quinta-feira, 31 de maio de 2018

Guiné 61/74 - P18698: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 53 e 54: "Vai haver uma estrada alcatroada até Gampará, e vamos ter artilharia em Fulacunda"



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > 1973 > O José Claudino da Silva junto ao obus 14

Foto (e legendagem): © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > "Porto fluvial", no Rio Fulacunda > Montagem de segurança > Um obus 14, rebocado por uma Berliet.

Foto (e legendagem): © Jorge Pinto (2014). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à esquerda] (*)

(i) nasceu em Penafiel, em 1950, "de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje), tendo sido criado pela avó materna;

(ii) trabalhou e viveu em Amarante, residindo hoje na Lixa, Felgueiras, onde é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;

(iii) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado; completou o 12.º ano de escolaridade; foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);

(iv) tem página no Facebook; é avô e está a animar o projeto "Bosque dos Avós", na Serra do Marão, em Amarante;

(ix) é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.

2. Sinopse dos postes anteriores:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da dos percursos de "turismo sexual"... da Via Norte à Rua Escura;

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau, e fica lá mais uns tempos para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vi) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM para Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos' (ou vê-cê-cês), os 'Capicuas", da CART 2772;

(vii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(viii) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(ix) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(x) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xi) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda; e ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogram as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(xii) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xiii) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xiv) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xv) começa a colaborar no jornal da unidade (dirigido pelo alf mil Jorge Pinto, nosso grã-tabanqueiro), e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras dúvidas sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, as pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo;

(xvi) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. capº 34º, já publicado noutro poste); como responsável pelos reabastecimentos, a sua preocupação é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco;

(xvii) dá a notícia à namorada da morte de Amílcar Cabral (que foi em 20 de janeiro de 1973 na Guiné-Conacri e não no Senegal); passa a haver cinema em Fulacunda: manda uma encomenda postal de 6,5 kg à namorada;

(xviii) em 24 de fevereiro de 1973, dois dias antes do Festival da Canção da RTP, a companhia faz uma operação de 16 horas, capturando três homens e duas Kalashnikov, na tabanca de Farnan.

(xix) é-lhe diagnosticada uma úlcera no estômago que, só muito mais tarde, será devidamente tratada; e escreve sobre a população local, tendo dificuldade em distinguir os balantas dos biafadas;

(xx) em 20/3/1973, escreve à namorada sobre o Fanado feminino, mas mistura este ritual de passagem com a religião muçulmana, o que é incorreto; de resto, a festa do fanado era um mistério, para a grande maioria dos "tugas" e na época as autoridades portuguesas não se metiam neste domínio da esfera privada; só hoje a Mutilação Genital Feminina passou a a ser uma "prática cultural" criminalizada.

(xxi) depois das primeiras aeronaves abatidas pelos Strela, o autor começa a constatar que as avionetas com o correio começam a ser mais espaçadas;

(xxii) o primeiro ferido em combate, um furriel que levou um tiro nas costas, e que foi helievacuado, em 13 de abril de 1973, o que prova que a nossa aviação continuou a voar depois de 25 de março de 1973, em que foi abatido o primeiro Fiat G-91 por um Strela;

(xxiii) vai haver uma estrada alcatroada de Fulacunda a Gampará; e Fulacunda passa a ter artilharia (obus 14)

3. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 53 e 54


[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]


53º Capítulo  > O GRAVADOR E AS BOMBAS


Sem que nada o fizesse prever, chateei-me com o Moreira e, por aquilo que escrevi, a culpa foi minha. - Desculpa Moreira!

"Ainda hoje estive a discutir com o Moreira que dorme no meu quarto, por uma coisa insignificante, coitado do rapaz. Estou sempre nervoso, nunca estou bem em lado nenhum, para mais um amigo de Penafiel que foi para Bissau para condutor do delegado da companhia, teve um acidente com o Jeep e está no hospital ferido. O Jeep ficou desfeito e nem sabe se irá embora quando a comissão terminar é uma situação muito chata porque parece-me que foi ele o culpado e os condutores tem de pagar os concertos.

Vá lá que ao menos veio o gravador de cassetes que tinha encomendado e a lancha já trouxe as bombas”.


Antes de continuar a transcrever o texto que tenho em mãos, quero voltar a apelar para a compreensão dos leitores se, por vezes, o texto é confuso. A razão é simples: transcrevo tal qual o original. 

“Hoje tenho mais uma notícia para te dar.

Daqui até Gampará que é o quartel mais próximo de nós, vai ser feita uma estrada de alcatrão, ora como os “turras” não querem que se façam estradas de alcatrão pois assim não podem colocar armadilhas, vão decerto procurar evitar que ela se construa, mas para nós os fazermos pôr ao largo veio hoje uma lancha militar trazer bombas de obus e no dia nove vem para cá três obuses.

O obus é uma arma Maior que um carro e que atinge 20 km de distância. Por isso agora, vamos estar mais seguros se eles se lembrarem de nos atacar.

Cada bomba pesa 36 kg e num raio de 500 metros onde explodir devasta tudo, agora estaremos suficientemente armados para dar cabo destes reles terroristas”


Para mim, o mais importante mesmo foi a chegada do gravador de cassetes. Em breve iria começar a enviar as minhas gravações.


54º Capítulo  > O MORTO VIVO


Já não me lembrava disto, como não me lembro de muitíssimas outras coisas que se passaram naqueles dolorosos tempos, e a que eu tentei dar, muitas vezes, pouca importância, pondo amor e humor em muito do que escrevi. O que vos passo a contar está escrito num “aero”,  datado de 07/05/1973:

“Mais uma vez tive azar não veio avioneta por isso lérpei e não tive correio, talvez venha amanhã. Hoje tenho uma notícia a dar-te que considero invulgar, pois creio que não conheço nenhum caso idêntico.

Um camarada meu teve um irmão em Moçambique em 1966. Estava lá há sete meses, quando foi dado como morto. Mandaram o corpo dele para a Metrópole e fizeram-lhe o funeral. Na passada sexta-feira o meu camarada recebeu aqui notícias que o irmão está vivo. Disse-me que as informações que tiveram foram estas.

O irmão ia numa viatura que passou sobre uma mina que explodiu, morreram 13 soldados, e ele caiu a uns metros de distância, ficou ferido, os camaradas não o viram e deixaram-no ficar, os “turras” depois encontraram-no e levaram-no para o Senegal [lapso do Dino, deve ser Tanzânia], esteve lá até agora tendo conseguido fugir, embora com sete anos de prisão ele está bem vivo o que não deixa de ser uma infinita alegria para a família. Este meu camarada, portanto, irmão do morto vivo, até parece que dá em maluco.”


Desconheço o que posteriormente se passou e se na urna estaria ou não algum cadáver. O que posso concluir é que, para a família, foi algo maravilhoso e inesquecível.

Nunca saberemos se os desaparecidos em combate estarão mortos ou vivos e, como vamos envelhecendo e morrendo, nós, os que participaram nesta guerra, se temos algum testemunho como este que relato, deviam divulgá-lo, porque o luto numa família faz, pelo menos aos que crêem, acreditar que um dia se encontrarão algures, na vida eterna.

Recebi o requerimento assinado para vir de férias nesse dia e no dia seguinte tomei a vacina para poder viajar. Refiro-me a isso porque nunca percebi qual a razão de sermos vacinados para vir à metrópole.
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Nota do editor:

Último poste da série > 23 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18669: Guiné 61/74 - P18626: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino dSilva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 50 e 52: (i) tivemos o primerio ferido em combate, numa sexta-feira, 13 de abril de 1973, sendo evacuado por helicóptero; e (ii) o correio está a chegar atrasado depois de aparecerem os Strela...

Guiné 61/74 - P18697: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (6): Os meus passeios: de Buba a Cassumba, passando por Cacine, Sangonhá, Cameconde, Cassacá e Campeane, março de 2018 - Parte III


Foto nº 20 > Cassacá, hoje.. Foi aqui que o PAIGC realizou, em 1964, o seu 1º Congresso...


Foto nº 21 >  Cassumba: "onde montámos as tendas"



Foto nº  22 >  Cassumba: na foz do rio Cacine


Foto nº  23 > Cassumba: já no outro lado da Guiné-Conacri


Foto nº 24  > Cassumba: o efeito da erosão


Foto nº  25 > Cassumba: pôr do sol


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Península de Quitafine > Cassumba > 11 de março de 2018

Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2018) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da publicação das fotos da viagem de Buba a Cassumba, de 11 de março último (*)

[ Patrício Ribeiro é um português, natural de Águeda, criado e casado em Angola, com família no Huambo, ex-fuzileiro em Angola durante a guerra colonial, a viver na Guiné-Bissau desde meados dos anos 80 do séc. passado, fundador, sócio-gerente e director técnico da firma Impar, Lda.]

(Continuação)


Foto [nº 20] do monumento que o PAIGC construiu com os restos de uma casa da família Regala, “que alguém deitou abaixo”.

Por aqui, decorreu o 1º congresso do PAIGC, (em 1964, como se pode ler no blogue). Na tabanca há postes de energia elétrica nas ruas, que já funcionaram, tem abastecimento de água, centro de saúde, escola secundária, etc. Aqui também estive a trabalhar.

Praia de Cassumba:

Algumas fotos [, de 21 a 26]: lugar muito bonito, lá montamos as tendas à beira mar para dormir, junto ao rio Cacine, por lá comenos a usual lata de atum, abrimos uma garrafa de vinho, para dormir bem.

Bom lugar para uns “desembarques”, praia só de areia sem lodo.

Para chegar à praia, passamos por lindas matas e por uma savana só de capim, com mais de um metro de altura e vários quilómetros de comprimento. Do outro lado, um mato de palmeiras impenetrável, onde certamente muita gente se refugiou. Muito bonito.

Enviarei outras fotos tiradas este ano, de outros passeios em outros lugares.

Abraço

Patricio Ribeiro

IMPAR Lda
Av. Domingos Ramos 43D - C.P. 489 - Bissau, Guiné-Bissau
Tel, 00245 966623168 / 955290250

Guiné 61/74 - P18696: Parabéns a você (1444): Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 28 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18686: Parabéns a você (1443): António Acílio Azevedo, ex-Cap Mil, CMDT da CCAÇ 17 (Guiné, 1973/74)

quarta-feira, 30 de maio de 2018

Guiné 61/74 - P18695: Bibliografia de uma guerra (92): Um Barco Fardado, por Eduardo Brito Aranha; Roma Editora, 2005 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Junho de 2016:

Queridos amigos,
Até quatro quintos, este livro devora-se com incontido prazer, pela irreverência, pelo uso com mestria das observações caricaturais e pelo uso bem doseado do sarcasmo nas descrições grotescas. A história de uma comissão minuciosamente pintada nos seus pequenos nadas em que todo o quotidiano daquele mundo ensimesmado possui nervo e se torna literatura de ponta e mole.
E subitamente o autor confessa que vai saltar uns meses atrás de outros, de repelão entramos na história de uma paixão falhada, num acontecimento revelado como pornochachada, e tudo arremata num banquete de críticas violentas ao quadro de oficiais da companhia.
Confesso que nunca lera uma coisa assim. No entanto o autor deixa esclarecido que esta CCAÇ tem almoços de confraternização desde 1998, diz que alguns nomes de pessoas foram alterados e que houve situações que devido a todo o tempo entretanto decorrido já puderam ser transcritas...
Será paródia ou realidade, o que ele diz?

Um abraço do
Mário


Um Barco Fardado, por Eduardo Brito Aranha (2)

Beja Santos

À partida, não há qualquer incompatibilidade em apresentar a guerra em cuecas, do lado caricatural, no avesso da disciplina e da ordem, expondo os participantes em traços grotescos, forçando, pela força do talento, o riso aberto. Quando se falha a operação, é um dó de alma, percebe-se à légua que o inventor da operação se espalhou estrepitosamente e daí o comentário mordaz de quem brinca com coisas sérias e não sabe brincar sai chamuscado.

Em “Um Barco Fardado”, Eduardo Brito Aranha, Roma Editora, 2005, conta a sua comissão em Angola com vários despautérios, por ali aparecem uns oficiais retratados como marionetas, militares que se vão desenrascando naqueles eremitérios, desvela-se o rocambolesco de operações mal ataviadas, com resultados praticamente inúteis e no mais alto grau do sofrimento humano. O que timbra este livro, o que agarra o leitor logo pela gola nos primeiros capítulos é a caricatura hábil, certeira, o tirar partido de múltiplas mediocridades, sem recurso ao excesso, porque o excesso mata o humor. Estamos em Angola, em N’Riquinha, a guerrilha não é muito forte mas está lá. Há um comandante zeloso, quer que todas as unidades construam hortas e jardins, que não descurem a higiene, que erradiquem o sarro agarrados aos sanitários com ácido muriático e que recomenda que se afixe por todos os lugares o poema “SE” de Kipling. Há conversas delirantes nas refeições da messe, o capitão e o médico contam anedotas ao desafio, à procura do libidinoso e da palhaçada alvar.

Tudo, ou quase, é parafraseado para poder fazer sorrir, as caçadas, os interrogatórios, as conversas dos pides, o Natal do Soldado. Até o capelão não escapa, sai dali enraivecido com as traquinices dos outros oficiais. São relatos atrás de relatos onde pontifica o isolamento, a escassez, a falta de sentido e os desencontros da guerra. O tempo escorre lentamente, o que permite ao autor pincelar as trivialidades, caso das noites de cinema:  
“O ecrã, ao ar livre, era uma parede exterior da casa onde dormíamos. Uma noite escura e não de luar, como convinha para melhor visibilidade. A distância da máquina à parede teria que permitir ao mesmo tempo uma boa intensidade luminosa e uma plateia suficientemente ampla, onde também pudessem caber os miúdos do kimbo. A altura da mesa onde a máquina assentava tinha que ser bastante alta para que, durante a projeção, não aparecessem só cabeças. Arrastavam os bancos corridos do refeitório, os miúdos ficavam pelo chão na areia e o projetor era posto em cima de uma cadeira. Após o jantar, à volta das oito, a sessão começou, mas era um desassossego. Havia sempre alguém que tropeçava no fio estendido e lá ia a luz. A miudagem, que nunca parava quieta, levantava imenso pó e os soldados. Perante tal balbúrdia, o capitão admirava placidamente a cena. O filme arranca. Um documentário sobre a eleição de uma Miss Portugal. Só pernas de raparigas a desfilar. O pessoal assobiava imparável de excitação. Zás! Uma garrafa de cerveja contra o ecrã. Um líquido a escorrer entre as penas de uma das desfilantes. Galhofa generalizada. Um soldado salta para junto da luz do ecrã e finge apalpar o rabo a uma. Outro aproxima-se e finge copular com outra. O capitão manda apagar o projetor. Há urros e assobios”.

Brito Aranha é exímio a descrever o desenrolar das operações, o desacerto entre o que se pensa que está no mapa e o que se pisa no solo, e os detalhes: a falta de água, os terrenos enlameados, a confusão nos tiros das nossas tropas sobre as nossas tropas, o flagelo da chuva imensa, o sonho em regressar a qualquer preço ao local execrável de onde se partiu. Rotina atrás de rotina. Chegou a sua vez de partir de N’Riquinha para Mavinga:  
“Era uma rua larga de cem metros de comprimento. Nas minhas costas a pista, a rua em frente. Ao fundo desta, no lado oposto, um pequeno vale com o rio Cubia. As casas que a ladeavam eram tipo vivenda, umas e abarracamentos de madeira, as militares”.
O administrador deposto é descrito como um Kirk Douglas embalsamado. E depois o regresso a Rivungo, onde existe uma das mais espantosas figuras da literatura da guerra:
“Será tempo de apresentar o tenente da marinha. Como o Cuando escorria por ali abaixo fazendo fronteira com a Zâmbia até entrar na África do Sul, essa fronteira ter-se-ia de patrulhar com uma lancha cuja tripulação andaria à volta de dez marinheiros. Por isso havia um destacamento da marinha. O tenente cavalgava de noite no seu Land Rover entre as cubatas, emitindo gritos de índio a atacar, disparava o revólver para o ar e, em derrapagem poeirentas, tentava atropelar os cães. A figura abaixo dele, numa desgraçada hierarquia de manicómio, era um sargento de 135 quilos. Queimava os dias a beber grades de cerveja, sentado numa cadeira de encosto junto ao rio e de pés mergulhados na água para não incharem, guardando as noites mais animadas para a roleta russa com os outros marinheiros”.
O tenente é rezingão e admoestador, voltando-se para a lancha dizia: “Um dia monto-me em ti e vou à Zâmbia foder aquilo tudo a tiro”.
E um dia aconteceu isso mesmo, meteu-se no sapo flutuante, e houve uma desgraça.

Temos novo regresso a N’Riquinha. Aquela comissão que se iniciara em Novembro/Dezembro de 1971 é registada com rigor até Agosto de 1972. Aqui temos de novo uma operação espantosa. Um texto digno da mais exigente literatura da guerra. É nesse preciso instante que ao autor, estamos na página 170, se apressou a caminhar para o termo de uma obra que se previa sumarenta. Escreve assim: “Estávamos em Agosto de 1972. Permanecemos em N’Riquinha até Maio de 1973. E tantas coisas semelhantes se repetiram nestes nove meses”. Este salto brusco, sabe-se lá, foi produto do manifesto cansaço. Mais nos informa que esteve ainda oito meses no Rivungo, e começou então o caminho do regresso a casa, que passou pelas Mabubas. Talvez por não haver guerra, por se ir regularmente a Luanda, vão começar descrições de espalhafatoso bródio: as orgias do capitão e do médico, uma menina filha de administradora com quem ele teve vontade de se envolver, mas a menina era virgem e não queria deixar de o ser. Estamos praticamente no fim do livro, chegou a hora da desbunda, das supremas acusações: os dois oficiais com mais responsabilidade dentro da companhia utilizavam as viaturas para introduzir prostitutas, dando-lhes albergue nas instalações militares. Mas há mais: “Esses mesmos oficiais já anteriormente tinham dado provas de menoridade, ou mesmo de escassez de valores morais, envolvendo-se, ainda no Cuando Cubango, numa obscura aquisição de peles de lontra a um desgraçado que, a troco de bebida alcoólica por um deles falsificada, era compelido a sacrificar os peludos mamíferos nadadores”. Todos os oficiais são passados ao crivo e bem chibatados: gente sem honra, falsificadores de assinaturas, ineptos, indecorosos, fraudulentos. E termina: “Durante cinco anos não tive coragem de reler o que escrevera. Estou no ano de 2003. E tudo se passou hoje”.
O mais curioso disto tudo é que o autor nos informa que a companhia a que pertenceu faz almoços de confraternização. Resta saber quem lá vai ou se quem lá vai acha graça aos termos que o autor utilizou para os retratar.
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Nota do editor

Poste anterior de 23 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18668: Bibliografia de uma guerra (90): Um Barco Fardado, por Eduardo Brito Aranha; Roma Editora, 2005 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 28 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18689: Bibliografia de uma guerra (91): "A GUERRA VISTA DE BAFATÁ – 1968-1970", livro da autoria de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec Inf); edição de autor, 2018

Guiné 61/74 - P18694: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (5): Os meus passeios: de Buba a Cassumba, passando por Cacine, Sangonhá, Cameconde, Cassacá e Campeane, março de 2018 - Parte II


Foto nº 9


Foto nº 10


Foto nº 11


Foto nº 12

Foto nº 13


Foto nº 14

Foto nº 15


 Foto nº 16


Foto nº 17


Foto nº 18


Foto nº 19

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Península de Quitafine > Cameconde >  11 de março de 2018

Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2018) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da publicação das fotos da viagem de Buba a  Cassumba, de 11 de março último (*)

[ Patrício Ribeiro é um português, natural de Águeda, criado e casado em Angola, com família no Huambo, ex-fuzileiro em Angola durante a guerra colonial, a viver na Guiné-Bssau desde meados dos anos 80 do séc. passado, fundador, sócio-gerente e director técnico da firma Impar, Lda.]

(Continuação)

Cameconde:

Algumas fotos da fortaleza (quartel) que lá construíram, para os que lá dormiram dentro, recordar (**).

 Ainda hoje são impressionantes, as construções. (Fotos de 9 a 19).

A estrada que liga Cameconde, Cassacá, até Campeane, está em bom estado, ainda encontramos muita floresta frondosa, muito verdejante, esta zona é muito bonita. Onde se produz muita fruta; cola, laranja, ananás, banana, etc. Mas a plantação de caju, já está a chegar, para deitar a floresta abaixo.

A estrada passou a ser uma rua, com muitas casas durante alguns quilómetros  muita população. Como está perto da fronteira, muitos vieram do outro lado…

(Continua)

Patricio Ribeiro
IMPAR Lda
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Tel,00245 966623168 / 955290250
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impar_bissau@hotmail.com



Guiné > Região de Tombali > Mapa de Cacoca (1960) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Cameconde, Cacoca e Sangonhá, nas proximidades da fronteira com a Guiné-Conacri, tendo a norte Gadamael e Ganturé (e a sudoeste Cacine, vd. mapa de Cacine e mapa geral da província)

Cameconde era a guarnição militar portuguesa mais a sul, na região de Quitafine, na estrada fronteiriça Quebo-Cacine... Em 1968 era o batalhão que estava em Buba (BART 1896, 1966/68) quem defendia esta importante linha de fronteira...

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2018)

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 30 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18693: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (4): Os meus passeios: de Buba a Cassumba, passando por Cacine, Sangonhá, Cameconde, Cassacá e Campeane, março de 2018 - Parte I

(**) Temos 44 referências a Cameconde no nosso blogue.

Vd.por exemplo poste de 20 de fevereiro de 2013  > Guiné 63/74 - P11127: Memória dos lugares (214): Cameconde, no subsetor de Cacine, o destacamento mais a sul do CTIG... (José Vermelho / Augusto Vilaça / Juvenal Candeias)

Guiné 61/74 - P18693: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (4): Os meus passeios: de Buba a Cassumba, passando por Cacine, Sangonhá, Cameconde, Cassacá e Campeane, março de 2018 - Parte I


Foto nº 1 > Buba


Foto nº 2 > Buba


Foto nº 3 > Cacine


Foto nº 4 > Cacine


Foto nº 5 > Cacine


Foto nº 6 > Cacine


Foto nº 7 > Cacine


Foto nº 8 > Sangonhá (*)


Guiné-Bissau > Região de  Tombali > Buba, Cacine e Sangonhá  > 11 de março de 2018

Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2018) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Mensagem do nosso amigo e camarada Patrício Ribeiro, com data de 24 do corrente: 

[ Patrício Ribeiro é um português, natural de Águeda, criado e casado em Angola, com família no Huambo, ex-fuzileiro em Angola durante a guerra colonial, a viver na Guiné-Bssau desde meados dos anos 80 do séc. passado, fundador, sócio-gerente e director técnico da firma Impar, Lda.]

Luís,

Envio fotos de mais um dos meus passeios de Buba, até à praia de Cassumba, continuação do P18410. (**)

Uma foto do porto de Buba [Foto nº 1].

Onde dormimos alguns dias na Pousada da Gabi junto ao rio, a 300 mt do quartel.

Outra foto, da casa do administrador junto ao porto e ao quartel que foi reparado há poucos anos. Dentro do qual a Fundação AMI, tem o seu escritório. [Foto nº 2]

Viagem no asfalto até Mampatá, depois de terra batida atá ao Cruzamento de Guiledje, seguimos na estrada em muito mau estado até Sangonhã, onde tínhamos que trabalhar; depois para Cacine a estrada ainda está pior, já não é para a minha idade…

Uma foto da tabanca de Sangonhá [Foto nº 8].

Podemos ver o que resta do antigo quartel no centro da tabanca, onde agora se realiza um mercado transfronteiriço. Em frente, há um centro de saúde.

Vila de Cacine. [Fotos nº 3, 4 e 5].

Junto algumas fotos; O pontão novo, feito em 1985. [Foto nº 6 e 7]

Quem agora utiliza o porto são os Sul Coreanos e são muitos! Têm uma fábrica de transformação de peixe e fábrica de gelo. O peixe é capturado por todo aquele emaranhado de rios, que alguns dos bloguistas bem conheceram há 50 anos. Depois é exportado para a Coreia.

Os Japoneses também construíram um projeto de pesca com diversos edifícios, que está entregue ao governo de Bissau.

Há 25 anos ao desembarcarmos da canoa, vindos do outro lado de Canamina, com o nosso saudoso Pepito, ele cortou a planta do pé numa ostra, que estava no fundo do rio. Teve que levar alguns pontos a sangue frio, no hospital. Quando por lá fazíamos outros trabalhos em Cameconde e Campeane. (***)

 (Continua)

Patricio Ribeiro

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(***) Último poste da série > 19 de outubro de 2017 >  Guiné 61//74 - P17879: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (3): Os meus passeios: ilha de de Caió e ilha de Caravela

terça-feira, 29 de maio de 2018

Guiné 61/74 - P18692: O Cancioneiro da Nossa Guerra (8): A Balada de Béli (recolha de José Loureiro, ex-alf mil at inf, CCAÇ 1790 / BCAÇ 1933, Madina do Boé e Béli, 1967/69)


Guiné > Região do Boé > Béli > Pelotão da CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894, "Os Tufas" (Bissau, Fá Mandinga, Nova Lamego, Beli e Madina do Boé, 1966-68).> Uma "cena do quotidiano de Béli (1). Foto do ex-1º  cabo Machado (2011), cedida ao Manuel Coelho, por ocasião do convívio de 2011.


Guiné > Região do Boé > Béli > Pelotão da CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894, "Os Tufas" (Bissau, Fá Mandinga, Nova Lamego, Beli e Madina do Boé, 1966-68).> Uma "cena do quotidiano de Béli (2). Foto do ex-1º  cabo Machado (2011), cedida ao Manuel Coelho, por ocasião do convívio de 2011.


Guiné > Região do Boé > Béli > Pelotão da CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894, "Os Tufas" (Bissau, Fá Mandinga, Nova Lamego, Beli e Madina do Boé, 1966-68).> Uma "cena do quotidiano de Béli (3). Foto do ex-1º  cabo Machado (2011), cedida ao Manuel Coelho, por ocasião do convívio de 2011.


Guiné > Região do Boé > Béli > Pelotão da CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894, "Os Tufas" (Bissau, Fá Mandinga, Nova Lamego, Beli e Madina do Boé, 1966-68).> Uma "cena do quotidiano de Béli (4). Foto do ex-1º  cabo Machado (2011), cedida ao Manuel Coelho, por ocasião do convívio de 2011.


Guiné > Região do Boé > Béli > Pelotão da CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894, "Os Tufas" (Bissau, Fá Mandinga, Nova Lamego, Beli e Madina do Boé, 1966-68).> Uma "cena do quotidiano de Béli (5). Foto do ex-1º  cabo Machado (2011), cedida ao Manuel Coelho, por ocasião do convívio de 2011.

Fotos (e legendas): © Manuel Coelho (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné-Bissau > Região do Boé > 2009 > Restos do quartel de Béli (*), retirado pelas NT em meados de 1968, por ordem expressa de Spínola.

Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2009). Todos os direitos reservados.. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guião da CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894, "Os Tufas" (Bissau, Fá Mandinga, Nova Lamego, Beli e Madina do Boé, 11966-68). uma das muitas subunidades  que esteve aquartelada em Madina do Boé, com destacamento em Beli (**). Foto: Manuel Coelho. 


1. Camaradas e amigos, é um prazer poder-vos anunciar que conseguimos "resgatar" da "vala comum do esquecimento" a letra da famosa "Balada de Béli"... Graças às boas diligências de dois camaradas, do BCAÇ 1933,  o Virgílio Teixeira (ex-alf mil, SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) e o José Loureiro (ex-alf mil inf, CCAÇ 1790 / BCAÇ 1933, Madina do Boé e Béli, 1967/69).

Mensagem do José Loureiro, com data de anteontem:


Caro Teixeira, Béli, a sua história e a Balada. O meu pelotão da CCAÇ 1790 chegou a Béli em 10 de fevereiro de 1968. Como te disse, conheci a Balada ainda em Nova Lamego em 30 de janeiro de 1968.

Transcrevo do meu diário:

 "Quando me dirigia para o bar de Oficiais, um Furriel mostrou-me uma balada muito especial. Entitulava-se 'Balada de Béli'. É obra de antigos soldados de Béli. Passo a transcrevê-la [, vd, letra, a seguir].


"É esta a minha futura morada e que perspectivas,  Senhor. Mas enfim, com calma e a Vossa Ajuda, tudo se vencerá." 

Assim termino,  caro amigo Teixeira. Béli foi abandonado em 17 de junho de 1968.
Um forte abraço.


José Loureiro


Balada de Béli

[autor desconhecido]

Voam forte, fortemente,.
Provocando alvoroço,
Metralha de outra gente
Que pretende certamente
Estragar-nos o almoço.

Fui ver... As morteiradas caíam
Do azul cinzento do céu,
Grandes, negras, explodiam,
Como elas se moviam,
Mas que barulho, meu Deus!...

Fico olhando esses sinais,
Deixados pela tormenta,
E isto por entre os mais
Buracos descomunais
Dos impactes do oitenta.

Com potente vozear,
Essas armas falam forte,
O canhão a metralhar
Propõe-se a enviar
Sua mensagem de morte.

É uma infinita tristeza,
No coração é inverno,
Cai chumbo na natureza
Tornando Béli um inferno.

Será talvez um tornado,
Mas ainda há pouco tempo
Nem as chapas do telhado,
Mesmo o desconjuntado,
Se moviam com o vento.

Olho atrás da seteira,
Está tudo acinzentado,
Elas caiem e que poeira
Levantam à nossa beira,
Felizmente mais ao lado.

Inesperado, cortante,
Eis que ribomba o canhão,
Apesar de estar distante,
Com a sua voz troante
Vem espalhar a confusão.

Que quem é já terrorista,
Sofra tormentos... enfim!,
Mas estas tropas, Senhor,
Porque lhes dás tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...



[Recolha de José Loureiro / Revisão e fixação de texto: VT / JL / LG]


2. Comentário do editor LG:

Meu caro José Loureiro, camarada da heróica CCAÇ 1790 / BCAÇ 1933:

Fico-te muito grato (, os camaradas da Guiné tratam-se por tu, se não te importas, o tu encurta as distâncias e favorece a empatia)...

Fantástica a "tua" balada de Beli, que vai enriquecer o nosso "Cancioneiro da Guiné" e é uma homenagem aos bravos de Béli, Madina do Boé e Cheche...

Estou-te muito grato pela recuperação dessa letra, que é uma "genial paródia" da Balada de Neve, do poeta Augusto Gil ("Luar de Janeiro" 1909)...Sabia-a de cor, na minha já longínqua 3ª terceira classe do ensino primário, em 1956/57... Aliás, todos a sabíamos de cor na minha escola do Conde Ferreira, na Lourinhã.

Acabámos de a publicar, citando todas as referências que mandas, a começar pelo teu nome e pelo teu diário. Estou grato também ao camarada Virgílio Teixeira, teu amigo e camarada de batalhão, que te contactou... Foi ele o primeiro a falar-me da "Balada de Béli", cuja existência eu desconhecia de todo. Proximamente,  publicaremos um poste sobre esta "(re)descoberta" e a vossa troca de mensagens.

Por fim, deixa-me convidar-te a integrar a nossa Tabanca Grande. onde figuram já 773 camaradas (e amigos) da Guiné, entre vivos e mortos... E faço questão que seja o Virgílio a "apadrinhar" a tua entrada, se for essa a tua vontade.

Só precisas de aceitar dar a "cara", isto é, mandar duas fotos tuas, digitalizadas, uma de hoje, e outra do antigamente... Se quiseres mandar mais, ótimo... O Virgílio, por exemplo, tem um álbum fotográfico da Guiné, fabuloso, que estamos a publicar regularmente...

Temos 19 referências no nosso blogue à tua CCAÇ 1790, mas não há ninguém, até agora (e ao fim destes 14 anos de existência!) que a represente como deve ser... Já em tempos fiz um convite ao vosso antigo comandante, José Aparício, hoje coronel reformado.  Mas, em geral, os oficiais do quadro têm alguma relutância em dar a cara nas "redes sociais", o que é compreensível... Mesmo assim, oficiais dos 3 ramos das Forças Armadas, incluindo oficiais superiores e generais que foram nossos camaradas na Guiné, honram com a sua presença ativa a nossa Tabanca Grande.

José Loureiro, espero que aceites o nosso convite, em nome do sagrado dever de memória... Somos uma geração que está a desaparecer e recusamo-nos a ir para a "vala comum do esquecimento"... Vou pedir então ao Virgílio Teixeira para "apadrinhar" a entrada do novo grã-tabanqueiro... Se quiseres partilhar connosco o teu diário, no todo ou em parte, ficaríamos encantados... Entretanto, haveremos de nos conhecer "ao vivo", um dia destes...

Um alfabravo,
Luís Graça


3. Em tempo:

Em mensagem de 25 de Novembro de 2018, o nosso camarada Manuel Lema Santos (1.º Tenente da Reserva Naval, Imediato no NRP Orion, Guiné, 1966/68), enviou uma ligação para a página da Reserva Naval onde está publicado um manuscrito com uma versão da Balada de Béli que lhe foi confiada pelo seu irmão Alberto Lema Santos, ex-Alf Mil Médico do BCAÇ 1933 a que pertencia a CCAÇ 1790. A versão aqui reproduzida pelo ex-Alf Mil José Loureiro apresenta algumas diferenças.

Ver no facebook aqui.
Ver também na página da Reserva Naval, aqui.

Carlos Vinhal
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 4 de outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5050: Efemérides (27): Declaração da Independência em 24 de Setembro decorreu não em Madina do Boé mas Lugajole (Patrício Ribeiro)

(**) Vd. postes de


19 de julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8571: Álbum fotográfico de Manuel Coelho (6): Beli, Madina do Boé e Convívio 2011

(***)  Último poste ds série > 19 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18537: O Cancioneiro da Nossa Guerra (7): "Marcha de Regresso" (Recolha de Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, "Zorba", Gadamael e Ganturé, 1967/ 68)

16 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18528: O Cancioneiro da Nossa Guerra (6): "Os Homens não Morrem" (Recolha de Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, "Zorba", Gadamael e Ganturé, 1967/ 68)

28 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18261: O Cancioneiro da Nossa Guerra (5): O hino dos "Unidos de Mampatá", a CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74)

27 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18261: O cancioneiro da nossa guerra (4): "o tango dos periquitos" ou o hino da revolta da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) (Silvino Oliveira / José Colaço)

27 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18259: O cancioneiro da nossa guerra (3): mais quatro letras, ao gosto popular alentejano, do Edmundo Santos, ex-fur mil, CART 2519, Os Morcegos de Mampatá (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71)

8 de novembro de 2017> Guiné 61/74 - P17944: O cancioneiro da nossa guerra (2): três letras do Edmundo Santos, ex-fur mil, CART 2519, Os Morcegos de Mampatá (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71): (i) Os Morcegos; (ii) Estou farto deles, tirem-me daqui; (iii) Fado da Metralha

30 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17811: O cancioneiro da nossa guerra (1): "Asssim fui tendo fé, pedindo a Deus que me ajude"... 4 dezenas de quadras populares, do açoriano Eduardo Manuel Simas, ex-sold at inf, CCAÇ 4740, Cufar

Guiné 61/74 - P18691: Convívios (859): XII Encontro do pessoal da CCAÇ 4740 e Cufarianos, a levar a efeito no próximo dia 16 de Junho de 2018, em Fátima (Armando Faria, ex-Fur Mil Inf MA)

1. Mensagem do nosso camarada Armando Faria (ex-Fur Mil Inf Minas e Armadilhas da CCAÇ 4740, Cufar, 1972/74) com data de 28 de Maio de 2018:

Boa tarde camaradas COMBATENTES
Estamos próximos de mais um dia que ficará na história de cada um de nós.
Convido-vos a estarem presentes para rever AMIGOS que connosco partilharam outros DIAS.
Fica aqui o desafio, cabe a cada um avaliar da sua possibilidade de se fazer presente.
Aguardo as vossa noticias.

Um abraço fraterno e solidário.
Armando Faria


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Nota do editor

Último poste da série de 22 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18665: Convívios (858): XXIII Encontro do pessoal do BCAÇ 2885, realizado no passado dia 19 de Maio de 2018, em Arganil (Jorge Picado, ex-Cap Mil, CMDT da CCAÇ 2589/BCAÇ 2885)

Guiné 61/74 - P18690: FAP (106): Fotos da montagem dos primeiros FIAT's G-91 R/4 destinados à Esquadra de Tigres de Bissalanca (Mário Santos, ex-1.º Cabo Especialista MMA da BA 12)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Santos (ex-1.º Cabo Especialista MMA da BA 12, 1967/69), com data de 23 de Maio de 2018:

Caros amigos e camaradas.
Estas são algumas das fotos de montagem em 1965 dos primeiros Fiat`s G-91 R/4 que iriam constituir a famosa “Esquadra de Tigres de Bissalanca” onde voaram alguns dos nossos Magnificos Tabanqueiros como José Fernandes Nico, António Martins Matos, e Miguel Pessoa.

Estas foram as primeiras cores onde em fundo cinzento escuro sobressairiam a Cabeça de Tigre e na entrada de ar do reactor uma Boca de Tubarão.
Sem ser uma máquina excepcional, equipada com um motor Bristol Siddeley Orpheus 803 turbojet, 22.2 kN (5,000 lbf) e com uma autonomia de apenas 1150 Km não era o ideal de que necessitávamos, tendo em conta que tínhamos de cobrir toda a área Guineense somente a partir de uma única Base em Bissalanca.
Aqui ficam as fotografias para vosso conhecimento. Envio em anexo.

Abraço
Mário Santos








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Nota do editor

Último poste da série de 18 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18648: FAP (105): 28 de julho de 1968, o dia em que o Fiat G-91, nº 5411, pilotado pelo ten cor Francisco Dias Costa Gomes, foi abatido sob os céus de Gandembel, por fogo de AA (Antiaérea)