quinta-feira, 25 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24339: Tugas, pocos pero locos: algumas das nossas operações temerárias (2): Op Gavião (Madina / Belel, 4-6 de abril de 1968): 300 homens desbaratados pelas abelhas, armas extraviadas, um cadáver abandonado, um homem perdido, etc.


Cracá do Pel Caç Nat 52 (1966/1974), "Os Gaviões". Divisa: "Matar ou morrer"


Operação Gavião (Madina / Belel, 4-6 de Abril de 1968)  

1. Todos os anos, pela época seca, de preferência entre março e abril, o comando do batalhão sediado em Bambadinca, Sector L1, zona leste, região de Bafatá, mandava uma força de cerca de 300 homens à procura do acampamento IN do Enxalé, algures na península de Madina / Belel, mesmo já no limite do Sector, a sudeste da base de Sara.  Por aqui o IN e a população sob o seu controlo viviam com relativa tranquilidade, só sendo importunados por alguma incursão de tropas helitransportadas ou pelos bombardeamentos da FAP. A ida a Madina / Belel era quase sempre azarada: em geral as NT levavam prisioneiros que serviam de guias, e que procuravam ludibriar as NT, "perdendo-se" propositadamente ou tentando inclusive a fuga (como aconteceu, por exemplo, na Op Anda Cá, 22 e 23 de fevereiro de 1968) (*), 

Todos os anos aconteciam erros de planeamento, guias que se perdiam, itinerários mal escolhidos, PCV (antes da época do Strela...) que denunciavam a presença das NT, falhas no abastecimento de água, progressão para o objectivo a horas proibidas, confusão de (ou chegada tardia aos objetivos), flagelações do IN, tabancas abandonadas e queimadas, casos de exaustão, insolação e  desidratação, indisciplina de fogo, ataques de abelhas, debandada geral, perda de armas e muniçóes, e até de homens, regresso dramático ao Enxalé com viaturas a sair até São Belchior para transportar os mais "desgraçados", tentatativa de recuperação, no dia seguinte, do material perdidos… e, claro, relatórios por vezes fantasiosos, pouco rigorosos, etc....

Em 1968 (Op Gavião), aconteceram também estas coisas, próprias de uma guerra de contraguerrilha, num terreno inóspito para muitas das tropas portuguesas... É também caso para dizer, "tugas pocos pero locos" (**).

2.  Op Gavião: Desenrolar da acção

Iniciada no dia 4 de abril de 1968, às 18h00, com a duração de 3 dias, tinha como finalidade excutar uma acção ofensiva na mata de Belel, começando por um golpe de mão ao acampamento IN  do Enxalé. 

Forças ( c. 300 homens) que tomaram parte na operação:

(i) Cmdt: 2º cmdt BART 1904;

(ii)  Destacamento A: CART 2338 a 4 Gr Com + Pel Caç Nat 52;

(iii) Destacamento B: CART 2339, a 4 Gr Comb + Pel Caç Nat 53


Destacamento A

O Pel Caç Nat 52 deslocou-se de Missirá para a região de Aldeia do Cuorno dia 4 de abril de 1968, às 15h00, onde se instalou protegendo a cambança das restantes forças do Destacamento (CART 2338), cambança essa que foi efectuadas às 18h45 do mesmo dia.

Uma vez completo o Destacamemnto, as NT iniciaram a marcha para Missirá, tendo pernoitado um pouco antes de o atingir, pelas 22h00. 

Reiniciaram o movimento no dia 5, às 5h30, utilizando um guia natural de Missirá, ao qual foi acordado e indicado qual o serviço a desempenhar só pouco antes do início do movimento, por razões de sigilo e segurança.

Ao fim  da tarde do dia 5 atingiu um ponto cerca de 1 km atrás do local previsto onde pernoitou.

Reiniciado o movimento no dia 6, pelas 5h30, foi detectado um sentinela por volta das 7h30. Começou então a instação de 3 Gr Comb para proteger o ataque dos outros dois grupos. 

Entretanto a sentinela detectou as NT e fugiu. Passados poucos minutos o IN emboscou as NT com LGFog e armas automáticas
Zacarias Saiegh, mais tarde,
na 1ª CCmds Africanos,
como  tenente graduado
'comando'

Com o Pel Caç Nat 52 à frente, impulsionado pelo seu comandante, o fur mil Zacarias Saiegh, que demonstrou um sangue frio, decisão e temeridade  dignos de serem apontados, reagiu à emboscada,  perseguindo o IN durante cerca de 1,5 km. 

Deparou nessa altura com a tabanca de Belel que imediatamente atacou e destruiu totalmente, tabanca essa que tinha sido abandonada recentememnte, e que tinha 25 palhotas. Foram destruídos ainda um tanque de água e uma horta grande.

Aquando da  destruição da tabanca pelo fogo, foram ouvidos uns rebentamentos muito fortes, o que levou a concluir tratar-se de um pequeno paiol.

Entretanto, o PCV infornou o Destacamento A que o objetivo destruído era o objectivo do Dest B e deu ordens para reiniciar o regresso para o local previsto onde se devia emboscar durante a acção do Dest B, o que foi cumprido,

Ao chegar ao local previsto, encontrou-se com o outro Dest, que já tinha destruído o objetivo deste Dest (B), e acabava de sofrer um ataque de abelhas que tinha provocado uma grande desorganziação. 

Tendo então recebido ordem do PCV para iniciar o regresso da operação, acordou com o Dest B que seguisse este na frente por já conhecer o caminho. Entretanto, ao iniciar o movimenmto depois da preparação das macas improvisadas para o transporte dos elementos mais atingidos pelo ataque das abelhas, o que demorou um certo tempo, foram emboscados novamente por forças do IN, tendo sido pedido então apoio aéreo, o que foi recusado pelo PCV.

Foi reiniciado o movimento com algumas paragens motivadas por flagelações do IN, com armas automáticas, e mais dois ataques de abelhas na margem do Rio Gandurandim, o que provocou nova desorganização nos Destacamentos. 

Por fim foi atingida a estrada Finete-Enxalé, sendo o Destacamemto recolhido em viaturas em São Belchior, atingindo o Enxalé no dia 6, às 18h30.

Aí, mais tarde, foi constatado o desaparecimento de uma praça metropolitana pelo que o cmdt do Destacamento A resolveu  na madrugada seguinte ir à sua procura, não tendo sido necessário por a praça ter aparecido no Enxalé no dia 7, às 6h00.

Iniciou-se a cambança do Rio Geba para o Xime, e daí, em viaturas, iniciou-se o movimento para Fá que foi atingida no dia 8, às 15h00.

Constatou-se que, durante o ataque de abelhas, duas praças perderam as armas, pelo que o Cmdt do BART ordenou a ida de 1 Gr Comb deste Dest, e um do Dest B no dia seguinte, 8, às 5h00 ao local,  a fim de recuperar as referidas armas, o que foi conseguido. A força regerssou ao quartel em 8, às 20h00.

Destacamento B

A CART 2339 iniciou o seu movimento, em meios auto, no dia 5, às 15h00, de Fá para o Xime onde agregou o Pel Caç Nat 53. Iniciou a cambança do Rio Geba pelas 18h00, recebeu no Enxalé dois guias e iniciou a marcha pelo itinerário previsto, tendo atingido o local a norte de Madina onde se devia instalar, no dia 6, às 7h00, após alguma hesitações ("exitações", no originnal) dos guias,

Cerca das 9h00, o PCV informou que o Dest A tinha já destruído a tabanca de Belel e ordenou que se iniciasse o movimento pelo trilho Mandina-Belel, a fim de iniciar a batida à zona a sul do referido trilho.

Durante o deslocamento foi detectado o acampamento de Enxalé. que imediatamente foi atacado e destruído, sem resistência, verificando-se que tinha sido abandonado há pouco tempo. O objectivo tinha 8 palhotas, e forma capturadas 1 espingarda Mauser, 2 marmitas, 1 granada de RPG, e alguns documentos.

Aquando da destruição pelo fogo, foram ouvidos rebentamentos de munições de armas ligeiras e granadas de RPG.

Entretanto, os elementos do Dest instalados, quando se procedia ao assalto, foram atacados pela abelhas, o que provocou uma desorganiozaçáo grande, e pôs 2 homens em estado grave, que não permitiu que se deslocassem pelos seus meios.  

Devido ainda a esse ataque de abelhas, no seu movimento desordenado o Dest encontrou-se com o Dest A instalado no local previsto.

Nessa altura e como havia uma linha de água perto, 3 elementoso do Pel Caç Nat 53, sem autorização, deslocaram-se para se reabastecerem de água. Foram atacados pelo IN tendo sido abatido o soldado milícia 60/64, Tura Jau, e tendo o IN capaturado a sua arma, espingarda G3 nº 035786.

Acorrendo imediatamente ao local, repeliu-se o IN e recuperou-se o corpo  do referido mílicia.

Como o PCV informara que ía Bissau abastecer, foi pedido pela rede de operação a evacuação dos elementos feridos e do morto. Entretanto, ao chegar o PCV, foi pedida novamente a evacuação, tendo o mesmo  determinado que não houvesse evacuações, após se ter inteirado que os feridos picados pelas anelhas estavam a recuperar, e ter decidido o regresso ao quartéis em face dos objectivos previstos terem sido destruídos, o terreno a sul da picada onde nos encontrávamos estar queimado e não havendo possibilidade de se esconderem instalações do IN e ainda pelo facto do Dest GAMA (BCAÇ 1912) não se ter instalado no local previsto para proteger a acção deste Dest.

Por lapso que se explica pelas circunstâncias de momento, o PCV não foi informado que já tinha sido pedida a evacuação pela rede de operações, o que provocou a vinda do héli a Bambadinca, não sendo contudo utilizado.

Depois de uma certa demora, com o Pel Caç Nat 52 e 53 à frente, iniciou-se o regresso, tendo as NT sofrido 3 flagelações sem consequèncias, e tendo o IN sofrido 5 mortos confirmados.

Já junto da estrada Finete-Enxalé as NT sofreram mais 2 ataques de abelhas, provocando o desmaio de alguns elementos que tiveram de ser transportados às costas.

Continuando a progressão atingiu-se São Belchioronde se foi recolhido por viaturas para Enxalé, que foi atingo cerca das 18h00.

Verificou-se que o morto tinha ficado na zona d0 último ataque de abelhas pelo que foi decidido o Pel Caç Nat 53 ficar em Enxalé, a fim de ir de madrugada no dia seguinte recuperar o corpo, o que foi feito.

A CART 2339 inicou a travessia do Rio Geba, e deslocou-se em viaturas para Fá, que atingiu no dia 7 às 3h00.

Ao conferir o material foi constatada a falta de 2 espingardas G3 e alguns cantis e bornais ("burnais", no original), o que foi comunidacado ao Cmdt do BART que ordenou a ida no dia seguinte à zona do último ataque das abelhas juntamente com 1 Gr Comb da CART 2338, o que foi feito e conseguido recuperar parte do material perdido. As NT regressaram  a Fá, que atingiram no dia 8, às 20h00.

Fonte: Excerto das  páginas 43, 44 e 45 da História da Unidade: Batalhão de Artilharia nº 1904, 1966/68. Relatório da Op Gavião, iniciada em 4 de Abril de 1968: com a duração de três dias, e destinada a executar um golpe de mão contra o acampamento do Enxalé, do PAIGC, na mata de Belel, teve a participação da CART 2338, a 4 Gr Comb, mais o Pel Caç Nat 52 (Destacamento A), bem como da CART 2339, a 4 Gr Comb, mais o Pel Caç Nat 53 (Destacamento B). Foi comandada pelo 2º Comandante do BART 1904.


Documento digitalizado: © Armando Fernandes (2008). Direitos reservadas.


3. O Armando Fernandes, ex-alf mil cav, cmdt do  Pel Rec  Info,  CCS / BART 1904, Bissau e Bambadinca, 1966/68), mandou-nos em 8 de maio de 2008 fotocópias das páginas 43, 44 e 45 da história da unidade, com base nas quais transcrevemos o texto acima (com algumas adaptações, devido ao facto de estar mal redigido e ter alguns erros de ortografia).

Na altura, o nosso camarada escreveu o seguinte:

Professor Luís Graça:

Chamo-me Armando Fernandes, fui alf mil cav, comandei o Pel Rec do BART 1904 que esteve sedeado em Bambadinca, de Janeiro a Setembro de 1968. Durante todo o ano de 1967 o Batalhão esteve sedeado em Santa Luzia, Bissau, onde rendeu, em Janeiro de 67, o BCAÇ 1876.

Entrei ontem, pela 1ª vez, no seu blogue e chamou-me a atenção o nome de uma operação referido em P2817 (***), Operação Gavião.

Sobre essa operação consta da história do BART 1904, pags. 43/45 (edição não canónica em meu poder) que o fur mil Zacarias Saiegh nela participou, o que está em desacordo com uma resposta do doutor Beja Santos registada em P2817. Parece, também, que relativamente à entrada em Belel há discrepância entre o registado na história do BART e o afirmado no mesmo poste. Onde estará a verdade?

Em anexo envio cópia das páginas que referi.

Apresento os meus cumprimentos, Armando Fernandes

4. Comentário do editor L.G.:

Na altura agradeci ao camarada Armando Fernandes, dizendo-lhe que ia divulgar a sua versão (que era a versão do BART 1904)  (****) e dar conhecimentos aos camaradas que tinham escrito sobre a Op Gavião (Mário Beja Santos, do Pel Caç Nat 52, e Torcato Mendonça e Carlos Marques dos Santos, da CART 2339, estes dois últimos participantes da Op Gavião) (*****). 

Escrevi então: 

"A nós interessa-nos a verdade e só a verdade... Em muitos casos, há discrepâncias factuais entre os nossos relatórios de operações e os depoimentos pessoais. É normal. O Mário Beja Santos, que comandou o Pel Caç Nat 52 (a partir de agosto de 1968), não poderia obviamente ter participado nesta Operação Gavião (abril de 1968). Socorre-se da memória dos seus antigos soldados, alguns dos quais felizmente ainda estão vivos e vivem em Portugal."

O ex-alf mil Torcato Mendonça e o ex-fur mil Carlos Marques dos Santos, da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), esses,  infelizmente, já náo estão entre nós...

Na altura também convidei o Armando Ferreira  a ingressar na nossa Tabanca Grande.  Infelizmente nunca mais nos contactou, pelo que nem ele nem mais ninguém representa o BART 1904 no nosso blogue.

De qualquer modo, ficou claro na altura que  o fur mil Zacarias Saiegh, a comandar interinamente  o Pel Caç Nat 52, tinha particiapdo na Op Gavião, e que recebera do comandante da operação, rasgados elogios, como se depreende deste excerto do relatório:

(...) "Com o Pel Caç Nat 52 à frente, impulsionado pelo seu comandante, o fur mil Zacarias Saiegh, que demonstrou um sangue frio, decisão e temeridade  dignos de serem apontados, reagiu à emboscada,  perseguindo o IN durante cerca de 1,5 km. " (...)
__________

Notas de L. G.:

(*) Vd. poste de 23 de fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1542: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (34): Uma desastrada e desaosa operação a Madina/Belel

(**) Último poste da série > 21 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24330: Tugas, pocos pero locos: algumas das nossas operações temerárias (1): Op Tigre Vadio, 30 de março a 1 de abril de 1970, sector L1, Península de Madina / Belel, zona leste, sector L1 (Bambadinca)

(***) Vd. poste de 7 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2817: Blogoterapia (51): O Alentejo do Casadinho e do Cascalheira, o Tura Baldé, a Op Gavião... (Torcato Mendonça / Beja Santos)
(****) Vd. poste de 11 de maio de 2008 > Guiné 63/74: P2833: Op Gavião (Belel, 4-6 de Abril de 1968) (Armando Fernandes, Pel Rec CCS / BART 1904, Bissau e Bambadinca, 1966/68)

(*****) Vd. ppostes de:

9 de maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2823: Dando a mão à palmatória (11): Operação Gavião, 5 de Abril de 1968, com as CART 2338 e 2339 (Torcato Mendonça / Beja Santos)

2 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9303: Memórias do Carlos Marques dos Santos (Mansambo, CART 2339, 1968/69) (1): Op Gavião: Abril de 1968, antes o fogo do IN que o ataque das abelhas

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24338: Historiografia da presença portuguesa em África (369): Da CUF à Casa Gouveia, da Casa Gouveia à CUF: Uma viagem interminável (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Sendo inviável fazer uma pesquisa com uma certa diacronia entre António da Silva Gouveia e Alfredo da Silva/Sociedade Geral, socorro-me do que vem na literatura sobre esta empresa em obras centradas nas atividades daquele que foi um dos mais ousados industriais portugueses, Alfredo da Silva. Não há nenhuma literatura sobre a Casa Gouveia, no entanto ela teve um papel preponderante e impôs-se dentro da lógica da exploração agrícola, do comércio, indústria e transportes, estava praticamente disseminada pela Guiné, havia armazéns nas principais povoações e mesmo lojas. Recordo que nos relatos enviados pelo responsável do BNU da Guiné a partir de 1962 a subversão irá também incidir sobre a apreensão de matérias-primas no Sul pertencentes à Casa Gouveia, serão capturadas embarcações, os negócios da Casa Gouveia ficarão seriamente afetados nesta região. Vamos agora saber um pouco mais dos papéis existentes sobre António da Silva Gouveia nos primórdios da I República, tentar-se-á seguidamente ver nos arquivos da Assembleia da República como usou da palavra como deputado.

Um abraço do
Mário


Da CUF à Casa Gouveia, da Casa Gouveia à CUF:
Uma viagem interminável (2)

Mário Beja Santos

Sempre questionei onde parava o acervo da Casa Gouveia, a principal empresa da Guiné, envolvida em explorações agrícolas, compras sobretudo de oleaginosas, algum tratamento industrial e transporte para a metrópole. Começam agora a aparecer papéis sobre António da Silva Gouveia, comerciante na Guiné e deputado, a este assunto voltaremos.

Batendo à porta da Fundação Amélia de Mello, encontrei acolhimento por parte do seu secretário-geral, dr. Jorge Quintas, que esteve profundamente ligado ao processo terminal dos Armazéns do Povo (que, como se sabe, integrava os Armazéns do Povo criados durante a luta armada e o acervo da Casa Gouveia, Sociedade Comercial Ultramarina e Barbosa e Comandita), cedeu-me um conjunto de publicações donde extraio hoje elementos que poderão ser úteis para entender como Alfredo da Silva, através da Sociedade Geral de Comércio Indústria e Transportes, incluiu no seu património a Casa Gouveia. O professor Miguel Figueira de Faria é o responsável por 3 livros editados por Publicações Dom Quixote em 2021 com os respetivos títulos: "Alfredo da Silva Biografia", "Alfredo da Silva e Salazar" e "Alfredo da Silva e a I República". É dessas publicações que procuraremos extrair algumas informações sobre a Sociedade Geral e como esta se veio articular com a Casa Gouveia.

Inesperadamente, dei com o livro de apologia de defesa da Guerra do Ultramar saído do punho do jornalista do Diário de Notícias Martinho Simões, "Nas Três Frentes Durante Três Meses", artigos publicados no DN em 1965 e editados pela Empresa Nacional de Publicidade no ano seguinte. Visita a Guiné e elogia o portuguesismo dos seus comerciantes. Começa por um comentário que não corresponde à verdade dizendo que Barbosas & Comandita foi a primeira firma a hastear a bandeira nacional em território guineense, isto em 1920. Refere as três casas grandes que dominam o vasto complexo mercantil: a Casa Gouveia, a Sociedade Comercial Ultramarina e a Barbosas & Comandita. “As duas primeiras, alargando o âmbito das suas atividades, detêm e orientam importantes setores industriais, essencialmente constituídos por centros de transformação das matérias-primas, os mais representativos dos quais se ocupam do descasque do amendoim e do arroz, dos óleos vegetais e dos sabões; a última, mantendo-se, essencialmente, no campo comercial, dispõe de um conjunto de estabelecimentos, cujo primordial objetivo é a compra de amendoim.”

E dá-nos conta das obras sociais dessas empresas, destaco o que diz sobre a Casa Gouveia:
“A par de constantes gastos na ampliação das suas instalações, concede maiores regalias aos seus empregados: bolsas de estudo a naturais da província, para frequentarem cursos universitários na metrópole; assistência médica e cirúrgica, frequentes vezes prestada na metrópole, quando os recursos locais são insuficientes; pensões de reforma por velhice ou invalidez, orçadas em 550 contos anuais; visitas à metrópole dos empregados naturais da Guiné com certo número de anos de casa, a fim de lhe proporcionar melhor conhecimento da comunidade portuguesa; cursos práticos para formação, entre os naturais da Província, de técnicos de mecânica, metalomecânica, eletricidade, química orgânica, marcenaria e outros, abrangendo preparação complementar em organizações industriais da metrópole.”

E visita com satisfação um centro industrial modelar, no Ilhéu do Rei, como escreve:
“Visitei o centro industrial da Casa Gouveia servido por ponte-cais privativa, devidamente equipada para cargas e descargas e cujas ligações são asseguradas por transportes fluviais próprios. Perfeitamente montado, dispõe de centrais diesel-elétrica e de vapor; de fábrica de descasque de mancarra com capacidade para setenta toneladas em oito horas de laboração; de fábrica de extração, por expellers, de óleo de amendoim, com capacidade de laboração de vinte e duas toneladas diárias de matéria-prima e de refinação, com controlo laboratorial; de instalações automáticas de lavagem, enchimento e pesagem e um grupo fixo de armazenagem para quatrocentas toneladas, bem como para farinação de bagaços; de um estaleiro, com plano inclinado, para recondicionamento de embarcações; e de um sistema de captação de água potável a grande profundidade.”

Em texto anterior, aludimos a duas obras de Miguel Figueira de Faria [foto à direita] sobre Alfredo da Silva, volumes dedicados à biografia e à sua atividade na I República. No volume dedicado a Alfredo da Silva e Salazar, volta-se a mencionar a Sociedade Geral e o seu avanço para a carreira de África. Alfredo da Silva, refere o autor, geria a Sociedade Geral, a sua frota era responsável pelo transporte de matérias-primas importadas que alimentavam as fábricas da CUF, frota fundamental na exportação dos produtos prontos a comercializar. E teve duras batalhas durante os anos 1930, a Sociedade Geral era temida pela concorrência e em 1932, embora a crise mundial desse sinais de abrandar houvera diminuição do comércio internacional e os preços dos serviços caíam a pique, a Sociedade Geral acumulava prejuízo nas suas carreiras.

É nesta atmosfera que Alfredo da Silva se dirige a Salazar, recém-chegado à Presidência do Conselho, dá-lhe a saber que recorrera a um empréstimo pessoal que se não pudesse solver prontamente teria de hipotecar a própria casa de habitação, pede apoio ao Governo. Acresce que a ida dos navios da Sociedade Geral para a exploração do comércio colonial só era praticável com autorização do chefe do Governo. Alfredo da Silva tenta uma vez mais adquirir a Companhia Nacional de Navegação, segue-se uma assembleia-geral desta empresa em grande agitação, acaba em tumulto, continua no dia seguinte, e no dia depois, e por aí fora, Alfredo da Silva afasta-se, deu como falhada a segunda tentativa de aquisição da CNN. E lança-se na carreira de África, faz requerimentos ao ministro da Marinha, procura rentabilizar alguns dos seus barcos. A 6 de abril de 1933, a Sociedade Geral transmitiu ao diretor da marinha mercante que o vapor Maria Amélia sairia a 21 do corrente até a Angola, a notícia deixa alarmados os administrados da Companhia Colonial, Alfredo da Silva verá as suas pretensões aprovadas, a Sociedade Geral pôde alargar as suas carreiras até Angola, limitadas até então à Guiné.

A CUF vai recuperando do pior período da sua história, a Sociedade Geral obtém permissão para continuar com os seus quatro navios na carreira de Angola, Alfredo da Silva estava autorizado a fazer o tráfego sem restrições entre a Guiné e a metrópole. Vão começar os diferendos entre Alfredo da Silva e Salazar. Este envia um convite ao industrial para integrar a Câmara Corporativa. Entrara-se numa nova era, vem a guerra civil de Espanha, haverá a conceção de estaleiros navais do porto de Lisboa à CUF. Em 1942, Alfredo da Silva falece em Sintra, a CUF entrará numa nova era sobre a égide do seu genro Manuel de Mello.

Como não disponho nesta altura mais nada sobre a Casa Gouveia vou ver o que se pode encontrar em António da Silva Gouveia, membro do Partido Republicano na Guiné.


(continua)
Navio Silva Gouveia, no porto de Lisboa, em 1941
Ilhéu do Rei, vista parcial do complexo da Casa Gouveia, fotografia de Francisco Nogueira, com a devida vénia
____________

Nota do editor

Último poste da série de 17 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24322: Historiografia da presença portuguesa em África (368): Da CUF à Casa Gouveia, da Casa Gouveia à CUF: Uma viagem interminável (1) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 23 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24337: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXVI: 16 de abril de 1971, um dia trágico, a morte de João Bacar Jaló (Cacine, 1929 - Tite, 1971)


Guiné > s/l > s/ d > O tenente graduado 'comando'  João Bacar Djaló,  rodeado de pessoal da 1ª CCmds Africanos. Entre outros, é possível identificar o furriel “Dico” Andrade, o 1º da esquerda, o furriel Orlando da Silva, ajoelhado, no meio e o 1º da direita, em cima, o soldado Francisco Gomes Nanque, que esteve preso na Libéria após a operação a Conacri. Foto de Amadu Djaló, publicado na pág. 190 do seu livro.



Lisboa > 1970 > O cap graduado 'comando'.  cmdt da 1ª CCmds Africanos João Bacar Jaló como o nosso veteraníssimo João Sacôto (ex-alf mil, CCAÇ 617/BCAÇ 619, Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66), hoje comandante da TAP reformado, membro da nossa Tabanca Grande desde 20/12/2011. 

O João Bacar Jaló veio a Lisboa, nessa altura, no 10 de Junho, receber a Torre e Espada. Nasceu em Cacine, circunscrição de Catió, região de Tombali, no sul da Guiné, em  1929, e morreu em 1971, no HM 241, em Bissau, por ferimentos em combate. Era alferes de 2ª linha em 6 de junho de 1965. (*)

Foto (e legenda): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Quínara > Carta de Tite (1955) > Escala 1/50 mil  > Posição relativa de Tite e, a nordetse, Jufá, a zona onde o João Bacar Jalõ perdeu a vida, em 16 de abril de 1971. Infografia publicada no livro, pág. 193.


Guiné > Região de Quínara > Tite > 1971 > O soldado Abdulai Djaló Cula, da 1ª CCmds, que contou aqui, no livro do Amadu Djalõ, as circunstâncias em que morreu ao seu lado o seu comandante. Foto publicada no livro, pág. 191.


1. C
ontinuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digital,  do seu livro 
"Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O seu editor literário, ou "copydesk", o seu camarada e amigo Virgínio Briote,  facultou-nos uma cópia digital; o Amadu, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.

[Foto à esquerda > O autor, em Bafatá, sua terra natal, por volta de meados de 1966. (Foto reproduzida no livro, na pág. 149) ]

Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri,  começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii)  depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido,  por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757; 

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló; 

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló  (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,


 

Capa do livro do Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.  


Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXVI:

A morte de João Bacar Jaló (Cacine, 1929- Jufá, Tite, 1971) 

No dia seguinte, de manhã, apanhei o transporte para Brá. Quando lá cheguei, estava o capitão Miquelina Simões a proceder às identificações dos instruendos, que iam frequentar o curso para a 2ª Companhia de Comandos, vi o Furriel Vasconcelos.

 Vamos a isso depressa, pá!     gritei-lhe,  a brincar.

–  Amadu, ouvi agora uma coisa, não sei se é verdade.

–  O que foi que ouviste?

–  Ouvi dizer que o João Bacar morreu!

Corri para o gabinete do capitão e vi o Sisseco.

–   Sim, é verdade, o capitão morreu!

Sem demora corremos para o hospital. Quando chegámos, estava a entrar o general Spínola. Fomos atrás dele, até ao local onde repousava o corpo do nosso capitão João Bacar Jaló. Foi o próprio general que levantou o lençol que cobria o cadáver. As lágrimas romperam pelos nossos olhos.

Terminou, neste dia, 16 de Abril de 1971, a história do Capitão João Bacar Jaló[1].

Dirigi-me para a casa do capitão João Bacar e fiquei à espera do irmão dele, porque, entre nós, as famílias não podem ficar sem um homem em casa. E quando um dos nossos morre, é costume cada um de nós dar qualquer coisa, mesmo que a pessoa morta seja rica e ainda mais se o falecido tiver sido em vida boa pessoa. Então, cada um estava a dar dentro das suas possibilidades e foi nessa altura que entrou o tal velhote, de que já falei antes, o Mamadu Candé 
[o adivinho] . Vi-o pôr uma nota de 100 escudos no cesto. Ficámos, uns momentos, a olhar um para o outro.

Mais tarde, perguntei-lhe por que razão tinha dado 100 escudos.

–   Eu não queria o dinheiro, quando o capitão mo deu. Não aceitou o meu conselho e não é legítimo eu ficar com o dinheiro. Tive que o devolver.

Fiquei assim a compreender por que é o velhote não a queria, quando o João Bacar lhe deu a nota.

O Soldado Abdulai Djaló Cula[2], filho do Padre[3] Central de Bissau, conta que,  ao amanhecer daquele dia[4], o Capitão João Bacar Jaló lhe disse que ia morrer nesse dia. Abdulai chamou o Alferes Justo[5] e contou-lhe a conversa do capitão.

–    Como?  
  perguntou o alferes.

–  Sonhei com a minha morte      respondeu o capitão.

Estávamos juntos, eu, o Abdulai Djaló Cula, o Alferes Justo e o Furriel Braima Bá (Baldé). Não tinha ainda acabado de contar o sonho, vimos duas mulheres acompanhadas por uma criança. Traziam cestos com arroz à cabeça, que iam vender em Tite. Parámo-las e o capitão perguntou-lhes:

–  
Onde está o PAIGC?

–  
Eles dormiram aqui perto, devem estar ali em frente.

Tínhamos passado a noite, nós e eles, PAIGC, bem perto uns dos outros, talvez a pouco mais de duzentos metros. Nós estávamos muito desconfiados que eles andavam por ali e eles tinham a certeza onde nós estávamos. Por isso, durante a noite, tanto nós como eles evitámos fazer ruídos.

João Bacar deixou as mulheres irem à sua vida e decidiu preparar o ataque à zona onde desconfiávamos que eles estivessem. Aproximámo-nos com muito cuidado, chegámos ao local e vimos folhas estendidas no chão, que devem ter servido de camas. Vimos um resto de cigarro no chã, ainda a deitar fumo.

–  
Justo, procura nessa zona      ordenou o capitão.

O grupo do alferes, de cerca de vinte homens, começou a movimentar-se até desaparecerem da nossa vista. Soube, mais tarde, que, depois de percorrerem a zona, o Justo decidiu emboscar-se relativamente perto de nós.

João Bacar disse a um dos furriéis que lançasse sete granadas de morteiro 60 em cima da área, onde julgava estar o grupo do PAIGC. Mas o furriel só lançou uma. Vendo que era muito lento, o capitão preparou ele próprio sete granadas de morteiro e começou rapidamente a lançá-las.

Depois, montada a segurança, João Bacar deslocou-se à tabanca com a intenção de avisar a população que devia sair das casas e fugir para a mata.

Entretanto o grupo do PAIGC foi-se aproximando de nós, sem nós nos percebermos. O capitão pediu granadas de mão defensivas a Bailo Jau, este não tinha, foi o Fassene Sama que lhas passou para a mão. 

João Bacar tinha acabado de tirar a cavilha de uma quando o PAIGC abriu fogo sobre as nossas posições. Ouviu-se um grito do Furriel Bacar Sissé, tinha sido atingido por estilhaços de uma granada de RPG, que desfizeram um baga-baga. O capitão e eu corremos para o ferido. Vi o capitão baixar-se e, com a mão esquerda, apanhar a arma do Bacar, enquanto mantinha a granada descavilhada apertada na mão direita.

O capitão muito raramente andava com G-3, quase sempre levava a pistola e duas granadas de mão defensivas. Passou por mim, tinha dado talvez dois ou três passos e avistámos o disparo do RPG. Eu estava bem abrigado, protegido por uma raiz de uma árvore. João Bacar ajoelhou-se instantaneamente, o rebentamento deu-se atrás de nós e depois mais rebentamentos, tudo muito rápido.

 O capitão, que estava ajoelhado, a mão esquerda ocupada com a G-3, foi atingido no braço direito cuja mão segurava a granada sem cavilha. Perdeu força, não deve ter conseguido lançá-la e ela rebentou.

Saí da grande raiz que me servia de abrigo, a cerca de cinco metros, e comecei a puxar pelo capitão. Ainda estava vivo. Arrastei-o para uma zona mais segura e ajoelhei-me. A troca de tiros e de granadas prosseguia. Pus a cabeça do capitão em cima das minhas pernas.

- Uai, Nene[6]!

A granada tinha-lhe arrancado a perna direita, a mão direita e esfacelou-lhe a parte direita do tronco. Estava a morrer,  o meu Capitão João Bacar Djaló.

O Furriel Lalo Bailo gritou em mandinga:

- Uai ‘nte Báma, capitom fata[7]!

O Inimigo sabia o que estava a acontecer e intensificou ainda mais o fogo, enquanto o sentíamos mais perto. Era um grupo numeroso e chegámos a pensar que nos queriam apanhar à mão. Aos gritos chamei o Furriel Vicente Pedro da Silva[8]:

–  
Meu furriel, querem apanhar-nos à mão!

A morte do nosso comandante estava a tocar-nos muito, o nosso moral estava em baixo e o grupo do PAIGC cheirava isso.

–  
Calma!    ouviu-se a voz do Furriel Vicente.

Agarrou-me e ao Vicente Malefo e a mais dois ou três, lançou uma granada de mão defensiva e gritou bem alto:

–  
Comandos ao ataque! Cada um dispara dois tiros seguidos de cada vez, tum-tum! Vamos apanhá-los à mão, agora não façam mais tiros!

Com os gritos do nosso furriel começámos a avançar e eles recuaram. Depois, na acalmia que se seguiu, pedimos as evacuações, enquanto nos movimentávamos com o corpo do nosso comandante e carregando os feridos mais graves, o Alferes Justo, que se tinha ferido no joelho ao servir-se dele para apoiar o morteiro, e os Furriéis Bacar Sissé e Dabho.

Quando atravessávamos a bolanha ouvimos o silvo de um Fiat, picou sobre nós, largou uma bomba que só estremeceu tudo à volta e levantou outra vez. O Alferes Justo pegou no banana, o AVP-1[9], e conseguiu entrar em contacto com a esquadrilha. Que éramos nós e que precisávamos de um heli para evacuar os nossos feridos.

Momentos depois, talvez antes ainda das nove horas, fomos sobrevoados por dois 
[helis] , um armado[10] e outro que pousou com uma enfermeira que os transportou para Bissau, para o Hospital Militar.

Quando regressávamos a Tite,  vinha ao nosso encontro uma unidade e, em coluna auto,  fomos transportados para o Inchudé e daqui seguimos numa lancha para Bissau.

Eu vinha com o camuflado empastelado do sangue do meu capitão. No cais, num ambiente de grande tristeza, aguardavam-nos as nossas famílias e muitos amigos nossos.

Três ou quatro dias depois, já não me lembro bem, foi o funeral do João Bacar, que foi uma manifestação que Bissau nunca tinha visto.

Acaba aqui a história dessa grande figura humana, do grande fundador das milícias no sul, na sua terra de Catió. Quando lá estive com os “Fantasmas”, em 1965, com o Alferes Saraiva para operações no Como e em Cufar, o João Bacar escolheu milícias da sua confiança, para aprenderem a ser operacionais. 

O capitão entrou em dezenas de batalhas até acabar a sua vida numa simples patrulha de combate em Jufá, em circunstâncias um pouco estranhas, no dia negro de 16 de Abril de 1971.



Lisboa > Terreiro do Paço > 10 de junho de 1970 > "Dia da Raça" > Ao centro, o Capitão Graduado 'Comando' João Bacar Djaló, comandante da 1.ª Companhia de Comandos Africanos, condecorado com a "Torre e Espada", e que tive oportunidade de cumprimentar em Fá Mandinga, onde, na altura, estava sediada aquela unidade de elite (participou na Op Mar Verde, a invasão anfíbia de Conacri e numerosíssimas outras operações do mais elevado risco; seria morto em combate, meio ano depois,  de ser condecorado com a “Torre e Espada”). 

A segunda figura, da esquerda para a direita é o capitão-tenente Alpoim Calvão, cérebro da Op Mar Verde, que cheguei a ver, mas não conheci, nem de perto nem de longe, nos “paços” do “Comando-Chefe”, na Amura. 

Os restantes elementos da primeira fila, todos eles igualmente condecorados com a “Torre e Espada”, são o furriel Cherno Sissé (Guiné), e, salvo erro, o coronel Hélio Felgas e o ten mil inf José Augusto Ribeiro, cuja província/colónia onde prestavam serviço desconheço.

Fonte: Revista "Guerrilha", junho de 1970 (Publicação editada pelo MNF - Movimento Nacional Feminino. Edição e legendagem:  Mário Migueis da Silva (ex-fur mil rec inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72) (***)


Guiné-Bissau > Bissau > Cemitério português > Abril de 2006 > Restos de lápides funerárias de soldados portugueses cujos corpos por aqui ficaram. Como o guineense Capitão Comando João Bacar Jaló, natural da Guiné, morto em combate em 16 de Abril de 1971.

Foto (e legenda): © A. Marques Lopes (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do autor ou editor literário:

[1] Nota do editor: João Bacar Jaló nasceu em 2 de outubro de 1929, em Cacine. Foi incorporado no Exército, para o qual se voluntariou, no dia 1 de março de 1949. Em junho de 1951 encontrava-se ao serviço da 2ª CCaç, em Bolama, quando terminou o seu primeiro período militar. Nesse mesmo ano começou a trabalhar na Administração Civil, em Bissau. Em 1952 no Palácio do Governo e até 1958, sempre como funcionário da Administração Civil, em Bissalanca, Antula, Prábis e Safim.

 Entre 1958 e 1961 foi fiscal de fronteira no sul e em seguida desempenhou o cargo de comandante de ronda em Catió, que acumulou com as funções de oficial de diligências do Julgado Municipal. 

Com o início da actividade militar do PAIGG, João Bacar, já com 33 anos, alistou-se novamente, como comandante de Caçadores Naturais da Guiné. Foi graduado em alferes de 2ª linha em 8 de junho de 1965.

Depois foi nomeado comandante da Companhia de Milícias nº. 13 e um ano depois foi promovido a tenente. Depois de ter frequentado um curso de oficiais, João Bacar foi graduado em capitão e passou a comandar a 1ª CCmds Africanos.

 Ao longo da sua vida militar recebeu numerosos louvores. Foram-lhe atribuídas duas Cruzes de Guerra em 1964 e 1965 e era, desde 30Jun1970, Oficial da Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito.

[2] O Soldado Abdulai Djaló Cula é natural de Bissau. Pertencia à equipa do Furriel Bacar Sissé que fazia parte do grupo de cerca de 40 homens que foram a Jufa, comandado pelo Capitão João Bacar Jaló.

[3] Dignitário Muçulmano.

[4] Havia a informação que um grupo do PAIGC ia passar a noite de 15 para 16 de abril de 1971 a uma tabanca de balantas, em Jufá, na zona de Tite. O João Bacar estava com um grupo emboscado junto à tabanca. Durante a noite, os cães da tabanca não pararam de ladrar. Quando amanheceu, João Bacar disse: 

“Nós vamos ali à tabanca, conversamos com a população, mas não passámos dali. Porque num sono muito rápido que tive, sonhei que o PAIGC me prendera. Amarraram-me, meteram-me num jipe, e eu consegui saltar do jipe em andamento. No chão, com as mãos e os pés atados não podia correr. O jipe fez marcha atrás, voltaram a apanhar-me e meteram-me outra vez no carro. Quando o carro voltou a andar, seguraram-me, para não me deixarem mexer. O jipe arrancou e acordei. "

Este sonho foi contado pelo João Bacar ao Furriel Braima Bá e ao Soldado Abdulai Djaló Cula, na manhã do dia em que morreu.

[5] Nota do editor: Justo Nascimento.

[6] - Ai, minha Mãe!

[7] - Ai, minha mãe, o meu capitão morreu!

[8] O Vicente Pedro da Silva foi mais tarde promovido a alferes. Talvez devido ás precárias condições em que vivia e cansado da incompreensão que sentia por não ver reconhecida a sua condição de português nascido na Guiné e antigo combatente das Forças Armadas Portuguesas suicidou-se em Lisboa, por volta de 2004.

[9] Nota do editor: Transmissor-receptor.

[10] Nota do editor: Sud Aviation SA-3160 “Alouette III”, c/helicanhão de 20mm, conhecido por “Lobo Mau”.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Parênteses rectos com notas /  Subtítulo / Negritos: LG]
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


Vd. ainda poste de 2 de maio de 2009 > Guiné 63/74 – P4275: Tugas - Quem é quem (4): João Bacar Jaló (1929-1971) (Magalhães Ribeiro)

(***) Vd. poste de 30 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20021: Recortes de imprensa (103): O 10 de Junho de 1970 na Revista Guerrilha, edição do Movimento Nacional Feminino, dirigida por Cecília Supico Pinto (1) (Mário Migueis da Silva)

Guiné 61/74 - P24336: Convívios (961): 42.º Encontro dos militares da CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71) e respectivas famílias, a levar a efeito no próximo dia 17 de Junho de 2023 em Montemor-o-Novo (António Ramalho, ex-Fur Mil Cav)

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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24315: Convívios (960): 50.º almoço de confraternização da CCAÇ 12, Pelotões Daimler e Pel Caç Nat, Bambadinca e Xime, 1971/74: Coimbra, Claustros do antigo Colégio da Graça, 27 de maio de 2023 (José Sobral e Jaime Pereira)

Guiné 61/74 - P24335: Acção Psico-Social: algumas diretivas do Com-Chefe (1): Directiva 48/68 (Operações Psicológicas Alfa) e Directiva 60/68 (Campanha Psicológica de Recuperação)

Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Geba > CART 1690 (1967/69) >  Cartazes da propaganda das NT, da coleção do  Alfredo Reis, ex-alf mil, CART 1690 (Geba, 1967/69). É veterinário, reformado, vivendo em Santarém. (*)

Fotos: © Alfredo Reis (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Informação selecionada e coligida pelo nosso colaborador permanente José  Martins, para a área da História Militar e Arquivos. É autor, entre outras, da série "Consultório Militar". É um dos históricos do nosso blogue. Tem mais de 460 referências. Nasceu em Leiria, em 5/9/1946. Vive em Odivelas. Trabalhou como contabilista. Está reformado. Serviu como Fur Mil Trms Inf, CCAÇ 5, Gatos Pretos (Canjadude, Junho de 1968/Junho de 1970).

Directiva 48/68 > Operações psicológicas Alfa  (**)


Generalidades

1.
 Os temas que se apresentam deverão ser adequadamente desenvolvidos e «personalizados» com elementos respeitantes a cada área, recorrendo, especialmente, a factos actuais. No Apêndice I a este anexo apresenta-se um exemplo elucidativo.

2. O CTIG deverá remeter ao GABMIL todos os elementos que possam auxiliar o desenvolvimento dos temas constantes deste anexo, a fim de serem utilizados na informação e propaganda radiofónica a conduzir.

3. Os temas difundidos na Directiva Propaganda n.° 1, do COMCHEFEGUINÉ, de 30SET68, deverão continuar a utilizar-se nas Op. Psic. Alfa. II. Temas a utilizar.

1. Visando preservar as populações sob nosso controlo:

a) A tropa portuguesa luta por uma Guiné melhor, onde todos tenham paz, progresso e bem-estar.

b) A tropa branca veio da Metrópole à Guiné ajudar os seus irmãos pretos a defender o seu chão contra os terroristas. Os pretos estão a combater juntamente com os dos brancos, contra os terroristas.

c) A tropa, os navios, os aviões e a artilharia vão destruir os terroristas.

d) Os terroristas raptam as populações e obrigam-nas a trabalhar eles.

e) No chão da Guiné, portugueses pretos e brancos vão construir uma vida melhor.

f) Os terroristas trouxeram a guerra e querem a desgraça dos povos da Guiné.

2. Visando dissociar o binário Pop/In:

a)
 Os terroristas protegem-se com a população. Não se importam que a população sofra com os tiros e as bombas lançadas por causa deles.

b) Os terroristas enganam o povo com promessas que não são capazes de cumprir (concretizar no desenvolvimento do tema).

c) Os chefes terroristas estão vendidos aos estrangeiros que lhes fornecem armas. Querem vender a Guiné.

d) A tropa, os navios, os aviões e a artilharia vão acabar com os bandidos que pretendem roubar a paz e o bem-estar aos povos da Guiné.

e) Os chefes terroristas vivem bem, no estrangeiro, gastando o dinheiro do povo, enquanto que o povo sofre, na mata, com doenças e fome.

f) Os terroristas levam o arroz e o dinheiro; em paga, trazem a guerra e o sofrimento para o povo.

g) A tropa vai acabar com os bandidos para ganhar a paz e o bem-estar para o povo da Guiné.

h) Quem não quiser sofrer com as bombas dos aviões, com os tiros da artilharia e com a guerra, deve separar-se dos bandidos.

i) O pessoal que vive na mata tem muita doença; quando se apresenta, é tratado pelas autoridades, passando a viver melhor.

j) Quem quiser continuar a sofrer, fica com os terroristas na mata; quem preferir viver em paz, apresenta-se às autoridades.

3. Visando captar as populações sob duplo controlo:

a)
 Os terroristas estão a perder a guerra e, para esconder a sua derrota, prometem coisas que não podem dar. Nunca cumpriram o que prometeram.

b) O terrorista explora o povo. Rouba e nunca paga.

c) Os terroristas querem a confusão, para poderem roubar à vontade a terra, os bens e as mulheres de cada um.

d) Os terroristas só querem a guerra e a desgraça do povo da Guiné.

e) A tropa, os navios, os aviões e a artilharia vão acabar com os bandidos que pretendem roubar a paz e o bem-estar aos povos da Guiné.

f) Aqueles que vivem na mata, com os terroristas, têm má casa, más culturas e muita doença.

g) Os terroristas levam o arroz, as mulheres, os filhos e o dinheiro; em paga, trazem a guerra e o sofrimento para o povo.

Bissau, 29 de Outubro de 1968,
O Comandante-Chefe,
António Sebastião Ribeiro de Spínola,
Brigadeiro


Directiva 60/68  > Campanha psicológica de recuperação (**)

1. Como vimos afirmando, o aspecto de fundo de um «plano de contra-subversão» não se projecta no campo imediato da força das armas, mas sim no campo da promoção social e cultural das populações. 

Por outras palavras, a guerra da Guiné não se ganha pela força das armas, mas sim pela força da razão. E a razão conquista-se na medida em que a Província atinja um nível de bem-estar social que satisfaça os anseios imediatos das populações, anseios que lhes foram instigados pelo inimigo e que estão na base da sua propaganda, constituindo a sua principal força.

2. O nosso «plano de contra-subversão» visa a rápida consecução desse nível de bem-estar, que se traduz no slogan: UMA GUINÉ MELHOR. Se atingirmos esse nível de bem-estar em tempo útil, furtaremos ao IN a força da razão, e com esta as populações - objectivo final de «um plano de contra-subversão».

3. Dentro desta linha de pensamento, que está na base da orientação do Governo da Província - e que constitui a nossa principal «ideia-força» - é natural que o inimigo combatente e as populações da Guiné, presentemente desorientadas, se desequilibrem para o lado da razão, isto é, para o lado da nossa causa.

4. Neste pressuposto, torna-se absolutamente necessário rever o nosso procedimento à luz de nova conduta, agindo em conformidade com os princípios morais e civilizadores que estão na essência da nação portuguesa e informam a sua estrutura jurídica. 

Há que esquecer aspectos tristes do passado - para os quais, temos de reconhecer, também contribuímos - e restabelecer um clima de recíproca confiança entre portugueses metropolitanos e portugueses guineenses (autóctones), condição absolutamente necessária à recuperação da Província para a vida normal e pacífica. 

Há que saber perdoar, sendo generoso para com aqueles que, respondendo ao nosso grito de UMA GUINÉ MELHOR, desejem trocar o caminho da subversão pelo da paz e da ordem. 

Neste sentido, impõe-se lançar uma campanha de mentalização das Forças Armadas, autoridades administrativas e policiais, campanha que vai ser iniciada na presente época do Natal com a libertação de vários elementos inimigos presos na ilha das Galinhas, depois de devidamente integrados na actual linha de rumo. 

Torna-se necessário que as Forças Armadas, autoridades administrativas e policiais, e em especial a Divisão de Acção Psicológica do Comando-Chefe e a PIDE, orientem, desde já, o seu esforço de acção psicológica na linha de acção expressa na presente directiva.

Bissau, 17 de Dezembro de 1968,
O Comandante-Chefe,
António Sebastião Ribeiro de Spínola,
Brigadeiro

[Revisão / fixação de texto / negritos, para efeotos de edição deste poste: JM / LG ]
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 14 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15619: Álbum fotográfico de Alfredo Reis (ex-alf mil, CART 1690, Geba, 1967/69) (5): Os nossos cartazes de propaganda

(**) Vd. poste de 1  de setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13555: Directivas emanadas pelo COM-CHEFE, Brigadeiro António de Spínola em 1968 (3) (José Martins)

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24334: Notas de leitura (1584): "Onésimo Silveira, Uma Vida, Um mar de Histórias", por José Vicente Lopes; Spleen Edições, 2016 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
Privilegiou-se, deste belo livro em que entrevistador e entrevistado se enlaçam com naturalidade, entrevistador bem informado e um octogenário que procura jogar o jogo da verdade, os temas mais relevantes à luta armada, como ele via o PAIGC, como se sentiu atraído para combatente nacionalista e como se afastou do PAIGC por não aceitar o dogma da fé da unidade Guiné-Cabo Verde. 

Conheceu a fundo o PAIGC e o PAICV, dá-nos uma imagem da história de Cabo Verde após a independência que não pode deixar indiferente qualquer estudioso. Doutorou-se em socialismo africano e deixa-nos comentários valiosos sobre esses líderes com quem conviveu. Não se escusa a fazer confissões íntimas como a que tece sobre Adriano Moreira, não gostou dele como Ministro do Ultramar, considera a sua obra como uma das mais meritórias da Ciência Política, mesmo as medidas que tomou para estimular o ensino universitário e acabar com o regime do indigenato. Para o estudioso é muito importante a análise que ele faz do Partido Único de Cabo Verde e do seu trabalho autárquico. Creio que o leitor irá ficar fascinado com a imagem que este cabo-verdiano dá da sua vida e da sua ligação a uma cultura específica onde o português está sempre presente.

Um abraço do
Mário



Onésimo Silveira, o PAIGC e a unidade Guiné-Cabo Verde (2)

Mário Beja Santos

Onésimo Silveira, Uma vida, Um mar de histórias, por José Vicente Lopes, Spleen Edições, 2016, é de leitura obrigatória por vários motivos, que destaco: temos aqui uma grande angular com olhares sobre a sociedade cabo-verdiana, o papel do PAIGC neste Estado independente, e o contributo de alguém que foi combatente nacionalista, embaixador do seu país e diplomata das Nações Unidas, autarca, poeta, romancista e ensaísta. Quem o entrevista é um jornalista conceituado, José Vicente Lopes, a quem devemos obras de referência tais como Os bastidores da independência, As causas da independência e Aristides Pereira, minha vida, nossa história.

Já vimos como este combatente nacionalista andou por várias paragens antes de passar a representante do PAIGC no mundo escandinavo. Era frontal, não escondia a sua descrença contra o dogma da unidade Guiné-Cabo Verde. Estamos agora na atmosfera do assassinato, em retrospetiva, Onésimo, que assistiu aos funerais e que dialogou então com muita gente, avalia que Amílcar Cabral e os seus próximos subestimaram os avisos de que havia uma conjura em marcha, houve autêntica leviandade desses sinais premonitórios da conjura, os cubanos disseram claramente o que se estava a preparar. 

É neste momento que o entrevistador pergunta a Onésimo em que medida Cabral era tributário dos cabo-verdianos. Vem a resposta: 

“Precisava dos cabo-verdianos. Desde logo, para justificar a existência do PAIGC enquanto movimento de libertação dos dois territórios. Por outro lado, quando a luta exigiu uma intervenção qualitativa, só os cabo-verdianos e os cubanos é que puderam dar essa contribuição. São os cabo-verdianos que se vão formar sobretudo em artilharia, introduzindo com isso um elemento novo e de valor na guerra contra os portugueses”

A conversa deriva para o projeto de desembarque em Cabo Verde, houve aventureiros, como o Conde Von Rosen que propôs operações com aviões pequenos, chegou-se a discutir a preparação de pilotos, não era para matar pessoas, era para destruir os hangares dos aviões militares portugueses. Na altura da morte de Cabral os soviéticos estavam a preparar pilotos para a guerra na Guiné, mas era uma questão diferente. O plano do conde sueco não foi por diante e internacionalmente não havia qualquer apoio ao desembarque da guerrilha em Cabo Verde.

A conversa regressa aos cabo-verdianos de Conacri, observa pessoas, faz-lhes o retrato, caso de Pedro Pires: 

“Ele é um homem que não faz questão de apresentar ideias originais, mas é um administrador de grande classe, mesmo com ideias políticas que não sejam dele”

Onésimo, que já não é militante do PAIGC, após as exéquias de Cabral regressa a Estocolmo com o sentimento de que o PAIGC precisava de mudar de política, já estavam todos no comprimento de onda de que a Guiné seria independente, mas era óbvio que havia dois problemas, os guineenses não aceitavam o mando dos cabo-verdianos, e o papel dos militares, que enquanto Cabral foi vivo era de plena subordinação ao poder político, irrompeu na luta pelo poder. Cabral tinha uma fórmula para a subordinação dos militares, eles não eram militares, eram militantes armados, foi a consigna que ele criou no Congresso de Cassacá, para expurgar do PAIGC a mentalidade do cabo de guerra. O jornalista enfatiza, volta a Cabral e pretende saber se ele no fundo era guineense ou cabo-verdiano. Onésimo é pronto a responder: 

“Pelo comportamento, Cabral era cabo-verdiano. E foi por ser cabo-verdiano que foi morto pelos guineenses. Os guineenses não viam nele um guineense”.

Como o jornalista observa que também havia cabo-verdianos que se recusavam a ver Cabral como cabo-verdiano, Onésimo dá a sua interpretação: 

“É uma situação estranha, inédita, de um indivíduo que nasce num país, faz uma revolução como cidadão de outro país (aqui Onésimo comete um erro de palmatória, Cabral nasceu em Bafatá e depois foi com a mãe viver para Cabo Verde, onde estudou e de onde partiu para Lisboa para se diplomar como engenheiro agrónomo), Cabral esteve na Guiné, viveu com os guineenses, viu o impacto da intervenção colonial na Guiné, uma situação completamente diferente de Cabo Verde. Mesmo tendo vivido na Guiné, Cabral não viveu a Guiné por dentro e nem podia”

E adianta uma observação que abre um novo ângulo de análise, que mesmo a maior parte do tempo de Cabo Verde é uma experiência são-vicentina, e Onésimo procura dar uma interpretação: 

“Não é por acaso que Cabral se preocupa com a pequena burguesia naquilo que é o pensamento político dele. Na história de Cabo-Verde, a experiência urbana e pequeno-burguesa é mais visível em São Vicente do que em Santiago. A Guiné nem sequer é para aqui chamada. Cabral é dos poucos líderes africanos que se preocupa com o papel da pequena burguesia, porque sabia, no fundo, que ele próprio era um produto da pequena burguesia africana. Tinha tudo para viver tranquilamente e confortavelmente no quadro imperial português. Em vez disso, ele entendia que tinha uma dívida a saldar com os povos de África, a começar pelos seus irmãos da Guiné e Cabo Verde”.

Esboça-se o retrato de muita gente e influenciou a luta, caso de Abílio Duarte. Onésimo afasta-se do PAIGC, conta as reuniões em que esteve, conta como o caluniaram, seria um problema de contas, ao que ele respondeu perentoriamente: 

“Pelas minhas mãos não passava um tostão da ajuda sueca para o PAIGC. Não passava, nem nunca passou”

E explica o que era a ajuda sueca, a conversa retoma a cena internacional onde se movia o PAIGC, havia mesmo a opinião de que Cabral não devia ter ido ao encontro de Paulo VI, pessoas como Vasco Cabral, comunista, temia que os soviéticos ficassem francamente aborrecidos.

Dentro desta entrevista tão agradavelmente movimentada fala-se da tese de doutoramento e de Karl Popper, de Aron e de Sartre. E chegamos ao 25 de Abril e emerge uma nova dimensão, a independência de Cabo Verde, apresenta-nos intervenientes, fala-se do partido de Baltasar Lopes, Onésimo vive aquela tensão que tinha lutado pela independência do seu país e continuava a considerar que a unidade Guiné-Cabo Verde era uma grandessíssima asneira que ainda hoje Cabo Verde estava a pagar a fatura. 

Entretanto, vem investigar para Dacar, a convite de Senghor, assiste próximo e distante o aparecimento de movimentos de independência que serão sufocados pelo PAIGC. Onésimo ingressa nas Nações Unidas, vai para Nova Iorque, depois Angola, Somália, Moçambique, Genebra, cansado pede a desvinculação e volta para Cabo Verde, antes porém fala-nos da cultura norte-americana e depois da diplomacia africana, mais tarde vamos vê-lo como primeiro presidente eleito da Câmara Municipal de São Vicente (1991-2002), será depois embaixador de Cabo Verde em Portugal até 2005, falará longamente do Partido Único em Cabo Verde, foi mesmo convidado para Ministro dos Negócios Estrangeiros por José Maria Neves, é brejeiro a contar histórias como aquela que viveu enquanto embaixador em Lisboa: 

“Tive um funcionário que tinha mulher e amante na embaixada, mas que, por razões de ordem partidária, não resolvia o problema. Uma vez a amante veio ter comigo, para me dizer que estava na disposição de liquidar a rival, se o assunto dela não fosse resolvido. Aquilo era um caso de bigamia mal disfarçada e aconselhei-a a não fazer o que pensava, felizmente o marido acabou por regressar à base".

Onésimo revela-se um conhecedor profundo da realidade cabo-verdiana, a diversidade de cada ilha e a sua poderosa cultura. No termo da entrevista haverá um balanço e vamos vê-lo a falar com a maior das intimidades dos amores dispersos e dos filhos que tem em vários continentes. Considera-se um homem de coragem, relevou amizades, e conta histórias como o apoio que deu a José Leitão da Graça em Dacar, considerados inimigos do PAIGC. 

“Entre o revolucionário, autarca e diplomata, prefiro responder que sou um lutador”

Orgulha-se de ter tido uma vida plena e de continuar a lutar pela liberdade e pela democracia.

Pelo seu desempenho na luta pela independência da Guiné e Cabo Verde, esta longa entrevista é de leitura obrigatória para estudiosos e curiosos.

Onésimo Silveira e Amílcar Cabral em Helsínquia
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24327: Notas de leitura (1583): "Onésimo Silveira, Uma Vida, Um mar de Histórias", por José Vicente Lopes; Spleen Edições, 2016 (1) (Mário Beja Santos)