Queridos amigos,
Nova alteração de programa, e sem perda de tempo apontou-se o azimute para uma viagem de intensas recordações, começou-se no Palácio da Justiça, ali perto há uma das mais anfractuosas panorâmicas de Bruxelas, é tudo mesmo desafogado, emergi em Marolles, sempre a calcorrear lugares conhecidos, tudo imagens que quero conservar na retina, é aqui que elas chegam ao coração sem precisar de as conservar num ficheiro de computador. Peregrinação com alguma melancolia, não escondo, é a primeira viagem no continente europeu desde que fiquei em casa em março de 2020, e o caso é que fui recebido de braços abertos, mesmo com os profundos desgostos das perdas que o vírus levou. A manhã de amanhã, assim o espero, leva-me ao sonho que agitava homens de vários quadrantes políticos, no início do século XX, era preciso que as cidades fossem humanas, dispusessem de jardins, dessem simultaneamente privacidade e comunicação intervicinal, é o que eu amanhã desejo poder contar-vos.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (71):
Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 9
Mário Beja Santos
Olha, novo adiamento, a visita às cidades-jardins de Watermael-Boitsfort acontecerá amanhã, e bem cedo, foi acordado com os meus guias, a meio da tarde rumo para Lisboa, só não lhes digo que estou saudoso para voltar. Cogito o que fazer, como me desenvencilhar deste imprevisto, a resposta vem instantânea: começas hoje onde acabaste ontem, mesmo ao lado do Palácio da Justiça. Dito e feito, nada de metropolitano, viajo de autocarro desde a periferia para a cidade, aproveito e vou me despedir de Marolles, que já foi bairro proletário, que aqui recebeu catervas de imigrantes, desde judeus da Europa de Leste a marroquinos, espanhóis e portugueses, tem história densa de gente albergada de classe média, agora faz jus a região alternativa, gente com dinheiro, nunca vi tanto Jaguar e Porches por estas ruas.
A primeira imagem é o meu imenso adeus, fica com este céu límpido para me receberes, o que gostaria que fosse em breve, é uma panorâmica imensa que não cabe na minha modesta câmara, lá ao fundo ainda se vislumbra a cúpula de outro matacão aparentado com o Palácio da Justiça, a Basílica de Koekelberg, fui lá uma vez e está feito para toda a vida. Fica na retina esta imagem, desço à Rua do Eclipse, não deve nada à beleza, mas deu título a um dos mus livros mais recentes e que me deu enorme prazer escrever, mete Guiné, registo autobiográfico e umas boas pitadas de ficção.
Para que o passeio não seja uma estafa, paro aqui e acolá. Para dizer a verdade, escolhi sempre hotéis económicos, fixei-me no hotel George V em Anneessens, eu seguia por um itinerário de gente alternativa, parava nesta igreja, Notre-Dame aux Riches Claires, na rua do mesmo nome, anos depois um enorme incêndio devorou o seu miolo, vim aqui em romagem de saudade.
Cheguei à praça de Santa Catarina, está bom tempo e apetece-me um almoço de peixe. A igreja é do século XIX, construíram-na num terminal de canais, e sobre os fundamentos de uma capela do século XII, pode-se ver pela imagem que é uma arquitetura híbrida, tem formas góticas e decoração barroca, o mobiliário do interior, todo ele do século XIX, é requintado. Enorme a sua nave principal e um transepto modesto, desproporcionado para tal dimensão. A igreja acolhe uma Virgem Negra, alvo da veneração de muitas gerações de peregrinos, reza a lenda que foi miraculosamente tirada das águas, data do século XVIII. A igreja goza deste nome porque tem como patrona Santa Catarina de Alexandrina, uma das mártires dos primeiros séculos do cristianismo. Já vi esta igreja em estado deplorável, será porventura a última a ter um urinol para homens mesmo encostado a uma das suas faces.
Nova etapa, peregrinação à Librairie Tropismes, nas Galerias Saint-Hubert, não faz mal nenhum um mergulho em toneladas de papel, sobretudo tomar conhecimento dos títulos mais recentes. Dou-me bem com este ambiente, tudo bem catalogado, há sempre a hipótese de se pegar num livro e folheá-lo bem sentado. Putin e agressão à Ucrânia merecem destaque.
Voltei a Marolles, é um dos eixos do meu afeto por Bruxelas, nunca me canso de ver montras com mais de um século e parar diante da casa de Pieter Bruegel, está no altar-mor dos meus santos da pintura. Nunca me canso de olhar as obras deste mestre de técnicas e de assuntos, pasmo-me sempre com a sua conceção e execução, ele pode exprimir toda a gama de emoções, desde o repouso mais absoluto de uma paisagem invernal ao ribombar da queda dos anjos. Trata com bonomia as vulgaridades do quotidiano, a patinagem no gelo, a mestria com que fixa multidões como é o caso do recenseamento em Belém, não me canso deste desenhador excecional, só os génios da pintura é que nos dão esta possibilidade de mirar horas a fio os traços, os ritmos, as pontuações, as transparências, o jogo de profundidades, a eloquência dos volumes. Nesse dia não fui a nenhum museu ver Bruegel, limitei-me a ficar especado em frente da casa onde viveu, mas aproveito para aqui mostrar imagem de um dos seus quadros mais famosos.
Jogos Infantis, Pieter Bruegel, 1560, no Kunsthistorisches Museum Wien
Foi um belo dia de passeio, tomo o metro para Anderlecht, não venho ver nenhum jogo de futebol, nem venho de novo visitar a casa de Erasmo, fui convidado a jantar com Mathieu Beuys, a mana e a mãe, a minha querida amiga Ika Vazvasoff, pelo caminho olho para uma varanda e enterneço-me com a voluptuosidade destas rosas amarelas, tenho a dita de conservar no meu pequenino jardim uma roseira que me oferece quase todo o ano rosas amarelas, lembro-me da minha casa, a que regresso amanhã. Resta dizer que foi um belíssimo jantar, tanto pela convivência como pelo excelente menu belga.
(continua)
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Notas do editor:
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