7. (...) E exemplificou,o meu amigo psiquiatra:
− Com mais ou menos dor, os casais separam-se ou divorciam-se... Nalguns casos, mais raros, é o homem que "parte à aventura", mudando de casa ou até de cidade. Mas, para isso, é preciso ter liberdade económica. Neste caso a mulher ainda hoje está mais limitada do que o homem. No futuro, vão-se inverter os papéis...
− Mas não é o caso da minha amiga Nucha que saiu da casa do companheiro e, segundo parece, para não mais voltar.
− O que eu entendo, só se ela fosse masoquista... Mas, como médico e psiquiatra, já vi tudo ou quase tudo na vida... Como sabes, a capacidade de amar, odiar e perdoar é quase infinita, entre os seres humanos. A "fidelidade canina", entre nós, pode ser ainda maior do que nos cães... "O volta, querido, estás perdoado!", não é, infelizmente, uma figura de retórica do passado.
− Eu também não ponho as mãos no fogo por ninguém... Mas, repara, neste caso de que te falei por alto, são pessoas da chamada classe média ou classe média alta... São pessoas ditas cultas, adultas, viajadas, livres, que frequentam a Casa da Música e o Museu de Serralves, no Porto (ou a Fundação Gulbenkian e o CCB, se vivessem em Lisboa)...
− Mas não são muito diferentes dos mesmos, homens e mulheres, que tu vais encontrar, nos cruzeiros de verão, "low cost", quais "lobos e lobas solitários", à procura compulsiva do seu macho, da sua fêmea...
− Felizmente que − acrescentei eu − as pessoas têm hoje mais mobilidade e liberdade, do que no passado... Pelo menos, em teoria... E nem precisam de fazer cruzeiros para se encontrarem e encetarem novas relações... Tens as redes sociais, as festas, a "night"...
− E os idosos ? O banco de jardim, a universidade sénior, os centros de dia...
− Ah!, e a sala de espera dos nossos centros de saúde... Mas esses são os pobres e os remediados...
Continuando o seu raciocínio, disse-me o psiquiatra:
− Repara que, noutros casos, a maior parte dos casais idosos, reformados, da chamada classe média, não chegam a separar-se, ou melhor, cada um dorme na sua cama, em cantos diferentes da casa, um na parte nascente, outro na parte poente, um na cama de casal, outro no quarto que outrora foi dos filhos... Enfim,conforme a disposição e o tamanho das casas... Ou, então, quando a casa é suficientemente grande, constrói-se um imaginário "muro de Berlim"... Não se falam, evitam cruzar-se, passam mais tempo na cama, pagam as contas a meias, enfim, encontram um "modus vivendi", algo trágico-cómico. Claro que estas situações são transitórias e ilusórias... Correm o risco de acabar, mais tarde ou mais cedo, em depressão, doença, violência,e até suicídio...
Lembrei também, ao meu amigo, alguns casos, do meu conhecimento, do mundo académico que podem ter alguma relação ou analogia com o caso de que estávamos a falar, e que ilustram a dificuldade que os seres têm em lidar com a idade, o envelhecimento,a reforma, a "morte social"... É o mito do Elixir da Juventude ou da Fénix Renascida...
Ele não deixou de sorrir quando eu lhe falei das chamadas "crises da andropausa dos senhores professores catedráticos"...
− Sabes, tão bem como eu, de casos de professores universitários que perdem a cabeça com alunas, 20 ou 30 anos mais novas, com quem têm "paixões escaldantes", efémeras umas, e outras que até dão em casamento ou uniões de facto... Miúdas novas, da idade dos filhos ou até dos netos... Paixões que os colegas de departamento procuram "abafar" a todo o custo para evitar estardalhaço...
− Quem diz alunas, diz alunos − corrigiu o psiquiatra.
− Ah!, sim, em matéria de homofobia, a Universidade está hoje muito melhor do que no nosso tempo...E há casos de ssédio sexual, como em todo o lado...Mas não generalizes...
− Mas voltando às paixões serôdias, não te esqueças que no passado era de bom tom, sobretudo entre as classes altas, os homens casarem com mulheres mais novas ou até muito mais novas...
8. Mas já que estamos a falar de sociedades patriarcais e falocráticas (, embora os papéis entre os homens e as mulheres estejam hoje a mudar, a um ritmo talvez mais assustador para os machos...), ocorreu-me a pergunta que já antes havia formulado a mim mesmo:
− Afinal, quem era o homem de que tanto se falava, no círculo dos amigos e conhecidos da Nucha, o "mau da fita", a "besta quadrada", o "energúmeno", para usar alguns dos epítetos mais suaves do léxico da nossa "Poetisa", sempre politicamente incorreta e com gosto (perverso) para as tiradas panfletárias e provocatórias...
Bom, vim a conhecê-lo mais tarde,não no Porto,mas em Lisboa,por ocasião do lançamento do álbum fotográfico de um amigo comum, fotojornalista, que mo apresentou:
− O eng. Vaz C...
Não vou dizer que ficámos amigos, seria uma fanfarronice da minha parte, afinal não costumo fazer amigos logo ao primeiro aperto de mão... E sobretudo seria uma "traição" ,uma quebra de solidariedade para com a minha amiga Nucha que eu conheço há mais de vinte anos, e que é uma boa e leal amiga do Norte.
Mais tivemos depois, mais tarde, uma conversa franca, "de homem para homem" (como gostam de dizer os machos). Ele fez questão de apresentar a sua versão dos factos, tanto mais que se sentia "injustiçado pelo tribunal, e crucificado na praça pública"... O tribunal condenara-o a uns tantos meses de prisão, com pena suspensa. Teve que pagar ainda uma indemnização, por danos patrimoniais e morais, à Nucha ( que ele sabia, de resto, ser minha amiga de longa data.)
Não sei porquê, devo-lhe ter inspirado confiança. Por outro lado, eu tinha a vantagem de não ser do Porto e de não viver no Porto, e muito menos na Foz.
9. O eng Vaz C... (continuo a omitir o apelido por razões óbvias) é um engenheiro químico. Fez toda a vida no Porto mas tem as suas raízes no Alto Minho.
− Corrijo: fui engenheiro químico, já não sou. É uma parte do meu passado que ainda hoje me é doloroso evocar... Mas não posso riscá-la do meu currículo, seria fazer batota comigo e com os outros que me conhecem... Afinal, sou filho e neto de engenheiros... O meu avô, esse, era engenheiro militar.
Tratavamo-nos por você, como convinha, para manter a "devida distância.... E eu, por minha vez, também evitava interrompê-lo e fazer-lhe perguntas eventualmente embaraçosas...
Poucos o conheciam na vida da Nucha. Ela, de resto, nunca o havia apresentado à Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade (**), nem muito menos aos seus colegas professores da escola secundária onde ela dava aulas de biologia (aliás, fez lá toda a sua carreira e desenvolveu projetos na área da promoção da saúde escolar; foi daí, de resto, que nos conhecemos.)
Também eram raros os amigos comuns. O Vaz C... não me explicou como é que a Nucha aparecera na vida dele, há cerca de uma década atrás. Mas é capaz de ter sido numa viagem do Pinto Lopes, a quem já chamam,no Porto, a "agência do amor" ou "agência cor de rosa"...
Nem ele nem ela faziam grande vida social. Eram pessoas discretas, cada um com a sua casa, como convinha. A dele, na Foz, a dela na rua da Alegria. Era um "casal atípico". Viviam juntos há cerca de oito anos, com completa "separação de bens", a começar pelas contas bancárias... Até o IRS faziam em separado. Ela como "solteira" (nunca se tinha casado), e ele como "divorciado", pai de 2 filhos e avô de 3 netos... Filhos e netos que ela nunca quis conhecer.
"Viver juntos" não era, para ambos, uma expressão totalmente correta. A Nucha ficava muitas vezes na casa do Vaz C... Por comodidade, por preguiça, por inércia, por ser mais espaçosa e confortável, enfim, e sobretudo, por estar junto ao mar... Mas ela não gostava do vocábulo "namorados".
− Éramos amigos que às vezes dormíamos na mesma cama − confidenciou-me ela.
Ele, às vezes, apresentava-a como "namorada", nomeadamente aos vizinhos e conhecidos. Todas as despesas de manutenção da casa (e não eram pequenas, a começar pelo condomínio) eram suportadas por ele. A Nucha contribuía "apenas com parte da alimentação". Ns despesas do dia a dia, ela gostava das "contas à moda do Porto". Os pequenos luxos, como restaurantes caros, uma vez por outro, em "dias de festa", era ele que fazia questão de pagar. De resto, ele era também "um razoável cozinheiro, um bom, garfo e um melhor copo", segundo o autoelogia que ele próprio fez, na conversa que teve comigo. A Nucha confirmou-me que "ele bebia bem, e às vezes demais". Tinha uma excelente garrafeira, de fazer inveja aos amigos e vizinhos.
Não era um desses "novos ricos da Foz", nem sequer se considerava "rico", vivia com relativo desafogo, graças ao "pé de meia" que juntara no tempo das vacas gordas, e ao longo de uma vida de trabalho. A casa na Foz ("um casarão"...) já vinha de família. O pai fora um dos pioneiros da construção das barragens no Douro. Era também engenheiro (e empresário).
− Investi na bolsa, ganhei dinheiro, soube aplicá-lo, poupei-o... Fui formiguinha, hoje posso dar-me ao luxo de ser cigarra...A Nucha só conheceu a cigarra, não a formiga...
10. Foi ele próprio que me deu alguns detalhes do seu "currículo". Tinha sido, durante mais de três décadas, um "alto quadro" de um conhecido grupo empresarial do Norte,ligado à indústria transformadora. Tivera uma "fulgurante e brilhante carreira", até à morte do fundador do grupo. (Nas fábricas do grupo, antes do 25 de Abril, o fundador era tratado por toda a gente, desde os operários às chefias, como o "Senhor engenheiro", só mais tarde é que passou a ser o "Velho" ou o "Patrão Velho".)
− Fui eu que sugeri (e preparei o dossiê de) a internacionalização do grupo e é por isso que alguns não me perdoam, a começar pelos herdeiros. Deviam-me estar gratos, se o grupo não se abre, os filhos e os netos estariam hoje na miséria, a empresa familiar que eu conhecia não teria sobrevivido aos choques políticos, económicos e tecnológicos dos últimos 30 ou 40 anos... (Hoje a empresa está sólida e tem à frente uma equipa de gestores altamente profissional, segundo apurei.)
E prosseguiu o meu interlocutor:
− Tudo corria aparentemente bem até ao dia em que lhe foi diagnosticado (ao fundador e líder do grupo,) um cancro, fatal, no cérebro. Ainda foi operado nos EUA, mas em vão. Com um prognóstico tão reservado, entrámos todos em parafuso. Ele era muito centralizador e gostava sempre de ter a última palavra, à boa maneira antiga do "eu quero, posso e mando". Este período poderia ter sido fatal para o futuro do grupo mas eu fui-lhe sempre leal e dedicado até à sua morte. De resto, não tinha funções executivas.
Convém acrescentar que o Vaz C... já antes se tinha começado a incompatibilizar com o filho mais velho do patrão, quando regressou à fábrica, vindo da América ou da Inglaterra, com um "Master", um "MBA", debaixo do braço, preparando-se para assumir, com toda a naturalidade deste mundo, o lugar que um dia, pela ordem natural das coisas, o pai lhe deveria deixar... Na realidade, não seria assim tão pacífica a sucessão...
E confessou-me, o Vaz C..., o que sentiu com a morte do "Velho":
− No dia seguinte, senti que aquela casa também já não era a minha...
A correlação de forças mudou com a modificação da estrutura acionista: entraram para o Conselho de Administração os representantes dos herdeiros e dos novos acionistas, nacionais e estrangeiros.
O eng Vaz C..., assessor para a área do desenvolvimento estratégico, braço direito e protegido do "Patrão Velho", deixou de ser convocado para as reuniões do Conselho de Administração onde tinha lugar "praticamente vitalício", com funções consultivas.
Sobretudo os herdeiros não gostavam dele, chamavam-lhe o "Rasputine", acusando-o de ter uma influência demasiado grande (e sobretudo nem sempre benéfica) sobre o "Velho".
− Substituiram o timoneiro (que morreu) e afastaram o seu "leal conselheiro"... A história repete-se...
Os novos patrões não o despediram logo, até por razões legais e por respeito a uma cláusula testamentária do "Velho"... Por "piedade" (sic), deixaram-no só, num gabinete vazio, com uma secretária, uma cadeira e um PC... Alguém lhe sugeriu que escrevesse a "história" da empresa e as suas memórias de trinta anos de colaboração com o "Patrão Velho"...
− Recusei-me, disse-lhes que não era historiador, era engenheiro...
O seu conhecimento e relacionamento com o fundador do grupo já vinha de longa data, ainda antes do 25 de Abril, quando, jovem engenheiro químico (e um dos melhores alunos do curso) fizera um estágio prolongado numa das fábricas da empresa, na Maia.
O "Velho" também vinha da "química" (ou da "alquimia", como ele costumava de dizer, para brincar com os colegas), mas era de outra geração... Apreciava, no jovem Vaz C..., além da "competência técnica", a "visão estratégica" em relação ao futuro do setor e dos negócios, a par da "arte de negociar e de resolver problemas".
− Sem falsa modéstia, eu fui um dos obreiros da "via real" do sucesso daquela empresa (e, por tabela, do grupo que veio depois a criar-se). Sobrevivemos aos desvairados anos 70, à crise do petróleo de 1973, ao 25 de Abril, às greves, saneamentos e ocupações selvagens, às nacionalizações, ao PREC, à intervenção do FMI,etc. Mas, depois, vieram os "trinta gloriosos", de princípios de 80 até à primeira década do séc. XXI"...
Não foram trinta, emendou ele:
− Se não foram trinta, foram vinte e tal anos a trabalhar bem, sem horários, às vezes sem férias, a criar riqueza, postos de trabalho, a distribuir dividendos, a abrir novas fábricas...
Por outro lado, conhecia o pai e o avô do Vaz C..., também eles engenheiros. Católico, com "sensibilidade social", o "Velho" não perdeu a oportunidade de o contratar para a sua equipa de gestores, numa época em que, nas empresas, ainda se valorizava mais a "tarimba" do que os "canudos". Por outro o conhecimento pessoal e as famosas "cartas de recomendação" também eram como o código postal, invenção muito mais recente: eram meio caminho andado para se arranjar um bom emprego numa boa empresa...
Mais do que simples colaborador, o eng Vaz C... tornou-se um amigo e até um confidente do "Velho".
Resumindo:
− Eu era um "colarinho dourado" bem pago, comecei a ser vítima de "bullying", como se diz agora. Arrumaram-me para um canto, como um trapo velho... A maior humilhação da minha vida... Devia ter lutado mais, mas faltaram-me as forças... O braço de ferro acabou por quebrar pelo elo mais fraco da cadeia. Estive de baixa psiquiátrica durante três anos, e depois a Segurança Social mandou-me para o esquema da invalidez... Hoje estou reformado, isto é, arrumado. A única coisa que me aconteceu nestes últimos dez anos foi ter conhecido a Nucha. Infelizmente acabo de a perder, há um ano atrás, pela coisa mais estúpida que fiz na minha vida, que foi bater numa mulher.
Fez-se um silêncio prolongado, embaraçoso, o meu interlocutor ia sendo traído pela emoção, recompõs-se, puxou de um lenço, assoou-se e prosseguiu:
− Há coisas que fazemos que não têm volta: a rajada de G3 que se dispara à queima-roupa contra um pobre diabo que tenta iludir a vigilância dos seus captores, mesmo de mãos algemadas; a pedra que se lança no pátio da escola, e que vai partir a cabeça de um inocente; a gadanha da morte que varre a autoestrada e que ceifa a vida daqueles que te deram o ser; enfim, uma mão, pesada, que se abate sobre a cara da mãe dos teus filhos...
Depreendi, ou deduzi eu, que eram fantasmas do seu passado: a guerra colonial, o acidente mortal com os seus pais, o divórcio litigioso do seu primeiro (e único) casamento...
11. Estava à espera que ele me contasse o que se passara exatamente "naquela malfadada noite" em que a Nucha regressara de Lisboa, de um congresso internacional... Mas ele, de repente, entrou num mutismo extremamente embaraçoso para mim... Respeitei o seu silêncio, levantei-me, despedi-me e nunca mais o voltei a encontrar.
Só mais tarde é que consegui saber pormenores, através da Nucha, sobre o que se havia passado nessa noite fatídica, para ambos, que marcou o fim de uma relação.
(Continua)
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Notas do editor:
(**) Vd. postes de:
1 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19352: A Galeria dos Meus Heróis (16): Os caminheiros do parque da cidade - Parte I (Luís Graça)
1 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19353: A Galeria dos Meus Heróis (17): Os caminheiros do parque da cidade - II (e última) parte (Luís Graça): com os meus votos para o novo ano que aí vem, o 2019. Porque a saúde, afinal, não serve para mais nada... a não para sermos livres e felizes! (Luís Graça)