E enquanto ainda estavas a bordo do T/T Niassa (que navegava ao largo da costa de Marrocos, sem qualquer escolta visível...), vieram à tona de água da memória as histórias de tubarões que o "teu velho" te contava, ainda quando criança. Ele gostava de fazer mergulho e nadar, na baía do Mindelo, do Porto Grande, mas tinha medo que se pelava dos tubarões! E dava-te exemplos arrepiantes: de um que ficou com o peito todo marcado pela dentadura de aço de um tubarão: de um outro, abocanhado, que conseguiu escapar mas sem uma perna; de um terceiro tipo, que ele salvou de morrer afogado, tinta-se atirado do cais, desesperado, depois de lhe ter sido amputado o pilau (por "venéreo", acrescentava pudicamente o teu velho, sem te explicar que raio de doença era essa).
Trazes contigo uma das suas fotos. Lês no verso: "No dia em que fiz 22 anos tirei esta fotografia em Mindelo, celebrando as minhas vinte e duas primaveras felizes. Em 19/8/942. S. Vicente, C. Verde. Senti neste dia muitas saudades dos meus, dos amigos e também da minha terra (...)".
"Vinte e duas primaveras felizes", com todo o mundo em guerra, em plena II Guerra Mundial!... E o Atlântico , cemitério de centenas de navios e dezenas e dezenas de milhares de vidas.
Em 28 de maio de 1969 (data aziaga!), na véspera de chegares a Bissau, tu tinhas 22 anos e 4 meses. Do fundo da memória, vêm-te à superfície fotos amareladas de barcos e tubarões. Barcos ingleses, italianos, alemães, portugueses, ancorados na baía do Mindelo, ou ao largo, numa entente cordiale... Grandes navios de cruzeiro italianos transformados em hospitais, e que traziam doentes, refugiados e diplomatas... Acabada a grappa a bordo, bebiam álcool puro, os diplomatas ao serviço do "Duce", contava-te o teu pai...
Lembraste-te de um desses navios da nossa frota da marinha mercante, o Mouzinho de Albuquerque, que tomou o nome de um trágico herói colonial... Dizem que o Mouzinho, o herói de Chaimite, o "carrasco do Gungunhana" (dizia-te a tua professora da 4ª classe) se suicidou por não suportar o boato que corria nos mentideros de Lisboa de que era o amante da rainha Dona Amélia, fidelíssima esposa do seu amado rei D. Carlos... (Ele era o precetor de um dos principes; por outro lado o rei estava longe de ser um exempo de virtudes.)
E o mítico Serpa Pinto (cento e quarenta e tal metros de comprido, um pouco menos que o Niassa), que na Jugoslávia escapara, em 1940, de cair nas garras dos nazis, para passar a ostentar o pavilhão português... Estará no periscópio de um U-2 para ser abatido quatro anos depois.
A bordo do Niassa perguntavas-te a ti próprio:
– E se Cabo Verde tivesse sido invadido, em 1941, 42 ou 43, como ao que parece chegou a estar nos planos dos Aliados ou até das potências do Eixo ?
Muito provavelmente tu nunca terias nascido, ou se tivesses nascido falarias hoje alemão, e não estarias agora a caminho da Guiné, a bordo do Niassa, um navio da carreira colonial fretado pelo exército… O teu pai só tinha barco (e correio) de três em três meses, mas escrevia todos os dias, compulsivamente (as cartas dele e as dos camaradas que não sabiam ler nem escrever).
Alguém se lembrou, entretanto, de abrir uma garrafa de "champagne" (um espumantezeco nacional, de cabaré) como se a malta tivesse atravessado o Equador ("ali mais abaixo"), em alegre cruzeiro de meninos ricos de colégio fino pelo Atlântico Sul. Era o sargento Vidigal que também já andara noutros "cruzeiros", a caminho de Angola e Moçambique. Com um sorriso verde-amarelo, também participaste estupidamente, a contra-gosto, nesse ritual de iniciação, erguendo a tua taça:
– Afinal, estamos todos no mesmo barco! – comentaste para o teu parceiro do lado, o furriel miliciano enfermeiro..., a quem desde cedo, desde Santa Margarida, tinham posto a alcunha do Pastilhas... (Todos os enfermeiros eram Pastilhas.)
Não chegaste a saber se ele terá percebido o teu humor negro. Não era tipo para achar piada às tuas piadas, ali deslocadas. Recorda-lo, ainda hoje, como um homem simples, sensível, tímido, reservado, com ar bonacheirão mas assustado, a par de uma calvície precocemente galopante:
– Estamos todos no mesmo barco, camarada!... Quero eu dizer: estamos fo...didos, quilhados, lixados, embarcados numa aventura que pode ser sem regresso… – repetias-lhe tu, em vão.
Tu que te julgavas um tipo bem educado e civilizado, começaste a falar mal, a praguejar como o carroceiro que, na tua terra, fazia o serviço combinado com a CP, e tinha quatro possantes cavalos pretos que puxavam a sua galera. Rosnavas, entre dentes, desde que soubeste da tua mobilização para a Guiné, em finais de fevereiro de 1969. A falar mal, a beber e a fumar. Falava-se mal, na tropa. Bebia-se e fumava-se, em demasia, no teu tempo de tropa. Como se o Niassa fosse uma extensão marítima do Cais do Sodré e das suas espeluncas.
O enfermeiro, por seu turno, era incapaz de dizer uma asneira: constava-se que já era enfermeiro na vida civil… Mas tu sabias pouco ou nada dele. Em boa verdade, sabíamos muito pouco uns dos outros. Nem valia a pena fazer perguntas: nunca tinhas ido às terras deles, nem eles à tua... Para ti, Freixo de Espada à Cinta era no Cu de Judas... Viajava-se ainda muito pouco nos anos 60... Portugal, todavia, estava bem representado, de Norte a Sul, na tua minicompanhia: dos alferes e furriéis milicanos, havia gente de todo o lado, do Algarve a Trás-os-Montes, da Estremadura ao Minho, sem esquecer a Madeira e o Alentejo.
Tinha piada, as voltas que o mundo dará: o Pastilhas, que voltarás a encontrar muito mais tarde, em 1991, na Anadia, no 1º encontro do pessoal da companhia, vinte anos após a "peluda", virá depois a fazer o curso de medicina. E o ranger Azevedo, transmontano, tinha-se tornado empresário e autarca.
A bordo comia-se e sobretudo bebia-se o dia todo, pelo menos os privilegiados dos graduados, para matar o tédio, para suportar a angústia da viagem, para fazer lastro e sobretudo para não dar parte de fraco e andar a chamar pelo Gregório pelos cantos do navio.
Não há gaidjas, queixava-se o Vidigal, o 2º sargento do quadro, também ele transmontano, que à última hora ainda havia desafiado alguns gajos da corda para ir fazer a despedida ao Bairro Alto. Um safado que, à conta da úlcera no estômago, iria depois arranjar maneira de escapar à dura vida no mato. Um 1º cabo irá tomar conta da sua secção... Sempre era mais novo, com pelo menos 15 anos de diferença... Aquela guerra só podia ser feita por putos com 20 anos... Pobre do capitão que tinha 38 e estava à bica para ser promovido a major.
Era a velha tradição das rotas da navegação colonial, o álcool. Havia os viciados da lerpa e do king. Como haveria depois, no teatro de operações da Guiné (no TO da Guiné, para utilizar a nossa linguagem de código), os viciados do álcool, da comida, do sexo, da caça, da guerra, da escrita diária de aerogramas (ou "bate-estradas")...
Os oficiais superiores (eram poucos, e iam em rendição individual), esses, divertiam-se com o tiro ao alvo na popa do navio, enquanto a malta da classe turística escrevia cartas, aos pais, namoradas, noivas, mulheres, madrinhas de guerra..., cartas que tu imaginavas já molhadas de lágrimas salgadas e de saudades.
As praças, essas, vomitavam nos porões. (Só uma vez tiveste "estômago" para "ir lá baixo".) Eram a "carne para canhão", transportada como gado, queixava-se o nosso cripto, o Joselito. Um riacho de água verde-escura, fedorenta, escorria pelo convés. Todo o navio fedia, tresandava a merda, e no meio do cheiro nauseabundo havia um desgraçado de um desertor que ia a ferros, qual gado levado para feira. Diziam que fora apanhado pela Pide na fronteira de Vilar Formoso, e recambiado para Santa Margarida, ainda a tempo de apanhar o comboio-fantasma até ao Cais da Rocha Conde de Óbidos onde o esperava o Niassa. (Enfim, uma história mal contada, como tantas outras, com que nos entretinhamos para aliviar a angústia da incerteza sobre o nosso destino, uma vez desembarcados em Bissau.)
– De mal o menos, ó Peniche , vais como básico, para a Guiné. Melhor do que seres atirador ou ficares a apodrecer no presídio militar de Elvas ou Penamacor…– consolaste-o tu e Oliveira, que estava de sargento de dia.
O pobre do desertor era alvo da chacota da maralha: alguém insinuara que o gajo era maricas e que não teve tomates (sic) para ir para a guerra… Faltosos, refractários e desertores eram a "escória da Nação", opinava o Gravata... Era um velho truque da velha instituição militar que das tripas sabia fazer coração, que da merda fazia nervos de aço, e dos cagarolas heróis... Só para manter o moral das tropas, só para aguentar a guerra, de vitória em vitória até à derrota final…
– Até quando ? – interrogavas-te tu, em silêncio.
– Lembrem-se, seus cabrões, que vocês são a fina flor da nação! – massacrava-te o tenente da tua companhia, na parada em Tavira, no Curso de Sargentos Milicianos…
Dentro de um dia desembarcaríamos na Guiné da qual espantosamente tu não sabias nada a não ser aquilo que te haviam impingido nos bancos da tua velha escola do Conde de Ferreira (onde o teu velho e o teu avô também andaram, e se calhar ainda o avô do teu pai) e que tu terias reproduzido, como um papagaio, no exame da 4ª classe ou da admissão no Liceu Passos Manuel:
– Descoberta pelo navegador português Nuno Tristão, que viria a ser morto pelos indígenas ao tentar desembarcar numa das ilhas do arquipélago dos Bijagós, a Guiné tem mais do que um terço da superfície de Portugal Continental...
E acrescentavas tu, de acordo com o livro de leitura:
– O clima é tropical húmido, e o território muito plano e baixo, com vastas regiões alagadiças e pantanosas, o que torna difícil a adaptação do europeu. Quanto à vegetação, predomina a floresta tropical e a savana arbustiva. A população – um pouco mais de meio milhão de almas – divide-se por uma grande variedade de grupos da raça negra, sendo os mais importantes os balantas, animistas, e os fulas, muçulmanos.
E finalizava com a informação sobre a agricultura da província que dava tudo, era só semear e adubar com sol e chuva... Tão rica que até exportava arroz... para a o faminto arquipélago de Cabo Verde.
Desde que deixáramos as Canárias, que tu não suportavas aquele calor pegajoso, aquela angústia difusa que destilavas através dos poros da pele. Tinhas sintomas de febre e já não sabias distinguir onde acabava a realidade e começava o delírio. O Pastilhas deu-te um LM para baixar a febre. LM, o comprimidinho milagroso , a panaceia do Laboratório Militar, que o nosso Pastilhas irá distribuir, às centenas, todos os dias, à população indígena , e que sofria de todos os males, do paludismo à lepra, da desnutrição à desinteria, das doenças venéreas à tuberculose...
De facto tudo fora tão brutal: a ordem de mobilização recebida em Castelo Branco, aonde davas instrução de recruta; a ressaca dos primeiros copos na noite do tremor de terra, em 28 de fevereiro de 1969; a apresentação no Campo Militar de Santa Margarida; a Escola Preparatória de Quadros e a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (IAO) com os rocambolescos assaltos nocturnos aos bivaques do inimigo para sacar tudo o que fosse bebível e comestível; os breves dias, tristes, vazios, de licença antes do embarque, em que decidiste não te despedir de ninguém; a viagem directa, nocturna, quase clandestina, em comboio especial até ao cais de embarque, no porto de Lisboa; os capacetes brancos dos polícias militares; os nossos familiares e amigos de rosto tenso, alguns, poucos, de gravata preta; as gaivotas, agoirentas, estranhamente pousadas nos mastros dos navios; as fragatas do Tejo, silenciosas mas tensas, polvilhando o estuário; os guindastes, o Tejo, a ponte que, de Almada, tu viras elevar-se das águas nos primeiros anos de 60; o Cristo-Rei, de braços abertos como um espanta-pardais numa tela de Dali; o apito breve mas pungente do navio, breve como um tiro, arrepiante como o sentimento indefinível de quem em Lisboa partia e de quem em Lisboa ficava; o marinheiro que soltava as amarras, um vulto, uma mão, um lenço…
E, já no mar alto, ao largo da costa da África Ocidental, entre o Senegal e Cabo Verde, tu próprio tiveras a sensação de ter atravessado o pórtico do tempo e entrado num barco-fantasma, sobrevivente da odisseia dos antigos nautas, à deriva nos medonhos mares de que nos falavam as velhas histórias trágico-marítimas…
Que fazia tu, que fazíamos nós – o Pastilhas, o Vidigal, o Joselito, o Tony, o Ranger Azevedo, o Zé Neves, o Campanhã, o Meia Leca, o Vagomestre, o Vat 69, o sacana do Gravata, e tantos outros, que ainda mal conhecias, mais o desgraçado do Peniche, e centenas e centenas de homens, milicianos ou do contigente geral, estes último acondicionados como gado em beliches, nos porões nauseabundos, ali naquele barco da carreira colonial, vogando fora do tempo e do espaço, como se o Gil Eanes nunca tivesse dobrado o temido Cabo Bojador, desfeitas as lendas do Mar Tenebroso e assim aberto o caminho marítimo para o longínquo sul, para o fim do mundo, e para os eldorados que havia por achar?!...
– Duplamente embarcado, meu velho. Fo...dido, quilhado! – repetias tu, de novo para o Pastilhas ao avistarem ao longe algumas luzes trémulas Ilha do Rei, à entrada do Porto de Bissau, no estuário do Geba, e ao ouvirem pela primeira vez uma tempestade tropical que, no meio do alvoroço provocado pelo grito Terra à Vista!, alguém confundira com o tão temido ribombar dos canhões.
– As principais exportações são o amendoim, o coconote, as madeiras exóticas e o óleo de palma. A capital e a residência do Governador é a linda e moderna Bissau... Blá-blá, blá-blá...
Foi a pensar nas zonas pantanosas e alagadiças da Guiné, nos seus mil e rios e braços de mar, nas suas margens lodosas, nos seus tentáculos traiçoeiras, que tu encomendaste ao teu velho um par de botas de cano alto, à cavaleiro... Coitado do teu velho que nunca passará da cepa torta, pomposamente colectado nas finanças como industrial de sapataria, e dando trabalho a um série de mânfios (sapateiros eram às carradas na tua terra, antes do grande éxodo do país... Julgavas tu, na tua santa ignorância ou ingenuidade, que ficarias melhor protegido contra as temíveis sanguessugas e víboras, crocodilhos e outra bicharada... Felizmente, tiveste o bom senso de cancelar a encomenda à última hora, com as medidas e a forma do pé já nas mãos de um dos oficiais de sapateiro que trabalhavam para o teu pai...
– Tite, Fulacunda, Jabadá! - alguém alvitrava nomes, como se fosse o cicerone daquele estranho tour by ngiht de aproximação à capital de um país em guerra...
Bissau.
Quinta feira, 29 de Maio de 1969...
De manhã, a malta desembarcava numa cidadezinha plana, desenhada a régua e esquadro no tempo da República (a avenida principal, a única avenida digna desse nome, chamava-se "da República"), de casas térreas, de adobe, rachas de cibe e chapas de zinco, com quintais cheios de mangueiras, papaieiras, bananeiras e trepadeiras, e onde em dois ou três quarteirões se concentrava a administração, o comércio, a tropa e a religião (católica, apostólica e a romana).
Nas ruas, sujas das primeiras enxurradas de fim de maio, putos vendiam mancarra e tu começavas a aprender as minhas primeiras palavras de crioulo. Gilas, de balandrau branco, óculos de sol e transistor a tiracolo, mercadejavam bugigangas de contrabando, falando um estranha mistura de francês, crioulo e dialectos locais. Os sons, os sabores e as cores de África baralhavam-te os sentidos e as emoções.
Nunca esquecerás aquela baforada de ar quente quando, nos primeiros dias, saímos dos Adidos e púnhamos o pé em cima da terra vermelha escaldante ou do asfalto quase líquido... E dos primeiros pesos gastos em bebidas em lata bem geladinhas... Foi em Bissau que tu pela primeira vez viste bebidas em lata que se bebiam dum sorvo, à sombra de uma mangueira ou debaixo de uma ronceira ventoínha... E quanto nais bebias, mais a sede aumentava, devido o teor de açúcar... Foi em Bissau que descobriste a Seven-Up, a Orange ou a Coca-Cola, em lata...
Em relação à Cola-Cola, confessarias mais tarde que não te tornaste fã, talvez por uma razão tão estúpida como político-ideológico: partilhavas dos preconceitos da época segundo a qual a Coca-Cola era a água suja do imperialismo norte-americano... O ódio ao imperialismo estava na moda, por causa da guerra do Vietname e da velha doutrina Monroe segunda qual a América era dos americanos, explicava-te o Zé Neves, que era jornalista, o mais politizado de todos nós.
As imagens que tu tens de Bissau, entre 30 de maio e 2 de junho de 1969, são fugidias, impressionistas, estereotipadas... Logo de manhãzinha, já as esplanadas estavam cheias de tropa à civil, beberricando cerveja, enquanto no mastro da fortaleza oitocentista da Amura flutuava uma descolorida bandeira verde-rubra. Indiferente aos velhos canhões de bronze e aos poilões pintados com uma barra branca, uma mulher passava com o filho às costas e um balaio à cabeça. Canoas talhadas em grossos troncos de poilão partiam do lodoso cais do Pijiguiti, sulcando as águas lamacentas da ria, em busca de mafé...
Tinhas uma vaga ideia do que se passara naquele cais, 10 anos atrás, em 3 de agosto de 1959, pelo que leras ou escutaras da pouca propaganda clandestina do PAIGC que chegava à capital do império, ou que era difundida pelas emissões que se ouviam, às tantas da noite, das rádios afetas aos forças oposicionistas: a Rádio Portugal Livre, a emissora clandestina dos comunistas, e a Rádio Voz da Liberdade, que emitia partir de Argel, ligada à Frente Patriótica de Libertação Nacional.
Ronceiros aviões levantavam voo de Bissalanca e, no meio da praça do Império, em cima de um Unimog, de pé e de braços abertos, frente ao mamarracho do monumento "Ao Esforço da Raça", há um sacana que exclama, histriónico (seria o Azevedo, o Ranger, que ia no UNimog da frente):
– Camaradas, cinco séculos de honra e glória vos contemplam!
E toda a gente teve de gramar a formatura de boas vindas, no dia seguinte em Brá, e o discurso do "ventríloquo" do general Spínola:
– Bem vindos à Spinolândia! – ironizava o Zé Neves, que não ia à bola com o com-chefe.
Estragado com o calendário do fim-de.semana ficara o Vidigal que, não tendo arranjado transporte nem guarda-costas, desistira da ideia de ir ao Pilão... "mudar o óleo" (sic).
Nos Adidos, três ou quatro topónimos eram pronunciados com um misto de temor e de respeito: Gandembel, Madina do Boé, Guileje... Os dois primeiros aquartelamentos tinham sido "retirados" no princípio do ano de 1969...
Pelo Geba acima, na LDG 101 Alfange...
Segunda feira, 2 de junho de 1969.
Três dias depois iriam dar-te uma G-3, novinha em folha, e uma ração de combate, para de seguida te porem no fundo duma LDG, a caminho do Leste, Rio Geba acima, escoltados por uma equipa de fuzileiros navais que, à medida que o rio estreitava, batiam com fogo de morteirete a cerrada vegetação das margens (o tarrafe) até às proximidades do Xime, em Ponta Varela… Uma ração de combate e dois cantis de água mais ou menos potável:
– Seus sacanas – vociferava o Ranger, ao lado do capitão, de lencinho preto ao pescoço, era o seu "amuleto" – aprendam desde hoje a gerir a auguinha. E ficam a saber que neste barco de cruzeiro, rio Geba acima, não há bar aberto a estas horas...
Íam dois, tu e o Pastilhas, sentados em cima de uns colchões de espuma, empilhados numa Berliet, à mistura com centenas de malas de viagem, algumas já rebentadas e atadas por cordões… O fogo de morteirete dos fuzileiros apanhou-te de surpresa… E qual não é o teu espanto quando o enfermeiro, à saída da primeira granada se lançara de cabeça para o fundo da LDG!…
Tu, que era de armas pesadas de infantaria, não tiveste felizmente reflexos tão rápidos como os dele que, na queda, acabou por ser a primeira vítima da Companhia na Guiné.
– Vítima do fogo amigo! – comentaste, entre a risota, a compaixão e a apreensão, ao vê-lo de olho inchado, e o sobrolho a sangrar.
Com um olho-à-Belenenses e com contusões no rosto, o pobre do Pastilhas, por ironia enfermeiro, foi o primeiro de nós a testar a competência dos nossos cabos auxiliares de enfermagem, seus subordinados dos serviços de saúde militar, que, noutras circunstâncias bem mais dramáticas, irão salvar a vida a alguns de nós: pelo menos sabiam aplicar um garrote e administrar o soro... a um desgraçado, atingido por tiro ou estilhaço n0 mato ou na picada.
– Como um cão apanhado na rede! – resmungavas tu sentado na capota da Berliet, prescrutando a linha do horizonte, a bordo da LDG Alfange...
Pobre do Olho-à-Belenenses, pobre do Pastilhas!... A alcunha, as alcunhas, ficaram-lhe para sempre coladas à pele.
Hoje, reconstituindo os acontecimentos em retrospectiva, pensas que ele foi o o teu primeiro herói, ou melhor, o teu primeiro anti-herói: nunca o viste a pegar uma arma, nunca deu um tiro (nem sequer contra um jagudi), nunca matou ninguém, duvidas até que fosse capaz de pôr a G-3 em posição de tiro; nunca alinhara com a malta em operações, mesmo nas grandes operações; recorda-lo sempre de bata branca, na palhota que servia de enfermaria, no posto médico de Bambadinca, e onde todos os dias uma interminável fila de mulheres, crianças e velhos aguardava a sua consulta de enfermagem (alguns seguramente gente de Nhabijões, Mero, Santa Helena, Fá Balanta, etc., quiçá até vivendo no mato, sob controlo do PAIGC, ou do IN, como se dizia eufemisticamente)...
Como enfermeiro, era um tipo competente, despachado, lesto, e a quem de resto recorríamos, com frequência, para picar as nossas bolhas de água nos pés, curar os nossos esquentamentos, com umas valentes doses de penicilina, ou aliviar os febrões do nosso paludismo, ou pintar o cu com uma estranha poção à base de tintura de iodo quando chegávamos lá, de pernas arqueadas, com a flor do Congo estampada no cu...
Ele foi o talvez o mais útil de todos nós, soube cuidar de nós e da população local... Em contrapartida, gostávamos de lhe pregar partidas, algumas de mau gosto, gratuitas e até perigosas: recordas-te de um dia, às tantas da noite, no regresso de um patrulhamento ofensivo com emboscada até à meia-noite, dois ou très chanfrados, "apanhados do clima", o terem acordado, com uma pistola Walther apontada à cabeça; ou de o termos obrigado, com a cumplicidade do comandante da companhia (qwue até era um homem bonacheirão), já na parte final da comissão, a vestir o camuflado, a pegar na G-3 e a pôr ao ombro a mochila dos primeiros socorros...
Simularam uma ida ao mato, soprando-lhe ao ouvido temíveis nomes como Ponta Varela, Poindom, Ponta do Inglês, Baio, Burunbtoni, Fiofioli, Curobal... Dissemos-lhe que ele não nunca poderia voltar connosco a Lisboa, virgem, sem o baptismo de fogo...
Cinquenta metros depois de termos passado a porta de armas a caminho do objectivo, o Pastilhas teve um colapso, um ataque de pânico, vomitou por cima e por baixo, acabou por ser ele a pregar-nos um grande susto... Levámo-lhe de urgência ao posto médico...
No dia seguinte lá estava ele a servir as suas pastilhas e a dar as suas picas e os co,primidos LM, os "mezinhos", aos doentes africanos da tabancas em redor... Era aí que ele se sentia gente, e sobretudo enfermeiro a tempo inteiro... Um homem absolutamente deslocado na tropa e na guerra...
Voltarás a encontrá-lo, muitos anos mais tarde, vinte anos depois, na Anadia no "Zé dos Leitões": era o dr. Andrade, médico de clínica geral em Aveiro, e médico do trabalho, numa fábrica de automóveis em Cacia.
Voltaste a encontrá-lo mais tarde e lembras-te de ele me ter falado, sem ressentimentos, com muito orgulho, com um brilhozinho nos olhos, dos seus dois filhos, um deles médico e professor na NOVA e outro engenheiro aeroespacaial, a trabalhar em Montepellier, França..
Perdeste-lhe entretanto o rasto, mas confessaste ao Zé Neves que gostaria de voltar a encontrá-lo, para lhe dizer que ele agora fazia parte da tua "galeria de heróis", a ele que tinha sido vítima de algumas das nossas brincadeiras mais estúpidas, praxes de mau gosto, que ele suportou com a sua proverbial bonomia... Na realidade, sermpre houve "bullying" na caserna, e não apenas na esccola, na catequese, no liceu, ou no local de trabalho.
– A guerra é estúpida e cruel, e torna os homens estúpidos e cruéis. E o homem, primata social, territorial e predador, tem, além disso, a particularidade comportamental de ser o único animal do mundo que mata ou humilha as suas presas por mero prazer, usando a violência gratuitamente, sem necessidade... – comentataste tu para o Zé Neves, agora jornalista reformado, profundo conhecedor do Bairro Alto, em Lisboa, e que tu reencontravas com alguma frequência na Cervejaria Trindade, nos idos anos de 1975.
O Pastilhas tivera o azar de ter sido marcado, desde muito cedo, como alguém que parecia transmitir medo, fraqueza, vulnerabilidade, insegurança – sinais a que qualquer predador está atento, quando observa uma potencial presa. O enfermeiro era um verdadeiro animal acossado nos primeiras semanas ou meses na Guiné: ainda antes do lusco-fusco era frequente vê-lo a rondar os abrigos como se estivessemos na iminência de um ataque...
Por outro lado, ele cometera, ainda a bordo do Niassa, um erro tático ao relacionar-se, de maneira preferencial, com o grupinho do 1º sargento Gravata, com quem de resto tinha mais afinidades ... Os furriéis milicianos, sobretudo os operacionais, em conflito com Gravata, marcaram o Pastilhas e às vezes faziam-lhe a vida negra...
Não tens qualquer esperança que ele te leia este "conto com mural ao fundo"... Há uma conversa que tu e ele começaram no Niassa e se prolongou pela LDG Alfange, mas que ficou por terminar... Nunca gostaste de conversas interrompidas a meio... De qualquer modo, vais ter de lhe perguntar:
– Afinal, em que ponto é que a gente ia, depois daquele incidente na LDG quando seguíamos rio acima até ao Xime ?... Ainda te lembras, em 2 de junho de 1969?"...
Claro que ele não se vai lembrar de coisa nenhuma: terá sido o primeiro de todos nós a esquecer a Guiné... para sempre!
– Guiné ?!, um pesadelo de um noite de verão!... Esquece, não sejas masoquista!... – arrematava-te o Zé Neves, entre duas imperiais e um bife à Trindade, no verão quente de 75 .
© Luís Graça (2006). Nova versão, revista e melhorada, em 1/12/2023.
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