quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22769: Historiografia da presença portuguesa em África (292): "Atlântico, a viagem dos escravos", texto de Miguel Real, ilustrações de Adriana Molder, fotografia de Noé Sendas; Círculo de Leitores, 2005 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
O Centro Nacional de Cultura organizou em 2004 uma digressão pela Rota dos Escravos, tudo se iniciou em São Tomé e trepou até Santiago. Faz-se uma incursão pela História e de um modo geral o escritor Miguel Real, encarregado do relato da viagem, incumbiu-se bem, leu, documentou-se e dá o seu testemunho e agenda. Adriana Molder publicou ilustrações e Noé Sendas fotografou (infelizmente em tamanho reduzido). Sente-se que as roças estão gradualmente a ser recuperadas, aquele paraíso vegetal mantém o seu fascínio e estamos neste momento no forte recuperado pela Gulbenkian em 1990 de S. João Baptista de Ajudá, uma das placas giratórias do mercado de escravos do Golfo da Guiné. Já se falou de João Oliveira, grande contratador de escravos para o Brasil, teremos a seguir outra figura que entrou na lenda, Francisco Félix de Sousa, que tinha o título de "Chachá", terá sido o último grande negreiro português.

Um abraço do
Mário



A rota dos escravos, da Senegâmbia ao Golfo da Guiné (1)

Mário Beja Santos

Em setembro de 2004, no âmbito de um ciclo organizado pelo Centro Nacional de Cultura, um grupo partiu para o Atlântico e Costa de África em busca de vestígios da presença portuguesa, o tal ciclo denomina-se “Os Portugueses ao Encontro da Sua História”. Visitaram São Tomé, seguiu-se o Gabão, São João Baptista de Ajudá, o Senegal e depois Cabo Verde. Não se dá explicação por não ter feito parte desta rota a fortaleza de Cacheu, teve um papel primordial na transferência de escravos sobretudo para a ilha de Santiago, de onde depois partiam para vários pontos do continente americano e até Portugal. Pode-se especular não ter havido condições, a Guiné-Bissau vivia um período de turbulência, recorde-se o golpe de Estado que apeou Kumba Ialá, seguiu-se uma Junta Militar. O resultado dessa viagem é o livro "Atlântico, a viagem dos escravos", texto de Miguel Real, ilustrações de Adriana Molder, fotografia de Noé Sendas, Círculo de Leitores, 2005.

O escritor tece considerações sobre o fenómeno da escravatura, descreve o seu histórico e como todo este fenómeno entrou na nossa civilização e na nossa cultura. Os portugueses, como outros povos europeus, investiram a fundo na industrialização e internacionalização deste tráfico que era permutado com mercadorias europeias e brasileiras (têxteis, álcool, armas de fogo, cavalos, pólvora, aguardente, tabaco da Baía de terceira qualidade, entre outras). Os escravos africanos destinavam-se a mão de obra nas plantações de algodão, açúcar e café na América. “Ao longo de cerca de 400 anos, entre a segunda metade do século XV e a primeira metade do século XIX, teriam sido comprados em África entre 10 a 15 milhões de escravos, a maioria destinada ao continente americano, do Brasil e Perú até aos atuais Estados Unidos da América”. Está comprovada a presença de escravos africanos em Portugal já em meados do século XVI, exerciam trabalhos servis como o das calhandreiras (recolha matinal dos dejetos da noite em calhandras de barro malcozido). Miguel Real tece a seguinte consideração: “A cultura portuguesa não é uma cultura escravocrata, a civilização e o tempo histórico europeu em que nos integrámos, sim: a passagem em tempo longo da ruralidade medieval para o mercantilismo mundial forçou os europeus a procurarem mão-de-obra intensiva para a produção, vendo no negro a tábua de salvação económica”.

A viagem começa no Museu Nacional de São Tomé e Príncipe, instalado no antigo forte português de São Sebastião. Os visitantes são confrontados com as estátuas de Pêro Escovar, João de Santarém e António da Nóvoa e o escudo de Portugal derribado e quebrado em três partes. Visitaram numa das salas principais as barbaridades do massacre de Batapá, em 1953, cometidas contra a população negra revoltada pelos abusos do poder colonial português. “A ferida civilizacional abriu-se e cada um de nós, percorrendo o museu, sentiu-se confrontado com os atuais fantasmas malignos da História de Portugal – a escravatura, a exploração económica, o esmagamento da cultura negra. Pena foi que quando a Europa se pacificou e descolonizou, não a tivéssemos acompanhado, assumindo a nossa condição de verdadeiros colonialistas logo a seguir à II Guerra Mundial”. E tece considerações mais alongadas sobre a Rota dos Escravos e a respetiva economia, enfatiza a importância do açúcar para a transferência compulsiva de milhões de africanos transferidos para o continente americano, mas não esquece que tudo começou na Madeira (onde não houve escravos na plantação) e depois São Tomé, mais tarde as plantações brasileiras. Estimam-se em cerca de 13 milhões os africanos da sua terra natal e forçados a colonizar a América ao longo de cerca de 400 anos. A compra de escravos tornou-se um investimento vultuoso. No final dos tempos de escravatura, o tráfico negreiro transportava sobretudo crianças e adolescentes, tentando prolongar-lhes a vida ao máximo e reproduzindo-os em uniões forçadas (os criatórios). “Com a plantação do açúcar no Brasil e nas colónias espanholas da América Central, nasce uma nova economia de âmbito internacional, preparando a futura globalização do mundo: mão-de-obra africana, vastas terras americanas e organização e capitais europeus. Nesta fase, Madeira, Cabo Verde e São Tomé tinham abandonado a sua antiga importância colonial, as duas últimas limitavam-se a ser entrepostos de escravos”.

E o grupo prossegue viagem, visitará roças, algumas delas em completa ruína. O autor vai fazendo citações sobre a importância das carreiras de escravos, como São Tomé, São Jorge da Mina, as feitorias da Guiné e adianta uma referência: “Colónia açucareira e plataforma giratória da frota negreira, São Tomé reexporta para a América Portuguesa indivíduos mais resistentes às doenças europeias ou oriundas do litoral africano, falando a ‘língua de São Tomé’. Para o colonato são-tomense, traficar negros torna-se mais interessante do que plantar cana. No início do século XVI a ilha contava com 2 mil escravos fixos e de 5 a 6 mil itinerantes à espera de embarque para outros mercados. Nos anos seguintes, os são-tomenses passam a fazer o trato entre Benim e a Mina ao mesmo tempo que puxam os mercados do Congo para o sistema atlântico”. São elementos retirados de um historiador brasileiro, Luís Felipe de Alencastro.

E o autor volta a fazer uma citação, desta vez retira-a do livro A Manilha e o Limbambo, A África e a escravidão de 1500 a 1700, do embaixador Alberto da Costa e Silva, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2002: “São Tomé mostrou um rápido progresso. Era todo um êxito como centro experimental do que viria a ser a colonização e a exploração europeia nos trópicos húmidos. Ali faziam-se ensaios com gente, plantas, animais, formas de trabalho e fontes de lucros. Ali testavam-se novas maneiras de tratar a terra, de adaptar os vegetais importados, de organizar a mão-de-obra servil e dela retirar o maior proveito possível, de unir numa só classe proprietários da terra e comerciantes, de fazer dos mestiços intermediários entre senhores e escravos”. Visitam as roças, ficam assombrados com o folclore, e era inevitável assistir à peça Tchiloli representada pelo grupo de teatro Formiguinhas da Boa Morte, o grupo representou o seu espetáculo maior, a Tragédia do Imperador de Mântua e do Imperador Carlos Magno, inspirado no auto do século XVI do dramaturgo cego madeirense Baltasar Dias, da Escola Vicentina. Para além desta tragédia do Marquês de Mântua, o grupo tem em cartaz a Tragédia do Capitão Congo e o Auto da Floripes, peças provindas dos séculos XVI e XVII. A descrição das roças é de grande beleza.

E partem para o Museu das Artes e Tradições do Gabão, Miguel Real aproveita para comentar a similitude de instrumentos musicais africanos e brasileiros, a miscigenação do animismo africano com a doutrina cristã e lança-se depois numa narrativa sobre a chamada Passagem do Meio (travessia do Atlântico), o escravo depois de capturado era acartado num batel para o navio veleiro e daqui transportado para a América. Chegado a uma outra realidade, o escravo conhecia os rudimentos da religião cristã, aprendia uma nova língua, era enquadrado numa atividade laboral intensa, adaptava-se a um novo regime alimentar. De novo o autor destaca a mortalidade no decurso destas viagens, a seleção feita nas feitorias por mestres negreiros, embarcado cada um para o seu lugar de trabalho, o pai podia ir para o Recife, a mãe para Hispaniola, o filho para a Jamaica e a filha para a Virgínia, nunca mais saberiam uns dos outros. Visitam Cotonou, uma das mais importantes cidades do Benim, embrenham-se nos cheiros africanos, na cor dos mercados, dá-se uma pitada de História. “Diferentemente de S. Tomé, o Benim possuía já uma História milenar antes dos portugueses aportarem ao Golfo da Guiné na segunda metade do século XV. Presume-se ter sido João de Santarém e Pêro Escobar que, ao serviço do mercador Fernão Gomes, teriam pela primeira vez navegado pelo litoral do atual Benim, embora Rui de Pina afirme ter sido João Afonso de Aveiro, em 1484. As primeiras amostras de malagueta africana terão vindo do Benim para Lisboa, que as reenviaria para a feitoria da Flandres, iniciando assim um comércio intenso que conduzirá à designação inicial da Costa do Benim como Costa da Malagueta, posteriormente substituída por Costa dos Escravos”.

E fala-se do vodu, admite-se que mais de metade da população dos países do Golfo da Guiné e quase 80% das comunidades rurais da região o praticam, independentemente das regiões monoteístas que aqui se implantaram, a população continua a adorar os seus deuses primitivos. A palavra vodu significa potência invisível ou em português espírito. Os vodus são os espíritos que tomam conta das forças naturais. Retomando a história, Portugal foi dos poucos países europeus com fortes contactos com o reino do Daomé, hoje incluído no Benim. Desde o século XV, traficando malagueta, marfim, algum escasso ouro, depois escravos, em troca de ferro, tabaco de baixa qualidade, vidro, sedas e cetins, armas, pólvora e muita quinquilharia. “Até ao século XVII, a forte procura dos escravos situa-se na zona Norte do Golfo da Guiné, entre os atuais Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau e Guiné Conacri, e na vasta região entre o Congo e Angola com o transporte dos escravos feito por S. Tomé e Cabo Verde. É a partir de inícios do século XVIII que a Costa da Malagueta é amplamente buscada por europeus, pela compra e venda de escravos, instalando-se então no litoral do Daomé feitorias (sem a imponência do Forte de São Jorge da Mina) por Portugueses, Franceses, Ingleses e Dinamarqueses que passaram a abastecer de negros os mercados de escravos de toda a América".

E o autor, em 9 de setembro de 2004, por aquelas terras de Benim, passa à reflexão:
“Aqueles de entre nós que conhecem o Brasil sabem que a terra que hoje pisam constitui o berço cultural e social de mais de metade do povo brasileiro e que os veios nervosos de grande parte da atual cultura brasileira radicam-se nos costumes religiosos, gastronómicos e antropológicos desta vasta região, da Nigéria ao Togo e à Senegâmbia, tendo como centro ativo os diversos cais de embarque da costa do Benim, mormente de Ajudá, Onim e Porto Novo. Da religião das etnias do Benim nasceu o vodu jamaicano, antilhano e haitiano, e o candomblé brasileiro, da sua alimentação nasceu a moqueca e o acarajé brasileiros, das festas religiosas e dos instrumentos musicais de iniciação vodúnica das etnias fon e ioruba nasceram o agôgô, os atabaques, o berimbau, e do panteão dos seus deuses nasceu o panteão dos orixás”.

O passo seguinte é a visita a S. João Baptista de Ajudá, que foi recuperado pela Fundação Calouste Gulbenkian na década de 1990. Com o país independente, em 1960 dirigiu-se ao regime de Salazar o abandono do forte, o ditador mandou incendiá-lo. E vem a descrição: “O forte, de um quilómetro quadrado de área, construção de 1721, foi transformado em museu histórico de Ajudá em 1967. Dependente do governador de São Tomé e Príncipe, depois integrado no vice-reinado do Brasil e, ainda, durante o tempo do consulado do Marquês de Pombal dependente da Companhia Geral de Cabo Verde e Rios de Cacheu, o forte atravessou um conjunto de vicissitudes, ao longo dos séculos XVIII e XIX, que espelham bem a política colonial portuguesa para África, apenas interessada, até ao Ultimatum inglês de 1890 na exploração das riquezas costeiras, sobretudo escravos, ao mais baixo custo possível, totalmente divorciada de uma política de povoamento (…) O forte, ainda que formalmente português, viveu sempre em profunda dependência dos caprichos dos reis do Daomé, tendo sido inúmeras vezes assaltado e os seus diretores presos e expulsos de Ajudá consoante os interesses dos régulos e a quantidade de prendas que os portugueses lhes ofereciam em armas de fogo e pólvora, rolos de panos de seda e cetim e barricas de aguardente”.

Importa dizer que o grande tráfico de escravos sob a bandeira portuguesa iniciou-se ainda na primeira metade do século XVIII e centrou-se nos embarcadouros de Ajudá, de Porto Novo, Jaquim e Onim, todos perto do primeiro. É altura de falar de um escravocrata lendário, Francisco Félix de Sousa, que fora antecedido pelo negro João de Oliveira como atravessador de escravos entre África e o Brasil, este João Oliveira notabilizou-se como exportador para Pernambuco, Baía e Rio de Janeiro, é do seu tempo a introdução do negócio das folhas de tabaco como material de permuta por escravos. Falemos então de Francisco Félix de Sousa.

(continua)


São Tomé e Príncipe, estátua dos descobridores
Fortaleza de S. João Baptista de Ajudá, Benim
Entrada da Casa dos Escravos, Ilha da Goreia, Senegal
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22746: Historiografia da presença portuguesa em África (291): O estudo "Gonçalo de Gamboa de Aiala, Capitão-mor de Cacheu, e o Comércio Negreiro Espanhol, 1640-1650", por Maria Luísa Esteves; Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1988 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22768: Efemérides (358): Cerimónia de Concessão de Honras de Panteão Nacional a Aristides de Sousa Mendes, Lisboa, 19 de outubro de 2021 (João Crisóstomo, Nova Iorque)


Foto nº 1 > Lisboa > Panteão Nacional > 19 de outubro de 2021 > Cerimónia de Concessão de Honras de Panteão Nacional a Aristides de Sousa Mendes > No final da cerimónia tive ocasião de me associar e dar os meus parabéns à família (descendentes) de Aristides de Sousa Mendes, na pessoa dum dos seus netos, Silvério de Sousa Mendes que aqui liderou a representação da família.



Foto nº 2 > Lisboa > Panteão Nacional > 19 de outubro de 2021 > Cerimónia de Concessão de Honras de Panteão Nacional a Aristides de Sousa Mendes > A arquitecta Luisa Pacheco Marques tem sido uma das pessoas que muito tem trabalhado para a reabilitação da memóia de Aristides de Sousa Mendes. Entre os seus trabalhos contam-se as grandes exibições "Portugal, last hope” em Nova Iorque; no Luxemburgo: "Portugal, país de esperança em tempos difíceis"; o Museu Virtual Aristides de Sousa Mendes e o Museu em Vilar Formoso, um trabalho conjunto com a jornalista Margarida Ramalho, maioritariamente sobre Aristides e refugiados salvos por ele.

No meu lado direito está Leah Sills, cuja família foi salva por Sousa Mendes e esteve aí representando a “Sousa Mendes US Foundation”.


Foto nº 3 > Lisboa > Panteão Nacional > 19 de outubro de 2021 > Cerimónia de Concessão de Honras de Panteão Nacional a Aristides de Sousa Mendes > Um grupo de "participantes/activistas” presentes na cerimónia. No meio do grupo pode-se facilmente reconhecer Gerald Mendes, neto do nosso humanista, presente frequentemente, senão mesmo em quase todos as cerimónias em honra de seu avô. Já no ano 2001 eu tive oportunidade de realçar o seu muito interesse em trabalhar pelo reconhecimento de seu avô, dando-lhe, em nome da International Raoul Wallenberg Foundation, a medalha “Aristides de Sousa Mendes” que esta na altura mandou cunhar para o efeito
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Foto nº 4 > Lisboa > Panteão Nacional > 19 de outubro de 2021 > Cerimónia de Concessão de Honras de Panteão Nacional a Aristides de Sousa Mendes > A placa alusiva a Aristides de Sousa Mendes, honrando a sua presença no Panteão.


Foto nº 5 > Carregal do Sal > Cabanas de Viriato > Cemitério local > c. setembrro de  2021 > Ainda recentemente tinha visitado o jazigo da família de Aristides de Sousa Mendes em Cabanas de Viriato onde, por decisão da família, os restos mortais de Aristides de Sousa Mendes continuam, não obstante a  Concessão de Honras de Panteão Nacional  que foi dada pelo Parlamento Português a este nosso herói. No cimo do jazigo pode-se ver o brasão de Aristide de Sousa Mendes. 

Fotos (e legendas) : © João Crisóstomo  (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem de João Crisóstomo, um dos activistas que, desde 1996, mais contribuiu em todo o mundo para a reabilitação da memória de Aristides de Sousa Mendes (*). A residir em Nova Iorque desde 1975, foi alf mil, CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67). É membro da nossa Tabanca Grande.

Data - segunda, 15/11/2021, 14:16


Assunto - 
Cerimónia de Concessão de Honras de Panteão Nacional a Aristides de Sousa Mendes



Caro Luís Graça,

Fiquei de te enviar umas fotos que tirei no Panteão em Lisboa em 19 de Outubro, no dia em que o nosso grande humanista Aristides de Sousa Mendes recebeu finalmente o reconhecimento e tributo que desde sempre lhe devemos: um lugar entre alguns dos verdadeiramente grandes na nossa história que no Panteão Nacional assim são reconhecidos. A um mês do evento saiu mais um artigo numa grande revista, neste mês de Novembro, que não posso deixar de mencionar.

Devo confessar que para mim este foi para mim, e verifiquei com muita satisfação para alguns outros presentes que comigo têm trabalhado nesta causa e aí se encontravam, um momento emocionante.

Em 1996 uma pessoa amiga, Anne Treseder, uma advogada americana amiga de Portugal e dos portugueses que vivia na Califórnia e que quando tentava aprender português tinha sabido da vida de Aristides por um dos seus netos, Carlos de Sousa Mendes, falou-me de Aristides de Sousa Mendes. E constatei na altura que, como eu até aquele momento, ninguém em Nova Iorque conhecia este homem e o que ele tinha feito em 1940. 

Ao contactar pessoas em Portugal para mais informações verifiquei surpreendido que também aqui poucos o conheciam. Isto levou-me a querer conhecer mais. Contactei então alguns dos seus familiares, em Portugal e nos Estados Unidos, especialmente John Paul Abranches, o seu filho mais novo que residia então na Califórnia. E quando me apercebi da sua grandeza e da grande injustiça de que havia sido vítima, não pude ficar parado e comecei imediatamente a trabalhar para que este nosso grande humanista deixasse de ser um ilustre desconhecido dentro e fora de Portugal.

Este reconhecimento agora vinha ao encontro e era resultado dos muitos esforços de muitos indivíduos e de longos anos também. Alguns deles, como Jaques Riviere em França e Anne Treseder nos Estados Unidos até já não se encontram entre nós; e outros, estando longe, como Manuel Dias em França, não puderam estar presentes. Mas para os presentes este não podia deixar de ser um momento muito especial. Mesmo que, como muito apropriadamente me fez notar um dos presentes, a maioria dos que por muitos anos tinham trabalhado a sério para a reabilitação deste nosso herói, se encontrassem naquele momento em "lugares discretos" no meio da audiência "fora das luzes”, enquanto indivíduos que, em comparação pouco tinham feito, se encontravam agora na frente nas "filas importantes”… Como sucede sempre em casos assim.

Mas isso não interessava no momento. O importante era que Aristides de Sousa Mendes estava finalmente entre alguns dos muitos que contribuiram para o melhor da história de Portugal.

E digo “alguns" porque nem todos os grandes e insignes da nossa história constam aí. Encontram-se aí sepultados (ou transladados) os restos mortais de alguns (não de todos os que deviam, mas compreende-se a dificuldade!) dos nossos grandes como Almeida Garret (1799- 1854) o primeiro por ordem cronológica, Aquilino Ribeiro, Guerra Junqueiro, Humberto Delgado, e outros de lembrança relativamente recente. Aristides de Sousa Mendes, cujos restos mortais continuam no jazigo da família em Cabanas de Viriato fica aqui homenageado com uma placa. Mas está bem acompanhado, como se pode ver por outros também representados aqui em semelhantes circunstancias: D. Nuno Álvares Pereira, Luís de Camões, Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque, Infante D. Henrique, Pedro Álvares Cabral.

A modo de reflexão se me permites: Este momento em que Aristides de Sousa Mendes entrou no nosso Panteão Nacional foi, de alguma maneira também um momento de alívio. Ainda recentemente vimos a sua memória lembrada e reconhecida no Vaticano quando o Papa Francisco a 17 de Junho de 2020 mencionando nesta data Aristides de Sousa Mendes e o seu agir em 1940 consagrou este dia como o “Dia da Consciência” (**). 

 E por toda a parte, mundo fora, o seu nome deixou de ser desconhecido, como atestam os muitos trabalhos e reportagens mediáticas a seu respeito. Entre os que merecem destaque permito-me salientar um grande e bem escrito artigo na conceituada revista “Smithsonian” que neste mês de Novembro: a revista dedica catorze páginas ao nosso grande humanista. A partir deste momento o invocá-lo agora não é mais uma necessidade para desfazer uma injustiça, antes uma maneira de, em momentos difíceis, dele recebermos inspiração e motivação. O meu “envolvimento" será pois muito diferente depois deste acontecimento. (***)

É neste contexto que espero a sua memória venha a ser invocada e objecto de foco e ênfase a partir de agora: que o seu exemplo em seguir a sua consciência em momentos e situações de difícil escolha seja agora inspiração para todos. Situações e casos não faltam na situação de perigo e ansiedade em que o nosso planeta, devido à nossa irresponsabilidade em todos os campos e sentidos se encontra já neste momento. 

 Agora que estamos todos já a experimentar e a sofrer os efeitos das "mudanças de clima”, vamos focar os nossos esforços neste sentido: que a nossa consciência nos leve a envolvermo-nos todos para salvarmos o nosso planeta, enquanto ainda há tempo e possibilidade de o fazer. Na ocasião da COP 26 em Glasgow, o Cardeal Pietro Parolin fazendo-se eco do Papa Francisco, dizia: “estamos a presenciar a mudança duma época e um desafio à nossa sobrevivência como civilização”;... “não podemos deixar um deserto aos nossos filhos".

António Guterres foi igualmente bem claro na sua mensagem: ”O nosso planeta frágil está por um fio. Ainda estamos a bater à porta da catástrofe climática. É tempo de entrarmos em modo de emergência…”

Para ti e Alice (e a Vilma associa-se mim neste) um grande abraço, extensivo a todos os meus caros "camaradas da Guiné". 

João Crisóstomo, Nova Iorque
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Notas do editor:

(*) Vd poste de 13 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22623: Convite (18): O nosso camarada João Crisóstomo vai estar presente na Cerimónia de Concessão de Honras de Panteão Nacional a Aristides de Sousa Mendes, no próximo dia 19 de Outubro pelas 11 horas

Guiné 61/74 - P22767: Parabéns a você (2009): Ernestino Caniço, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2208 (Mansoa e Mansabá) e Rep ACAP (Bissau) (1970/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 26 de Novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22752: Parabéns a você (2008): Jorge Teixeira, ex-Fur Mil Art da CART 2412 (Bigene, Guidage e Barro, 1968/70) e Manuel Lima Santos, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3476 (Guileje, Nhacra e Bissau, 1971/73)

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22766: Fichas de unidades (22): CCAÇ 4541/72 (Caboxanque, Jemberém, Cadique, Cufar e Safim, 1972/74)



Guião da CCAÇ 4541/72 (Caboxanque, Jemberém, Cadique, Cufar e Safim, 1972/74).
Coleção: Carlos Coutinho (com a devida vénia...)




Guiné > Região de Tombali > Caboxanque > CCAÇ 4541/72 (Caboxanque, Jemberém, Cadique, Cufar e Sanfim,  1972/74) >  c. março de 1974 > Caboxanque > "Monumento em memória dos combatentes da CCaç 4541, "Os Impossiveis".  A companhia regressou a  Bissau em março de 1974.

Foto (e legenda) : © José Guerreiro (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Fichas de Unidades > Companhia de Caçadores nº 4541/72 (*)

Identificação: CCaç 4541/72

Unidade Mob: RI 15 - Tomar

Cmdt: Cap Mil Inf António Pais Dias da Silva | Cap Cav Fernando Emanuel de Carvalho Bicho
| Cap Mil Inf António Pais Dias da Silva

Divisa: "Os Impossíveis"

Partida: Embarque em 21Set72; desembarque em 21 Set72 | Regresso: Embarque em 25Ag074

Síntese da Actividade Operacional

Após a realização da IAO, de 29Set72, no CIM, em Bolama, seguiu em 290ut72 para Bula, a fim de efectuar o treino operacional com a 1* Comp/ BCav 8320/72 e, a partir de 12Nov72, assumir as funções de subunidade de intervenção e reserva do sector do BCav 8320/72, em substituição da 3.ª Comp/ BCav 8320/72, já anteriormente transferida para outro sector, tendo efectuado várias acções ofensivas nas regiões de Choquemone e Ponta Matar, entre outras.

Em 01Dez72, substituída por dois pelotões da 2ª Comp/BCav 8320/72, recolheu, transitoriamente, a Bissau.

Em 12Dez72, a subunidade deslocou-se para a zona Sul, sendo colocada em Caboxanque, onde assumiu a responsabilidade do respectivo subsector, então criado, ficando integrada no dispositivo e manobra do COP 4 e depois do BCaç 4514/72. Por períodos variáveis, destacou, temporariamente, pelotões para reforço da guarnição de Cadique.

Em 12Fev74, apó a chegada da CCav 8355/73 para treino operacional e a sua rendição no subsector de Caboxanque pela CCav 8352/72, ali colocada do antecedente em reforço da guarnição, seguiu para Safim, a fim de substituir a CArt 3521.

Em 06Mar74, assumiu a responsabilidade do subsector de Safim, com destacamento em João Landim e Capunga, ficando integrada no dispositivo e manobra do COMBIS.

Em 15Ag074, foi rendida no subsector de Safim pela CCav 8355/73 e seguiu para Bissau, a fim de efectuar o embarque de regresso. (**)

Observações - Tem História da Unidade (Caixa n." 114 - 2.ª  Div/4.ª Sec, do AHM).

Fonte : Adapt de CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas das Unidades: Tomo II - Guiné - 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002, pág. 417
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 26 de outubro de  2021 > Guiné 61/74 - P22662: Fichas de unidades (21): CCAÇ 2592 / CCAÇ 14 (Bolama, Contuboel, Cuntima, Farim, Binta, Jumbembem, Canjambari, Saliquinhedim / K3, 1969/71)

Guiné 61/74 - P22765: Tabanca Grande (528): Victor Manuel Ferreira Costa, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974). Senta-se no lugar n.º 855, à sombra do nosso poilão


Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano Victor Manuel Ferreira Costa, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4541/72, com data de 27 de Novembro de 2021:

Camarada Luís Graça:

Há cerca de dois meses que tenho conhecimento desta vossa iniciativa e desde então que tenho seguido uma pequena parte das vossas publicações, mas nem preciso de ver mais para considerar este trabalho muito importante para que se escreva a verdade histórica sobre o que foi a Guerra Colonial e em particular na Guiné.

Não há em Portugal consciência da coragem manifestada por estes combatentes neste teatro de Guerra, apesar da insuficiência quer em quantidade quer na qualidade do nosso equipamento Militar, comparado ao do IN.

É também a nossa obrigação, darmos a conhecer aos nossos netos este período da nossa vida, resistirmos e denunciarmos a manipulação dos factos feita por alguns jornalistas sobre os nossos heróis com o intuito de apagar a história, nomeadamente o 25 de Novembro de 1975.

Todos nós temos opiniões diferentes sobre os vários temas abordados, mas ainda bem que é assim, da discussão nasce a luz e já temos idade suficiente para sabermos ouvir mantendo as nossas convicções.

Penso ter em meu poder alguns documentos classificados sobre o MFA na Guiné do período pós-25 de Abril, que ainda não vi publicados. Se acharem que o tema tem algum interesse, estou à vossa disposição para os dar a conhecer.

Sinto que pertenço a esta cruzada e pretendo entrar nesta casa desde que o permitam.

O meu nome é Victor Manuel Ferreira Costa, sou natural da freguesia de S. Julião da Figueira da Foz e resido na freguesia de Lavos do mesmo concelho, nasci a 17 de Abril de 1952, fui recenseado pelo DRM 12 de Coimbra, com o NM  01271573.

Fui incorporado em 26 de Abril de 1973 no RI 5 das Caldas da Rainha, que constam da minha Carta Militar.

No fim da recruta, fui transferido para o CISMI de Tavira, tendo completado o curso de Sargentos Milicianos de Infantaria na especialidade de Atirador de Infantaria e de acordo com a minha classificação passo à categoria de rendição individual.

Colocado no CICA 2 da Figueira da Foz, exerço a função de instrutor, durante 4.º Turno de 73 e o 1.º Turno de 74.

Mobilizado em 4 de Março de 1974 para a Guiné, beneficio de 10 dias de licença e no dia 16 de Março do mesmo ano, a bordo de um Boeing 727 da FAP, chego ao aeroporto de Bissalanca e daí em transporte rodoviário para Bissau, a fim de render um camarada Fur Mil, morto em combate na região de Bafatá.

Fico instalado no QG e aguardo ordens, que chegam uns dias depois. Fazer o espólio de guerra do camarada acima citado.

No final do mês de Março sou colocado na CCaç 4541/72 em Safim.

Nesta Unidade é-me atribuído o comando de uma Secção constituída por mim, 3 Cabos e 7 praças e dou início à minha actividade operacional realizando patrulhas e controlos em João Landim Sul, Impernal, arredores da BA 12 e Capunga. A Norte do Rio Mansoa no destacamento de João Landim Norte, segurança e patrulhas do Rio Mansoa até Bula.

Em Maio de 1974, fui eleito membro da Delegação do MFA na CCaç 4541/72.

Regresso à Metrópole a 3 de Outubro desse ano em avião da FAP.

Com os melhores cumprimentos,
Victor Costa


BI Militar


Certificado Internacional de Vacinação ou de Revacinação contra a Cólera
Declaração de passagem à disponibilidade a partir de 1/11/74

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Comentário do editor:

Caro Victor, sê bem-vindo à nossa tertúlia. Ficas no lugar n.º 855, bem à sombra do nosso poilão.  Ficas registado como Victor Costa, como podes verificar na coluna estática do nosso blogue, lado esquerdo, na  TABANCA GRANDE - LISTA ALFABÉTICA DOS 855 AMIGOS & CAMARADAS DA GUINÉ.

Quase, quase te libravas da chatice da guerra. Foste dos camaradas que fecharam o conflito, e daqueles que felizmente não sofreram uma sombra daquilo que nós os mais velhos sofreram. Ficámos felizes por isso.

Como dizes, queremos que o nosso Blogue, além de um repositório de memórias, seja um sítio onde se possa discutir abertamente o problema da guerra na Guiné, particularmente, sem prejuízo de se abordar genericamente o que se passou nos outros TO. Só pedimos às pessoas que respeitem as diferenças de opiniões. Une-nos o mais importante, o enorme rol de sacrifícios passados, a incerteza do regresso, o temor de cada passo dado, a fome, a sede, etc.

Aceitamos o teu desafio pelo que ficamos à espera que nos envies a documentação que tens e aches importante para retratar os últimos dias de guerra que antecederam a paz na Guiné.

Estamos ao teu dispor nos e-mails constantes na aba da nossa página.


Para ti, um abraço dos editores e da tertúlia.
CV

PS - Temos, no nosso blogue, duas referências a um camarada da tua companhia, o José Guerreiro, natural de Portimão, e que procura camaradas como tu... Será que te lembras dele? Vê aqui (**). 

Ele ainda não respondeu ao nosso convite para integrar a Tabanca Grande, tu és pois o único representante da CCAÇ 4541/72 que antes de ti andou pelo sul, pela região de Tombali: Caboxanque, Jemberém, Cadique, Cufar. O José Guerreiro tem conta no Facebool, desde 31/3/2010.
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Notas do editor

(*) Último poste da série de 25 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22661: Tabanca Grande (527): António G. Carvalho, a viver em Ponta Delgada, ex-fur mil op esp, CCAÇ 2592 / CCAÇ 14 (Bolama e Cuntima, 1969/70). É Deficiente das Forças Armadas. Senta-se no lugar nº 853, à sombra do nosso poilão

(**) Vd postes de:

Guiné 61/74 - P22764: A nossa guerra em números (8): CART 1525, "Os Falcões" (Bissorã, 1966/67): mais de 3500 km percorridos a pé, e mais de 4700 km em viatura...




1. Ficha de unidade > Companhia de Artilharia n.º 1525

Identificação: CArt 1525

Unidade Mob: RAC - Oeiras

Cmdt: Cap Art Jorge Manuel Piçarra Mourão

Divisa: "Falcões de Bissorã"

Partida: Embarque em 20Jan66; desembarque em 26Jan66 | Regresso: Embarque em 04N6v67

Síntese da Actividade Operacional


Em 04Fev66, seguiu para Mansoa, a fim de efectuar um curto período de
 adaptação operacional e substituir a CArt 644 na função de reserva e intervenção do sector do BCaç 1857.

Em 21Fev66, por rotação com a CCaç 1420, foi transferida para o subsector de Bissorã, em reforço da guarnição local até 31Out66, tendo ainda actuado em diversas operações realizadas nas regiões do Tiligi, Biambe, Morés e Queré e sendo também deslocada para operações na região de Jugudul, de 23Jul66 a 17Ag066; de 18Jun66 a 06Ju166, destacou, ainda, um pelotão para Ponte Maqué.

Em 310ut66, assumiu a responsabilidade do subsector de Bissorã, após saída da CCaç 1419, tendo passado a integrar o dispositivo e manobra do BCav 790, após reformulação dos limites da zona de acção dos sectores daquela área em 01Nov66, e depois do BCaç 1876. 

Pelos vultuosos resultados obtidos em baixas causadas ao inimigo e armamento apreendido, destacam-se as operações "Embuste" e "Bambúrrio", nas regiões de Iarom e Faja.

Em 10Out67, foi rendida no subsector de Bissorã pela CCav 1650, recolhendo seguidamente a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

Observações > Tem História da Unidade (Caixa n." 81 - 2ª Div/4ª Sec, do AHM).

Fonte : Adapt de CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas das Unidades: Tomo II - Guiné - 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002, pág. 446.


2. Quem fez a história da CART 1525 tinha gosto pelos números (*)... Creio que foi o Rogério Freire, ex-alf mil art MA, membro da nossa Tabanca Grande desde 13 de outubro de 2005 (!)... Creio também que profissionalmente foi informático... É natural de Lisboa e está reformado. Vai daqui um grande abraço fraterno para ele e os demais falcões de Bissorã.

Se não vejamos, e passando a citar o  historial desta unidade (, excertos reproduzidos no sítio da CART 1525):

(i) à data do embarque, era composta por 5 Oficiais, 17 Sargentos e 139 Praças. Total= 161;

(ii) partiu do Cais da Rocha Conde d'Óbidos, no N/M Uíge, às 12h00 do dia 20 de janeiro de 1960;

(iii) cerca das 15h00 do dia 25, o Uíge fundeou frente a Bissau;

(iv) o desembraque começaria no dia 26, pelas 10h30, através da barcaça BOR, para a ponte cais e daqui, em viaturas, para Santa Luzia, onde a Companhia se instalou;

(v) baixas (confirmadas e estimadas) provocadas ao IN: mortos= 100; prisioneiros=25;

(vi) baixas em combate das NT: mortos=19 (3 metropolitanos, 6 milícias, 2 polícias administrativos, e 8 caçadores nativos)

(vii) feridos em combate: CART 1525= 15  (dos quais 5 graves) | Pessoal nativo mílicas, polícias, caçadores) = 29 (dos quais http://www.cart1525.com/om gravidade)

(viii) material apreendido ao IN: 52 armas (incluindo metralhadoras pesadas e ligeiras, espingardas e espingardas automáticas, pistolas e pistolas metralhadoras) | 111 granadas (mort 82 e 60, canhão s/r, LGFog, mão, ofensivas e defensivas) | milhares de munições | outro material

(ix)  ações de caracter operacional: 281 (das quais 1 em cada 5 com contacto);

(x) quilometragem percorrida a pé: 3561 km;

(xi) quilometragem percorrida em viatura: 4744 km;

(xii) condecorações e louvores:  9 cruzes de guerra | 40 louvores (a nível de comandante militar agrupamento e comando de batalhão)

(xiii) 21 militares punidos (pena máxima aplicada; 10 dias de prisão disciplinar agravada;  pena de menor relevância:  5 dias de detenção)

(xiv) sete militaes evacuados para o Hospital Militar Principal, em Lisboa, sendo 1 por acidente de viação, 3 por ferimentos em combate, e 3 por doença em serviço.
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 29 de novembro de  2021 > Guiné 61/74 - P22760: A nossa guerra em números (7): a carga da CCAÇ 1420 (Fulacunda e Bissorá, 1965/67), a transferir para a CART 1525 (Bissorã, 1966/67), era composta por 17 viaturas (2 camiões Mercedes, 4 Jipes e 11 Unimog), dos quais só estavam a funcionar um jipe e um Unimog.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22763: O que é feito de ti, camarada? (14): Jacinto Cristina, o padeiro da Ponte Caium, 3.º Gr Comb, CCAÇ 3546 (Piche, 1972/74)...Viúvo, acaba de fazer 72 anos, está reformado como industrial de panificação... e abriu conta no Facebook.


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5


Foto nº 6


Foto nº 7

Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Setor de Piche > Ponte sobre o Rio Caium > CCAÇ 3546 (1972/74) >  Destacamento da Ponte Caium, guarnecido pelo 3º grupo de combate, "Os fantasmas do leste",  de que fazia parte o nosso amigo e camarada Jacinto Cristina, natural de Figueira de Cavaleiros, Ferreira do Alentejo, 72 anos, feitos no passado dia 14 (*). 

Soldado atirador de infantaria, foi mobilizado para a Guiné, casado e pai de um filha pequena,   foi um "sem-abrigo", viveu um ano e tal em cima de um tabuleiro da Ponte Caium, com a G3 a seu lado... 

É membro da nossa Tabanca Grande desde 24/9/2010, tem cerca de 4 dezenas de referências no nosso blogue. Vive em Figueira de Cavaleiros, Ferreira do Alentejo, reformado de padeiro e viúvo.

Fotos: © Jacinto Cristina (2010). Todos  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O que é feito deste camarada (**)  que ficou "famoso" por bater o recorde de permanência no destacamento da Ponte de Caium ?

A ponte, a padaria e o padeiro... O forno foi construído na parte inferior da ponte... Como o espaço era acanhado, tudo se aproveitava... O forno e a cozinha ficavam do lado esquerdo, no sentido Piche-Buruntuma (Foto nº 1)...

De costas, em tronco nu, vê-se o Manuel da Conceição Sobral (que vive hoje em Cercal do Alentejo, Santiago do Cacém), e era o ajudante de padeiro. O Jacinto Cristina, o padeiro, está a enfornar (Foto nº 1)...

No destacamento da ponte de Caium (Foto nº 6) estava um grupo de combate, à época pertencente à CCAÇ 3546 (Piche, 1972/74). O Sobral e o Cristina faziam reforço das 4 às 6 da manhã. Por volta das 5h/5h30, um deles ia amassar a farinha (12 kg / dia)... O outro ficava de reforço até às 6. Depois das seis, até às 8h/8h30, ficavam os dois a trabalhar. Às 9h já havia pão fresco... 

Todos os dias coziam. Tinham um stock de farinha que dava para um mês. Faziam uma média de 30 pães de 400 gramas, por dia. Como bons tugas, os camaradas que defendiam a ponte, adoravam pão!... O resto do dia os padeiros descansavam, ou jogavam à bola, ou brincavam no rio, quando levava água... Tabanca só havia a 3 km dali.

O Sobral era o apontador do morteiro 81 e o Cristina o municiador. Portanto, uma parelha completa!... Depois na "padaria", trocavam de papeis...Também havia um morteiro 10,7, ao cuidado do Pinto e do Algés. O 81 ficava do lado direito, à saída da ponte, no sentido de Buruntuma. O 10,7 ficava no lado esquerdo, junto ao paiol, também no sentido de Buruntuma... Mais à frente estava o 1º cabo Torrão, apontador da HK 21 (irá morrer na emboscada de 14 de Junho de 1973, na estrada Ponte Caium - Piche). Também havia o morteiro 60 e a bazuca 8,9.

O Cristina (eu trato-o sempre por Jacinto, pai da minha querida amiga Cristina Silva, enegenheira e empresária,  e sogro do meu querido amigo, o médico madeirense Rui Silva, não o  posso tratar por "doutor" que ele vai aos arames...)  tornou-se de tal maneira imprescindível (por causa do "pão nosso de cada dia") que, além de municiador (e apontador, quando necessário) do morteiro 81, ficou na ponte de Caium 14 meses!!!... (Em rigor, 13, se descontarmos o glorioso mês de férias, em abril de 1973, em que veio a casa para estar com a mulher e a filha; com ele, de férias, vieram também o Pinto, o Charlot e o Algés; no avião da TAP, uma alegria!...Já não se lembra de quanto pagou... Uma fortuna para um soldado, para mais casado e pai de filha..."Seis contos, para aí", diz-me ele.)

Diziam que o pão da dupla Cristina-Sobral era o melhor casqueiro da Zona Leste... Na foto nº 2,   o Jacinto está varrer e a limpar o forno... Na foto nº 3, está a fazer um petisco, ou não fosse ele um alentejano dos quatro costados... Na foto nº 4, está a barbear-se... Mesmo com o metro quadrado mais caro da Guiné, nas "suites" da Ponte Caium não faltava nada (Foto nº 5)... O chuveiro era um bidão de 200 litros, furado...

Terrível foi aquele período de um mês (entre meados de maio e junho de 1973) em que o destacamento esteve sem reabastecimentos, sem farinha, sem pão... Por que a fome era negra, meteram-se a caminho de Piche, no Unimog, a 14 de junho de 1973, tendo sofrido uma brutal emboscada (que não era paraceles..
) e em que morreram o 1º cabo apontador de metralhadora David Fernandes Torrão, e os soldados atiradores Carlos Alberto Graça Gonçalves ("Charlot"), Hermínio Esteves Fernandes e José Maria dos Santos...

Disse-me o Jacinto Cristina (que ficou na ponte a tomar conta do seu morteiro 81), que os corpos foram cortados em quatro, com rajadas de Kalash... O bigrupo do PAIGC (onde foram referenciados cubanos) levou cinco armas (incluindo a do furriel que foi projectado com o impacto do RPG7, juntamente com o sold cond auto Rocha, o Florimundo ).

Uns meses antes, em 19 de Fevereiro de 1973, tinha morrido o fur mil op esp Amândio de Morais Cardoso, na sequência da desmontagem de uma armadilha de caça. Essa cena passou-se debaixo dos olhos do Cristina que se salvou por um triz, ao pressentir o perigo.

Na foto nº 5, vê-se o tabuleiro da ponte por onde passava a estrada Piche-Buruntuma,,, A padaria ficava em segundo plano do lado esquerdo... A foto deve ter sido tirada no dia dos anos do Sobral, em março de 1973, a avaliar pelos dois cabritos que estão junto ao "burrinho" (o Unimog 411)... Tinham sido comprados na tabanca fula, que ficava a nordeste da ponte, a 3 km, e onde residiam as lavadeiras...

Soldado atirador, o Cristina era, como já dissemos, municiador do morteiro 81. Mas, uma vez que Piche ficava longe e era preciso fazer pão todos os dias, aprendeu a arte de padeiro (que depois seria o seu ganha-pão, em Figueira de Cavaleiros, Ferreira do Alentejo, onde vive, hoje já refiormado; durante anos, teve um negócio próprio na área da panificação; passei várias vezes pela casa e padaria, e trazia para Lisboa o seu pão feito na hora; pude, pois, comprovar que o seu "casqueiro" era, de facto, o melhor da região).

Como se percebe pelas fotografias, as estruturas da ponte foram aproveitadas ao milímetro...

Na foto nº 6 (s/d, tirada na época seca, em 1973), o destacamento é visto da margem esquerda do Rio Caium, a sul da estrada, no sentido Buruntuma-Piche. Segundo o Carlos Alexandre (, de alcunha, "Peniche"), ao examinar melhor uma imagem destas que lhe mandei, com maior resolução, vê-se que,  à entrada do tabuleiro, estão dois camaradas que parecem ser o Cristina e o Sobral.

Um novo troço da estrada Piche-Buruntuma estava então em construção, a cargo da Tecnil. De Nova Lamego a Piche já se ia, há muito, em estrada asfaltada. Daí talvez este desvio, contornando a pontes.  O desvio é visível (parcialmente, em primeiro plano) na foto nº 6.

Na foto nº 7, pode-se ver um aspecto dos pilares da ponte... O Cristina, mais um camarada, na "hora do recreio" (ele não se recorde do nome)... Ali no rio Caium, naquela improvisada jangada, poderiam dar largas à sua imaginação de marinheiros e aventureiros... Na época seca, o rio levava pouca água... O abastecimento de água era feito mais longe, de Unimog, com segurança,

Na época seca, o rio Caium ficava seco (ou reduzia-se a um pequeno charco à volta da ponte). Este rio é um afluente do Rio Coli, que fica a sul da estrada Nova Lamego-Piche-Buruntuma e serve de linha fronteiriça entre a Guiné-Bissau e a Guiné-Conacri. (***)

Entre o destacamento e a fronteira era "terra de ninguém" mas onde o PAIGC podia movimentar-ser à vontade.

Foto nº 8


Foto nº 9

Ferreira do Alentejo  > Figueira de Cavaleiros >  2021 > O Jacinto Cristina, agora reformado, ainda vai fazendo pão  para a a família e os amigos... Fotos da sua página no Facebook.

Fotos (nºs 8 e 9): © Jacinto Cristina (2021). Todos  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Foto nº 10


Foto nº 11

Ferreira do Alentejo > Figueira de Cavaleiros > 14 de novembro de 2021 > O Jacinto Cristina e o genro, o médico Rui Silva....A foto nº 10  foi tirada pela filha, a engª Cristina Silva (que aparece na foto a seguir, nº 11.). Uma família feliz... Filha e genro vieram de propósito do Funchal para fazer uma surpresa no 72º aniversário do Jacinto...

Fotos (nºs 10 e 11): © Rui Silva (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Há já uns tempos (, uns anos bons,) que o não vejo nem lhe falo ao telefone... Mas não nos esquecemos de lhe dar todos os anos os parabéns pelo seu aniversário, a 14 de novembro... 

Este ano eu estava no Funchal quando a filha, Cristina Silva (, membro da nossa Tabanca Grande),  e o genro, Rui Silva, se preparavam para vir fazer-lhe, na sua casa em Figueira de Cavaleiros,  uma surpresa!... E que surpresa!..

Eu fiz questão de me associar à festa, e o Rui Silva teve ocasião de lhe ler a mensagem e os versinhos que escrevi para o Jacinto... E que reproduzo aqui, mesmo já com duas semanas de atraso. (Apesar de sermos camaradas, ele é um pouco formal comigo, tratando-me por professor e por você... Fiz questão agora de começar a tratá-lo por tu, esperando que ele faça o mesmo comigo...)


Mensagem para o Jacinto Cristina, no seu dia de aniversário

Camarada Jacinto, os bravos da Guiné tratam-se por tu...E em dia de aniversário eu venho aqui desejar-te o melhor da vida. Sei que já não te apanho, muito menos no teu centenário.. E ainda pro cima de canadianas.Mas quero que sejas muito  feliz e tenhas boa saúde e o amor e a estima da tua família e dos teus amigo. Trata-me sempre muito bem as tuas princesas, a Cristina e a Sara [, a neta, a estudar em Inglaterra ]. E es um sortudo por teres arranjado um genro como o Rui Silva que tem um coração maior do que a terra dele. Felicidades tambémpara a tua  companheira que eu ainda não conheço.

Gostava de te voltar a ver em Figueira de Cavaleiros, em Lisboa ou na Lourinhã. Ou até no Funchal. Pode ser que um dia destes calhe...Para alegrar a tua festa, viu-te mandar uns versinhos que fiz no avião Lisboa-Funchal para a Cristina ou o Rui lerem...

Tanto tempo sem te ver,
Meu camarada Jacinto,
Já saudades de ti sinto,
'Tá na hora d'aparecer.

'Tá na hora d'aparecer.
Sempre foste hospitaleiro,
De Caium o milagreiro,
Qu'a muitos deu de comer.

Qu'a muitos deu de comer,
Lá na ponte de Caium,
Não faltando a cada um
O que todos queriam ter.

O que todos queriam ter,
Era o casqueiro p'la manhã,
Mesmo sem manteiga haver,
Lembrava o pão da mamã.

Lembrava o pão da mamã,
O teu Alentejo querido,
Na alma vieste dorido,
Da guerra em terra pagã.

Da guerra em terra pagã,
Resta a camaradagem,
Mas p'ra próxima viagem,
Tens que vir à Lourinhã.

Daqui do Funchal bebemos um copo à tua saúde,
e dos teus queridos que estão aí à tua mesa.
Luís (e Alice), 14 nov 2021.

Comentário do Rui Silva:

Lindo! Obrigado...E missão cumprids. O seu gentil texto e o poema comoveram o Jacinto,
como se pode  apreciar nas fotos que vos enviei por Whatsapp. Deram um toque muito pessoal e amigo a esta singela festa... Ele adorou, bem haja, uma vez mais... Rui
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 14 de novembro de  2021 > Guiné 61/74 - P22717: Parabéns a você (2004): César Dias, ex-Fur Mil Sapador Inf da CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa e Mansabá, 1969/71); Jacinto Cristina, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 3546/BCAÇ 3883 (Piche e Camajabá, 1972/74) e Maria Arminda Santos, Ex-Tenente Enfermeira Paraquedista (1961/1970)

(***) Vd. poste de 24 de setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7033: Álbum fotográfico de Jacinto Cristina, o padeiro da Ponte Caium, 3º Gr Comb da CCAÇ 3546, 1972/74 (1): O melhor pão da zona leste...

Guiné 61/74 - P22762: Notas de leitura (1396): "Cartas de Amor e de Dor", por Marta Martins da Silva; Saída de Emergência, 2021, com prefácio do general Pezarat Correia (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
As toneladas de correio que ligavam diariamente os militares às suas famílias é material que pouco pesa na historiografia das guerras que travámos em África. Eram predominantemente aerogramas, mas não faltavam cartas e bilhetes-postais, eram uma âncora afetiva tão poderosa que alguns escritores registaram e ainda nos tocam profundamente as descrições da chegada do correio. Marta Martins Silva desvela o papel desta correspondência através de uma significativa reportagem de investigação que começara pela narrativa das madrinhas de guerra e que ela agora prolonga com talento com o recurso a livros, documentos avulsos e muitas entrevistas. Foi hábil quando nos dá uma sinopse das cartas na I Guerra Mundial, para termos um termo de comparação com tudo o que se seguiu a partir de 1961, é óbvio que a narrativa afetiva alcançou outra dimensão mas a jornalista primou pelo cuidado de demarcar eflúvios amorosos, estados de saudade, dissimulações para não dar à família preocupações sobre as hostilidades da guerra, das cartas de dor, porque quem combatia também iria ser confrontado com anúncios de mortes, houve mentes perversas que endereçaram cartas anónimas e houve quem, por carta, soubesse que tinha perdido familiares ou o seu maior amigo. O mínimo que se pode pedir a Marta Martins Silva é que continue a explorar este lado obscuro da vida íntima dos antigos combatentes enquanto é tempo, para que a historiografia não fique meramente confinada a factos documentais irrefutáveis (e refutáveis) e se sinta o pulsar e o estado de ânimo de quem escreveu aquelas toneladas de correspondência que enchiam a vida daqueles jovens de camuflado de promessas de esperança.

Um abraço do
Mário



Cartas de Amor e de Dor, por Marta Martins Silva (1)

Mário Beja Santos

Descobriu na sua atividade jornalística na revista Domingo do Correio da Manhã, através de desabafos de antigos combatentes, que há uma vertente de guerras gradualmente sumidas na memória dos portugueses que merece ser revitalizada, é constituída por aerogramas, cartas, bilhetes-postais, folhas de apontamentos, fotografias, é um acervo de consulta marginal pelos historiadores e investigadores dos diferentes países envolvidos. No entanto, são documentos onde podemos aquilatar a vida emocional desses jovens, abruptamente retirados de um ambiente familiar, de uma profissão ou dos estudos, e que vazam na escrita o que descobrem em novas paragens, nem sempre contidos nas saudades, por vezes discretos na narrativa da hostilidade permanente, perguntando pela família e pelos amigos, disfarçando os estados de alma com descrições pacíficas sobre a comida, a vida do quartel, omitindo, tanto quanto possível, quem morre e quem se sinistra. Marta Martins Silva procura veios novos para interpretar o universo psicológico destes jovens vestidos de camuflado. Começou por os pôr a conversar com as madrinhas de guerra, e agora, em "Cartas de Amor e de Dor", Desassossego, chancela do grupo Saída de Emergência, 2021, parte de cartas da I Guerra Mundial, fala-nos do ano de 1961 em Portugal, explica a não-iniciados os dados fulcrais do Serviço Postal Militar e então entramos numa grande torrente, primeiro a do amor, os parentes mais próximos, as namoradas e as mulheres e todo este ímpeto epistológrafo desagua numa dor que não se pode esquecer, os pais que reclamam o corpo do filho, a carta que anuncia a morte de um amigo muito querido num outro teatro de guerra, as cartas anónimas infamantes. Uma verdadeira surpresa, esta reportagem com investigação descobre algumas pepitas de ouro e seguramente que contribuirá para que o olhar dos historiadores e investigadores deixe de ficar indiferente a estas toneladas de correspondência.

O General Pezarat Correia logo chama a atenção no prefácio de que o foco da obra é o drama humano da guerra na forma de correspondência, exalta o modo como a autora contextualiza a época e o ambiente, ela tem uma preocupação maior, a lembrar ao leitor, sobretudo das novas gerações, que aqueles soldados que regressavam não eram os mesmos homens que tinham partido. A importância para o estudo da História também não escapa ao prefaciador, logo a evolução do estado de espírito, as formas patrioteiras de 1961 vão-se apagando com a guerra prolongada. Direi da minha parte que há um outro ângulo da correspondência militar que merece a melhor atenção de quem investiga: a evolução do estado de espírito ao longo dos dois anos de comissão e que bem se espelha na quantidade do que se escreve à chegada ao teatro de operações, como o cansaço se torna indisfarçável, quase intolerável a atitude de inquietação nos últimos meses, é uma escrita agitada, um tanto sintética, o correspondente paira entre dois mundos, mesmo inconscientemente sabe que quando chegar ao lugar onde tão ansiosamente o esperam ele é outro.

Estamos na I Guerra Mundial, a primeira carta da Maria para o António é escrita num Portugal ceifado pela gripe pneumónica, já houvera a cena apocalítica de La Lys, a autora fala-nos de África, onde igualmente combatemos, do Serviço Postal, temos um padre jornalista, José Ferreira de Lacerda, fundou o jornal "O Mensageiro", em Leiria, em 14 de julho escreve ao amigo: “Agora estão as granadas a rebentar a uns 500 metros de onde estou. Não vejo o efeito porque não tenho tempo a perder, mas sinto os franceses a passar debaixo da janela do meu quarto a retirarem das proximidades dos rebentamentos. Os alemães, com os tiros que fazem neste momento, não matam a milésima parte. Tenho três feridos da minha freguesia, um gravemente, mas todos por desastre. Se quiser amanhã de manhã ver os efeitos das granadas, venha daí. Agora não, que é perigoso!”. Cumprimenta o padre José Ferreira de Lacerda, alferes capelão-militar da 3ª Brigada de Infantaria. E ficamos conhecedores de quem foram as primeiras madrinhas, tem a palavra um prestigiado arqueólogo, Afonso do Paço, é uma correspondência que acompanha quem ficou prisioneiro dos alemães e há um alferes de infantaria, João Valadares Costa, prisioneiro na Alemanha que pede à sua boa mamã conservas, manteiga, marmelada, chocolate, bolacha, mas também bacalhau grosso, alho, cebola, pimenta e muito mais, tudo que deve ser remetido bem-acondicionado e fechado. “Peço que também me mandem umas alparcatas, uma escova de dentes boa, e duas pastas Couraça, sabonetes e sabão”. Há quem escreva aos maridos com a euforia de o saber vivo, aproveitando a circunstância para falar dos palavrões que o sogro profere, já supunham que o seu querido homem tinha batido a bota: “Porque o teu pai já te andava a fazer os funerais do que tu tinhas em nossa casa, era a tua roupa que queria ir buscar a nossa casa. Quer com respeito aos dois relógios ele assenhorou-se de ambos, diz ele que não me dá nenhum”. Há quem foi combater a França e por lá ficou constituindo família, a autora fala mesmo em histórias edificantes. E temos o Armistício e o Comité de Socorros aos Militares. E assim chegamos a 1961, um dos primeiros que parte para Angola, Etelvino da Silva Baptista escreveu no seu diário: “Embarco ao meio-dia. Não posso descrever o que me custou a partida. Ainda muito depois de perdermos a costa de vista havia muitos camaradas que choravam. A bordo havia música por todos os lados para nos distrairmos. Andei a percorrer todos os cantos do navio. São 10,20 vou-me deitar. Estou a lembrar-me muito especialmente da Isabel e apetece-me chorar, mas não posso”.

A autora contextualiza os acontecimentos que preludiam o início da guerra de Angola, para o Estado Novo 1961 foi um ano horrível. Sufocada a tentativa de mudança de regime, Salazar manda partir para Angola, rapidamente e em força, dá-nos troços de cartas de mães e mulheres a pedir cautelas, temos aqui cartas deles com arroubos patrióticos, o esforço de recuperação das povoações abandonadas e ocupadas pela UPA, era a reconquista do Norte de Angola. Desta feita, temos um novo modelo de Serviço Postal Militar, cuja génese aparece filiada ao Movimento Nacional Feminino, esta instituição procura zelar pela situação de militares doentes ou pão de família, é inevitável a referência a Cecília Supico Pinto para se entender a criação do aerograma e como este foi peça fundamental na correspondência dos militares durante a guerra. Marta Martins Silva fala-nos do apelo que este Movimento lançou para o apoio aos militares através da figura da Madrinha de Guerra. Algum desse correio tornar-se-á conhecido, como aquele que o escritor António Lobo Antunes enviou à sua mulher Joana, deu origem ao livro D’este viver aqui neste papel descripto: “Nesta terra tenho enterrado os melhores meses da minha vida e, se calhar, também, a maior parte dos anos da minha velhice. Isto gasta por dentro como um cancro. E o que mais me custa é o coeficiente do absurdo desta aventura. É um preço caro o que estou a pagar para poder um dia viver aí. E tu, então, casada com uma espécie de fantasma! Pai de uma criança que não conheço, marido de uma mulher com quem não posso falar e a quem não posso tocar. Condenado a uma horrível solidão. Condenados os dois a uma horrível solidão”.

E agora, sim, vão começar a jorrar as cartas de amor.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22743: Notas de leitura (1395): "Nunca digas adeus às armas: os primeiros anos da guerra da Guiné", de António dos Santos Alberto Andrade e Mário Beja Santos, Lisboa, Edições Húmus, 2020: um livro escrito com autoridade (João Crisóstomo, Nova Iorque)