idêntico ao que foi concentrado em Cumbamori para o ataque a Guidaje."  
[Nota: Afonso, Aniceto,  e Gomes, Carlos de Matos, "Guerra Colonial", p. 508]

A guarnição de Guileje integrada no dispositivo e manobra do COP 5 (comandado pelo Major de Artilharia Alexandre Coutinho e Lima), era constituída pela:
  •  CCav 8350/72;
  • 1 Pel/CCaç 3520;
  • 15° Pel Art;
  • 2 Sec/Pel Rec "Fox" 3115;
  • e  Pel Mil 236. 
A população civil era de cerca de 500 elementos.

Em 18Mai, pelas 06h00, uma força constituída pelos 1° e 2° GComb da CCav 8350/72, 1 GComb/CCaç 3520, Pel Mil 236 e 2 Sec/Pel Rec "Fox" 3115, foram realizar a picagem da estrada de Gadamael até ao rio Bendugo, montar segurança descontínua no mesmo itinerário e fazer protecção à coluna auto que se deslocava a Gadamael Porto.

"À hora prevista, a força executante saiu do Aquartelamento começando a fazer a picagem do itinerário. A cerca de 200 metros do local previsto para a instalação do 2° GComb da CCav8350/72, o Comandante do Pelotão de Milícias n° 236, Jan Samba Camará, que nessa altura se encontrava à frente da picagem apercebeu-se de uma anomalia no terreno e fez parar toda a coluna pondo-se a observar o que depois se veio a verificar ser o 3° dos 18 fornilhos colocados ao longo da estrada e nas bermas, num espaço de cerca de 40 metros. Nessa altura, o lN que se encontrava instalado a poucos metros da picada, que é, ao longo de quase todo o percurso, ladeada de mata densíssima, desencadeou a emboscada com um tiro de pontaria à cabeça do Comandante de Pelotão de Milícias e, acto contínuo, com o accionamento dos 18 fornilhos de grande potência e grande quantidade de fogo de armas ligeiras e RPG-2 e RPG-7.

O Pelotão de Milícias n° 236 e o 1° GComb/CCav 8350/72 sofreram, num curto lapso de tempo, 1 morto e 7 feridos graves. Ficou também o referido pessoal extremamente traumatizado pelo rebentamento dos fornilhos verificando-se alguns casos de rebentamento de tímpanos e queimaduras de 1° grau. Por essas razões a sua reacção foi mínima ou nula limitando-se o 2° GComb a ripostar com o morteiro 60 cm.

Quando o inimigo interrompeu o contacto o 1° grupo de combate e o Pel Mil 236 recuaram para trás do 2° grupo, que entretanto se manteve na estrada, transportando feridos e abandonando no local da emboscada o corpo de comandante do Pelotão de Milícias, 1 ferido grave, armamento e material diverso.

O 2° grupo, após efectuar um batimento de zona com morteiro 60 mm e lança-roquetes 37 mm (Dante), progrediu ao longo da estrada (que já tinha sido picada) para recuperar o morto e o ferido. Chegou ao local onde antes se encontravam e ultrapassou-os para fazer segurança à frente sem que o inimigo se manifestasse. Chegados ao local, detectaram os fios de fornilhos sobre a estrada e, do lado onde o lN estivera instalado, vestígios de organização do terreno tais como abrigos individuais e espaldões para metralhadora ligeira.

Entretanto tinham sido pedidas viaturas para evacuar o morto e os feridos. Receberam ordens para se manterem afastados do local aproximando-se apenas a AM "Fox" até ao limite da picagem. O grupo de combate da CCaç 3520 que as escoltava apeou-se cerca de 400 metros antes do local da emboscada não chegando a intervir. Como tivessem sido notados movimentos suspeitos mais adiante no lado esquerdo da estrada resolveu o comandante da força fazer para o local, alguns tiros de mort 6 cm e LGFog  8,9 cm. 

Antes disso o inimigo voltou a abrir abundante fogo de armas ligeiras metendo quase toda a força que se encontrava a proteger a evacuação do morto e do ferido na zona de morte. Houve
oportunidade de ver um elemento lN saltar para a estrada e enfiar ao longo dela num tiro de RPG-2 que causou baixas. Neste contacto as NT reagiram com armas ligeiras e, sobretudo, com cerca de 900 tiros da Browning 12,7 mm da AM Fox. Do mesmo, resultaram para as NT 2 feridos ligeiros e 3 graves um dos quais veio a morrer no quartel, 4 horas depois, por falta de evacuação.

Quando o lN interrompeu o contacto procedeu-se à recolha dos feridos e à retirada de todas as forças para o aquartelamento, ficando sem efeito a coluna prevista.?" (Fonte: Relatório da acção "Bubaque" realizada em 18Mai73 na região de Guileje da CCav 8350/72) .

Na tarde desse dia um GComb, sob comando do Cmdt do COP 5, efectuou o reabastecimento de água, sem contacto com o lN. (Fonte: As transcrições que se seguem são do livro "A retirada de Guileje - 22 Mai73. A verdade de factos",  do Cor Art Alexandre Coutinho e Lima, DG edições 2009 pp. 45 a 86).

A partir da noite de 18Mai o lN passou a flagelar o aquartelamento de Guileje com canhão 85 mm, canhão s/r, morteiro 120 mm e com um novo tipo de arma (julga-se que era um canhão grande, tipo obus 14 cm das NT), que permitia dar à granada uma velocidade muito grande. (
Canhão M-46, calibre 130 mm).

Relação das flagelações a Guileje até ao fim da tarde de 21Mai:

- 18 20h00 a 19 06h00: 7 flagelações - 150 granadas; 

- 19 08h00 a 19 16h45: 5 flagelações - 40 granadas; 

- 19 20h00 a 20 04h30: 9 flagelações - 150 granadas; 

- 20 08h15: 1 flagelação (10 minutos) - morteiro 120 mm; 
 
- 20 20h00 a 21 06h00: 7 flagelações - 80 granadas (morteiro 120 mm);
 
- 21 06h30: 1 flagelação - 20 granadas (canh s/r); 

- 21 07h30: 1 flagelação - 10 granadas (morteiro 120 mm); 

- 21 08h30: 1 flagelação - 15 granadas (canh s/r); 

- 21 14h00: 1 flagelação (5 minutos) - LGFog RPG-7;

 - 21 14h30: 1 flagelação (2 horas) - 200 granadas. 

Houve grandes destruições e 1 morto (Furriel).

Em 20 Mai o Cmdt COP 5, deslocou-se a Bissau e no "briefing" diário expôs a situação e pediu o reforço temporário de uma Companhia de tropa especial. O Cmdt-Chefe não lhe atribuiu qualquer reforço, determinou que regressasse a Guileje na manhã seguinte e que seria substituído no Comando, passando a desempenhar as funções de 2° Cmdt.

Em 210900 (mensagem Relâmpago n° 714/73) o Cmdt da CCav 8350/72 informou: 

"Durante apoio aéreo fomos flagelados. Pessoal não descansa desde 17. Vivemos sem água e ração. Solicito apoio muito urgente tropa especial. Pessoal desta muito cansado. Todos os impactos dentro Quartel".

Em 21 14h15 (mensagem Relâmpago sem número) comunica:

 "Estamos cercados por todos os lados".

Foi a última mensagem emitida. Na flagelação que deu origem à mesma, foi totalmente destruído o Centro de Comunicações, entre outros estragos, apesar de várias tentativas, através de antenas improvisadas, não foi possível restabelecer a ligação rádio.

O Major Coutinho e Lima chegou a Gadamael Porto no final da manhã de 21Mai e decidiu ir a pé para Guileje com 1 GComb/CCaç 4743/72, Pel Mil 235 (-) da guarnição Gadamael Porto e 1 GComb/CCaç 3520 da guarnição  de Cacine. O Cmdt da CCaç 4743/72, também integrou a coluna.

Pelas 18h00 chegou a Guileje. O Cmdt do COP 5 verificou:

"Na flagelação dessa tarde, o inimigo tinha provocado uma baixa (um Furriel morto) às NT; O graduado foi atingido por uma granada, dentro de um abrigo com fraca protecção.

"Estavam destruídos, em consequência das variadíssimas flagelações inimigas: Dois depósitos de géneros. Depósito de artigos de cantina. Cozinha. Forno de cozinha. Celeiros de arroz da população (ainda estavam a arder). Grande parte das casas da população - " moranças" - queimadas.

"Vários abrigos atingidos parcialmente. Muitos impactos nas valas. Variadíssimos rebentamentos (talvez centenas) dentro do aquartelamento.

"Falta de água potável, por não ter sido possível fazer o reabastecimento, o último fora efectuado na manhã de 19Mai. Escassez de munições de Artilharia, já exposta atrás. Escassez de medicamentos.

"Presença do Inimigo nas proximidades do aquartelamento, pelo menos do lado de Mejo: alguns elementos da população que tentaram ir à água à bolanha, a cerca de 500 metros nessa direcção, foram flagelados pelo Inimigo, na tarde de 21Mai e imediatamente recolhidos pelas Nossas Tropas que foram em seu socorro.

"Desde o início das flagelações (noite de 18 / 19Mai), toda a população recolheu aos abrigos das Nossas Tropas, aumentando para cerca de 3 vezes a sua lotação.

"Nas últimas flagelações, tinha-se verificado a "presença" de uma nova arma do Inimigo; os rebentamentos demoravam cerca de 3 segundos após a audição da saída da granada.

"Verificaram-se vários rebentamentos no ar, bem como de algumas granadas perfurantes, tendo sido, eventualmente, uma destas que provocou o morto das Nossas Tropas.

"Desde o dia 19Mai, deixou de ser confeccionado o rancho em virtude das flagelações e das destruições provocadas na cozinha; a alimentação passou a ser ração de combate.

"Todo o pessoal estava arrasadíssimo, quer física quer psicologicamente, pois estava a ser flagelado durante 3 dias e 3 noites consecutivas.

"A população estava preocupadíssima, principalmente pela fortíssima pressão do Inimigo, mas também devido ao desaparecimento do milícia Aliu Bari que, certamente, teria dado informações importantes ao Inimigo, não só relativamente às Nossas Tropas, como ainda em relação aos hábitos da população, incluindo a localização dos campos agrícolas.

"Garantia da não evacuação dos feridos, como já acontecera na manhã do dia 18Mai; a possível evacuação por barco, à semelhança da que se efectuara em 19Mai também não era exequível, não só pela presença do 3° Corpo de Exército do Inimigo nas matas de Mejo, como devido à falta de barcos para o efeito, porque os "sintex" não regressaram a Guileje.

"Este facto da não evacuação era da máxima importância; na realidade, os feridos graves ficavam entregues "à sua sorte", cujo desfecho poderia ser a morte".


No final da tarde, o Comandante do COP 5 tomou a decisão de efectuar a operação de retirada do Guileje:

"Imediatamente após a minha chegada a Guileje, efectuei uma visita rápida ao aquartelamento e de seguida fiz uma reunião informal com o Sr. Comandante da CCav 8350/72 e outros oficiais.

"Os factores em que baseei a minha decisão de retirar de Guileje foram os seguintes:

(1) Forte pressão do Inimigo [ ]

(2) Não atribuição de reforços [ ]

(3) Não evacuação de feridos [ ]

(4) Escassez de munições, especialmente de Artilharia [... ]

(5) Falta de água no aquartelamento [... ]

(6) Defesa da população [... ]

(7) Destruição do Centro de Comunicações [... ]

(8) Novo Comandante do COP 5 [... ]

(9) Previsão do futuro, a muito curto prazo [... ]

(10) Existência de um morto [... ]

(11) Efeito de surpresa [... ].


Dadas as circunstâncias e atendendo a que o inimigo, nessa noite de 21/22Mai, flagelou o aquartelamento por 3 vezes: 21h45/22h00 (cerca de 30 impactos); 01h05/01h30 (cerca de 40 impactos) e 04h00/05h00 (cerca de 60 impactos), as destruições e inutilizações não puderam ser feitos com a profundidade e extensão que o seriam, se as condições fossem outras.

Durante a noite, foi intensificada a actuação da Artilharia, em resposta às flagelações (não só gastando todas as munições completas existentes, como procurando dar ao inimigo a ideia que continuávamos presentes e atentos) antes de serem postos inoperacionais os 2 obuses de 14 cm.
 
[Nota: Ref V/1686/C informo não recolhida qualquer viatura:

1 Mercedes,
4 Berliets,
3 Unimogs 404,
1 Unimog 411,
1 Jeep,
1 AM Fox e 2 White
foram destruídas parcialmente.

Tomados inoperacionais:
3 mort 81 mm,
1 mort 10,7 cm
Posto inoperacional destruindo aparelhos pontaria e percutores.

Recolhidos todos E/R TR 28, AVP-1, Onkyos, Sharp e 2 E/R Marconi do STM, 3 AN/GRC-9 e restante material. Máquinas e documentação Cripto Transmissões e STM tudo destruído.

Obus 14 cm posto inoperacional por meio culatras e aparelhos pontaria recolhidos.

Restantes armas individuais e colectivas recolhidas com excepção 7 Pmetr FBP não destruídas, 2 LGFog 8,9 cm, 7 Esp G-3, 2 Mort 60 mm e 3 Metr Breda danificadas e inoperacionais.

Toda documentação classificada e não classificada foi destruída pelo fogo.

Havia 11 Esp G-3 destribuidas pop Guileje fim colaborarem defesa das quais 4 desaparecidas.

- Mensagem IMEDIATO ,n° 188/C-73 de 231430Mai73. ]

Em 22, pelas 0530, iniciou-se a saída do quartel, após a destruição do material abandonado. Por falta de comunicações, esta acção apenas foi conhecida quando a coluna chegou a Gadamael Porto, a meio da manhã do mesmo dia. Não houve qualquer contacto com o lN.

"O efeito da surpresa foi total, porquanto o inimigo não teve oportunidade de se aperceber, durante a noite, da deslocação das Nossas Tropas, no mesmo itinerário, em 21Mai; tendo sido efectuada a retirada de Guileje na manhã de 22Mai, o PAIGC só entrou no aquartelamento em 25Mai, isto é, 3 dias depois; entre 22 e 25Mai continuou a bombardear a posição que tinha sido ocupada pelas Nossas Tropas."

Em 22Mai, pela manhã, chegou a Gadamael Porto o Cor Para Rafael Ferreira Durão para assumir o comando do CAOP 3.
 
[Nota:  Com início em 21 Mai73, o CAOP 3 foi constituído e organizado, transitoriamente, a fim de fazer face ao forte incremento da actividade inimiga na zona Sul e de assegurar a coordenação da actividade operacional das forças ali instaladas. Foi composto por elementos do CAOP I, desviados para aquela zona com a sede em Cufar e englobando os sectores de Aldeia Formosa (S2), Catió (S3), Cadique (COP 4) e Guileje (COP 5), este logo deslocado para Gadamael Porto.  Em 02Jun73, foi extinto e substituído no comando operacional daquela zona de acção pelo ÇAOP 1, que entretanto fora transferido de Mansoa. (Resenba Histórico-Militar das Campanhas de Africa 7° Volume Tomo II "Fichas das Unidades - Guiné" ]

Pelas 12h15 enviou uma mensagem (Relâmpago sem número), para a Rep Oper/Cmd-Chefe:

 "lnfo Cmdt COP 5 decidiu 21 18h30 evacuar tropas e civis de Guileje. Em 22 05h30 deu-se retirada total destruindo incapacitando  todo material que não tinha sido já destruído pelo fogo ln. Devido falta comunicações tal facto apenas conhecido pelas 10h00 de 22, quando chegada Gadamael Porto. Face destruições havidas verifico ser impossível reocupação
tempos próximos. Aguardo instruções."

Daquela Repartição em 22 18h00 recebeu a mensagem nº 1652/C :

"Ref mensagem Relâmpago de 22 12h15 Mai73 s/número solicito informe Cmdt CAOP Cor Para Ferreira Durão que Sexa General Comandante-Chefe determinou seja retirada imediatamente do comando COP 5 Maj Art Alexandre da Costa Coutinho e Lima e mandado apresentar QG/CCFAG para efeito auto Corpo de Delito."

O Major Coutinho e Lima seguiu para Cacine, embarcou num navio da Marinha em 26 06h00 Mai 73 e chegou a Bissau no dia seguinte. De 27Mai73 a 12Mai74 esteve preso em Bissau. Foi amnistiado por um Decreto-Lei da Junta de Salvação Nacional e o processo foi arquivado.

(Continua)

Fonte: Excertos de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo ads Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro III; 1.ª Edição; Lisboa (2015), pp. 319-325.

[ Seleção / revisão / negritos / fixação de texto pata efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G.]
____________

Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriores da série;

2 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23319: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (1): A pontaria dos artilheiros... (Morais da Silva / C. Martins)

4 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23323: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (2): um "annus horribilis" para ambos os contendores: O resumo da CECA - Parte I: Inimigo, atividade política

6 de junho de 2022 Guiné 61/74 - P23332: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (3): um "annus horribilis" para ambos os contendores: O resumo da CECA - Parte II: Inimigo, atividade militar

18 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23364: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (5): um "annus horribilis" para ambos os contendores: O resumo da CECA - Parte IV: Op Ametista Real, de 17 a 21 mai73, destruição da base de Cumbamori, no Senegal

quarta-feira, 29 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23397: A(r)didos e mal pagos: histórias pícaras da nossa guerra (2): a minha passagem pelo Depósito de Adidos, em Brá, em 1973: como sargento de dia à Casa de Reclusão Militar, fiz uma escala de serviço para que os presos (alguns violentos) pudessem sair e entrar, "livremente", "ir às meninas" ao Pilão, petiscar em Bissau, etc. (Augusto Silva Santos, ex-fur mil, CCAÇ 3306, Pelundo, Có e Jolmete, 1971/72, e Depósito de Adidos, Brá, 1973)




Guiné > Bissau > Brá > Depósito de Adidos > 1973 > O fur mil Augusto Silva Santos, de rendição individual: terminada a comissão da CCAÇ 3306, em dezembro de 1972, foi colocado no Depósito de Adidos, na Secção de Justiça. Regressou a acasa em dezembro de 1973.


Fotos (e legenda): © Augusto Silva Santos (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Esta é mais uma "história pícara" (*) que fomos repescar, com a devida vénia, à série "Os fidalgos de Jó", da autoria do nosso camarada Augusto Silva Santos (ex-fur mil, CCAÇ 3306 / BCAÇ 3833, Pelundo, Có e Jolmete, e Depósito de Adidos, Brá, 1971/73) (**)


A minha passagem pelo Depósito de Adidos, Secção de Justiça, 1973

por Augusto Silva Santos




Depois da partida do BCAÇ 3833 para a metrópole no navio Uíge, que ocorreu em Dezembro de 1972, fui colocado no quartel do Depósito de Adidos,  em Brá. Naquele Batalhão pertenci à CCAÇ 3306 colocada em Jolmete, para onde fui em rendição individual.

No Depósito de Adidos, para além do serviço na Secção de Justiça como escrivão, tinha também, periodicamente, para além dos serviços inerentes à Unidade, a missão de fazer Sargento de Dia à Casa de Reclusão Militar.

Lembro-me que no primeiro dia em que isso aconteceu, no Render da Guarda tinham desaparecido 12 reclusos, que entretanto ao longo da semana foram voltando. Na segunda vez desapareceram mais 5, que mais tarde também voltariam a aparecer.

Esta era uma situação comum com outros camaradas que faziam esse mesmo serviço, que igualmente se queixavam e viviam o problema.

Nunca ninguém (pelo menos no meu tempo) chegou a saber ao certo por onde os presos fugiam, só sei que eles saíam para ir ao Pilão a Bissau (às “meninas”) e deliciarem-se com alguns petiscos, e que mais tarde voltavam sempre (alguns obviamente eram apanhados pela PM). 

Tive alguns dissabores (ameaças de levar uma “porrada” se os reclusos não aparecessem), pelo que, a partir de determinada altura e por sugestão de outros camaradas mais antigos (inclusivé de um 1.º Sargento), combinei com um dos reclusos (o mais velho, um Fuzileiro com a alcunha de “Grelhas” e que se dizia havia tido um “confronto directo” com o cor paraquedista Rafael Durão, tendo este como consequência partido uma mão), para fazer uma “escala de saída”, com a condição de todos estarem presentes ao Render da Guarda.

Remédio santo, ou seja, nunca mais faltou nenhum recluso quando estava de serviço.
A esta distância parece caricato, mas o que é certo é que a “medida” funcionou (para mim e para os reclusos).

O meu relacionamento com a maioria dos reclusos era regra geral muito cordial e sem grandes problemas. Alguns eram considerados como “perigosos” por terem cometido crimes com alguma gravidade no teatro de operações ou no interior das suas unidades, mas sinceramente nunca observei nada que me levasse a acreditar nessa perigosidade ou a ter receio fosse do que fosse.

Relembro que, na sua maioria, eram camaradas nossos que pelos mais diversos motivos haviam caído nesta situação. De qualquer forma não deixavam de o ser (camaradas), pelo que assim sempre os considerei, embora com as limitações a que a situação obrigava.

Quando já me faltavam escassos 3 meses para acabar a comissão, por ter discordado de uma ordem mal dada por um oficial (o que viria a ser confirmado) e chegado a via de factos, fui castigado com 5 dias de detenção. Só não apanhei 5 dias de prisão porque tinha dois louvores e tive vários Furriéis e Sargentos que presenciaram os factos a testemunharem em meu favor.

Foi-me na altura dito pelo então Comandante do Depósito de Adidos, um tal Major Francisco Ferreira, de alcunha “o Galo”( por andar sempre todo emproado, usava um boné à Hitler), que eu tinha razão, mas que a democracia ainda não tinha chegado à tropa (sic), e que a ordem de um superior, mesmo mal dada, era para ser sempre cumprida.

Como consequência, fui ainda castigado com o ter de fazer a guarda de honra ao General Spínola, na sua última deslocação a este aquartelamento, o que para mim na altura até foi mesmo uma honra.

Lembro-me que, no 2º semestre de 1973, era já grande a tensão entre as NT, principalmente por acontecimentos como os de Guileje e Guidaje (entre outros), factos dos quais íamos tomando conhecimento por relatos dos camaradas que pelo Depósito de Adidos iam passando.

O facto de o PAIGC possuir os mísseis terra-ar Strela, passou a ser um grande problema para a nossa força aérea. Também me recordo de Bissau começar então a ser cercada de arame farpado e da colocação de minas nalgumas zonas da sua periferia, e de nos ter sido comunicada a possibilidade de podermos vir a sofrer em qualquer altura um ataque por terra ou por ar, por também constar que o IN já possuía os famosos MiG.

Isto passou-se perto do final de Dezembro de 1973, altura em que terminei a minha comissão e regressei a Portugal.

Esclareciment posteriro do autor, em comentário a este poste P23397:

De: Augusto Silva Santos

Olá, Luís e restantes Camaradas!

A propósito desta republicação, importa agora esclarecer que o nosso camarada "Grelhas" não era Fuzileiro, como na altura me fizeram acreditar, mais sim Soldado de uma CCaç., que agora não consigo identificar. 

[O "Grelhas" pertencia à CCS/BCAÇ 2930, Catió, 1970/72, segundo informação do camarada Rolando Rodrigues, no Facebook da Tabanca Grande, 29/6/2022] 
 
Através do nosso camarada Albino Jorge Caldas, que pertenceu à CCaç 3518, "Marados de Gadamael", (1971/74) e, por mero acaso, vim a tomar conhecimento que o famoso "Grelhas", de seu nome próprio Armando, era taxista no Porto, tendo-me inclusive facultado o seu contacto telefónico.
 

[ No Facebook da Tabanca Grande, 29/6/2022, o Albino Jorge Caldas confirma que o "O Grelhas hoje é taxista na cidade do Porto, sempre em forma e pronto para umas confusões se necessário."]

Após animada conversa relembrando velhos tempos e peripécias, o nosso amigo Armando "Grelhas" acabou por me confidenciar que as "saídas" eram conseguidas através de uma chave falsa de uma porta não controlada, da qual era portador. Era também ele que se encarregava de elaborar a "escala" de saídas (poucos de cada vez, para não dar nas vistas).

Embora sem ter total conhecimento do "esquema" montado, confesso que na altura foi algo que, após duas situações menos agradáveis, me deixou mais confortável (se assim se pode considerar), pois o amigo "Grelhas" nunca mais permitiu que algum recluso faltasse aquando do render da guarda, sempre que eu estava de serviço.

Forte Abraço para todos!

29 de junho de 2022 às 22:29




Guiné > Bissau > Brá > Depósito de Adidos > Casa de Reclusão Militar > Março de 1973 > O "carcereiro" em alegre e franco convívio com alguns reclusos por ocasião de um aniversário. "O camarada ao fundo, de óculos e barba, é o Carlos Boto, já aqui referenciado por outros camaradas"... Vê-se que está de gravador na mão, recolhendo declarações de outro camarada, possivelmente o aniversariante e ambos... reclusos. O Carlos Boto deve seguido depois para Cabuca, onde animaria a rádio local "No Tera" (A nossa Terra)... Ainda hoje os seus camaradas desse tempo (2.ª CART/BART 6523, Cabuca, 1973/74) andam à procura do seu paradeiro...


Foto (e legenda): © Augusto Silva Santos (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 29 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23395: A(r)didos e mal pagos: histórias pícaras da nossa guerra (1): Luanda, Depósito de Adidos de Angola, o oficial de dia e o preso cabo-verdiano (Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880, 1972/74)

(**) Vd. poste de 22 de setembro de  2013 > Guiné 63/74 - P12070: Estórias dos Fidalgos de Jol (Augusto S. Santos) (14): A minha passagem pelo Depósito Geral de Adidos, em Brá

(***) Último poste da série > 13de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18313: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (48): Clube de Cabuca

(...) Na Guiné e, também, em teatro de guerra, se viveram grandes momentos de paródia guerreira, relatados na Rádio “No Tera”.

(...) O seu grande dinamizador foi o despromovido Carlos Boto, que, condenado disciplinarmente, cumpria a sua 3ª comissão de serviço.

Foi ele quem pediu ao Cap Vaz o aparelho de rádio RACAL que, devidamente afinado, passou a transmitir em onda curta 25 M, nas bandas dos 12.900 e 13.700 KHZ/s. Transmitia ainda em 31 M na banda dos 9.200, na onda marítima e na onda média.

A rádio era liderada por Carlos Boto (Produção, Direcção e Montagem), e contava com a colaboração de Zé Lopes (Discografia),Toni Fernandes (Sonoplastia), Arménio Ribeiro (Exteriores) e Victor Machado (Locução). (...)


Vd. também poste de 15 de março de  2012 > Guiné 63/74 - P9607: O PIFAS, de saudosa memória (9): Dois terços dos respondentes da nossa sondagem conheciam o programa e ouviam-no, com maior ou menor regularidade...

(...) No redescobrimento do PIFAS, cujos artigos tenho lido com alguma sofreguidão, pois sempre que possível lá o conseguíamos sintonizar, não posso deixar de recordar que também nós, no “buraco” que era Cabuca, também tínhamos uma estação de rádio, que com alguma dificuldade era ouvida em Bissau!

Na verdade, fruto de um engenhoso camarada, de nome CARLOS BOTO, com a excepcional ajuda do Fur Mil de Transmissões Henriques, também a 2ª Cart/Bart 6523 tinha a sua estação de rádio que transmitia em ONDAS CURTAS nas frequências 41m - na banda dos 8000 Khc/seg e 75m - na banda dos 4100 Khc/seg, que emitia directamente de Cabuca todos os dias das 19h30 às 23h00.

Tal só foi possível, graças a um generoso e eficaz trabalho de antenas, apoiadas num “Racal”, pelo pessoal das Transmissões, tendo-se então criado um estúdio improvisado, que com o recurso a um gravador de fitas e a um velho microfone difundia um excelente programa diário.

A estação chamava-se NO TERA. Tinha a discografia do Zé Lopes, a sonoplastia do Toni Fernandes, os exteriores do Arménio Ribeiro, a locução do Quim Fonseca (este vosso camarigo) do Victor Machado e esporadicamente do António Barbosa e a produção, montagem e apresentação estava a cargo do CARLOS BOTO.

Dos programas emitidos, relembro os seguintes :

- Publicidade em barda ;
- Serviço noticioso ;
- Charlas Linguísticas ;
- O folclore da tua terra ;
- Espectáculos ao Vivo ;
- Concursos surpresa e,
- MÚSICA NA PICADA, entre outros.

E, como nota de rodapé, gostaria que algum dos Camarigos, designadamente os que ainda estão hoje ligados á rádio , nos ajudassem a descobrir o CARLOS BOTO, já que todas as nossas diligências para o encontrarmos, se têm mostrado infrutíferas.

Finalmente e com a promessa de voltar à carga sobre a nossa Rádio NO TERA, gostaria de referir ainda um episódio que nos encheu de alegria, já no distante ano de 1973, quando ao ouvirmos o PIFAS, a nossa rádio foi referida como tendo sido audível em Bissau! O pessoal rejubilou de alegria e sentimo-nos então muito mais motivados para melhorar os nossos programas, já que corríamos o risco de sermos ouvidos, quem sabe, pelas bandas do QG…!

(...) Ricardo Figueiredo (ex-Fur Mil da 2.ª CART/BART 6523, Cabuca, 1973/74) (...)

Guiné 61/74 - P23396: Historiografia da presença portuguesa em África (323): Dados sobre a Guiné no início da década de 1920, trabalho de um aluno da Escola Colonial (1850-1925) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
Para saber um pouco mais sobre o aparecimento e funcionamento da Escola Colonial que teve a sua origem na Sociedade de Geografia de Lisboa em 1906 recomenda-se a leitura do artigo publicado em TECOP - Textos e Contextos do Orientalismo Português. A Escola tinha o seu anuário e qualquer estudioso da Guiné poderá confrontar a importância que ela tinha nos estudos dos futuros administradores e outros quadros coloniais, recorde-se que o estudo das línguas nativas era nesta escola a prioridade das prioridades. O que me parece logo curioso na observação do aluno é ele querer privilegiar a rede hidrográfica, isto a um tempo em que as escolas coloniais introduziam a discussão nos caminhos-de-ferro e da ampliação da rede de estradas macadamizadas. Um outro aspeto que me parece da maior utilidade e que se depreende da leitura deste trabalho escolar é o entusiasmo quanto às potencialidades guineenses, o que está em conformidade com os diferentes estudos feitos na época. Não é percetível a queda da importância da borracha, mas sabemos que a I Guerra Mundial foi determinante para o crescimento da cultura do arroz, e assim será até à década de 1950.

Um abraço do
Mário


Dados sobre a Guiné no início da década de 1920, trabalho de um aluno da Escola Colonial

Mário Beja Santos

A Escola Colonial nasceu em 1906 na dependência da Sociedade de Geografia de Lisboa, era a primeira tentativa séria de formar quadros da administração e conhecedores das múltiplas línguas nativas faladas nas parcelas do Império. Quem lê o anuário da Escola Colonial encontrará as caraterísticas dos diferentes sistemas de ensino, os seus conteúdos e, curiosamente, trabalhos dos alunos. A folhear o Anuário de 1923-1924 encontrei um trabalho de um aluno sobre a Guiné, é óbvio que quem o elaborou consultou estatísticas mas não esconde o seu entusiasmo quanto às potencialidades da colónia.

Depois de dizer que a Guiné está a cinco ou seis dias de viagem da metrópole e que está a conhecer melhores indicadores de desenvolvimento, refere os seus principais portos: Bolama, Bissau, Cacheu, Cacine e Bafatá, adiantando que os principais rios que constituem a rede fluvial são Cacheu, Mansoa, Geba, Corubal e Compony (? incompreensível a referência, este rio situa-se no que é hoje a Guiné Conacri, à época fazia parte da Guiné Francesa). O porto de Bissau já era o de maior movimento, tinha a sua importância por fazer o comércio proveniente dos Bijagós e do Rio Grande de Buba. Ponto curioso é o aluno defender a rede hidrográfica em detrimento dos transportes terrestres, na época vários institutos coloniais já davam primazia à importância do transporte terrestre, e como pude verificar quando estudei a correspondência do BNU da Guiné, os comerciantes defensores da manutenção da capital em Bolama propunham uma rede viária por toda a colónia, que assim privilegiaria o tráfego comercial de Bolama sobre Bissau. Pois bem, o aluno apostava no desenvolvimento da Guiné pela sua rede hidrográfica navegável por pequenos vapores e lanchas: “Limpando e melhorando alguns dos canais e estudando melhor a hidrografia, poucas serão as estradas a abrir como grandes artérias de comércio, e essas mesmas quase se limitam ao oriente da província, na região entre o Corubal e o Geba”.

E refere as riquezas da agricultura, o seu solo ubérrimo que produz mancarra, arroz, cana-sacarina, algodão, tabaco, cola, borracha, magníficos pastos, muita pesca, ouro (?), no entanto, impunham-se trabalhos, tais como, a balizagem das barras do Cacheu, do Canal de Orango e do Cacine, completando as dos de Geba e Arcas, colocando faróis na ponta oeste de Bolama e no porto de Bissau, intensificando o alumiamento da costa. E de seguida o aluno lança-se nos números para mostrar a crescente importância do impor, expor e do movimento comercial, com exceção dos anos 1914 e 1915, início da guerra. Os produtos mais exportados eram o arroz, o amendoim, o coconote, a borracha, a cera e os couros secos. Os países-destino das exportações eram principalmente Portugal, Espanha, França, Holanda e Reino Unido; a Marinha que mais frequentava a colónia era a alemã, seguindo-se a portuguesa, a francesa, a grega e a britânica. As importações de Portugal tinham crescido significativamente, mas o aluno dizia abertamente que Portugal ainda não tinha no comércio da colónia o lugar que lhe devia pertencer.

E dá sugestões:
“Seria desejável que o comércio e indústria nacionais se abalançassem à concorrência com o comércio estrangeiro no fornecimento de tecidos de algodão aos indígenas tendo, como têm, por si, as vantagens provenientes de um menor frete, dada a proximidade que existe entre a colónia e a metrópole. O facto de a indústria dos algodões ser a primeira, pela sua importância, entre as indústrias nacionais, gozando de uma enorme proteção pautal, devia impô-la à concorrência das estrangeiras. Mas infelizmente não se dá isso ainda. Nós ainda vemos a França e a Inglaterra venderem aquilo que nós, por uma questão de interesse e de amor próprio, devíamos procurar ser os únicos a vender.
Antes da guerra, a Guiné importava, como a metrópole o fazia, quase todo o arroz que necessitava para o seu consumo, importância essa que orçava por uns 60 a 70 contos anuais. Com a guerra, a Guiné com a falta de transportes, ficou na situação de suportar necessidades e quase a fome com a falta desse produto, que constitui a base da sua alimentação, ou na contingência de ter de cultivar. Assim fez; e optando por esta solução, de tal forma se dedicou a esta cultura que, tendo importado 70 contos de arroz em 1914, em 1915 somente importou 21 contos e em 1916 somente 697 escudos; hoje possui o arroz para o seu consumo e com pouco de boa-vontade esta colónia poderia ser a fornecedora da metrópole. Apesar de a Guiné ter terrenos esplêndidos para a cultura do arroz, aonde poderia ser feita uma cultura intensiva e próspera, a metrópole vê-se na necessidade de importar ainda, anualmente, 20 milhões de quilos do estrangeiro! Com a carne dá-se outro tanto. É Portugal um dos países da Europa aonde a carne é mais cara e aonde a sua população menos quantidade come, devido ao seu elevado preço. Pois na Guiné, a cinco dias de viagem da metrópole, aonde ela não falta e as pastagens são abundantíssimas, e aonde os indígenas têm magníficas aptidões para a criação de gados, desde 1916, deixaram-se morrer devido a uma epizootia pneumónica, mais de 100 mil cabeças de gado, em virtude de não se ter mandado para lá um veterinário e respetivo pessoal competente para combater a epidemia, como a colónia insistentemente pediu.
Com a borracha dá-se facto idêntico; há no sertão milhares de toneladas; pois o indígena não a extrai ou, se a extrai, fá-lo por forma a perder-se a maior parte e a desvalorizar-se a que se aproveita. Esta borracha vai para a Inglaterra e depois nós importamo-la!”
.

No termo do seu trabalho, o aluno não identificado lista as medidas que julga indispensáveis para incrementar o desenvolvimento da colónia: intensificar as carreiras marítimas; melhorar a iluminação da costa; apetrechamento dos portos de modo a permitir uma rápida vazão dos produtos; procurar desenvolver nos territórios de leste a criação de gados; ensinar aos indígenas os modernos processos de cultura dos produtos existentes na colónia; completar o estudo da sua hidrografia; manter uma flotilha de pequenos vapores para passageiros e carga entre os portos da província; intensificação de comunicações com Cabo Verde, aumentando assim as suas relações comerciais.

Aqui se deixa o olhar de um aluno da escola colonial há cerca de um século.
A Sociedade de Geografia de Lisboa, gravura de 1901
Imagem antiga do cais do Pidjiquiti
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23378: Historiografia da presença portuguesa em África (322): A Guiné e as Campanhas Coloniais (1850-1925) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23395: A(r)didos e mal pagos: histórias pícaras da nossa guerra (1): Luanda, Depósito de Adidos de Angola, o oficial de dia e o preso cabo-verdiano (Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880, 1972/74)

1. Comentário ao poste P23391 (*), que o nosso editor LG considerou como uma "verdadeira história pícara" e, como tal, merecedora de ser publicada, em poste, na montra principal do nosso blogue. 

 Afinal, a nossa guerra também passou por aqui, pelas Ruas Escuras, os Bairros Altos, os Cais do Sodré, as Ilhas de Luanda, os Cupelons, os Bataclãs, os Depósitos de Adidos... , sítios por onde passou muita "malandragem" eonde também também havia "minas & armadilhas".

Histórias de "a(r)didos e mal pagos", pode ser um bom título para uma nova série, que hoje inauguramos... com uma história deliciosa, com princípio, meio e fim,  do nosso camarada Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535 (Zemba, Angola, 1972/74), membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780. História deliciosa, contendo também uma profunda lição de humanidade e de solidariedade.

E, a propósito, recorde-se aqui dois dos nossos mestres do pícaro, o saudoso Jorge Cabral e o "bandalho" do Zé Ferreira da Silva. Iremos repescar um ou outro poste, já publicado, destes e doutros autores,


A(r)didos e mal pagos: histórias pícaras da nossa guerra (1): Luanda, Depósito de Adidos de Angola, o oficial de dia e o preso cabo-verdiano 

por Fernando de Sousa Ribeiro 


Os militares que se deslocassem a título individual de e para Luanda e tivessem que passar alguns dias na cidade, fosse em serviço, em consultas no Hospital Militar ou em rendição individual, ficavam no Depósito de Adidos de Angola (DAA), que era um quartel situado próximo do aeroporto de Luanda.

Não havia qualquer semelhança entre o Depósito de Adidos de Angola e o Campo Militar do Grafanil; o DAA era um quartel e o Grafanil era uma espelunca. Quando passei um mês em Luanda em consultas externas de Psiquiatria, foi no DAA que fiquei colocado. Até fiz lá um serviço de oficial de dia.

Um dia, um capitão pertencente aos quadros do Depósito de Adidos de Angola comunicou-me que eu teria que fazer um serviço de oficial de dia na unidade. Eu respondi-lhe:

— Se tiver que fazer o serviço, faço, mas olhe que eu estou aqui em Luanda a frequentar as consultas de Psiquiatria. Não sei se estou em condições mentais de desempenhar devidamente as funções.

Disse-me o capitão:

— Não ficou internado, pois não? Então está em condições de fazer o serviço.

E acrescentou, em tom apaziguador:

— Não se preocupe, porque não vai acontecer nada. Aqui nunca acontece nada. Isto não é uma unidade operacional, é um simples lugar de passagem. O que você tem que fazer é tomar nota de quem é que chega para cá ficar e quem é que se vai embora, a fim de mantermos um registo permanentemente atualizado de quem se encontra cá colocado e quem deixou de estar. Mais nada. Você até se vai aborrecer. Aqui nunca aconteceu nada e não vai ser agora que vai acontecer.

Nunca tinha acontecido nada, mas eu quase fiz que acontecesse, graças ao meu talento para me meter em sarilhos.

Estava eu sentado à secretária de oficial de dia e com a cabeça na lua quando, a meio da manhã, chegou uma escolta com um soldado, preso e algemado, para ser metido na prisão do quartel. Recebi o preso, assinei a papelada que tinha que assinar, os militares da escolta retiraram as algemas ao preso e foram-se embora. Fiquei com o preso à minha frente.

Dei uma vista de olhos pelos papéis e verifiquei que o preso tinha acabado de chegar da Metrópole, mas era cabo-verdiano. Perguntei-lhe:

— O que foi que aconteceu para você estar aqui nesta situação?

Ele respondeu-me que era de Cabo Verde, mas vivia na Metrópole e, por isso, foi incorporado no serviço militar na Metrópole. Depois de ter feito a recruta e a especialidade, foi colocado no RAP 2, em Vila Nova de Gaia, até que foi mobilizado para Angola em rendição individual.

Para se despedir da Metrópole, resolveu ir às "meninas" da Rua Escura, no Porto, apesar de estar sem dinheiro. Quando a profissional que o atendeu descobriu, no fim do serviço, que ele não lhe iria pagar, saiu para a rua e fez tamanho escarcéu, dizendo que não estava ali para trabalhar de graça, que apareceu o chulo dela, seguindo-se uma cena de pancadaria entre o chulo e o cabo-verdiano. Entretanto alguém chamou a Polícia Militar, que levou o cabo-verdiano sob detenção. E ali estava ele, diante de mim, depois de ter feito a viagem de avião de Lisboa para Luanda sempre vigiado e algemado.

Assim que me contou a sua história, o cabo-verdiano pediu-me, com todo o descaramento:

— Meu alferes, eu preciso de contactar uma pessoa que está aqui em Luanda, para que saiba que eu estou cá. O meu alferes dá-me licença que eu saia? Eu prometo que volto. Prometo. É só falar com a pessoa e volto assim que puder. Prometo.

Eu disse-lhe que sim!

Logo que se foi embora um soldado que eu não conhecia de lado nenhum, para falar com uma pessoa que eu não sabia quem era e num lugar que ele não me revelou qual era, é que me dei conta da asneira que tinha acabado de cometer. Pensei: «Bonito serviço! Então eu deixo sair livre como um passarinho um preso, que momentos antes estava algemado e sob escolta?! E se ele não voltar, o que é que me vai acontecer? Isto de nomearem um maluco para oficial de dia só podia dar mau resultado».

Não deu mau resultado. Por volta das duas horas da tarde, o cabo-verdiano apareceu-me à porta do gabinete, dizendo:

— Meu alferes, já me pode prender.

Dei um suspiro de alívio que se deve ter ouvido na cidade inteira.


Fernando de Sousa Ribeiro, 
ex-alferes miliciano da CCaç 3535 / BCaç 3880, Angola 1972-74

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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 28 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23391: A galeria dos meus heróis: uma história pícara de três “a(r)didos” - II (e última) Parte (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P23394: Parabéns a você (2079): Santos Oliveira, ex-2.º Sarg Mil Armas Pesadas Inf do Pel Mort Ind 912 (Como, Cufar e Tite, 1964/66)

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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23377: Parabéns a você (2078): Cor Art Ref António José P. Costa (ex-Alf Art da CCAÇ 1692/BART 1914, Guiné, 1968/69) (ex-Cap Art CMDT da CART 3494/BART 3873 e da CART 3567, Guiné, 1972/74); João Crisóstomo, ex-Alf Mil da CCAÇ 1439 (Guiné, 1965/67); e Júlio Martins Pereira, ex-Soldado TRMS da CCAÇ 1439 (Guiné, 1965/67)

terça-feira, 28 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23393: Blogoterapia (302): Uma história verídica com o seu quê de humano (José Colaço, ex-Soldado TRMS da CCAÇ 557)

1. Mensagem enviada pelo nosso camarada José Colaço, ex-Sold TRMS da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), com data de 26 de Junho de 2022, trazendo até nós...

Uma história verídica com o seu quê de humano

Eu no Cachil, Ilha do Como, na Guiné, a tratar de dois tecelões que tinham caído do ninho numa noite de tempestade, do embondeiro,  que quase tinha mais ninhos que folhas, todos aqueles pontos mais escuros são ninhos. Ainda bebés, nem sequer abriam os olhos, por esse motivo quando viram a luz do dia eu era o seu querido progenitor. O que era difícil compreender é que eles não estavam em cativeiro, gaiola fechada, iam ter com os outros pássaros e à hora para comer e dormir regressavam à gaiola que tinha sempre a porta aberta.

"Batizeios" por "Xico 1" e "Xico 2". O Xico 2 não chegou a sair do Cachil, adoeceu e morreu.
O Xico 1, que a seguir à morte do irmão passou a ser só Xico, veio comigo para Bissau e foi para Bafatá onde teve um fim triste, um gato vagabundo filou-o e foi um adeus ao Xico.

O Xico tinha um óbi, rasgar papéis, prendia-os com uma pata e era um ver se te avias, eu pessoalmente tinha que ter muito cuidado com as mensagens que recebia via rádio para o Xico não fazer a sua tradução.
Também tinha muitas participações de camaradas que vinham ter comigo a fazer "queixa":
- Colaço o teu "pardal" tecelão rasgou-me o aerograma.

O sacana do passarinho era maroto, quando nós estávamos a escrever punha-se à espreita e logo que nós nos distraíamos dava uma bicada no papel e lá ia ele todo feliz com um bocadinho de papel no bico, voando para longe.

Nota: - Publiquei esta história na minha página do facebook e o Virgínio Briote incentivou-me que a enviasse para o blogue, porque na guerra também se passa o oposto e com mais gosto. Se vos parecer que deve ocupar um espaço no blogue, publiquem.
José Colaço

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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23025: Blogoterapia (301): E a montanha pariu um rato... (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872)

Guiné 61/74 - P23392: Blogpoesia (769): Nomes atribuídos às Missões e Operações no TO da Guiné, por Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845


1. Mensagem do nosso camarada Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70) com data de 24 de Junho de 2022:

Bom dia Carlos Vinhal
Há quinze dias enviei-te este mesmo artigo que pelos vistos não foi recebido.
Já há muito tempo foi publicado OPERAÇÕES E MISSÕES, mas pelo comentário lembrança do Luís Graça, e fazendo referência às mais Missões, aqui te envio agora MISSÕES e OPERAÇÕES, simplesmente para não ser igual.
Abraços para todos que vão à Tabanca Grande em especial aos seus chefes.
Albino Silva



MISSÕES E OPERAÇÕES

Nomes atribuidos a Missões e Operações

Já existe OPERAÇÕES E MISSÕES

Na nossa Tabanca Grande
eu sei tudo o que se passa
e até vi num comentário
que escreveu o Luís Graça.

De operações na Guiné
o Luís Graça me falou
e até nomes de Missões
também o Luís me mostrou.

Alguns nomes estranhos
mas havia outros mais
em Operações e Missões
com nomes originais.

Pois meu caro Luís Graça
gostei e vou lembrar
escrevendo aqui os nomes
para a malta recordar.

Como sabes Luís Graça
Operações e Missões escrevi
destes nomes que comentaste
e que muito bem eu os li.

Foram milhares de Operações
como dizes e muito bem
pois também não vou esquecer
que andei em muitas também.

Já escrevi para a Tabanca
Operações e Missões
agora volto a escrever
mas Missões e Operações.

É assim que vou começar
no meu jeito de escrever
porque penso com certeza
que muita malta vai ler.

Aberragem Candente
Adónis Ametista Real
Aquiles e Avante
E ainda Amílcar Cabral.

Em Missões também era
Alvor e até Andá
até Boinas Destemidas
também andavam por lá.

Borboleta Destemida
era mais uma Missão
Estrela Telúrica Faro
Boa Farpa e Gavião.

Havia a Baioneta Dourada
mais uma operação igual
como era a Barracuda
e o Balanço Final.

Bate Dentro Binafa
Belo Dia e Castor
Yungfrau e Xerês
foi na Guiné sim senhor.

Panóplia Rolls Royce
Bodião Decidido Cajado
Chibata e até Ciclone
E Caju por todo o lado.

Bola de Fogo Cassum
Dinossauro Preto que era
Derrubante e Diana
pois era a Dura Espera.

Boga Destemida e Gira
mesmo a Quadrilha Sagaz
Ostra Amarga e Papaia
que comia cá o rapaz.

Valquíria Verga Latina
Pedra Rija e Tridente
Tigre Vadio e Vaca
Pato Rufia e Semente.

Escudo Negro e Garlopa
RatoTraquinas então
Safra Única e Vénus
em mais uma Missão.

Trampolim Mágico Vermute
Navalha Polida na lista
Jaguar Vermelho Vulcano
Nada Consta Macaréu à Vista.

Quebra Vento Pirilampo
Ganaio Gato Zangado
Grande Empresa Tesoura
em Missões por todo o lado.

Ginja Verde Bolo Rei
Cabeça Rapada Cacau
Irã Jacaré Leopardo
aquilo era mesmo mau.

Muralha Quimérica Razia
Neve Gelada que era
em todas aquelas Missões
na Guiné naquela terra.

Nó Gordio Mamute Doido
Onça Parda Nebulosa
em Missões feita por nós
e sempre muitas perigosas.

Golo Grande Buraco
Grifo Mabecos Bravos
Pato Azul nunca vi
pois na Guiné eram raros.

Meia Onça Maimuna
Lança Gorro Sobreiro
em descanso muitas vezes
bem na sombra de um Mangueiro.

Grande Rio Relance
Saturno e Realeza
Grande Colheita que era
pela Guiné com certeza.

Renascença e Retorno
Garrote Jove Alinhada
Jigajoga Inquietar
até mesmo Lança Afiada.

Marte e o Mar Verde
O Garrote e tudo mais
Invisível eram os Roncos
em Missões eram iguais.

Havia também o Hálito
E Guarida também li
em nomes que decorei
e que aqui escrevi.

São muitos aqui os nomes
os que o Luís escreveu
em versos vos apresento
pois só assim escrevo eu.

Manga de Ronco Avintes
Abertura e Aparição
Bálsamo e Acidez
em mais uma Operação.

Galo Loiro e Amizade
Descaramento e Marfim
Vampiros Raivosos Abraço
em Missões na Guiné era assim.

Almirante Aerograma
Velas Acesas Vaidade
Abelhudo Bassarel
e a Grande Amizade.

Andorra Vamos Ver
Acácia e Atirador
Grandes Leopardos Abafão
Abalada Grande Amor

Arriaga Adesivo Vamos Ver
também vamos Acariciar
Zebra Elegante Alcácer
Alecrim aos Molhos Adoçar.

E foram estes os nomes
que assim quis escrever
para enviar à Tabanca
para toda a malta ler.

Escrevi isto com gosto
pois gosto assim escrever
falta só saber agora
o que o Luís vai dizer.

Mas não é só o Luís
porque sei que vai dizer bem
vai para o Carlos Vinhal
e para todos também.

Como sempre sou o Albino Silva
Escrevendo sem cansaço
assim para a Tabanca Grande
mando a todos um Abraço.

FIM

Albino Silva
01100467

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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23386: Blogpoesia (768): Que maldita pandemia, por Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845

Guiné 61/74 - P23391: A galeria dos meus heróis (46): uma história pícara de três “a(r)didos” - II (e última) Parte (Luís Graça)



Guiné > Região de Bissau > Brá > Depósito de Adidos > Junho de 1969 > O Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69), na sua função de Oficial de Dia. "Normalmente fazia as minhas rondas na minha própria motorizada, quando não tinha jipe disponível, uma vez que a área a percorrer era grande. Tinha uma extensão à volta de 1000 metros, de frente para a estrada, e uma quantidade indeterminada de instalações militares. A minha motorizada era uma Honda Azul, de 50 cc, que depois, quando regressei, deixei por lá abandonada. Pode observar-se a existência de valas abertas fundas, para escoamento das chuvadas diluvianas, quando apareciam. Em finais dos anos 40, havia aqui um campo de aviação."

Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné, região de Bafatá. Contuboel,
junho de 1969: o autor



A galeria dos meus
heróis: uma história
pícara de três
“a(r)didos” - II 
(e última) Parte 

por Luís Graça (*)


7. Tirando eventualmente um ou outro serviço, que eu não sei se chegaram a fazer (como “sargento de dia” ou “polícia de unidade”) e o facto de dormirem mal e comerem ainda pior, no Depósito Geral de Adidos (DGA), na Calçada da Ajuda  (só o termo “depósito” era um “achado”!), os nossos três “a(r)didos”, o Parente, o "Matosinhos" e o "Algarvio"  não se podiam queixar: afinal tiveram um prolongamento inesperado das férias (se bem que curtas, de duas ou três semanas), em Lisboa, enquanto aguardavam o embarque no “cruzeiro para a África de todos os sonhos” (de acordo com o prospeto da “agência de viagens” da tropa…).

Podiam ter ficado em casa de família ou numa pensão, mas por razão ou outra (e sobretudo "financeira"), optaram pela incomodidade dos Adidos, para mais tratando de um quartel que, naquele tempo,  ficava um bocado "fora de mão", na Ajuda.
 
Como compensação pelo sacrifício, "deu para beber uns copos” bem como para uma ou outra escapadela aos cinemas da Baixa e aos bares do Cais do Sodré, que estavam então na moda (e continuaram a estar até hoje, sobretudo com a criação da rua pedonal, a Rua Cor de Rosa, há cerca de anos atrás). Ficara  até prometida uma “visita secreta” ao Bairro Alto, que o “Matosinhos” e o “Algarvio” mostraram alguma curiosidade em conhecer… Por uma razão ou outra, o Parente ainda não os tinha levado lá, mas a surpresa ficaria guardada para a véspera do dia do embarque.

No regresso ao DGA, apanhavam o elétrico, o autocarro ou, às vezes, o comboio até Belém,  e subiam depois a Calçada da Ajuda, a pé… Tinham que entrar até à meia-noite, naquele tempo o “Matosinhos” e o “Algarvio” ainda eram 1ºs cabos milicianos mas já alinhavam nas escalas de serviço dos sargentos. Com a guerra, havia falta de sargentos e oficiais, o que era colmatado com o recurso aos milicianos. Mão de obra “escrava”, diga-se de passagen, paga a 90 escudos por mês (o valor do pré de então…), equivalente hoje a 28 euros…

− Mas também se ganha mal e porcamente na vida civil – contemporizava o Parente. – Agora, quando voltarem da Guiné, vivos e inteiros, vocês já poderão comprar carro, montar casa e casar!

− Não me f…! – interrompeu o “Matosinhos”. – Não haverá dinheiro que pague o sacrifício da nossa juventude… A madrasta da Pátria paga-nos para matar e para morrer…

− Não sejas tão panfletário, já pareces o Manuel Alegre aos microfones da rádio Argel… A maior parte da malta vai ter as férias que nunca sonhou ter!... Férias, ainda por cima, pagas!... – ironizou o sargento.

− Férias ?!...

− Olha, eu não quero outra vida. Já vou na 3ª comissão… É verdade que também não sei...  fazer mais nada!

− Grande malandro, tinhas dado um belo padre – ouviu-se a voz do “Algarvio”, do fundo do cadeirão.

− Pois era, mas o sacana do falangista f… o nosso Parente! − comentou o “Matosinhos”.

− Ele é que foi ingénuo. Nunca ouviste dizer: “Em Roma sê romano” ?!... Tinha obrigação de conhecer as regras da casa, foi pobre e mal agradecido − arrematou o "Algarvio", seco e contundente.


8. A cena mais pícara destes três “a(r)didos” foi quando o Parente convidou os outros dois para “irem às meninas” (sic) na véspera do embarque no “Niassa”. O “Matosinhos” e o “Algarvio” entreolharam-se, com um certo olhar de espanto, e terão respondido ao desafio, com uma pitada de humor negro:

− E porque não ?!...  Só Deus sabe se voltaremos a casa, vivos e inteiros!
 
− Sobretudo inteiros, com os ditos cujos “en su situ”! – atalhou, malicioso, o sargento.

Quase instintivamente, o "Matosinhos"  levou as mãos ao baixo ventre para se certificar que ainda lá estavam, inteiros, os “tintins”…

O Parente não conseguiu deixar de soltar uma sonora gargalhada:

− Façam de conta que é uma despedida de solteiro!... Mas primeiro vamos beber uns copos. E eu pago a primeira rodada!

Como estava previsto o navio largar amarras às 11h00 da manhã, do dia 24 de maio de 1969, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, o Parente não quis arriscar deixar a surpresa para o próprio dia do embarque, o que teria tido muito mais "pica"... 

No fim da tarde do dia anterior, sexta-feira meteram-se num táxi, e “ala, moço, que se faz tarde”, a caminho do Bairro Alto. (As malas já haviam seguido, entretanto numa viatura dos Adidos, e, mais importante, haviam conseguido  dispensa de pernoita, seguindo na manhã do  outro dia diretamente para o "Niassa", como eu, de resto, que vim, durante toda a noite, em comboio, do Campo Militar de Santa Margarida para o Cais da Rocha Conde de Óbidos.)

Tinham, pois,  a noite toda por conta deles,  suspirava, feliz, o safado do sargento. Mas antes haveria que celebrar o evento com uma mariscada, na cervejaria "Trindade". No dia seguinte era sábado e nessa altura ainda se trabalhava aos sábados, e o Bairro Alto deveria estar animado de gente laboriosa. (É bom lembrar que a chamada semana inglesa, as 45 horas de trabalho semanal, com um dia e meio de descanso em cada sete, é uma conquista dos trabalhadores do comércio portugueses, só conseguida justamemte nesse ano, em 1969.)

A “Sissi”, a “Rita Pavone” e a “Mudinha” foram as três mulheres com quem os nossos “a(r)didos” passaram essa noite  de 23 para 24 de maio de 1969. Na cama, como eles depois me contaram. Ou melhor, quem me 
contou essa cena, digna de figurar no melhor livro do nosso humor de caserna, foi o “Algarvio”, que era, dos três, o mais sensato, o mais discreto, o mais sóbrio, o melhor observador e quiçá o  melhor contador de histórias que eu conheci …

Os nomes de guerra das três mulheres podem não ser estes, mas para o caso também não  é  relevante. A “Sissi” era a patroa, tinha uma “casa de bonecas”,  perto da “Princesa da Atalaia” (uma tasca que eu virei a conhecer mais tarde, dez anos depois. em 1979)... Com a  extinção das casas de passe, em 1963, fora a maneira da "Sissi" de contornar a lei e manter o negócio: alugava quartos a raparigas ("que vinham da província").  Com ela trabalhavam a “Rita Pavone” e a “Mudinha” (assim conhecida por ser muda) e, ocasionalmente, mais algumas que ali faziam o seu "biscate".

Como era habitual terem clientes na sexta feira à noite, o Parente tratou de tudo, previamente e reservou três quartos... Imagine o leitor o que era o Bairro Alto de há mais de 50 anos atrás, ainda com prostituição de rua (tolerada, se bem que ilegal).

A “Sissi”, como velha conhecida do Parente, combinou com as outras duas raparigas e facilitou as apresentações. O prédio  compunha-se de rés-de-chão (ainda com os famosos “aventais de pau”, as "meias-portas" onde no passado as mulheres se mostravam, debruçadas para a rua), primeiro andar e águas furtadas. 

 Era uma construção ou reconstrução oitocentista, de pé direito alto. As divisões eram minúsculas, mal cabendo nos quartos uma cama, uma mesinha de cabeceira e um pechiché, com um espelho (onde as raparigas tinham a tralha para a maquilhagem, os cosméticos, os pós de arroz, os batons, os vernizes). O rés-de-chão, compunha-se de um pequeno vestíbulo, com um reprodução  do quadro a óleo do José Malhoa, " O Fado" (1910), na parede;  uma  pequeno  cozinha, a casa de banho (reduzida a um retrete, lavatório e pouco mais), um roupeiro e ainda um saleta de costura. (Oficialmente, a "Sissi" era costureira, e tinha os impostos em dia.)

Havia ainda umas águas furtadas, acrescentava o "Algarvio", meticuloso na reconstituição da cena e do cenário que fez para mim a bordo do "Niassa"... Ali a “Sissi” tinha a sua “suite” (sic)  e um pequeno salão onde recebia os “hóspedes” mais íntimos… (O Parente achava que ela beneficiava de alguma proteção da gente do poder.)

− O teu gajo hoje está por aí ?! – interrogou, cauteloso, o Parente.

− Já não preciso de “guarda-costas” e muito menos de “Júlios” – respondeu, seca mas orgulhosa, a “Sissi”. 

O sargento ficou a “matar saudades” com a sua antiga “chavala” de há uns atrás. O “Matosinhos” e o “Algarvio” tiraram à sorte quem ficava com as outras duas: é que uma era mesmo “muda”…

− Muda, mas felizmente, não é cega nem é surda – encolheu os ombros, o “Matosinhos”, resignado com a sua (má) sorte, ele que logo simpatizara com a “Rita Pavone”, que falava pelos cotovelos, e tinha umas lindas sardas, que lhe fazia lembrar a sua primeira namorada do tempo de escola.

Fiquei depois a saber, pelo relato do “Algarvio”, que a “Mudinha” fora adotada pela “Sissi” como “afilhada”… Tinha sido violado, ao que se dizia,  pelo padrasto, em Setúbal, onde vivia e estudava no liceu. O gajo era uma granjola da máfia da estiva. A rapariga acabou por cair na “má vida” e veio para Lisboa, "por portas e travessas". A ”Sissi” acolheu-a.

Mas, afinal, quem mais se divertiu, dos três “a(r)didos”, nesse sexta feira à noite  inesquecível, foi o “Matosinhos”. A “Mudinha” era uma verdadeira figura dos contos das Mil e Uma Noites, capaz de satisfazer as mais exigentes fantasias eróticas dos “clientes”. A sua “especialidade” era exemplificar, ao vivo, algumas das mais ousadas e acrobáticas  posições do Kama Sutra…

E tinha um inusitado sentido de humor negro. Quando convidou o “Matosinhos” a fazer o “69”, este recusou, com alguma brusquidão e irritação, típica do macho latino… Ela então “rogou-lhe a sua famigerada maldição” (sic), um delicioso aforismo que é uma obra-prima do linguajar do "bas-fond":

− Quem não faz sessenta e nove, não chega… aos cem!

 Mesmo assim o tempo foi curto para tantas “lições”... O "Matosinhos" fez questão de mandar vir "champagne de Sacavém" e 
o par trocou de galhardetes e de endereços postais. A rapariga, sabendo que ele, “tadinho", ia para o "ultramar”, fez-lhe até um desconto e não lhe levou nada pelas “aulas extras”. O “Matosinhos” prometeu-lhe que escreveria da Guiné, e que, nas férias, lhe traria um colar de missangas, conforme pedido expresso da rapariga… Ela comunicava através de notas, a lápis, num caderno escolar, a par da linguagem gestual.

Não sei se o “Matosinhos” chegou a vir de férias. E se, muito menos, cumpriu o prometido,    voltar à Rua da Atalaia com o colar de missangas  e acabar o resto das aulas... enquanto a sua namorada o esperava, ansiosa, a 300 km mais a norte... (Nem nunca mais poderei saber se ele chegou a casar com ela, a menos que me dê sinais de vida, o que me parece pouco provável.)


 9.  Ainda foram, para a despedida,  ao cacau da Ribeira, no Cais do Sodré,  antes de rumarem diretos ao Cais da Rocha Conde de Óbidos, a pé. Já estavam os três com um grãozinho na asa, ou pelo menos eufóricos, quando passaram pelas senhoras do Movimento Nacional Feminino, e receberam o maço de cigarros “Três Vintes” e a medalhinha de Nossa Senhora de Fátima a que tinham direito.

Mas, logo à entrada do “Niassa”, junto às escadas que levavam ao portaló, ia havendo uma “bronca de todo o tamanho" (sic), com o “Matosinhos” e uma das “meninas da Cilinha”. Ele depois explicou-se, já mais calmo, no bar do navio: o que mais o irritara, fora o sorriso piedoso, cínico, amarelo, de uma delas, por sinal a que parecia mais nova, mas já "trintona, balzaquiana, com ar de solteirona" (sic)...

− A fulana estava a pedi-las! − desculpou-se ele.

O “Matosinhos” vinha eufórico, mas ali, no cais, ao cair na realidade e ao ser confrontado com o seu imperioso dever como militar, que era embarcar,  rumar  à Guiné, pegar na G3, ir para o mato e  defender a Pátria…, teve de repente uma “tirada infeliz” (reconheceria mais tarde), quando a senhora do MNF lhe “desejou boa sorte e a bênção de Nossa Senhora de Fátima” (sic)…

Ele não sabe o que é que  lhe deu na veneta..., mas  "passou-se dos carretos” (sic) e respondeu-lhe ao ouvido, para que as outras, ali à volta,  não dessem conta e armassem um escarcéu:

− Em matéria de santas, gosto mais da minha mãe e da senhora de Matosinhos, a nossa padroeira… E a si, minha querida senhora, que não deve ser santa mas ainda tem um lindo palminho de cara, e um belo par de marmelos,  eu dava-lhe mas era uma valente trancada patriótica!… Mas venho do Bairro Alto, de papo cheio, e agora a Pátria chama-me, e outros valores mais altos se 'alevantam'…

Não sei se a senhora percebeu patavinha do palavreado, já meio empastelado,  do “Matosinhos”… Só deve ter reagido à referência ao mal afamado Bairro Alto… Corou, Ficou afogueada,  e mal teve tempo de balbuciar:

− Ai, senhor furriel!... Mas que pessoa tão inconveniente e mal educada!…

E terá feito um gesto de pedido de socorro ao piquete da Polícia Militar que estava à entrada do cais, controlando os civis, de costas para o navio, pelo que os PM não terão sequer assistido à cena…

O Parente, felino,  é que não teve com meias medidas… À cautela, dei logo um valente puxão ao colarinho do "Matosinhos", arrastando-o pelas escadas acima até ao portaló!... Entraram os três, de roldão,  no navio, e só pararam no bar...Pediram três uísques duplos,  e comentaram, aliviados e bem dispostos, as peripécias daquele "dia inesquecível"…

Crachá do Depósito de Adidos, Brá.
Cortesia de Augusto Silva Santos (2013)

10. No dia 30 de maio de 1969, logo pela manhã, cerca das 8h00, desembarcámos em Bissau. E fomos levados para o Depósito de Adidos, em Brá. E cada um foi para o seu lado, eu fiquei com a malta da minha companhia, num dos pré-fabricados.  Sei que ficámos numa camarata, em camas sem lençóis, com um cheiro insuportável, agravado pelo calor e humidade de Bissau.  Foi um horror, durante três dias, até acertar com a bebiba que matava a sede.

 No dia 2 de junho, eu segui em LGD pelo rio Geba acima até ao Xime, a caminho de Contuboel (via Bambadinca e Bafatá).  

Os três “a(r)didos” ainda lá ficaram, coitados, em Brá,  à espera de transporte, cada um para o seu destino. Ainda nos encontrámos no "Pelicano", se a memória não me atraiçoa. ... Mas mal tivemos tempo de nos despedirmo-nos. Nunca mais os vi, mas espero que tenham conseguido regressar a casa, sãos e salvos, "vivos e inteiros"… Eu, por mim,  regressei, vivo, em março de 1971,  mas com a morte na alma...


11. Tem piada, durante anos não me lembrei mais desta(s) história(s) picara(s) dos três “a(r)didos"... Como tantas outras que me fariam correr o risco de "voltar à Guiné", tentação essa a que fui resistindo durante os primeiros anos da "peluda",  fechando as memórias da guerra com um cadeado a sete chaves. 

Para mim a Guiné, "c'est fini", dizia eu... Até que, uma década depois, no 2º trimestre de 1979, dei de caras com a placa com o nome da rua, a Rua da Atalaia… Foi um choque. Aprendiz de etnógrafo, a acabar o curso de sociologia, andei dias e dias, semanas e semanas, ao fim da  tarde, a caminho daquela rua, com o meu grupo de trabalho,  para apanhar histórias de vida, e registar letras e músicas dos velhos e velhas frequentadores da “Princesa da Atalaia”, uma tasca, uma das poucas, onde ainda se cantava o “fado vadio”… 

Então estas recordações vieram à tona de água, em catadupa... Tive que as registar. Pensei, como etnógrafo, que um dia alguém se iria interessar pelas "memórias da guerra colonial" (ou do ultramar), um objeto de estudo  que se calhar deveria merecer a mesma atenção  que o fado, "canção popular urbana", lisboeta,  em risco de extinção no pós-25 de Abril... 

Peguei no meu caderno de notas  e escrevi um primeiro esboço desta história... que ficou entretanto em banho maria e depois esquecida até agora... Mas hoje pergunto-me: se calhar ainda me cruzei,  sem o saber, em 1979, com a “Sissi”, a “Rita Pavone” e a “Mudinha”,  as três "meninas" com quem os meus companheiros  do "cruzeiro do Niassa" passaram as primeiras horas do dia 24 de maio de 1969. Na cama,  no bem-bom, a acreditar na história, bem pícara e hilariante, que me foi contada por um deles, o "Algarvio"... (Claro que com dez anos a mais estariam precocemente envelhecidas, e quiçá irreconhecíveis.)

Se resgato, hoje, esta história, ao fim de mais de meio século no limbo da memória, é porque afinal ela pode ter algum interesse para se conhecer um pouco melhor... a "idiossincrasia" da geração dos últimos soldados do império,   os que fecharam um ciclo de 500 anos... Não eram santos nem heróis, muito menos gigantes, daqueles talhados no bronze e na pedra ou imortalizados nos versos épicos do Camões... Eram apenas  "arraia-miúda", gente vulgar,  de quem nunca reza a História...

O Parente, o "Matosinhos", o "Algarvio", os três "a(r)didos", tal como a "Cilinha" e as suas senhoras,  ou a "Sissi" e as suas meninas, também faziam parte, afinal, da pequena história da História (com H grande)... 

Luís Graça

Lourinhã, 24 de maio de 2022, 
53 anos depois do embarque no T/T Niassa com destino à Guiné.
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 27 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23389: A galeria dos meus heróis (46): uma história pícara de três “a(r)didos” - Parte I (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P23390: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXXV: Teruel, Aragão, Espanha, 2017




Teruel, Aragão, Espanha, 2017



[ António Graça de Abreu, foto à esquerda:  (i) docente universitário reformado, escritor, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); (ii) natural do Porto, vive em Cascais; (iii) autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); (iv) ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74; (v) é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 310 referências no blogue; (vi) texto e fotos enviados em 16/6/2022 ]


Teruel, Aragão, Espanha, 2017

por António Graça de Abreu (*)


Por dentro um do outro
Caminham os amantes,
Desenham com seus pés
Novas rotas navegantes.


Jacques Plante, adaptação Dulce Pontes


Venho no meu coche de prata, subindo e descendo montes, das terras da Catalunha para as de Aragão.

Gosto do nome do burgo, Teruel, assim a modos do voltear de um passo de dança. Chego de mãos abertas na brisa do fim do Verão de 2017. A cidade suspensa em terraços a dardejar ao sol abre-me os braços, as torres mudéjar, S. Pedro, S. Martin a passear no clarão do céu, as ruelas íngremes e tortuosas a serpentear por entre o casario.

Por aqui, há dez séculos, pelejavam mouros e cristãos, Depois, castelhanos, aragoneses, franceses, espanhóis, franquistas, republicanos, todos em guerra. Quanto ódio, quanta luta, quanto sangue! Hoje, a pequena Teruel quase vazia, ocre e verde, recortada num horizonte azul, cintilando em paz nos olhos do quase entardecer.

Entro na igreja de S. Pedro. Na capela, dois túmulos, duas estátuas jacentes. São Juan Diego de Marsilla e Isabel de Segura, No distante século XIII desciam separados a encosta e encontravam-se em segredo no verde do fundo do vale, sob choupos e ulmeiros. A terra, o musgo, a erva brava eram o aconchegado leito dos amantes que adormeciam enredados em prazer e ternura, cobertos por mantas de nuvens e pedaços de céu.

Quão difícil um amor tão puro! Diego era de família nobre mas arruinada, empobrecida. Isabel era filha de poderosos, senhores de feudos em Segura e Aragão. A Diego deram cinco anos para conseguir fama e fortuna. O rapaz regressou, rico e famoso mas Isabel era agora a triste esposa de um dos fidalgos da cidade. Diego morreu de desgosto, o coração trespassado pela mágoa. No dia seguinte encontraram Isabel morta.

Hoje, sete séculos depois, na penumbra da pequena capela, dois túmulos, duas estátuas jacentes, a pedra doce onde moram os poetas, 
Juan Diego de Marsilla e Isabel de Segura, ainda de mão dada.

António Graça de Abreu
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 31 de maiode2022 > Guiné 61/74 - P23316: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXXIV: Pisa, Toscana, Itália, 2014