Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 4 de agosto de 2021
Guiné 61/74 - P22432: Historiografia da presença portuguesa em África (274): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (11) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Novembro de 2020:
Queridos amigos,
Este trabalho de Ângela Guimarães aparece temporalmente datado, circunscrito aos primeiros vinte anos da Sociedade de Geografia, o porquê da sua criação, surge um tanto tarde e a más horas, a cobiça de velhas e novas potências coloniais ronda espaço que os portugueses reivindicam mas não ocupam. Um tanto à moda nacional, cria-se a Sociedade enquanto o governo de Andrade Corvo cria estrutura semelhante nos quadros da administração, inevitavelmente surgiram conflitos e rivalidades. A capacidade científica da Sociedade prevaleceu, o escol científico e económico posicionou-se na Sociedade, basta recordar Chamiço, o detentor do Banco Nacional Ultramarino, e o industrial Alfredo da Silva, eles têm os seus interesses e a Sociedade não deixa de cultivar os seus heróis, primeiro os exploradores e depois os militares que triunfam nas campanhas de pacificação e ocupação. Os monarcas portugueses tinham que alinhar com este culto de heróis e socorrer-se dos diferentes estudos que a Sociedade carreava para apoiar as manobras diplomáticas do governo tanto na definição de fronteiras como no seguimento de políticas de apaziguamento e tratados de comércio com outras potências colonizadoras. Passada a pente fino esta obra de Ângela Guimarães, que a todos os títulos se recomenda, vamos continuar as leituras.
Um abraço do
Mário
O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (11)
Mário Beja Santos
A primeira obra que aqui se recenseia intitula-se "Uma Corrente do Colonialismo Português", Ângela Guimarães, Livros Horizonte, 1984, trabalho realizado entre 1969 e 1972, partiu de um conjunto apreciável de interrogações sobre a criação do colonialismo, a sua natureza dependente e incapacidade de conversão e apurar o comportamento das diversas classes e grupos sociais face à questão colonial, ou seja, como se elaborou a ideologia colonialista e saber se esta se revestiu da mesma feição todo o tempo. Dada a vastidão de questões a autora escolheu o conhecimento da Sociedade de Geografia, um grupo de pressão de grande influência, estudou-o no período de 1875 a 1895, dizendo tratar-se do período crucial para o estabelecimento do colonialismo moderno na África Austral.
Começa por dizer que a fundação da Sociedade aparece em novembro de 1875, por decreto de Andrade Corvo, isto quando simultaneamente se cria no Ministério dos Negócios da Marinha e do Ultramar uma comissão permanente incumbida de coligir, ordenar e aproveitar todos os documentos que pudessem esclarecer a Geografia, a História Etnológica, a Arqueologia, a Antropologia e as Ciências Naturais em relação ao território português e muito especialmente às províncias ultramarinas – era a Comissão Central Permanente da Geografia, com tantas afinidades, estando a Sociedade sem subsídios nem lhe tendo facilitado o Governo uma sede condigna, ambas as entidades viveram num quadro de rivalidade e desgaste. A inversão desta situação deu-se em 1880 quando o Visconde de S. Januário, sócio fundador da Sociedade recebeu também como seu pelouro esta Comissão Central Permanente de Geografia. Atenda-se que quando foi criada a sociedade já existiam, um pouco por toda a parte, 40 sociedades do mesmo tipo.
A autora faz referência ao folgado conjunto de diligências para ligar Angola a Moçambique, destaca a travessia que Silva Porto efetuou em 1853-54, encontrou-se com Livingston, mas esta exploração não foi reconhecida pelo governo português. Estávamos em corrida para legalizar o território do III Império. Quando apareceu a Sociedade já Livingston tinha realizado a sua segunda viagem, Cameron já tinha regressado da sua travessia, Stanley e Savorgnan de Brazza também já tinham partido para as suas viagens estratégicas na África Central. Observa a autora que uma análise das atas e dos boletins da Sociedade, de 1876 a 1896, leva-nos a considerar três fases fundamentais de atividade: de 1876 a 1880, a Sociedade concentra todos os esforços em garantir o lugar de Portugal no movimento expansionista; de 1880 a 1882, a Sociedade esforça-se sobretudo para fazer um balanço das forças nacionais disponíveis para investir na competição; de 1882 a 1889, a Sociedade dedica os seus esforços a orientar a política e a gestão coloniais sobre o conjunto do Império, no entanto, o centro da sua atenção era Moçambique. Era uma corrida contra o tempo, recorde-se a citação de Luciano Cordeiro que consta da ata de 7 de julho de 1876, onde ele diz que umas das ideias principais que haviam presidido à fundação da Sociedade fora o reconhecimento da urgente necessidade e do imperioso dever imposto a Portugal pelas suas tradições e pela sua situação de segunda potência colonial na Europa.
Outra manifestação de rivalidade com a Comissão Central Permanente de Geografia e a Sociedade teve a ver com o envio de uma exploração científica à África Central, cada uma das entidades dava palpites sobre o sentido da viagem. Na opinião de Luciano Cordeiro e da própria sociedade, a expedição devia concentrar-se no reconhecimento das bacias do Zaire e suas relações com o Zambeze e os grandes lagos. Um outro protagonista entrava em cena, na corrida em África, Leopoldo da Bélgica. Para legitimar posições, o monarca belga promoveu em Bruxelas a Conferência Internacional de Geografia, Portugal não foi convidado. Em Bruxelas cria-se a Associação Internacional Africana e Portugal adere. Entretanto, a Sociedade cria a Comissão Nacional Portuguesa de Exploração e Civilização da África, que vemos tratada nas atas pelo nome de Comissão Africana. Nesta corrida de competição as velhas e novas potências colonizadoras andam no afã de criarem estações civilizadoras, isto é, pontos de fixação de colonos, missionários e comerciantes. Vendo-se cercado por estes competidores, Portugal agarra-se ao Direito Tradicional, que estava em vias de ficar ultrapassado, mas foi esta base histórica que permitiu manter a posse de Lourenço Marques por arbitragem internacional e é também nessa base que vai conseguir conservar tão vastos domínios reais e potências na Conferência de Berlim.
Vê-se claramente nas atas que a Sociedade fez um esforço enorme para se impor no estrangeiro, permutando publicações, angariando sócios, trazendo conferencistas, apresentando trabalhos em conferências internacionais e muito cedo o Museu da Sociedade passou a ser alvo da curiosidade científica. Passando em revista os grandes temas, a autora lembra-nos a questão das missões. Todos estavam de acordo sobre a utilidade das missões, mesmo os que pensavam que o Africano ainda não estava à altura de aceitar o verdadeiro cristianismo, e havia também uma corrente que considerava a religião como inútil ou prejudicial, no termo deste amplo debate fez-se apelo à reforma do ensino no seminário de Cernache do Bonjardim.
Questionando a ideologia imanente a este grupo, diz a autora:
“A fração da burguesia que constitui a corrente dominante da Sociedade de Geografia é extremamente criativa. Mas não detém o poder político nem possui força económica para, por si só, executar o grandioso projeto a que lançou mãos. Conta com um bom número de distintos intelectuais bem informados e lúcidos. Tem uma forte componente nacionalista. Sente-se nela um complexo de abafamento e uma enorme vontade de rebentar as cadeias. Para alcançar o seu objetivo, vai lançar mão dos meios de que dispõe para elaborar uma ideologia que por um lado a sustente e lhe dê o alento para que os grandes cometimentos e faz uma grande divulgação para as realizações”.
E escreve mais adiante:
“Na Sociedade de Geografia dos anos 1870, e mesmo 1880, discute-se muito. Fazem-se exposições sobre os mais diversos temas, seguem-se propostas, discutem-se, apoiam-se, mandam-se à respetiva comissão, redigem-se relatórios”.
Exaltam-se os caminhos-de-ferro, é premente levar a civilização aos lugares mais remotos. Reconhece-se um papel crucial às explorações, é preciso definir os limites do território português. O governo diz que sim às estações civilizadoras, falta o dinheiro essencial para as criar. Teima-se em formar quadros administrativos capazes, daí o curso colonial português, Teixeira de Vasconcelos irá sugerir a criação de um instituto em que se ensinariam as línguas africanas, os alunos de Cernache do Bonjardim também deveriam ter acesso a tais disciplinas. Uma proposta que deu grande polémica, se deveríamos impor a nossa língua, se se deveria apoiar uma espécie de língua crioula destinada a ser a língua comercial da África Austral. Barbosa do Bocage introduz um outro elemento nesta discussão, a sua interpretação da colonização, é cru e diz verdades com punhos:
“Na África servimo-nos dos negros como auxiliares para o trabalho. Temos gasto uns poucos séculos a não fazer nada, deixando as hordas africanas entregues a si e aos seus bárbaros usos, contentando-nos apenas com uma mudança exterior nas suas crenças religiosas, tratando-se de espoliar os povos e enviando-lhes o refugo da nossa população como elemento civilizador”.
Este importante livro aqui invocado para ajudar a conhecer melhor o pensamento dos homens que fundaram e viveram intensamente os ideais do III Império vai finalizar com o capítulo dedicado à crise do Ultimatum. Deixa-se claro que nas atividades da Sociedade participaram personalidades dedicadas de diversos modos à colonização. Temporalmente a obra termina quando Moçambique já está no olho do furacão das rivalidades imperialistas. E vamos continuar com outra bibliografia.
(continua) Vitral (1922), representando Pedro Álvares Cabral (descoberta do Brasil, 1500) e Gago Coutinho e Sacadura Cabral (primeira travessia aérea do Atlântico Sul, 1922). Sociedade de Geografia de Lisboa.
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Nota do editor
Último poste da série de 28 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22412: Historiografia da presença portuguesa em África (273): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (10) (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P22431: O nosso livro de estilo (13): Cumprir e fazer cumprir as nossas regras editoriais, prevenindo o risco do nosso blogue, respeitável e velhinho, com mais de 17 anos, ser bloqueado ou até banido do Blogger, como aconteceu ontem com o "apagão" de 3 horas (Os editores)
Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > c. 1970 > 2.º Grupo de Combate da CCAÇ 12, deslocando-se numa lala ou bolanha abandonada, "em terra de ninguém", no subsetor do Xime ou do Xitole...
Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Guiné 61/74 - P22430: Parabéns a você (1982): TCor Inf Ref Rui Alexandrino Ferreira, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857 (Fulacunda, Bissorã e Mansoa, 1965/67); ex-Cap Inf, CMDT da CCAÇ 18 (Aldeia Formosa, 1970/72)
Nota do editor
Último poste da série de 30 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22415: Parabéns a você (1981): Amaral Bernardo, ex-Alf Mil Médico da CCS/BCAÇ 2930 e CCAÇ 6 (Catió e Bedanda, 1970/72); Júlio Costa Abreu, ex-1.º Cabo Comando do Grupo Centuriões (Guiné, 1964/66) e Victor Tavares, ex-1.º Cabo Caçador Paraquedista da CCP 121/BCP 12 (Guiné, 1972/74)
terça-feira, 3 de agosto de 2021
Guiné 61/74 - P22429: In Memoriam (402): 1.º Cabo Miliciano Fernando Pacheco dos Santos, da CART 2673, caído em combate, em Empada, no dia 7 de Julho de 1970 (Juvenal Danado, ex-Fur Mil Sapador Inf)
Um herói de Troino
Venho falar de juventude sacrificada na Guerra Colonial, de heróis que pagaram o cumprimento de deveres a que foram obrigados ou para que se ofereceram, com o mais elevado dos sacrifícios, o sacrifício da vida. Fernando Pacheco dos Santos, setubalense de Troino (bairro de Setúbal) morto em combate na Guiné-Bissau, é um desses lídimos heróis.
Encontrei-o em Nhala, sul da Guiné, uma aldeia onde estava sediada uma companhia do meu batalhão. Por se situar numa zona difícil, a unidade era reforçada com pelotões que vinham de outras companhias do setor. Cada grupo de combate permanecia ali umas semanas, ocupando-se em patrulhas e emboscadas, sendo depois rendido por outro.
Fui pra lá com quatro rapazes do meu pelotão, para construirmos a rede de arame farpado em torno da aldeia – os postes, a rede e os cavalos de frisa estavam a desfazer-se, e havia o perigo de um assalto do inimigo, o que acontecera numa comissão anterior. O Fernando era 1.º Cabo-Miliciano (estranho, dado que todos os cabos milicianos eram promovidos a furriéis quando eram mobilizados – não me recordo se chegámos a falar sobre o assunto) de um grupo de combate de Empada, povoação a cerca de trinta quilómetros. Conhecíamo-nos da Escola Industrial e Comercial, mas a lidação era pouca. No entanto foi quanto bastou para nos abraçarmos como grandes amigos e confraternizarmos quando foi possível, falando das "nossas guerras" e, inevitavelmente, de Setúbal, da Escola e do Vitória, das praias e da sardinha assada, da família e dos amores, dos medos, das saudades que amargavam tanto.
A guerra dele decorrera até então sem grandes sobressaltos. Além disso, a região de Empada era farta em animais de abate, caça, peixe (do Rio Grande de Buba, ali à mão), hortícolas, uma abundância contrastante com as penúrias da Guiné, o que permitia comerem bem no quartel – coisa que não acontecia em Nhala. Era em Empada que o Fernando se sentia bem, e estava desejando de abalar – considerava Nhala um sítio muito perigoso, e era, de facto, além de detestar as misérias do rancho.
Na manhã em que o Pacheco regressou à sua unidade, desejámos um ao outro as maiores felicidades para o tempo que faltava cumprir, e que não era pouco, nos dois casos. E ele, meio a brincar, meio a sério, incitou-me a acabar a rede de arame farpado o mais breve possível, para me "raspar dali" com os meus homens.
Pouco tempo após o regresso a Empada, o pelotão do Pacheco saiu uma vez mais para o mato. Passo a descrever o que me foi relatado pelo comandante do pelotão, o aspirante a oficial miliciano (também não sei dizer porquê, uma vez que deveria ser alferes) Agostinho Correia Silva, numa viagem de avioneta que fizemos de Aldeia Formosa, o meu aquartelamento, até Bissau.
Itinerário onde ocorreu o encontro entre os nossos militares e o PAIGC que levou à morte o 1º Cabo Mil Fernando Pacheco dos Santos entre outros nossos camaradas.
Infografia Luís Graça & Camaradas da Guiné - Carta de Empada, 1:50.000
Emboscados, viram surgir um numeroso grupo inimigo. Travou-se o combate, com muitas baixas do nosso lado, logo aos primeiros disparos e rebentamentos. Capazes de combater, restaram uns poucos, entre eles o aspirante, com ferimento ligeiro. Aguentaram sucessivas investidas dos guerrilheiros. Valeu-lhes não terem sido todos mortos ou levados, o socorro que entretanto chegou do quartel. No final, os nossos sofreram 7 mortos[***], 8 feridos graves e três ligeiros. O comandante de pelotão, apercebendo-se de que o Pacheco estava ferido, ordenou ao enfermeiro que o socorresse.
O meu amigo, ferido por um estilhaço numa virilha, rejeitou tratamento, garantindo que aguentava e que outros estavam mais necessitados de ajuda do que ele. Pouco tempo passado, porém, chamou o aspirante e, numa grande aflição, pôs-se a dizer-lhe: "Eh, pá, vou morrer! Vou morrer!". O oficial desviou-lhe a mão que ele tinha sobre o ferimento e viu como o sangue brotava da artéria. Daí a nada, o Pacheco morria-lhe nos braços. Aos 22 anos, caía a tarde de 7 de julho de 1970.
Fiquei deveras consternado quando soube. Parecia-me mentira que aquilo tivesse acontecido ao Fernando Pacheco, a ele, que me confessara, há duas ou três semanas, ter medo de estar em Nhala e desejar o regresso "ao céu", como chamava a Empada.
Aqui lhe presto a minha singela, mas muito magoada homenagem, alargando-a aos outros 8 rapazes que frequentaram a Escola Industrial e Comercial de Setúbal, aos 38 do concelho, aos 199 do distrito e aos quase 9000 que perderam a vida na Guerra Colonial.
Até sempre, amigo Fernando Pacheco! Repousem em paz, companheiros!
Memorial existente no átrio da entrada principal da antiga Escola Industrial e Comercial de Setúbal. O Fernando Pacheco dos Santos é referido como furriel miliciano, posto a que terá sido promovido postumamente.
Fontes utilizadas, com os devidos agradecimentos:
- Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné – publicações do ex-furriel miliciano e ex-combatente José Marcelino Martins;
- Portal UTW Dos Veteranos da Guerra do Ultramar;
- Núcleo da Liga dos Combatentes de Setúbal;
- Caderno da edição do jornal «Expresso» de 30/04/1994.
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Notas do editor:
[*] - Vd. poste de 2 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22428: Tabanca Grande (524): Juvenal José Cordeiro Danado, ex-Fur Mil Sapador de Inf da CCS/BCAÇ 2892 (Aldeia Formosa, 1970/71), que se senta à sombra do nosso poilão no lugar 847
[**] - Vd poste de 12 DE JUNHO DE 2010 > Guiné 63/74 – P6581: Fichas de Unidades (7): Companhia de Artilharia 2673 - CART 2673 (José Martins)
[***] - Foram estes os militares mortos na emboscada de 7 de Julho de 1970:
- 1º Cabo At Agostinho do Vale Almeida (Seia)
- Sold Mil Ansumane Jaló (Cacheu)
- Sold Mil Ansumane Mané (Fulacunda)
- Sold At Ercílio da Silva Medeiros (Odemira)
- 1º Cabo Mil Fernando Pacheco dos Santos (Setúbal)
- Sold At José Constantino Gonçalo (Caldas da Rainha)
- CMDT Sec Mil Malan Cassamá (Fulacunda)
Último poste da série de 27 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22409: In Memoriam (401): Otelo Nuno Romão Saraiva de Carvalho (1936-2021), com quem trabalhei lado a jado e fiz amizade, em 1971, na Rep ACAP, no QG/CCFAG, na Fortaleza da Amura (Ernestino Caniço, ex-Alf Mil Cav, e hoje médico)
segunda-feira, 2 de agosto de 2021
Guiné 61/74 - P22428: Tabanca Grande (524): Juvenal José Cordeiro Danado, ex-Fur Mil Sapador de Inf da CCS/BCAÇ 2892 (Aldeia Formosa, 1970/71), que se senta à sombra do nosso poilão no lugar 847
Caros amigos Editores,
Tenho o grato prazer de vos enviar o "pedido de adesão" ao Blogue por parte do nosso camarada da Guiné, Juvenal José Cordeiro Danado. Pediu-me para "apadrinhar" o pedido (quando chegar a Páscoa não sei se terei capacidade para fazer o que o Vinhal disse ser a minha obrigação de padrinho...) e para tal enviou-me o texto de apresentação, com as duas fotos da praxe, onde de forma breve dá conta do seu percurso militar.
Acrescenta também um texto, em jeito de "jóia", que penso que pode muito bem ser publicado, no seguimento da apresentação, ou em "post" próprio, como melhor entenderem, já que se trata de uma homenagem póstuma a um camarada falecido em consequência de ferimento em combate.
O Juvenal, para além da actividade que desenvolveu, inicialmente na indústria e posteriormente no ensino, do qual se reformou recentemente, tem desenvolvido interessante e valiosa actividade de colaboração no jornal "O Setubalense", com artigos variados, desde o recordar episódios da sua passagem pela Guiné até assuntos do quotidiano, sempre com elevado sentido humanista e de preocupação social.
Mais recentemente, porque passou a ter mais tempo, também intervém num grupo do Facebook dedicado a "Coisas de Setúbal", onde fez publicar o texto de homenagem que se anexa.
Saudações
Hélder Sousa
Sou Juvenal José Cordeiro Danado, natural de Aires (uma aldeia do concelho de Palmela), onde nasci a 19 de maio de 1948, e em cuja escola fiz o ensino primário.
Frequentei depois a Escola Industrial e Comercial de Setúbal, onde tirei o curso de Formação de Serralheiro. Foi como serralheiro que trabalhei até à tropa.
Fui Furriel Miliciano Sapador de Infantaria na Guiné, de janeiro de 1970 a setembro de 1971.
Fiz a minha recruta no Destacamento da Escola Prática de Cavalaria (Santarém, 2º turno de 1969). A especialidade decorreu no CISMI de Tavira. A seguir fui colocado no RI 16 (Évora), como Cabo Miliciano, e aí fui mobilizado para a Guiné, para a CCS do BCaç 2892, sede em Aldeia Formosa - Quebo.
Quando regressei, vim viver para Setúbal, onde resido, no gozo (e nas mágoas) da aposentadoria, após uma carreira profissional e contributiva repartida pela indústria e pelo ensino.
Sou seguidor do blogue e decidi solicitar a adesão. Para tanto, envio uma foto dos tempos da Guiné e a mais atual que possuo.
Segue também um texto que fiz publicar recentemente no grupo «Coisas de Setúbal» (facebook), em que procuro homenagear um amigo e colega da EICSetúbal e, por seu intermédio, os restantes alunos da EICS e todos os nossos camaradas que perderam a vida na Guerra Colonial. Se lhe acharem algum interesse para publicação no blogue, façam o favor.
2. Comentário do editor:
Caro Juvenal
Deixa-me dar-te os parabéns pelo padrinho que escolheste, o Hélder Valério de Sousa, é uma pessoa muito estimada entre nós, não desmerecendo os restantes camaradas que compõem a nossa tertúlia, porque é alguém que procura o equilíbrio entre posições e discussões, às vezes acaloradas, na defesa de pontos de vista nem sempre concensuais. Não é por acaso que se disponibilizou para a função de colaborador permanente, que o faz manter atento ao que por aqui se passa, principalmente aos ataques de alguns "penetras" que tentam a todo o custo deixar o seu "veneno" a coberto do anonimato mais ou menos camuflado.
Mas hoje é o teu dia. Aqui não temos praxes nem cerimónias de iniciação, só a alegria de ver juntar-se a nós mais um camarada de armas, daqueles que como os que já cá estão, palmilhou aquele pequeno território de África, tão estranho, em todos os sentidos, a quem tinha deixado a sua família, o seu emprego e os seus estudos.
É já um lugar-comum a afirmação de que fomos fazer uma guerra que não queríamos e para a qual nada tínhamos contribuído até então. Muitas vidas em vão se perderam e muitas das mazelas que trouxemos só a terra as vai curando.
Fica o convite/pedido para o teu contributo no espólio do nosso Blogue, até porque terás, agora, mais um pouco de tempo disponível. Aceitamos fotos, acompanhadas das respectivas legendas, e textos das memórias dos tempos passados na Guiné.
Amanhã sairá a tua primeira colaboração, a homenagem que fizeste ao teu (nosso) camarada Fernando Pacheco dos Santos.
Deixo-te-te um abraço de boas-vindas em nome dos editores e da tertúlia, que somos nós todos afinal. Vais sentar-te no lugar 847, como todos, à boa sombra do nosso "poilão sagrado".
Ao teu dispor, o camarada e novo amigo
Carlos Vinhal
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Nota do editor
Último poste da série de 2 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22426: Tabanca Grande (523): O cap art Otelo Saraiva de Caravalho, com quem trabalhei na Rep ACAP, QG/CCFAF, em 1971, ao tempo do major inf Ramalho Eanes e do ten cor inf Mário Lemos Pires (Ernestino Caniço)... Em sua memória,.é reservado o lugar nº 846, à sombra do nosso poilão
Guiné 61/74 - P22427: Blogoterapia (299): Ter muita gente por perto não significa sempre estar-se acompanhado (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR da CART 3493)
Amigo Carlos
Faço votos para que te encontres de boa saúde.
Hoje, vai mais um pequeno texto que não tendo nada a ver com a guerra, tem a ver com a vida de muitos que lá foram. Vou publicar no facebook. Se entenderes que merece ser publicado, pública.
Recebe um abraço
António Eduardo Ferreira
Ter muita gente por perto não significa!...
Não é novidade para ninguém que existem algumas pessoas que se aproximam de nós quando delas não precisamos e se afastam quando necessitamos da sua ajuda.
Para que essas situações possam ser evitadas, é necessário procurar saber de onde vêm e o porquê dessas aproximações!... Nem sempre é fácil agir assim, mas é a única forma de evitar acontecimentos, por vezes bastante desagradáveis.
Existem pessoas que sem saber muito bem porquê, gostam de ter sempre muita gente por perto. Outras, mesmo no meio de muita gente, chegam a sentir-se sós.
Já aconteceu a alguns que estando sozinhos, a sentirem-se confortáveis à sombra fresca de uma árvore, aparecerem junto deles várias pessoas. Assim que o sol encobriu… eles voltaram a ficar como antes!... Quando tal acontece, antes de se afastarem, alguns ainda dizem que têm de ir embora... Outros, vão e nada dizem.
Afinal, mesmo com muita gente por perto… nem sempre significa estar-se acompanhado.
António Eduardo Ferreira
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Nota do editor
Último poste da série de 19 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22387: Blogoterapia (298): "Safety, first"?... Então eu não posso partilhar os meus "contactos pessoais" com aquele ou aqueles camaradas que deles precisam? (João Crisóstomo, Nova Iorque)
Guiné 61/74 - P22426: Tabanca Grande (523): O cap art Otelo Saraiva de Carvalho, com quem trabalhei na Rep ACAP, QG/CCFAF, em 1971, ao tempo do major inf Ramalho Eanes e do ten cor inf Mário Lemos Pires (Ernestino Caniço)... Em sua memória,.é reserado o lugar nº 846, à sombra do nosso poilão
Foto 1A > Guiné > Bissau > Amura > QG / CC FAG > Rep ACAP (Assuntos Civis e Acção Piscológica) > 1971 > Uma foto histórica: o Major Ramalho Eanes, de óculos de sol (Diretor da Secção de Radiodifusão e Imprensa). à ponta esquerda; o ten cor Lemos Pires (chefe da repartição), na ponta direita; o alf mil Ernestino Caniço está ao centro, na segunda fila.
Foto 1B > Guiné > Bissau > Amura > QG / CC FAG > Rep ACAP (Assuntos Civis e Acção Piscológica) > 1971 > Uma foto histórica: na segunda fila, o então capitão de artilharia Otelo Saraiva de Carvalho, na ponta esquerda, na segunda fila; ao centro, o terceiro a contar da direita deve ser o então já ten cor Luz Almeida (, será comandante da Polícia Militar em 1973).
Foto 2 > Guiné > Bissau > Fortaleza da Amura > QG/CCFAG > 1971 > Rep ACAP (Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica) > Departamento de Fotocine > Ao centro, o Cap Art Otelo Saraiva de Carvalho e à sua esquerda o Alf Mil Cav Ernestino Caniço, seu colaborador.
Fotos (e legendas): © Ernestino Caniço (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Subject: Otelo
Amigo Luís Graça:
Perante o teu convite para umas referências à Rep ACAP, a propósito do Coronel Otelo Saraiva de Carvalho, pela sua empatia, munificência e humanismo, vou espichar algumas linhas, tentando que, após meio século, não seja atraiçoado pela memória.
Como já tinha referido, fiz parte da Rep ACAP, no QG/CCFAG, na Fortaleza da Amura -Bissau no ano de 1971. À data era chefe da repartição o Major Lemos Pires (posteriormente promovido a Tenente Coronel).
Faziam parte, com funções de relevo, o Major Ramalho Eanes, o Major Luz Almeida, o Capitão Otelo Saraiva de Carvalho, o Alferes Arlindo Carvalho e o 1º Cabo João Paulo Dinis.
O Major Ramalho Eanes era o Diretor da Secção de Radiodifusão e Imprensa do Comando-Chefe. Com ele partilhei a responsabilidade da biblioteca, além de outros contactos nas nossas funções.
Na manobra psicológica em curso no T.O. o Capitão Otelo era Relações Públicas por mim coadjuvado e dentro da missão da Rep ACAP, com enfoque nos contactos internacionais, acompanhando figuras proeminentes, nomeadamente jornalistas, atores, senadores, etc., instalando-os e preparando programas, que o Tenente Coronel Lemos Pires apresentava ao General Spínola.
O louvor que me foi atribuído pelo Agrupamento de Bissau, foi redigido pelo Capitão Otelo por indicação do Tenente Coronel Lemos Pires.
Para a entrada na ACAP (após a desativação do meu pelotão Daimler) tinha-me sido destinado a Secção de Assuntos Civis. À minha chegada e pelos contactos anteriores, entendeu o Major Lemos Pires que eu tinha perfil para a Ação Psicológica, pelo que me colocou na Secção de Operações Psicológicas, dirigida pelo Major Luz Almeida.
Competia-me então (entre outros) dar apoio logístico ao General Spínola, Governador e Comandante Chefe, nas suas intervenções nas populações, bem como a feitura de ofícios para as entidades civis e militares por determinação do chefe da repartição.
Numa outra área intervinha na sensibilização das populações, nomeadamente através de
obras e estruturas efetuadas pelas nossas tropas. A gestão e fruição destas informações estavam a cargo do Alf mil Arlindo Carvalho, de acordo com as normas emanadas superiormente e com a supervisão do Major Ramalho Eanes.
O 1º Cabo João Paulo Diniz animava a rádio das Forças Armadas na Guiné-Bissau, sendo locutor no Pifas (Programa de Informação para as Forças Armadas).
Espero ter correspondido ao solicitado.
Um abraço, Ernestino Caniço
Médico – Chefe Serviço MGFGestor Serviços Saúde – Ordem Médicos
Pós Graduação em Direito da Medicina – Faculdade Direito Universidade de Coimbra
2. Comentário do editor L.G.:
Dois camaradas, o José Belo e o Ernestino Caniço, já aqui fizeram o elogio fúnebre do cor art Otelo Saraiva de Carvalho (1936-2021), que fez duas comissões de serviço em Angola e a última na Guiné (1970/73). (*)
Independentemente do seu lugar na nossa História, ele aqui é tratado como qualquer outro "camarada da Guiné", desde que tenha referências no nosso blogue. E o Otelo tem quase duas dezenas.
O Otelo faleceu
Segundo li no jornal
não haverá luto nacional
para o mentor da Revolução.
Dele ficará, pois, "enfermo".
Este, será, um termo
que indico como senão.
Mas já consta da História,
à margem da reles escória.
O povo não o esqueceu.
À despedida, acorreu.
____________
Notas do editor:
25 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22402: In Memoriam (399): Coronel Otelo Saraiva de Carvalho (1936 - 2021), autor do Plano de Operações do 25 de Abril de 1974 e que cumpriu uma comissão de serviço na Guiné entre 1970 e 1973
Guiné 61/74 - P22425: Notas de leitura (1368): “Repórter de Guerra”, por Luís Castro; Oficina do Livro, 2007 (2) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Setembro de 2018:
Queridos amigos,
Começo com uma declaração de interesses quanto a Luís de Castro. Conheci-o pessoalmente em setembro de 2018, fora convidado a participar no programa intitulado "Sociedade Civil". Enquanto conversava com um antigo aluno da Escola Superior de Comunicação Social, Castro rodopiava pelo estúdio e apanhou o tema da conversa que eu travava com o antigo aluno, falava-se da Guiné. E mal iniciado o programa, num aparente desconcerto com a conversa prevista, Castro dispara-me perguntas sobre a Guiné, a guerra, a experiência da cooperação, a despedida dos antigos camaradas, em 2010, os livros, a omnipresença da Guiné. Tudo espontâneo, sem rede, conversa mais improvável não podia haver. E não escondemos como aquele território cava fundo no nosso coração. Li depois este trabalho, do melhor que há ao nível da reportagem. Impossível não partilhar convosco textos tão luminosos, aceita-se que é clara certidão da verdade que o repórter experimentou e passou a escrito.
Um abraço do
Mário
Repórter de guerra: Luís Castro três vezes nas convulsões da Guiné (2)
Beja Santos
Luís Castro é um jornalista de quem os outros profissionais não regateiam elogios: que é inspirador, sabe enfrentar os cenários mais difíceis, assumindo riscos, que tem a fibra dos grandes repórteres, que tem o salto de tigre sobre tudo quanto seja matéria de notícia ou de reportagem, por exemplo. Neste livro “Repórter de Guerra”, Oficina do Livro, 2007, onde o autor colige trabalhos que efetuou em Angola, Cabinda, Guiné-Bissau, Timor-Leste, Afeganistão e Iraque, escolheu-se, como é óbvio, o seu trabalho na Guiné, já ocorreu o período mais dramático da guerra civil, estamos agora no termo dessa guerra, em 1999. Aterra no Senegal onde tem a cabeça a prémio, passa ignorado pelos serviços de fiscalização e daqui parte para Bissau num bimotor. Chegou mesmo a tempo de apanhar o tiroteio do último ato do conflito político-militar: “Fiquei parado mesmo atrás de uma antiaérea que é rebocada por um camião e que vai ser usada para disparar sobre as linhas inimigas. Os dois canos estão voltados para mim, a não mais de dois palmos do outro lado do vidro. Há soldados que correm de um lado para o outro, tiros que não se sabe de onde vêm e rajadas disparadas sem nexo. É a confusão total.”. Nino Vieira já está na Embaixada Portuguesa. Luís Castro considera que a peça ficou fantástica, dá a visão dos dois lados. “Nas ruas, o povo festeja aquilo que chama a terceira independência e o pessoal da Junta Militar leva-nos a visitar os prisioneiros de guerra que estão dentro do aeroporto, na base aérea. Há desde ministros, membros do Governo, colaboradores de Nino, comandantes militares, oficiais superiores e cinco soldados. Amontoam-se vinte e tal em pouco mais de dez metros quadrados. Os que não têm espaço cá em baixo penduram-se nas grades das janelas. O cheiro é nauseabundo e os prisioneiros escondem a cara quando se abrem as portas das celas e nos vêm. Seguimos à procura do líder da Junta Militar, que, quando me vê, apressa o passo na minha direção, eu estendo-lhe a mão mas ele puxa-me e abraça-me durante vários segundos. Mais parece o abraço de um pai ao filho. ‘Você foi o primeiro jornalista a vir ter connosco quando começou a guerra e voltou a ser o primeiro agora que a guerra acabou’. É um homem feliz. Venceu. Nino Vieira acabara de assinar a rendição incondicional.”
Nos dias seguintes, o repórter dá conta do drama dos hospitais e da gravidade das minas. “No Hospital Simão Mendes vou encontrar pessoas com queimaduras gravíssimas, crianças mutiladas, mulheres baleadas ou perfuradas por estilhaços de bombas, homens com os membros gangrenados e gemidos de quem já não tem forças para gritar. Falta tudo. Visito a seguir um local de reabilitação para crianças amputadas e dedico uma das reportagens ao Nilton, um menino de sete anos. Há três meses, um estilhaço arrancou-lhe a perna abaixo do joelho. Hoje, o pai levou-o pela primeira vez ao centro. A prótese custar-lhe-á o equivalente a 190 euros. Não sabe como vai pagar. Ajudo-o com 35 euros. Quando a reportagem foi para o ar choveram dezenas de telefonemas na RTP de pessoas de Portugal a oferecer-se para lhe pagar a prótese. Aconselho os interessados a fazê-lo através da Embaixada em Bissau para que os donativos não se percam à chegada”. E lembra o terror que é a herança das minas deixadas pela guerra, quer sejam antipessoal ou anticarro: “Deixadas pelas duas partes envolvidas no conflito, há que desativá-las antes que causem mais mortos entre os civis. Decidimos acompanhar uma dessas equipas de desminagem dos homens da junta militar. Ao todo, garantem, já encontraram e recolheram mais de duas mil minas anteriormente colocadas no meio das tabancas”.
Em 2003, Luís Castro regressa à Guiné para presenciar em direto algo como uma trágica comédia, a destituição de Kumba Ialá, será mesmo convidado a assistir às reuniões que antecedem o golpe de Estado que retirou os plenos poderes ao homem do barrete vermelho. Ao aterrar em Bissalanca, o repórter apercebe-se que o golpe é praticamente conhecido por todos. “Só mesmo na Guiné é que isto podia acontecer. Até no Governo sabem. E a nossa chegada trouxe ainda mais as suspeitas quanto à proximidade do levantamento militar”. Luís Castro entrevista o general de quatro estrelas, Veríssimo Correia Seabra, o autor do golpe de Estado, o general, que foi o número dois de Ansumane Mané, entretanto assassinado, é acusado de desrespeito pela Constituição, abuso de poder, prisões arbitrárias e muito mais. Kumba iria ser destituído, podia ficar a viver tranquilamente no país ou sair. Kumba irá num táxi para o Quartel-general, será filmado em conversa amena com os autores do golpe, à noite perguntaram-lhe se queria ficar ali ou ir para casa, preferiu a segunda hipótese, e é nesse entretanto que ele conversa com um oficial, sabe que já não é Presidente, que houve um golpe de Estado, lança impropério, foi preciso metê-lo à força dentro de casa. Alguém comenta para o repórter: “Da próxima vez que cá vieres, tu chegas e os guineenses fogem de Bissau. Já se habituaram que quando apareces cá é porque vai haver caldeirada! Não te livras da fama.”
E assim termina a reportagem: “A 6 de outubro de 2004, militares com patentes inferiores a major cumpriram a ameaça e assassinaram o líder do golpe de 14 de setembro, o general Veríssimo Correia Seabra. Só não conseguiram eliminar todo o Estado-Maior porque os restantes se esconderam na Embaixada Portuguesa. Pelo meio ficaram acusações de desvio de dinheiro e corrupção generalizada. Ansumane e Veríssimo lideraram golpes de Estado e acabaram da mesma forma: com vários tiros na cabeça. Desta vez não fui avisado”.
Nota do editor
Último poste da série de 26 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22406: Notas de leitura (1367): “Repórter de Guerra”, por Luís Castro; Oficina do Livro, 2007 (1) (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P22424: Passatempos de Verão (25): Uma fábula diferente: o gato Olossato e o cão Maquezão em tempo de cólera (Paulo Salgado, ex-alf mil cav op esp, CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72)
Guiné-Bissau > Região do Óio > Maqué > 20 de Novembro de 2006 > Poilão, árvore sagrada, habitada pelos irãs... Mais uma chapa do famoso poilão de Maqué. Tirada pelo nosso camarada Carlos Fortunato, ex-Fur Mil da CCAÇ 13 (Os Leões Negros), na sua viagem de 2006 à Guiné-Bissau e à região do Óio.
Foto (e legenda): © Carlos Fortunato (2007). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Guiné-Bissau > Maqué > 2006 > " O mais belo poilão que conheço da Guiné" (Paulo Salgado) [. na foto, o Paulo Salgado, sentado, e Moura Marques, de pé, ambos antigos militares da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72].
Guiné > Região do Oio > Olossato > CCAV 2721 (1970/72) > 1970 > O Alf Mil Cav Salgado, dando uma mãozinha ao pessoal dos serviços de saúde. Mais tarde, tornar-se-ia administrador hospital e gestor de saúde (em Portugal, Guiné-Bissau e Angola).
Date: domingo, 1/08/2021 à(s) 21:38
Subject: Uma fábula diferente
Não vou contar uma fábula tradicional. As fábulas que escrevi para o meu neto – 4 Fábulas para o Pedro – levaram-me até a Esopo e, certamente, a La Fontaine. Sempre a ideia da moralidade daqueles autores, carregada de ideias utilitárias...
Aquela de a raposa estar à conversa com o corvo, ou de a lebre apostar com a tartaruga, ou da formiga trabalhadora a dar um raspanete à cigarra, apenas lembraria a fabulistas mais castigadores do que solidários – penso eu. Quis dar uma outra versão ao meu neto. Aos meus netos. (*)
Aliás, é na esteira de Alçada Baptista que se deve entender que as fábulas, mais do que premiar ou castigar, poderão servir para provocar solidariedades…O Zeca (1929-1987), que faria anos neste dia 2 de Agosto, dizia que "a formiga no carreiro ia em sentido contrário"…
O que se passou no Olossato por volta de Setembro de 1970 foi o seguinte: grassou a cólera. Foi preciso andar a proceder a higienizações menos espaçadas, e alargar à tabanca a necessidade de limpeza e de cuidados de remoção de lixos (algo que equipas mistas de militares e população faziam diariamente). E mais: era preciso 'acabar' com alguns cães e gatos escanzelados e cheios de doenças. Uma matança era exigida. O alferes encarregado do feito teve o cuidado de ser ético na 'limpeza' de animais doentes. (Hoje, o PAN revoltar-se-ia…). (**)
Entra aqui uma conversa entre o cão 'Maquezão' e o gato 'Olossato' – duas criaturas que não se davam muito bem, mas que encontraram um forte motivo para se aliarem num momento de visível e tormentosa aflição.
O 'Olossato', gato finório, que frequentava a casa do comerciante abastado, foi procurar o 'Maquezão':
− Sabes, andam a dar cabo de cães e gatos. É hora de nos entendermos. Proponho que nos acoitemos em Cansonco onde está uma tabanca que não ardeu totalmente. E se fugíssemos à mortandade, nós que estamos sadios? É que um humano anda com um instrumento e pode não distinguir os animais doentes dos animais sadios.
− Claro, 'Olossato'. Vamos até perto da floresta. Os dois havemos de arranjar maneira de sobreviver, até que nem precisamos de muito conforto…é claro que tenho um humano que me faz festas e vou sentir a falta dele, paciência – aquiesceu o 'Maquezão'.
E lá foram os dois. De vez em quando, espreitavam ao povoado para ver como paravam as modas. Apesar de terem coelhos e ratos e passarada com fartura, que caçavam com êxito, aliando-se na tarefa de sobrevivência, sentiam a falta de outro convívio…
Um dia, entraram pela entrada que vem de Farim, cortada por causa das minas…o cavalo de pau estava desviado. Bem nutridos, limpos. E os humanos reconheceram-nos…
− Vês, 'Maquezão'?! – segredou o 'Olossato'.
E sorriram…
Nota: 'Maquezão' vem de Maqué – um posto avançado (?) do aquartelamento; 'Olossato', o nome da bela tabanca/aquartelamento Olossato.
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(*) Último poste da série > 1 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22422: Passatempos de Verão (24): A cabra Joana de Nhacobá e o cão rafeiro Tigre de Cumbijã: fábula 2: "Ao que parece, nem os macacos se salvaram" (Joaquim Costa)
Alberto: É uma história fabulosa!!!... Manda mais, temos tão poucas referências aos primeiros tempos da guerra... Dá-me mais elementos sobre a tua companhia. E fala-nos da Bambadinca desse tempo. Como sabes, eu estive lá em 1969/71, seis anos depois de ti... No meu tempo tanbém havia muitos cães, famélicos e vadios... Não nos deixavam dormir... Um dia, às tantas da noite, pegámos num jipe, nas pistolas Walther, e matámo-los todos... Ainda hoje essa cena me incomoda... Evoquei-a ou tentei exorcizá-la num dos meus poemas, Esquecer a Guiné (...).
Segundo esclarecimento posterior do Humberto Reis [vd. poste de 17 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - P62 Op Noite das Facas Longas ], meu camarada da CCAÇ 12 e meu companheiro de quarto em Bambadinca, "o cão, que dormia à porta do nosso quarto, era o Chichas, alcunha vinda do 2º sargento corneteiro do BCAÇ 2852, que também era o Chichas. O condutor do jipe nessa Noite das Facas Longas era o major de operações do BART 2917 (o tal que mandou ir para lá a mulher quando se casou) e o assassino... fui eu".
Acrescento eu: esse tal major era conhecido como o B.B. [hoje cor art ref Jorge Vieira Barros e Bastos],