domingo, 10 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4316: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (4): A bazuca em rajada

A BAZUKA EM RAJADA

Esta história tem os seguintes considerandos iniciais.

A sua lembrança é motivada pelo comentário do Alberto Branquinho à minha história anterior, em que ele sublinha que a sua insistência em negar-se a “falar de si ou do seu umbigo” tem como alvo “aqueles que falam/escrevem só e sempre sobre o seu próprio umbigo”. Acho que o compreendo!

Por outro lado tive sempre a tentação de reagir a um artigo publicado no P2264, que é uma espécie de carta escrita pelo Luís Graça a um seu amigo (o Tony Levezinho) transformando-o em interlocutor imaginário daquilo que observou durante uma estadia em Bissau quando, durante algum tempo, esteve “desenfiado” do “Vietnam”.

Para além de considerar essa carta muito interessante, pelo seu conteúdo, pelos pressupostos, até por referir algumas situações ou episódios que eu, ao tempo, “vivia” cá na chamada “Metrópole”, e também para além de retratar, com bastante azedume, aliás, alguma da “fauna” de Bissau, há lá um aspecto que eu próprio testemunhei mais tarde, provando que, nesse capítulo, pouco ou nada se alterou entre o “tempo” do Luís e o meu “tempo”.

Refiro-me ao facto “as tropas especiais” normalmente se “pavonearem” por Bissau, nos períodos em que por lá andavam. Mas, em termos de “exageros de actividade operacional”, também havia, e muito, quem gostasse de contar as suas histórias, as suas aventuras, os seus actos inigualáveis de heroísmo, sempre mais, maiores e mais ousados que o do “contador” antecedente.

Sempre tive alguma dificuldade em entender porque deveriam ser “heróis” aqueles que tinham (têm) como mérito o “saberem matar muito, destruir muito”, em detrimento daqueles que “salvaram, construíram, ajudaram, muito ou pouco”. Certamente será um problema meu, que passará com o tempo, ou então, não!

Foi então a junção destas duas lembranças, “os que falavam de si” e os que exageravam até à náusea, que me fez recordar este pequeno episódio.

Num daqueles dias em que a paciência estava esgotada, vá lá agora lembrar-me porquê, em que não havia paciência para aturar as fanfarronices, as idiotices desbocadas, o exacerbamento do ego de alguns daqueles elementos da “fauna” de Bissau, estando no bar de Sargentos de Santa Luzia, depois do almoço, deixei-me estar na roda de “heróis” que contavam as suas façanhas.

Como disse, a paciência não era muita e depois de ouvir três ou quatro episódios em que haviam sempre emboscadas com, invariavelmente, dois bigrupos (não sei porquê, mas isto dos dois bigrupos era infalível, parecia o Juca Chaves a parodiar o Gary Cooper), em que os personagens “contadores da história” acabavam por ser o elemento decisivo para a resolução do problema e em que em resultado da sua acção os elementos do IN caíam que nem tordos, a fazer lembrar os filmes de “faroeste” com os índios a serem dizimados às dúzias, não me contive e disse que também tinha uma história parecida para contar.

Tendo em conta a minha atitude normalmente reservada, ficaram admirados que tivesse alguma coisa a revelar, mas dispuseram-se a ouvir.

Então eu disse que também se tinha passado comigo uma situação semelhante às que eles tinham estado a contar, que tinha ocorrido numa coluna em que vinha inserido, pouco depois do k3 (era sempre bom referir estes locais de respeito), a qual caiu numa emboscada medonha, eram pelo menos dois bigrupos, talvez até três, e em que a rapaziada ficou tão surpreendida que saltámos dos “unimogs” e alguns até abandonaram os seus equipamentos.

Os “gajos” estavam em cima da gente, a coisa estava feia e eu, que até nem era nada dado a actos de heroísmo, nem sei o que me passou pela cabeça, saltei do chão, agarrei na bazuca que tinha ficado em cima da viatura, coloquei-a junto à cintura, enfrentei os gajos fazendo a “menina” cantar… rá tá tá tá tá tá tá tá, rá tá tá tá tá tá tá tá,. Com esta minha intervenção os tipos assustaram-se, a nossa malta ganhou ânimo e conseguimos abortar a emboscada com poucos feridos e causando inúmeras baixas ao IN.

Propuseram-me um louvor e colocaram-me na “Escuta”. Era por isso que agora eu estava lá.

Como calculam, após alguns breves instantes de perplexidade e de estupefacção (não se esqueçam que isto se passa no Bar, após o almoço…) um dos ouvintes diz: “é pá, mas a bazuca não dispara em rajada!”

Aí eu disse: Ai não? E porquê? Na minha história dispara, sim senhor! Então vocês podem contar as histórias como querem, com as invenções que entendem, e eu não posso? Pois estão enganados, na minha história há uma bazuca que dispara em rajada e vai ficar sempre assim, porque essa é a minha verdade, vocês fiquem com as vossas! Passem bem!

Após esta saída de cena, houve desmobilização geral. Alguns ainda pretenderam empertigar-se um bocado, sentindo-se ofendidos na sua honra, pela dúvida lançada quanto à veracidade das suas histórias, mas foi sol de pouca dura pois começaram a discutir entre eles, cada qual desmentindo os outros.

Reconheço que foi uma atitude pouco conciliadora e certamente injusta para com aqueles que na verdade enfrentaram reais situações mas, como disse, a paciência tem limites e, também em boa verdade, aquelas conversas já enjoavam. Mas foi quase “remédio santo” pois durante bastante tempo não houve bigrupos…

E pronto, esta história já está!

Um abraço para toda a Tabanca!

Hélder Sousa

Fur. Mil. Transmissões TSF

_______

Nota de MR:

Vd. último poste da série em: 22 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4235: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (3): Recordar aos poucos ou circuncisão espectacular

7 comentários:

António Matos disse...

Caro Helder,
Se outra coisa não quisesse comentar, permito-me fazê-lo a este teu texto pelo espectacular relato da tua "façanha" não só em pores a bazuca a cantar como uma costureirinha mas também, e fundamentalmente, pela desempoeirada, despretenciosa e acutilante maneira de ver e ouvir os relatos dos nossos heróis, alguns dos quais a tentarem vender aventuras que acabavam de ler nos livros aos quadradinhos ou então, sei lá, em pequenos relatos promocionais ao Bolo Rei e respectiva fava ...
São, de facto, confrangedores esses testemunhos que ainda hoje ouvimos despudoramente serem usados no café da aldeia onde se juntam 1/2 dúzia de velhadas, ou na feira de gado, ou mesmo em reuniões do mais fino trato.
Não devo nem quero dar-te conselhos, mas sugiro-te que não desprezes a tua veia satírica face a alarvidades dos pseudo-heróis e nos brindes com mais estórias do género!
Parabéns e um abraço
António Matos

Luís Graça disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Luís Graça disse...

Divertido, bem humorado,cáustico q.b., pedagógico, didáctico...
Adorei!...

Em todas as guerras, de um lado e do outro, há sempre fanfarrões.

C/ um abraço, de alguém que também estteve und dias 'desenfiado' em Bissau, 'longe do Vietname', e ouviu no Chez Toi, no Pelicano, na 5ª Rep..., histórias de fanfarrões.

Luís Graça

PS - Já é tempo de teres a tua série própria... Não te gosto de ver nesta série "Histórias avulsas"... Fica à consideração dos editores de serviço.

Anónimo disse...

Olá Helder:Gostei e, já agora imagina esta cena.
Algures ,no século passado,ao balcão em forma de U de um Bar/café, beberricavam o café do pós jantar vários cidadãos. Entre eles bons "contadores de estórias".Diz um, depois de uma incrível contada por outro.
- Vocês já viram o filme Lawrence da Arábia? Os ouvintes meteram a chávena ou cálice de medronho na boca e olharam-no...
- Fantástico! continuou o "contador"; olhem no intervalo o pessoal saia de lá á pressa e, no bar, esgostou a cerveja e as bebidas frescas,tal a realidade demonstrada...foi interrompido;
- Eu vi disse um outro, não um contador mas o melhor gozão que conheci. Eu vi e irei ver quando voltar a Lisboa.Sabem o que me aconteceu?
-Diga, diga Doutor,disse o contador.
- Olhem o que me aconteceu:- cheguei ao hotel e rapidamente tirei os sapatos,
- Então porquê Doutor?
- Para me aliar caramba. Que alivio senti.Finalmente consegui tirar a areia do deserto que quase enchia os sapatos e...
-Porra,disse o contador e professor de profissão. Porra vá gozar com...e saiu cabisbaixo a lançar impropérios.
Os outros cidadãos já não beberricaram logo pois, se o fizessem borrifavam-se uns aos outros.
Aí Alentejo, alentejo da minha alma,tão longe me vais ficando...pois meu caro Hélder a melhor atitude é uma rajada de bazooka ou uns sapatos com areia...mas eles sentem-se felizes, enchem o ego e arrotam...
Abraços camarada e venham mais histórias. AB do Torcato

Anónimo disse...

Caro Hélder,
Que dizer desta tua soberba estória ou história que ultrapassa qualquer feito. Quais operacionais qual carapuça...
Mas depois do comentário do mestre da prosa que assina como um entroncamento (T)vou ficar-me por aqui.
Um abraço
BSardinha

Anónimo disse...

BAZUCA EM RAJADA? PORQUE NÃO?

NÃO CACEI EU,TUBARÕES NO GEBA?

ABRAÇO

Jorge Cabral

Anónimo disse...

Porra Helder!
Já deixaste meia-dúzia em contrição. Então a liberdade que prezamos? A excelente capacidade descritiva de factos e acontecimentos, falsos ou verdadeiros? Essa verve que tão bem caracteriza o povo lusitano? Helder, diz lá depressa, o que fazer a empolgantes tiradas como "a mim ninguém me cala!".
Abraços.
J.Dinis