domingo, 12 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4673: O mundo é pequeno e a nossa Tabanca... é grande (15): Ingoré e Gandembel na feira de Custóias, Matosinhos (José Teixeira)

Guiné > Região do Cacheu > Ingoré > 1968 > O 1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2831 (1968/70), posando em cima de uma autrometralhadora Daimler... Os alegres dias de Ingoré, com o pessoal da CCAÇ 2381 em treino operacional antes de ser colocado no sul (região de Quínara e região de Tombali)...

Foto: © José Teixeira (2005). Direitos reservados

1. Mensagem do José Teixeira, ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70 (*):
Caríssimos editores. Depois de uma conversa que tive ontem com o Chefe de Tabanca, Luís, o qual me deixou a pensar, resolvi escrever este texto inspirado numa cena hoje vivida. Se merecer ter entrada no blogue, façam favor . abraço fraterno para tudo dgenti.

José Teixeira.


O QUE NOS DEVE UNIR COMO VETERANOS DE GUERRA (**)
por José Teixeira


É meu hábito, desde longa data, todos os sábados de manhã ir à feira de Custóias, [no concelho de Matosinhos,] abastecer-me de frutas e legumes.

Um dos feirantes, onde normalmente adquiro a fruta , bateu com os costados na Guiné. Soube-o há pouco tempo e desde então a nossa forma de estar e conversar modificou-se, para admiração dos seus dois filhos, já que minha esposa conhece o que a casa gasta. Desde os bons dias como "na pinda” ou "corpo di bó, o “vai no gosse” ou “manga di ronco” etc. Os rapazes devem legitimamente pensar que o pai estar "apanhado pelo clima”.

Neste sábado a conversa centrou-se nos locais por onde passámos e para alegria de ambos, Ingoré foi o nosso hotel por algum tempo, embora em épocas diferentes. Barro, Antotinha, Sedengal, Ingorezinho, etc nomes sonantes para nós, com aventuras pelo meio que logo começaram a ser contadas.

Continuando a nossa conversa/caminhada, deslocamo-nos para o Sul, onde Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Gandembel foram estrelas para mim que o meu amigo e camarada não chegou a conhecer.

A meu lado postou um possível comprador de fruta, o qual de repente e sem ninguém contar, começa a cantar:

Gandembel das morteiradas,
dos abrigos de madeira,
onde nós, pobres soldados,
imitamos as toupeiras...


Que espanto! Que alegria ! o meu coração já bailava ao som da cantiga, que tantas vezes cantei no terreno e ainda o ano passado foi show no Simpósio de Guiledge.
- Quem é você ?
- Um pára-quedista da Companhia 121, que esteve em Gandembel, Aldeia Formosa, Cantanhez na segunda metade de 1968.

Segui-se o rosário habitual das cenas vividas naquele inferno, algumas delas em comum, como a coluna que foi a Gandembel levar mantimentos com os Páras na mata a montar segurança e eu/nós na picada a levantar minas e fazer caminho, para que as viaturas carregadas pudessem chegar ao destino.

Que bela manhã de sábado !

Esta minha feliz vivência, quarenta e um anos depois, creio, vir a propósito perante o momento que a Tabanca Grande vive neste momento. Momento, no mínimo apreensivo, para quem cá anda desde 2005, quando estávamos a chegar aos cinquenta tertulianos. Desde essa data, leio avidamente tudo quanto aparece escrito, porque me diz muito. Fala-me de uma terra que é a minha segunda pátria. Também lá pus as minhas marcas; o meu Diário, escrito a quente e outras estórias que não couberam no diário, mas que ficaram gravadas no coração (*).

O desafio que nos é posto, simples e concreto – não deixes que sejam os outros a contar a tua História, por ti – é estimulante e pode vir a ter muito valor, se é que já não tem, na realidade histórica que os nossos vindouros vão querer saber no que respeita à guerra colonial.

Nós somos os actores da História que vivenciamos e temos condições para sermos os autores dessa mesma História. Isto é, as nossas estórias, serão a base verdadeira e real suporte para os historiadores, que no futuro farão da nossa estória, uma História de factos reais vividos e testemunhados e não uma lenda.

Ultimamente, o nosso blogue,(como o Moreira de Gandembel, recém-chegado, me dizia há dias pelo telefone) por intervenção de alguns camaradas, tem-se desviado do seu objectivo central, para se perder em questiúnculas estéreis, vazias de conteúdo histórico, atiçadas por paixões pessoais, de índole, politica, partidarites, e até militarites.

Assim, não fazemos/construímos a História, a nossa verdadeira história, vivida e sofrida de tal modo que ninguém conseguirá substituir-nos.

Basta-me o que vivi no terreno como escrevi no meu Diário:

Janeiro 1969 / Chamarra / 23

É tremendamente chocante ver morrer um camarada na guerra, mas custa muito mais quando se morre por acidente, por descuido e sobretudo quando a morte é causada por vingança de outrém.

Ontem ao anoitecer, em Aldeia Formosa, alguém, lançou uma granada de mão para a Messe dos sargentos. Não se sabe quem foi. Branco ou negro. Por vingança, por descuido. Os resultados foram tremendos. Dois soldados, meus camaradas, tiveram morte imediata e houve ainda dez Furrieis feridos, alguns com gravidade. As medidas tomadas pelo Comandante para descobrir o assassino ainda não resultaram.

Aqueles dois colegas que casualmente se encontravam à porta encontraram a morte, pela mão de um companheiro cego pela loucura ou pelo ódio, tudo leva a crer. (...)


Abril,1969 / Buba / 19

Pela primeira vez, num ano de guerra com diversos casos graves e mortais, vi camaradas meus serem varados por balas de armas manejadas por companheiros só porque já não se houve a voz da razão.

Um pequeno incidente de palavras entre um soldado da minha Companhia e um Comando Africano, quando tomavam banho originou uma luta entre Fuzileiros e Comandos com consequências graves. Parece está tudo louco.

Um Comando branco defendeu o Africano e alguns 'Fuzas' intrometeram-se. A coisa azedou e surgiu uma cena de pancadaria de que resultou algumas cabeças partidas e olhos negros. Aparece uma G 3 a vomitar uma rajada e quatro meros espectadores ficam gravemente feridos. Uma perna desfeita, um braço cortado e o mais grave veio a falecer com uma bala na cabeça. Foi este o resultado de uma simples discussão.

Eu estava de saída para o mato e mal vi os feridos. Pela primeira vez na minha vida de guerra, chorei. Lágrimas de raiva ... e de sangue.


Amigos e camaradas, contemos as nossas estórias sem as carregarmos com espartilhos, estribilhos e outros ilhos. Deixemos que a melancolia de um passado que não voltará, lhe dê um toque de romance, porque não! Mas não as sobrecarreguemos com as marcas que a vida que se seguiu, se encaixaram dentro de cada um de nós.

Sobretudo, saibamos, compreender os camaradas que, ao contar as suas estórias, reflectem uma visão ou pontos de vista diferentes dos nossos. Admitamos que eles viram e viveram os acontecimentos à sua maneira.

Não nos esqueçamos que somos todos iguais como homens, mas todos diferentes na essência, na educação, nas marcas que a vida nos foi deixando. São essas diferenças um enorme factor de riqueza que permitiu ao homem, nascer, crescer e caminhar no cosmos, promovendo a mudança e o crescimento, que nos permite esta forma de viver que ninguém sonhava há alguns anos atrás.

É essa diferença de pontos de vista sobre a mesma vivência, sem ataques pessoais que nos vai permitir uma visão de conjunto, mais realista, permitindo um crescimento cultural efectivo.

Há tanta coisa que nos une, porque havemos de alimentar e dar força a pequenas coisas /paixões que nos desunem, nos fazem sofrer e tiram valor à história que vivenciamos, a qual ninguém jamais nos poderá substituir.

Para todos um abraço fraterno do tamanho... Talvez da vida que vivemos.

José Teixeira

2. Comentário de L.G.:

Zé: Obrigado pela tua história de hoje... Tens um especial talento para fazer um bela história com pouca matéria-prima... Ou melhor, com dois ou três pequenos apontamentos ou observações. A tua ida, ontem, à feira de Custóias veio mostrar que, afinal, o mundo é pequeno e que o nosso blogue é...grande. À volta de coisas tão essenciais como a fruta e os legumes, fostes descobrir , por acaso, camaradas que andaram pelos mesmos sítios que tu, nos idos anos de 1968... E como foi genuína e bonita a manifestação das tuas emoções, do teu espanto e da tua alegria!...

Nem sempre os nossos familiares e amigos entendem esta capacidade de ainda nos emocionarmos, quarenta anos depois, ao encontrar alguém que passou pelos sítios que nós... durante a guerra da Guiné. Às vezes, até ficam com uma pontinha de ciúme pelos novos amigos que fazemos, os camaradas da Guiné...

Esse, é de facto, o maior denominador comum que nos une, a capacidade de falarmos uma linguagem comum como ex-combatentes, falarmos de coisas comuns, lugares, episódios, pessoas, emoções, experiências, que partilhamos uns com os outros...

Pessoalmente, não exijo mais deste blogue que criei, e que ajudo a alimentar todos os dias, com o talento, o apoio, o entusiasmo, a entrega, a paixão, a criatividade e a camaradagem de tanta gente fantástica como tu e os meus/nossos queridos co-editores, Carlos Vinhal, Virgínio Briote e Eduardo Magalhães...

Obrigado, meu Esquilo Sorridente! Que este blogue continue a proporcionar-te outros felizes encontros e a dar-te muitas outras alegrias... Julgo ser essa a sua missão primordial...
_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 14 Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi.

(**) 7 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4652: O mundo é pequeno e o nosso Blogue... é grande (14): O mundo é do tamanho duma ervilha (António Matos)

6 comentários:

mario gualter rodrigues pinto disse...

caro José Teixeira

Tenho seguido com atençao as tuas recordaçoes da Guine.
Tambem estive em Buba Manpatá Ald. Formosa em 59/71 pertencia á Cart.2519 os morcegos de mampatá, por isso vivo com intencidade as tuas recordaçoes. Já agora se estiveres interessado em saber algo mais vai ao Blogue: www.cart2519osmorcegosdemampata.blogspot.com
um abraço
Mario Pinto

Unknown disse...

Caro Zé, mais conhecido como o Teixera da Bajudas. Como é bom ler-te e conhecer mais alguns episódios da tua - nossa - vida que parece que não mas que sim, tem muito de comum lá por aquelas bolanhas.
Na feira de Custóias, quem sabe, um sábado organizamos um golpe de mão e entratamos por ali dentro e "pescar" mais camaradas para o nosso meio.
Um abraço para ti e para a Tabanca Grande

Zé Teixeira disse...

Camarada Mário Pinto.
Sendo Mampatá a primeira terra na minha segunda Pátria, deixa-me considerar-te meu conterraneo.
só estive em Mampatá cerca de 6 meses integrado no meu Crupo de Combate, única força ali estacionada a par do pelotão de mimicias comandado pelo grande Aliu Baldé e pelo querido amigo Hanadú que faleceu o ano passado em Buba com fama de maribu (santo mussulmano). Depois fui até à Chamarra. Mampatá ficou-me no coração,pelas suas gentes amorosas.
Já dei uma espreitadela ao teu bloguee fiquei triste ao saber que a Compª dos lenços azuis, que me foi buscar a Buba e com quem vivi grandes aventuras, tenha encerrado a sua vida nessa zona com mais duas Mortes.
Agora só falta convidar-te a fazer parte da grande Tabanca Grande. com certeza tens muita coisa para contar.
Podes dar uma volta pelo site da minhaCompania: http://empada.no.comunidades.net/

Abraço fraterno do
Zé Teixeira dos Colhões Negros de Mampatá.

Anónimo disse...

Zé Teixeira

É isso - problemas pessoais, partidarites, militarites, vaidades...
Por outro lado, ainda há outras "feiras de Custóias".
Só não gosto é da palavra "veteranos" - foi importada dos States (NamVets, KorVets...).
Um abraço
Alberto Branquinho

Anónimo disse...

Caro Zé

Mas, porra!!! Estive eu com o trabalho da lenga-lenga para explicar o uso das "Barretas" p´ra quê? Se a usasses como seria a tua "obrigação" era ver as bajudas, e não só mas também, principalmente os veteranos de guerra, atrás de ti para ouvirem de viva voz e ao vivo as tuas histórias.
Estás á espera de quê, ou estás com medo de tirar o lugar ao Paulinho das feiras.
Não custa nada é só pô-la ao peito com orgulho.

Uma quarta feira destas, vou ao Milho Rei para te puxar as orelhas.

Um abraço
cumprim/jteix

Anónimo disse...

Caro Zé Teixeira

Diz o Alberto Branquinho:
"Só não gosto é da palavra "veteranos"-foi importada dos States"

Então e os veteranos da 1ª GG que estavam presentes nas comemorações da batalha de La Lys, também copiaram dos "NamVets, KorVets..."?

Passados 40 anos não temos já direito ao estatuto de veteranos, designação mais correcta, acho eu, para os ex-combatentes do Ultramar?
Ex-combatentes, são também, dizem eles, os actuais "voluntários" que por 6 meses vão lá fora ganhar chorudos ordenados.

Guerras á parte, que não haja confusões com os que combateram na "nossa guerra".

Eu sou veterano de guerra.

Um abraço

cumprim/jteix-veterano de guerra
ex-Furriel Milº Art
CART2412 68/70 Bigene-Guidage-Barro